Contos VIII - Morte (I)

Parte II
Parte III

Acordou naquela fria e nublada manhã de domingo, 20 de junho, com a mesma sensação de todas as outras manhãs que já viveu. A diferença é que aquela era a última manhã de sua vida, ele não sabia disso, não acordou com nenhuma premonição, nem com nenhum estranho sentimento, melhor assim, teria uma morte imprevisível, num dia simples e que aparentemente seria ensolarado, as nuvens escuras começavam a dissipar-se.

Estava muito cansado, seu corpo doía, ficou um tempo deitado na cama, olhos fechados, queria coragem para se levantar, suas últimas 48 horas de vida tinham sido muito difíceis, não se lembrava de nenhum momento tão estressante quanto aquele.

O banho e a rotina da manhã não foram alterados, tomou o mesmo demorado banho frio, o seu último banho debaixo daquele chuveiro, fez as mesmas preces matinais, que não seriam as últimas, ainda não! Escovou modorrentamente os dentes debaixo do chuveiro, planejando como seria o dia, pensava em descansar um pouco, estava exaurido e a semana seria muito difícil e ele precisava de forças para enfrentar os desafios que viriam. A água que escorria pelo seu corpo parecia lhe avisar que ainda naquele dia ela o envolveria como um manto, como um manto de morte. Depois se enxugou e foi para a cozinha fazer um café, gostava de café quente e com leite, tomava muito café. Tomou a sua última xícara de café com o olhar absorto e perdido no vazio, nem sabia que era a última, talvez não tivesse tomado com tanta pressa.

Vestiu-se, sentou na frente do computador e leu as principais notícias dos jornais, checou seus e-mails, não respondeu nenhum, deixou para mais tarde, melhor assim, quem tivesse recebido algum e-mail seu poderia amargar grandes recordações que só trariam dores. Postou algumas frases no seu blog e levantou-se imaginando que teria um dia normal, nada de excepcional, nada de especial.

Dois dias antes havia recebido uma ligação telefônica de uma colega de trabalho de uma cidade próxima, ela avisava que a loja que ela gerenciava corria risco de ser inundada por uma enchente que se aproximava, a cidade vizinha já estava debaixo d’água.  Como ele era gerente de logística da empresa, tinha que enviar funcionários e veículos para esvaziarem a loja. Não precisava ir, apenas coordenar, mas como gostava de acompanhar o que estava sendo feito para garantir que sairia do seu jeito, colocou botas para chuva, que ele havia mandado comprar naquele dia, pegou uma capa de chuva e saiu, eram quase 09h00 da noite, esta seria uma das mais longas noite de sua vida.

Contactou com vários funcionários, 14 ao todo, e os enviou para a cidade que seria inundada, 05 caminhões, contava ir em um deles, mas um colega de trabalho, que tinha a responsabilidade pela operação se comprometeu em ir juntos, num automóvel. Muito embora ele achasse muito mais seguro um caminhão, mas por insistência do diretor da empresa, aceitou a carona, depois se arrependeria, o que só reforçaria em sua mente a certeza de que seu julgamento sobre as ações que tomara naquele dia tinham sido corretas.

Entrou naquele carro consciente que estava vivendo uma aventura, com todos os riscos que ela traria.

Dirigiram-se para a cidade, que distava uma três horas de viagem, mas foram retidos num gigantesco engarrafamento, uma parte da rodovia estava submersa, carros pequenos não passavam, caminhões e ônibus estavam parados, todos temiam a correnteza. O colega que deveria ir para coordenar a operação lhe disse que iria voltar, pois era arriscado demais seguir em frente naquelas condições.

Ele desceu do carro e seguiu em frente, com o temperamento impetuoso que lhe era característico, que sempre o metera em confusões. Queria ver com seus próprios olhos o empecilho de chegar a seu destino.

Constatou que não era para tanto, a correnteza não estava tão forte assim, e os veículos grandes passariam com facilidade, desde que os motoristas fossem atenciosos. Lamentou que não houvesse ninguém da polícia para organizar aquele caos, o maior problema ali era a desorganização e não a água que corria e levava o que estava em seu curso. A sua formação e a sua profissão de gerenciar no meio do caos lhe davam a direção do que fazer exatamente, mas não havia jeito, o tumulto era muito grande.

Um motorista de um caminhão bastante gasto resolveu enfrentar a correnteza, ele se aproximou da carroceria do veículo, quando percebeu que iria entrar na água, subiu em cima do caminhão e sentou-se, torcendo que a travessia do vão de mais de 30 metros fosse tranqüila. O caminhão avançou com dificuldades, com os pneus traseiros sendo arrastados para um canal, mas a força do motor, ainda que velho, foi maior e ele chegou do outro lado sem muitos atropelos.

Desceu do velho caminhão, agradeceu ao mal humorado motorista pela carona não permitida e preparou-se para esperar por outra carona que pudesse lhe levar ao destino. Tinha em mente pegar uma carona no caminhão de uma transportadora no qual havia trabalhado, ele estava no meio daquela fila enorme, havia passado por ele quando, à pé, se dirigiu ao local da inundação, até com o motorista falou, eram amigos, agora só restava mesmo esperar. Olhou para o relógio e viu o quanto era tarde, já era quase meia noite, o que mais lhe preocupava é que mesmo sem chover, o curso da água seguia seu rumo inexorável, talvez já fosse tarde quando ele chegasse à cidade.

Esperou por muito tempo debaixo de uma parada de ônibus, ao longe já percebia o alcance da tragédia que se avizinhava, várias ruas estavam debaixo d’água, o nível do rio subia assustadoramente.

Achou estranho que um ônibus se aproximasse da parada, ao olhar direito percebeu que era para a cidade que ele pretendia ir, subiu rapidamente e encostou-se a uma grade, sabendo que teria uma viagem de 02 horas, com frio, fome e em pé.

Duas ou três cidades depois desceu alguém, liberando um lugar para que ele pudesse sentar, a cadeira era apertada e o ônibus tinha goteira, nada contribuía mesmo, o jeito foi se ajeitar e tentar tirar um cochilo, para que o tempo passasse rápido.

Acordou quando o ônibus entrava na cidade, não via nenhum vestígio de inundação, não conhecia a cidade, nunca tinha ido lá, porém começou a ouvir rumores de que partes dela já estavam inundadas, perguntou a alguns transeuntes como chegar ao centro da cidade, tomou a direção indicada e foi embora, já debaixo de chuva.

Passou por ruas com água no joelho, sorte que estava de galochas, a roupa já estava molhada, os óculos de grossas lentes também, a aparência não era nada atraente, parecia mais um nerd que caiu de outro planeta, o pior é que míope do jeito que era nem poderia tirar estes, sob risco de cair num buraco qualquer.

Ao se aproximar da loja, viu na rua principal um intenso movimento, eram quase duas horas da madrugada, mas o movimento parecia ser de 07 ou 08 horas da noite, um estranho balé sincronizado estava acontecendo, caminhões, automóveis, carroças, tudo estava sendo usado para que as pessoas colocassem aquilo que achavam que valia à pena salvar, sem tumulto, sem pressa, mas com firmeza, determinação, parecia uma zona de guerra, em breve aquelas ruas ficariam desertas, pensou ele.

Antes mesmo de chegar à loja, defrontou-se com a loja de uma rede concorrente, parou, procurou o gerente e se dispôs a ajudar no que fosse preciso, apertaram as mãos e ali nasceu uma amizade que duraria por toda aquela noite, daquelas que nasceram para durar apenas um dia, mas que valem por uma vida.

Andou alguns metros e viu que três dos “seus” caminhões, como ele costumava chamar, já haviam chegado, pois tinham vindo em sentido contrário ao que ele havia tomado, os dois que tinham saído depois dele ainda estavam distantes. Notou que os funcionários já estavam carregando os veículos, já tinham carregado um com os objetos de valor, estavam no segundo, ele havia dado ordem para que não perdessem tempo, e eles estavam cumprindo à risca o que ele havia pedido. Cumprimentou a todos, como era de seu jeito, apertando a mão de cada um, agradecendo por terem ido e entrou na loja, achou uma bonita loja, pena que ficaria vazia em questão de horas, dirigiu-se aos fundos onde lá encontrou a gerente, que ele passou a tratar como a uma heroína, sentada numa cadeira, coordenando a operação, apresentou-se, pediu permissão e começou no seu jeito peculiar de ordenar e dirigir de forma motivadora, instigadora. Parecia que já tinha feito aquilo centenas de vezes, procurou manter-se tranqüilo, sereno, precisava de todo a sua concentração no que deveria ser feito, a noite seria muito mais longa do que imaginava.

Percebeu na gerente da unidade um suspiro de alívio, por transferir a responsabilidade por tudo aquilo, ela lhe disse que nem imaginava que viria um veículo, quanto mais cinco e com ele à frente para conduzir tudo.

Saiu para a rua e, por inusitado que possa parecer, teve ânsia de vômitos, um cheiro nauseabundo o incomodou, era um mendigo fritando carne podre numa marquise ao lado da loja, teria que conviver com aquilo a noite toda, o cheiro não diminuía, era mais um complicador, mas um para ser transposto.

Foi até um mercadinho próximo com alguns de seus colaboradores e comprou alimentos, todos estavam com fome, procurou ser generoso, todos precisavam de força, não economizou, preferia que sobrasse a que faltasse.

Perguntou aos funcionários que eram da cidade onde estava o nível do rio, mostraram-lhe, e a partir de então de meia em meia hora ele ia aos pontos críticos para certificar-se do avanço da água, percebia que estava lento, subia pouco, não chegou a acreditar que a rua da loja, que ficava numa parte relativamente alta seria alcançada, pensou na inutilidade do que estava fazendo, mas consolava-se com a certeza que era melhor prevenir do que remediar, já que estava ali, então faria o melhor e faria bem feito.