"Chora Palestina!"


O Sétimo, CD lançado em meados de 1997, representa uma fase da carreira do cantor e compositor Sérgio Lopes, generosamente considerado por muitos como “o poeta gospel” (alguns, porém, entre os quais eu me incluo, substituiriam com facilidade o “generosamente” por “exageradamente”), que poderia ser chamada de início da maturidade. Por vários motivos este disco é um marco na vida dele, dentre os quais eu citaria: é o seu sétimo CD (o que de cara já justifica o título); o lançamento foi pela Line Records, que já começava a figurar no rol das maiores gravadoras do país; o trabalho foi produzido com muita qualidade por Pedro Braconnot (aquele mesmo de Rebanhão!) e o principal motivo: foi por conta deste CD que Sérgio Lopes recebeu o primeiro Disco de Ouro de sua carreira e no ano seguinte (1998) recebeu, em Belo Horizonte (MG), o Troféu de Música do Ano pela faixa "O Lamento de Israel".

O que inspirou esta música, ou como diriam os poetas nordestinos: “o mote” que justificou a sua existência, foram as comemorações do Cinquentenário da fundação do moderno Estado de Israel, o CD foi lançado nos meses que antecederam às aludidas comemorações.

Naquela época eu já era bastante familiarizado com a obra de Sérgio Lopes, possuía todos os seis CDs anteriores ao sétimo e posso provar que não era um mero ouvinte, mas sim um legítimo apreciador de seu repertório: sabia cantar quase todas as suas músicas. Do ponto de vista do critério estético, com a devida honestidade que o caso requer, eu, ainda hoje, classificaria a maioria esmagadora de suas letras como de boa qualidade, por isso, junto com uma não tão pequena legião de “crentes”, passei a enxergar a carreira dele como uma grata surpresa e uma agradável exceção no meio evangélico (junto com Sinal de Alerta, Logos, Milad, VPC, Catedral, Rebanhão e outros poucos), que àquela altura já descambava para o besteirol e mediocridade (nem quero falar do critério heresia, porque entraria numa digressão que demandaria mais de dez páginas) que domina as rádios evangélicas e, infelizmente, as igrejas de hoje em dia. Porém o sétimo foi também o último CD de Lopes que eu comprei, desde então não adquiri mais nenhum! (Este artigo talvez sirva também para que eu exponha, ainda que não seja essa a proposta majoritária e inicial do texto, as razões que me levaram tomar esta atitude).

A música mais apreciada, reproduzida e lembrada é, sem dúvida, a já citada e premiada O Lamento de Israel, eu porém acho que A dor de Lázaro seja a música mais bela e tocante do CD (“... Outra vez Senhor, mostra o teu poder. Transforma a morte em vida, pois em tuas mãos a vida se formou. Se hoje não te ver livre desta cruz, eu vou esperar mesmo que adormeças sei que vai voltar. És a própria vida e jamais a morte te resistirá.”), preferências estéticas à parte, já que uma música religiosa, que tem como intenção conduzir o ouvinte à verdadeira adoração, aquela que mais se aproxima dos ensinos da Bíblia e que, por isso, agrade a Deus, não pode ser analisada apenas por esse prisma. Vamos relembrar a letra da música, para quem não a conhece, favor clicar aqui e ouvir antes de continuar a leitura.

“Quando em cativeiro te levaram de Sião
E os teus sacerdotes prantearam de aflição,
Foi como morrer de vergonha e dor
Caminhava triste o povo forte do Senhor.

Ah! Jerusalém por que deixaste de adorar
O Deus vivo que em tantas batalhas te ajudou?
Chora, Israel! Num lamento só
Talvez Deus se lembre do bichinho de Jacó!

Chora, Israel!
Babilônia não é teu lugar,
Clama ao teu Deus! E Ele te ouvirá
Do inimigo te libertará
”.

É uma bela música, sem sombra de dúvidas, e seria mais uma de suas músicas que eu cantaria sem nenhuma reserva, seria, mas não é! A teologia que subjaz esta música não me permite cantá-la, dois motivos principais me conduzem a isso: O pré-milenismo dispensacionalista que ele apresenta, que se propagou no meio evangélico brasileiro na década de 80 com a ênfase no “arrebatamento secreto da Igreja” (doutrina desconhecida das Escrituras Sagradas), confunde o Israel de Deus do Novo Testamento com o moderno Estado de Israel (o “povo forte do Senhor” e o “Israel” que ele cita não se referem à igreja, e isto contraria a escatologia reformada), com um sionismo exacerbado, que beira o preconceito racial e religioso, traz em seu âmago um fanatismo religioso por tudo que se refere aos judeus, como a bandeira de Israel em muitos púlpitos, o uso do shofar em algumas músicas, candelabros e outros objetos do abolido culto judaico e, o que é pior, um silêncio omisso diante da barbárie da limpeza étnica e do genocídio que Tel Aviv pôs em marcha nos últimos anos (eis o segundo motivo!)

A denúncia que Ualid Rabah (diretor de Relações Institucionais da Federação Árabe Palestina do Brasil) fez é estarrecedora (Para aqueles que quiserem entender de fato o que se passa: Genocídio na Palestina). O restante deste texto é baseado neste artigo dele.

Israel tem sistemática e indiscriminadamente atacado a população civil de Gaza, uma diminuta região da Palestina, na fronteira com o Egito, na qual vivem mais de 1,5 milhão de pessoas, o que torna aquela faixa a maior concentração populacional do mundo. Desde que a política de Tel Aviv passou a ser de ataques constantes aos civis, a cifra de mortos já se eleva aos milhares, outro tanto de feridos e mutilados, alguns dos quais em estado grave ou gravíssimo, e a destruição de toda a infra-estrutura básica, desde as redes de água e esgoto, de eletricidade, hospitais, escolas, universidades, centros religiosos, aos armazéns de alimentos, estradas, reservatórios de água e tudo o mais que pudesse assegurar a vida dos palestinos.

Estes ataques revelam um fato assustador: o holocausto palestino que já dura mais de 60 anos. Além disso, a manutenção do bloqueio por terra, pelo ar e pelo mar à Gaza que já dura mais de uma década, por meio do qual os sionistas não permitem a entrada de alimentos, medicamentos, equipamentos e insumos hospitalares ou farmacêuticos, energia ou qualquer outro item indispensável à vida. Até mesmo a ONU é impedida de entrar em Gaza ou de enviar alimentos e medicamentos previstos em seus programas para a população sofrida. Aos que insistem em furar este bloqueio, Tel Aviv responde com fogo e já afundou diversas naves de ativistas que não se intimidaram com suas ameaças.

Enquanto os turistas gastam seus dólares nas terras férteis de Israel, os moradores de Gaza convivem com uma miséria avassaladora, alta taxa de desnutrição, índice de mais de 50% de desemprego da população, doenças simples levando à morte centenas de crianças por falta de estrutura hospitalar ou medicamentos, destruição da agricultura e da pecuária e de todas as formas econômicas. Quando Richard Falk, relator especial de direitos humanos das Nações Unidas nos Territórios Palestinos disse que o bloqueio à Gaza era um: “castigo coletivo equivalente a um crime contra a humanidade”, e manifestou sua opinião de que o Tribunal Penal Internacional deveria investigar o papel dos dirigentes militares e civis de Israel no bloqueio a Gaza e levá-los a julgamento por violações do direito penal internacional, Tel Aviv mandou prender Richard Falk e o expulsou.

O sangue palestino está em nossas mãos (desde os massacres de Der Yassin e a expulsão, até 1949, de mais de 700 mil palestinos; ou dos massacres de Sabra e Chatila, no Líbano, em 1982, comandados por Ariel Sharon, depois eleito e reeleito primeiro ministro pela população judaica; ou o mais inacreditável e abominável massacre em Jenin, em 2001), pois, juntos com o resto do mundo, olhamos incrédulos para esse genocídio e não fazemos nada, nos calamos no silêncio pecaminoso de cumplicidade do extermínio de um povo.

Os banqueiros judeus de Wall Street calam os EUA, que servem como protetores de Israel e validam tudo o que o estado genocida faz ao povo palestino, isso sem falar dos ataques e das ocupações do Líbano, incluindo o último, em 2006, com destruição quase total da infra-estrutura do país e mortos e feridos às dezenas de milhares, somadas às quase centenas de milhares de mortos e feridos das ocupações e ataques anteriores.

Os palestinos são reféns de um estado genocida e criminoso por natureza, racista, que pratica crimes de lesa humanidade contra eles, que promove o apartheid, que confisca terras, que destrói plantações e olivais milenares, que leva à morte de gestantes e seus bebês em postos de controle propositalmente, que impede os jovens de concluir seus estudos, que os proíbe de frequentar cursos de pós-graduação, que constrói um muro que encarcera populações e cidades inteiras, corta escolas e propriedades ao meio e confisca milhares e milhares de hectares de terras de palestinos, que utiliza armas proibidas por todas as convenções internacionais, que pratica a tortura, inclusive com aprovação, em julgamento próprio em sua instância judicial máxima, que mantém em suas prisões mais de 11 mil palestinos, a maior população carcerária do mundo em termos proporcionais, incluindo mulheres e crianças, a maioria sem acusação ou julgamento.

Algo que deveria nos incomodar é: porque nós, homens e mulheres de fé cristã, sinceros em nossos propósitos, não fazemos nada para impedir o genocídio de um povo inteiro, ainda que sejamos testemunhas de tudo o que ocorre? Ainda valem os clamores por justiça dos profetas? Ainda valem os ensinos de Jesus para que seus seguidores busquem a paz, a justiça e se ponham ao lado do oprimido? O povo palestino não pode ser identificado com o “aos meus pequeninos” do sermão de despedida de Mateus?

Os judeus que hoje “compram” o silêncio dos EUA com dólares, são da mesma estirpe dos judeus que durante o período nazista, sabiam do que ocorria mas se calaram para não verem prejudicados seus interesses econômicos.

Estamos no caminho de que em 100 anos, ou ainda menos do que isso, o povo palestino desaparecerá da face da terra e todos nós, judeus e não judeus, responderemos como responsáveis por este crime frente à humanidade. Pode ser que, talvez percebamos, após isto, que ali esteve, por milhares de anos, um povo chamado de palestino, que resistiu como jamais um povo resistiu, mas desapareceu. Talvez para calar as nossas consciências, diremos que os palestinos não foram extintos por culpa de nossas omissões e covardias, mas assim porque era esta a vontade de Deus. Será mesmo esta a vontade de Deus? Onde estaria Jesus: em Gaza ou em Tel Aviv? Alguém tem dúvida?

Chora palestina, que eu chorarei contigo!

Chora Israel, pode chorar! Ainda há tempo para te arrependeres de teus pecados, ainda há tempo de tratares os outros da forma que outro judeu, Jesus, trataria.

"Crentes de antanho!"

D. Robinson Cavalcanti, Anglican Bishop,

A primeira razão porque os crentes davam certo no Brasil, no passado, é que eles eram discriminados e perseguidos. Só entrava para as Igrejas evangélicas quem estava disposto a pagar o preço. O martírio integrava o protestantismo. Quem não aguentava o tranco, saía. Isso purificava a Igreja e lhe dava grande coesão interna. Todos eram “de mesmo”, naquele contexto adverso não havia lugar para “crentes festivos”.

Durante a vigência da Constituição Imperial (1824) o documento de identidade era a certidão de Batismo na Igreja Católica Romana. Quem não fosse batizado, nem existia, nem era cidadão. Os protestantes, como os demais não-católicos, não podiam ser funcionários públicos, não podiam se candidatar a cargos eletivos, seus casamentos eram nulos (todo mundo, tecnicamente, “amasiado” por amor a Cristo), porque o único documento de casamento válido era o emitido pela Igreja Romana, e quando a pessoa protestante morria tinha que ser “plantado” em algum terreno, porque todos os cemitérios eram administrados pelas Paróquias católicas romanas, e nele só podiam se enterrar quem tivesse recebido o rito de extrema-unção de um sacerdote daquela confissão.

Com a Constituição republicana de 1891 veio a separação Igreja-Estado, cessaram as discriminações legais, mas aumentaram as perseguições. As novas levas de padres e freiras missionários que foram importados pela Igreja de Romana na Primeira República (1889-1930) vinham com a missão de “combater os protestantes”. Crianças e jovens eram perseguidos nas escolas, profissionais nos empregos, proibia-se o aluguel de imóveis comerciais e residenciais para os “nova-seita”, também conhecidos como “bodes”, Igrejas eram apedrejadas, pessoas fisicamente agredidas, amizades e vínculos familiares eram rompidos. A imprensa incitava contra essa fé “estrangeira”. O hino de um Congresso Eucarístico cantava: “Quem não for bom católico, bom brasileiro não é”. Bíblias eram queimadas. Paredes de templos protestantes eram levantadas de dia, para serem derrubadas de noite. “Protestante é pobre, burro e feio”. Casar minha filha com um deles, nem pensar...

Na cidade de minha família materna, em Alagoas, um padre holandês, se referindo à artéria onde residiam as melhores famílias da cidade, compusera a quadrinha de gozação:

“Na Rua do Rosário, ninguém pode mais passar
São bodes e cabrinhas, todos eles a berrar...”.

Com raras exceções localizadas, esse quadro não mudou muito até o início dos anos 1960, e a realização do Concílio Vaticano II.

Mais de um século de dureza! Naquele contexto, que requeria autenticidade, a permanência e o crescimento do protestantismo foram marcados por atos de heroísmo e muito martírio. Naquele contexto, os crentes davam certo...

D. Robinson Cavalcanti - 01.09.2008

Aprenda a gostar de você


"Aprenda a gostar de você, a cuidar de você e, principalmente, a 
gostar de quem também gosta de você...
A idade vai chegando e, com o passar do tempo, nossas
prioridades na vida vão mudando...
A vida profissional, a monografia de final de curso, as contas a pagar...
Mas uma coisa parece estar sempre presente... A busca pela
felicidade, com o amor da sua vida. 
Desde pequenas ficamos nos perguntando "quando será que
vai chegar?" E a cada nova paquera, vez ou outra nos pegamos
na dúvida "será que é ele?".
Como diz meu pai: "nessa idade tudo é definitivo", pelo menos a
gente sempre achava que era.
Cada namorado era o novo homem da sua vida.
Fazíamos planos, escolhíamos o nome dos filhos, o lugar da
lua-de-mel e, de repente...
PLAFT! Como num passe de mágica ele desaparecia, fazendo
criar mais expectativas a respeito "do próximo".
Você percebe que cair na guerra quando se termina um
namoro é muito natural, mas que já não dura mais de três meses.
Agora, você procura melhor e começa a ser mais seletiva.
Procura um cara formado, trabalhador, bem resolvido,
inteligente, com aquele papo que a deixa sentada no bar o resto da noite.
Você procura por alguém que cuide de você quando está
doente, que não reclame em trocar aquele churrasco dos
amigos pelo aniversário da sua avó, que jogue "imagem e ação"
e se divirta como uma criança, que sorria de felicidade quando te
olha, mesmo quando você está de short, camiseta e chinelo.
A liberdade, ficar sem compromisso, sair sem dar satisfação, já
não tem o mesmo valor que tinha antes.
A gente inventa um monte de desculpas esfarrapadas, mas
continuamos com a procura incessante por uma pessoa legal,
que nos complete, e vice-versa.
Enquanto tivermos maquiagem e perfume, vamos à luta... E
haja dinheiro para manter a presença em todos os eventos da
cidade: churrasco, festinhas, boates na quinta-feira.
Sem falar na diversidade, que vai do Forró ao Beatles.
Mas o melhor dessa parte é se divertir com as amigas, rir até doer
barriga, fazer aqueles passinhos bregas de antigamente e curtir o som...
Olhar para o teto, cantar bem alto aquela música que você adora.
Com o tempo, você vai percebendo que para ser feliz com
uma outra pessoa, você precisa, em primeiro lugar, não precisar dela.
Percebe também que aquele cara que você ama (ou acha
que ama), e que não quer nada com você, definitivamente não é o
homem da sua vida.
Você aprende a gostar de você, a cuidar de você e,
principalmente, a gostar de quem também gosta de você.
O segredo é não correr atrás das borboletas... é cuidar do jardim
para que elas venham até você.
No final das contas, você vai achar, não quem você estava
procurando, mas quem estava procurando por você! "

Mário Quintana

Todo gato é mesmo pardo no escuro?


"Todo gato no escuro é pardo”, é assim, por meio de metáforas que o nordestino, mormente o morador de cidades interioranas, como a que eu nasci, costuma indicar a sua incapacidade em perceber as diferenças entre uma coisa e outra. Pode ser que a razão para tal impossibilidade esteja no objeto em si, por ser muito semelhante ao outro, ou então a impossibilidade pode ser causada pelo meio-ambiente que não fornece a luminosidade necessária para que se tenha condições de efetuar esta diferenciação, desta segunda opção nasce o dito supra-citado.

É assim, como um gato no escuro, que eu me sinto quando leio ou vejo na mídia qualquer reportagem sobre o segmento “evangélico” no Brasil, e não estou sozinho nisso, muitos outros cristãos não católicos de origem reformada sentem a mesma coisa, somos todos jogados numa mesma bacia, somos todos atirados ao “mesmo saco”, não são estabelecidas as necessárias diferenças, não são feitas as distinções indispensáveis, conjuga-se com o mesmo verbo o que IURD, IMPD, IIGD, Casa da Bênção, Deus é Amor, Brasil para Cristo, Assembleia de Deus (melhor seria dizer “Assembleias de Deus” visto o caráter multifacetado desta instituição), Presbiteriana, Batista, Congregacional, Luterana, Anglicana (além das muitas episcopais), “Pentecostais” e as incontáveis comunidades fazem. As pessoas nem notam, às vezes por ignorância mesmo e a culpa é mais nossa do que delas (visto que não nos preocupamos em esclarecê-las), que há mais pontos de divergência, do que de convergência dentro do que impropriamente se chama de protestantismo brasileiro (para efeito de melhor acurácia da definição seria mais adequado chamar de “protestantismos”). Este texto não tem a finalidade de esclarecer, seria muita superbia minha se pensasse assim, mas de servir como mote para uma discussão que possa contribuir, ainda que modestamente, para iluminar alguns termos, de uma vez por todas.

Para confundir, mas com a intenção de esclarecer mais à frente, vamos fazer um brainstorm:

Nem todo protestante é evangélico,
Nem todo evangélico é protestante,
Nem todo pentecostal é reformado,
Nem todo reformado é pentecostal,
Nem todo evangélico é pentecostal,
Nem todo pentecostal é evangélico,
Nem todo reformado é protestante e
Nem todo protestante é reformado.

Depois desse “trava-línguas” advindo da sociologia da religião, onde encaixar os neo-pentecostais, os para-evangélicos e os pós-pentecostais? Pelo visto esta salada teria muito mais ingredientes para acrescentar, caso quiséssemos abranger muitas linhas, porém como o tempo exige brevidade e concisão, fiquemos apenas com estes citados. Eu nem quero falar de “crente”, pois aí a coisa complicaria mais ainda.

De antemão eu quero levantar uma discussão que pode parecer polêmica (e é por demais!), mas ainda assim eu faço questão de mantê-la: chamar todos os cristãos acatólicos brasileiros de protestantes é impreciso e demonstra desconhecimento das nuances que caracterizam este seguimento religioso. Protestante não é sinônimo de evangélico, bem como não é de reformado e muito menos de pentecostal ou de neo-pentecostal. Vamos tentar entender isso:

Vamos começar pelo termo mais utilizado: Protestante. Este termo deriva, etimologicamente do latim protestari e foi difundido popularmente por meio do francês e do alemão. E refere-se, em última instância, aos príncipes luteranos que, na Dieta (reunião dos príncipes alemães com o seu suserano espanhol) de Speyer em 1529, fizeram um protesto formal, por meio de uma carta, se posicionando contrários à decisão que reafirmava o Édito de Worms de 1521 que bania as 95 Teses de Martinho Lutero. Para ser preciso, este termo só deveria ser aplicado, ou só deve ser aplicado, aos seguidores de Martinho Lutero, aqui no Brasil temos duas comunidades eclesiais (as duas são oriundas do que se chama protestantismo de migração e não do protestantismo de missão), que se enquadram nesta classe: Igreja Luterana e a Igreja de Confissão Luterana. Talvez em algum lugar do passado, mormente nos primórdios das querelas com a igreja católica, este termo significou todos os cristãos que não tinham práxis católica e nem eram ortodoxos gregos, mas o termo caducou e hoje não engloba mais tantos segmentos.

O segundo termo que merece destaque é: Reformado. Este termo designa aquelas comunidades eclesiais que derivam doutrinariamente e mantêm conexão histórica com as ideias zuinglianas ou calvinistas. Nos países de língua inglesa estas comunidades são identificadas pelo regime de governo: presbiterianismo (no Brasil, ainda que o inglês não seja o idioma oficial, o ramo majoritário desse grupo também é assim denominado, visto que foi inserido com sucesso pelas missões americanas, que alcançaram resultados mais duradouros que as francesas e as holandesas), porém em países de língua espanhola, holandesa, suíça, húngara, etc, estas comunidades são chamadas de reformadas. Algumas dessas comunidades, de língua não saxã, também mantém testemunhos de sua presença no Brasil, ainda que em pequeno número, porém sua influência supera o seu tamanho. Podemos encontrar ainda traços desta categoria dentro da igreja anglicana, em alguns grupos batistas e congregacionais, ainda que em número pequeno e muitas vezes inexpressivos. A principal característica é a crença nas doutrinas da graça e a prática do pedobatismo. No sentido mais estrito do termo, diríamos que quem é reformado não é protestante e vice-versa. Se a presença dos missionários que Calvino enviou ao Brasil no Século XVI tivesse gerado frutos duradouros e as igrejas plantadas pelos holandeses tivessem sobrevivido no nordeste, talvez no Brasil não conhecêssemos nenhuma denominação com o nome presbiteriana.

O terceiro termo que deve ser considerado é: Evangélico, e creio que deva ser o que mais despertará polêmicas. Este é definido por alguns estudiosos como: um movimento teológico originário do protestantismo, mas que se afasta deste e o transcende em diversos pontos, tendo como característica mais marcante a crença na necessidade do indivíduo passar por uma experiência de conversão ("nascer de novo", "aceitar Jesus") como ponto de partida da vida cristã, defende ainda que a Bíblia é a única regra de fé e prática. Diferentemente do protestantismo, aqui como sinônimo de luteranismo, que enfatiza mais a salvação por meio da fé, mediante a graça, e a inclusão de todos os que se aproximam da igreja no Pacto da Graça por meio do batismo. Se alguém nasce em berço luterano, subtende-se que o mesmo já “nasceu convertido” e quando ele é batizado, toma-se como ponto pacífico a aceitação do mesmo no corpo de Cristo (o pietismo foi um movimento evangélico dentro das fronteiras luteranas que enfatizava a conversão como uma experiência distinta do discipulado e do batismo, para ele não bastava nascer na igreja e ser batizado). Este movimento transcende as fronteiras denominacionais e confessionais, enfatizando a conformidade com as doutrinas básicas da fé e um alcance missionário de compaixão e urgência. Teríamos traços deste segmento tanto dentro do presbiterianismo, dos batistas e congregacionais, como até mesmo em alguns ramos episcopais que crescem no Brasil. Na Inglaterra, este termo é usado como sinônimo da Igreja Baixa (ala dos anglicanos que se aproxima mais das posturas protestante e evangélica). Eu diria que um presbiteriano é reformado e não é evangélico e que um luterano é protestante e não reformado, porém um evangélico pode até ter traços reformados, quando absorve parte das doutrinas de Calvino, mas, como não as aceita em sua totalidade (muitos batistas, por exemplo, acreditam na Graça como Calvino pregou, mas desprezam seu ensino sobre governo de igreja e batismo de crianças), isto não o torna um reformado no sentido pleno do termo.

O último termo a ser visto é Pentecostais. Este é um dos mais fáceis de definir. Refere-se ao integrantes do movimento de “renovação espiritual”, com ênfase naquilo que convencionou-se chamar de Batismo no Espírito Santo (uma segunda benção, distinta inclusive da salvação, como outro evento advindo de uma vida de santidade), que é evidenciado pelo falar em “outras línguas”, quem manifesta este dom, comprova o batismo, quem não manifesta, não foi batizado ainda e terá que buscar com afinco este manifestação, caso queira ascender ou ser aceito pelo grupo. Este termo é muito amplo e inclui uma vasta gama de diferentes perspectivas teológicas e organizacionais, de caráter fragmentado e multifacetado. Conforme observam alguns especialistas os pentecostais podem ser inseridos em mais de um grupo cristão, indo de um lado ao outro do espectro, desde os trinitarianos até os unitaristas. No Brasil, erroneamente, é comum os pentecostais se auto-identificarem pelo termo evangélico. A Igreja de Deus, Assembleia de Deus e Evangelho Quadrangular são exemplos de grupos que se enquadram neste segmento (A IURD e seus similares se enquadram naquilo que os estudiosos chamam de neo-pentecostalismo, com cultos cheios de fetiches e ritos do candomblé travestidos de práticas cristãs, enfatizam, na maioria das vezes a Teologia da Prosperidade, rejeitando os tradicionais usos e costumes austeros dos pentecostais, também é a vertente pentecostal mais influente e a que mais cresce).

Somente com a definição clara dos vários segmentos que, juntos, compõem o caleidoscópico cristianismo acatólico brasileiro, é que poderemos evitar, por parte da imprensa e daqueles que estão mais distantes desses segmentos, aquilo que já chamaram de “associação indesejada”. Sou anglicano, porém, em virtude de minha origem presbiteriana, adoto a teologia reformada, não sou protestante, nem evangélico e muito menos pentecostal, por isso antes de me incluírem numa lista qualquer, favor lerem de novo este texto.

P. S.: A minha sugestão aos que discordarem de mim é que escrevam o seu ponto de vista e me enviem, que prazerosamente postarei aqui.

Salmo Borderline (X)


"Com os nossos próprios ouvidos ouvimos, ó Deus; os nossos antepassados nos contaram os feitos que realizaste no tempo deles, nos dias da antigüidade.
Com a tua própria mão expulsaste as nações para estabelecer os nossos antepassados; arruinaste povos e fizeste prosperar os nossos antepassados.
Não foi pela espada que conquistaram a terra, nem pela força do braço que alcançaram a vitória; foi pela tua mão direita, pelo teu braço, e pela luz do teu rosto, por causa do teu amor para com eles.
És tu, meu Rei e meu Deus! Tu decretas vitórias para Jacó!
Contigo pomos em fuga os nossos adversários; pelo teu nome pisoteamos os que nos atacam.
Não confio em meu arco, minha espada não me concede a vitória; mas tu nos concedes a vitória sobre os nossos adversários e humilhas os que nos odeiam.
Em Deus nos gloriamos o tempo todo, e louvaremos o teu nome para sempre. Pausa
Mas agora nos rejeitaste e nos humilhaste; já não sais com os nossos exércitos.
Diante dos nossos adversários fizeste-nos bater em retirada, e os que nos odeiam nos saquearam.
Tu nos entregaste para sermos devorados como ovelhas e nos dispersaste entre as nações.
Vendeste o teu povo por uma ninharia, nada lucrando com a sua venda.
Tu nos fizeste objeto de vergonha dos nossos vizinhos, de zombaria e menosprezo dos que nos rodeiam.
Fizeste de nós um provérbio entre as nações; os povos meneiam a cabeça quando nos vêem.
Sofro humilhação o tempo todo, e o meu rosto está coberto de vergonha por causa da zombaria dos que me censuram e me provocam, por causa do inimigo, que busca vingança.
Tudo isso aconteceu conosco, sem que nos tivéssemos esquecido de ti, nem tivéssemos traído a tua aliança.
Nossos corações não voltaram atrás, nem os nossos pés se desviaram da tua vereda.
Todavia, tu nos esmagaste e fizeste de nós um covil de chacais e de densas trevas nos cobriste.
Se tivéssemos esquecido o nome do nosso Deus e tivéssemos estendido as nossas mãos a um deus estrangeiro,
Deus não o teria descoberto? Pois ele conhece os segredos do coração!
Contudo, por amor de ti enfrentamos a morte todos os dias; somos considerados como ovelhas destinadas ao matadouro.
Desperta, Senhor! Por que dormes? Levanta-te! Não nos rejeites para sempre.
Por que escondes o teu rosto e esqueces o nosso sofrimento e a nossa aflição?
Fomos humilhados até o pó; nossos corpos se apegam ao chão.
Levanta-te! Socorre-nos! Resgata-nos por causa da tua fidelidade".

Salmos 44:1-26 (NVI)

Tanta mansidão


Pois a hora escura, talvez a mais escura, em pleno dia, precedeu essa noite, e essa coisa que não quero ainda definir é uma luz tranquila dentro de mim, e a ela chamaria alegria, alegria mansa.

Estou um pouco desnorteada como se um coração me tivesse sido tirado, e em lugar dele estivesse a súbita ausência, uma ausência quase palpável de que era antes um órgão banhado da escuridão da dor. Não estou sentindo nada. Mas é o contrário de um torpor. É um modo mais leve e silencioso de existir.

Mas estou também inquieta. Eu estava organizada pra me consolar da angústia da dor. Mas como é que me arrumo com essa simples e tranquila alegria. É que não estou habituada a não precisar de meu próprio consolo. A palavra consolo aconteceu sem eu sentir, e eu não notei, e quando fui procurá-la, ela já se havia transformado em carne e espírito, já não existia mais como pensamento.

Vou então à janela, está chovendo muito. Por hábito estou procurando na chuva o que em outro momento me serviria de consolo. Mas não tenho dor a consolar.

Ah, eu sei. Estou agora procurando na chuva uma alegria tão grande que se torne aguda, e que me ponha em contato com uma agudez que se pareça a agudez da dor. Mas é inútil a procura. Estou à janela e só acontece isto: vejo com olhos benéficos a chuva, e a chuva me vê de acordo comigo. Estamos ocupadas ambas em fluir. Quanto durará esse meu estado? Percebe que, com esta pergunta, estou apalpando meu pulso para sentir onde estará o latejar dolorido de antes. E vejo que não há o latejar da dor.

Apenas isso: chove e estou vendo a chuva. Que simplicidade. Nunca pensei que o mundo e eu chegássemos a esse ponto de trigo. A chuva cai não porque está precisando de mim, e eu olho a chuva não porque preciso dela. Mas nós estamos tão juntas como a água da chuva está ligada à chuva. E eu não estou agradecendo nada. Não tivesse eu, logo depois de nascer, tomado involuntária e forçadamente o caminho que tomei - e teria sido sempre o que realmente estou sendo: uma camponesa que está num campo onde chove. Nem sequer agradecendo ao Deus ou à natureza. A chuva também não agradece nada. Não sou uma coisa que agradece ter ser transformado em outra. Sou uma mulher, sou uma pessoa, sou uma atenção, sou um corpo olhando pela janela. Assim como a chuva não é grata por não ser uma pedra. Ela é a chuva. Talvez seja isso que se poderia chamar de estar vivo. Não mais que isto, mas isto: vivo. E apenas vivo de uma alegria mansa.

Clarice Lispector - Tanta Mansidão
In: “Onde estivestes de Noite”(Contos, 1974).

Apontamento


A minha alma partiu-se como um vaso vazio.
Caiu pela escada excessivamente abaixo.
Caiu das mãos da criada descuidada.
Caiu, fez-se em mais pedaços do que havia loiça no vaso.

Asneira? Impossível? Sei lá!
Tenho mais sensações do que tinha quando me sentia eu.
Sou um espalhamento de cacos sobre um capacho por sacudir.

Fiz barulho na queda como um vaso que se partia.
Os deuses que há debruçam-se do parapeito da escada.
E fitam os cacos que a criada deles fez de mim.

Não se zanguem com ela.
São tolerantes com ela.
O que era eu um vaso vazio?

Olham os cacos absurdamente conscientes,
Mas conscientes de si mesmos, não conscientes deles.

Olham e sorriem.
Sorriem tolerantes à criada involuntária.

Alastra a grande escadaria atapetada de estrelas.
Um caco brilha, virado do exterior lustroso, entre os astros.
A minha obra? A minha alma principal? A minha vida?
Um caco.
E os deuses olham-o especialmente, pois não sabem por que ficou ali.

Álvaro de Campos (Fernando Pessoa), 1929

Alma Perdida


Toda esta noite o rouxinol chorou,
Gemeu, rezou, gritou perdidamente!
Alma de rouxinol, alma da gente,
Tu és, talvez, alguém que se finou!

Tu és, talvez, um sonho que passou,
Que se fundiu na Dor, suavemente…
Talvez sejas a alma, a alma doente
D’alguém que quis amar e nunca amou!

Toda a noite choraste... e eu chorei
Talvez porque, ao ouvir-te, adivinhei
Que ninguém é mais triste do que nós!

Contaste tanta coisa à noite calma,
Que eu pensei que tu eras a minh’alma
Que chorasse perdida em tua voz!…

Florbela Espanca - Livro de Mágoas

Poema da gare de Astapovo


O velho Leon Tolstoi fugiu de casa aos oitenta anos
E foi morrer na gare de Astapovo!
Com certeza sentou-se a um velho banco,
Um desses velhos bancos lustrosos pelo uso
Que existem em todas as estaçõezinhas pobres do mundo
Contra uma parede nua...
Sentou-se... e sorriu amargamente
Pensando que
Em toda a sua vida
Apenas restava de seu a Glória,
Esse irrisório chocalho cheio de guizos e fitinhas
Coloridas
Nas mãos esclerosadas de um caduco!
E então a Morte,
Ao vê-lo tão sozinho aquela hora
Na estação deserta,
Julgou que ele estivesse ali à sua espera,
Quando apenas sentara para descansar um pouco!
A morte chegou na sua antiga locomotiva
(Ela sempre chega pontualmente na hora incerta... )
Mas talvez não pensou em nada disso, o grande Velho,
E quem sabe se até não morreu feliz: ele fugiu...
Ele fugiu de casa...
Ele fugiu de casa aos oitenta anos de idade...
Não são todos que realizam os velhos sonhos da infância!

Mário Quintana

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“El Coronel no Tiene Quien le Escriba”


Há algo de insólito e desesperador, mas também de belo e encantador, no incomparável conto “El Coronel no Tiene Quien le Escriba” de Gabriel García Márquez. Este conto foi publicado pela primeira vez em 1961, posteriormente, por conta da grande receptividade que teve, ganhou edição própria e passou a ser publicado separadamente da coleção original. Em português já ganhou várias edições desde 1968, a primeira foi da Editora Sabiá e por último da Editora Record, que já está na 16ª edição [Tradução: Danúbio Rodrigues, 16ª edição, São Paulo:1996, 96 páginas], em 1999 ganhou no México uma versão cinematográfica de Arturo Ripstein, com brilhantes atuações de Fernando Lújan, Marisa Paredes e Salma Hayek.

Basta uma rápida e superficial leitura do título desta obra para se deduzir quem é o personagem principal: um Coronel, um velho coronel! Ele é um daqueles poucos homens que podem ser definidos numa curta e única palavra: honra! É também um daqueles raros homens que busca viver em sua velhice do modo mais coerente possível com suas crenças, ou com a falta delas, seus princípios e suas opiniões políticas.

O coronel é um veterano de guerra, participou de uma revolução com conotações religiosas, que ficou estacionado no tempo e no espaço, relembrando com nostalgia do passado, ainda se ressente de que os ideais pelos quais lutou, a liberdade do estado das mãos da religião fascista e manipuladora, não sejam mais do que uma lembrança no passado, se é que alguém ainda se lembra, além dele, desses motivos. A sua luta por um estado laico, sem a tutela de uma igreja que paralisa o povo por meio da religião supersticiosa, não é uma simples metáfora para Márquez, há algo de autobiográfico nisso.

Porém é por sua tenacidade, que pode ter conotações positivas ou negativas, depende do prisma pelo qual se olha, que o coronel é reconhecido. Alguns diriam que esta tenacidade na verdade é teimosia, outros que esperança vã, outros que ilusão e outros ainda que rabugices de um velho esclerosado, mas ainda assim não há quem possa negar que ele viva de modo coerente com o que crê, ou com o que não crê.

Após o término da revolução, tentando recompensar os militares que lutaram em favor de sua causa, o governo prometeu aos 200 oficiais que lideraram aquela revolta que cada um deles receberia uma indenização pelo esforço empreendido e uma aposentadoria vitalícia, porém devido à falta de recursos, não podemos esquecer que estavam reconstruindo o país após a guerra, adotou um sistema de filas de espera, o número do coronel era 1823. A partir de então, ele passa a esperar com orgulho pelo cumprir da promessa, já se vão quase 27 anos e a carta que comunicaria o tão esperado anúncio parece que nunca chega. Inexoravelmente, não importa se chova ou faça sol, todas as sextas-feiras ele veste o único terno que tem, põe um sapato gasto e cheio de buracos, um chapéu amarfanhado na cabeça, um guarda-chuva roto e cheio de buracos e, ainda que uma parte sua saiba que a carta não virá, enche-se de esperança e vai ao cais, aguardar o barco que traz o carteiro com as correspondências para o povoado. Mas ninguém escreve ao coronel, ninguém! No filme não há como não se encolerizar com a indiferença do carteiro ao desembarcar da chalupa e o seu riso zombeteiro e cheio de desdém ao comunicar ao coronel que não há cartas para ele, parece até que ele sente um prazer sádico em minimizar naquele pobre homem o pouco que lhe resta: um fio de esperança.

Sua esposa, europeia por nascimento (uma culta espanhola que tinha dificuldades para se adaptar ao meio ambiente atrasado da aldeia na qual moravam) era apaixonada pelos filmes que teimosamente eram exibidos no tosco cinema da vila, era também teimosa e orgulhosa, porém uma bondosa, abnegada e compreensível mulher, tinha a saúde em frangalhos em virtude da alimentação precária, do cansaço da velhice e das péssimas condições em que vivia, sofria crises cada vez mais forte de asma, sua têmpera era de aço, pode-se dizer que ela era uma mulher dura, não verteu uma lágrima sequer quando o filho morreu, porém estava definhando pouco à pouco, por causa do desgosto, da espera em vão e da desilusão.

O estopim que desencadeia uma sucessão de fatos, que entrelaçados dão corpo ao conto é a morte do filho do coronel, este teima em acreditar que seu filho morreu por conta de ser um revolucionário, enquanto que as demais pessoas atribuem à morte do rapaz à querela numa rinha de galo envolvendo uma prostituta, tudo o que uma família orgulhosa como a do coronel não podia tolerar. As únicas posses que o filho deixou, são recebidas como um alento após a morte trágica do rapaz, são também a única esperança daquela família orgulhosa e que vivia na miséria total: uma máquina de costura velha, instrumento de sua profissão de alfaiate e um galo de briga, instrumento de sua diversão, e ao que parece de mais da metade da cidade. Estes bens, pensava o coronel, garantiriam a ele e à sua mulher a sobrevivência por certo período, alimentando esperança de um futuro melhor que só viria com a aposentadoria do governo. Mas ninguém escreve ao coronel, ninguém! Os dias se sucedem e com eles as semanas, o coronel espera a tão desejada carta, que nunca vem.

O dinheiro que recebeu pela máquina de costura chegou ao fim, um misto de vergonha com um resquício de dignidade, parte de seu ser que não foi ultrajada, impedem-no de assumir diante de todos a miséria em que vive e de vender o único bem de valor que ainda possui: um relógio de parede, porém, sem ter como alimentar a esposa, suas dívidas com a mercearia, na qual compra fiado há anos, só fazem aumentar, obrigando-o a se esquivar quando passa defronte dela e é “tacitamente” cobrado, o coronel vive um dilema: vender o galo herdado do filho. O galo tinha sido treinado pelo filho do coronel para combater nas rinhas, e nele o coronel deposita as suas esperanças de ganhar algum dinheiro para poder sanar as dívidas, comprar alimentos e remédios, comprar roupas e sapatos, pagar a hipoteca da casa que estava perto de ser liquidada, até que a carta com a benfazeja notícia chegue, mas ninguém, ninguém mesmo escreve ao coronel e nem o galo, muito menos sua mulher, se alimentam de esperança e ar. Aparece então a proposta de vender o galo por 900 pesos, obviamente bem abaixo do valor que o galináceo teria, mas para as condições atuais do casal, era uma fortuna! O que fazer: vender o galo ou esperar os 45 dias que faltavam para o início das rinhas de briga de galo? O que comer até lá? E se o galo perder na rinha? Perguntas que nunca saberemos as respostas.

Fazendo coro com centenas de outros apreciadores da obra de Gabo, afirmo sem medo de errar que este é um conto doloroso de se ler. Alguns leitores apaixonados dizem que esta é uma história fraca em comparação ao grande Cem anos de solidão (tal comparação para mim é despropositada, visto que a abordagem deste conto é muito diferente da abordagem apresentada naquele livro, tão denso, de personagens tão complexos e de enredo intrincado, e o propósito do autor é outro), creio porém que nenhum dos seus escritos pode ser comparado a este conto, ele é único, de uma simplicidade arrebatadora, e atende a uma intenção única. Tenho a impressão que estou lendo um dos contos de Dostoiévski, seja Humilhados e ofendidos, seja Memórias do subterrâneo, ou mesmo Crime e castigo, tal é a miséria que vejo em suas poucas páginas, ainda que seja uma miséria orgulhosa. Alguém já disse que “é uma história dura e cruel com um final triste e desconcertante”, eu diria que além disso é um diário de bordo de um homem que a miséria total não conseguiu arrancar-lhe a única coisa que lhe restou: a esperança! Além disso não se pode perder de vista a densidade da leitura e a inexplicabilidade da mesma, o que não é novidade em se tratando de Gabo.

O tema subjacente a este conto, é também um tema recorrente nas obras de Gabo, e pode ser desmembrado em três tópicos: a) a condição de miserabilidade do ser humano; b) quanto do espírito deste ser foi afetado pela miséria que é tão presente; c) até que ponto o ser humano pode resistir a uma vida dura e cruel, que não lhe oferece nenhuma oportunidade para a felicidade.

Um outro velho, num passado tão distante passou por dúvidas cruéis e por motivos para desistir talvez mais fortes do que os do coronel: “... Abraão, contra toda esperança, em esperança creu!” (Romanos 4:18 NVI), creio que lições e verdades evangélicas podem ser extraídas deste conto de Gabo.

O coronel era ateu, considerava a religião crendices e superstições, mas ainda assim vestia-se de esperança todos os dias, mesmo em meio à miserabilidade aquela família conseguia crer, mesmo recebendo golpes sobre golpes, ele teimava em crer, ainda que pareça ingenuidade, a esperança dele é admirável. A miséria que o envolvia não tocou sua alma, ela permanecia intacta, seu corpo definhava, mas sua esperança cada dia se renovava.

Sei que Ruach sopra onde quer e como quer, e creio que este conto é um dos muitos sopros que ele deu sobre a nossa sociedade secularizada e intelectualizada, por meio deste conto muitos foram catequizados sem perceberem. Enquanto louvavam a genialidade de Gabo, Ruach os ensinava que para manter a esperança viva, não é necessário ter fundamentos sólidos e concretos, que a esperança verdadeira nasce quando o desespero domina, e é neste macro-ambiente que Ruach encontra espaço para espalhar suas fagulhas de fé e esperança.

Pode ser que ninguém escreva ao coronel, pode ser que ninguém nos dê a resposta que tanto almejamos, mas certamente Ruach permanecerá ao nosso lado para que não desistamos quando estivermos tão perto de conquistar aquilo pelo qual esperamos por anos a fio.

"Me deixem ser medíocre!"


A julgar pelo que ouço nas conversas durante o almoço com colegas no trabalho, nos corredores e nas salas de aula da faculdade, nas conversas na igreja após o culto e pelo que leio no Twitter e Facebook, eu devo ser um dos poucos brasileiros a desligar o rádio, mudar de estação ou simplesmente acionar o botão “mute” quando Arnaldo Jabor vai ao ar nas manhãs da rádio CBN. Sei que corro o risco de ser impreciso e parecer pretensioso ao declarar isto, porém creio ter razões de sobra para fazer tal assertiva, principalmente quando se observa a quantidade de pensamentos (sic) do tão afamado “intelectual” que é postada nos blogs e nas redes sociais e as inúmeras “tuitadas”, “retuitadas”, “curtidas” e “compartilhadas” que podem ser vistas.

Devo ser muito medíocre, ou então algum retardado, que não consigo ver graça ou achar cult o besteirol que ele destila (ou seria melhor dizer: despeja?) todos os dias pelo rádio. E olha que, por uma questão de honestidade, nem estou me referindo ao que ele escreve em alguns jornais e revistas, pois não perco tempo para lê-los, e nem às falas dele na TV, que eu nem vejo, não me dou ao trabalho de assistir às suas crônicas diárias que servem de alimento para as “mentes férteis” dos seguidores da programação Global. Eu sou mais um dos poucos brasileiros que já superou o “trauma da infância” que me fazia acreditar que o Jornal Nacional da famigerada Globo seria a minha única fonte confiável, ética e profissional de notícias.

Esta semana, enquanto me dirigia pela manhã para uma clínica médica, fui surpreendido pelo anúncio solene do locutor: “o comentário de Arnaldo Jabor”! Eu estava dirigindo, o trânsito estava complicado, a região, na qual transitava, não me é familiar (numa ocasião em que estava numa situação parecida, arranquei o painel do rádio do carro pois não consegui mudar de estação), por isso resolvi deixar que a crônica que ele teimava em fazer terminasse (há mais de cinco anos que não o ouvia, deixei de ouvir por conta do meu fígado que estava se estragando, minha bílis estava azedando e minha mente estava me culpando pela agressão que eu a deixava sofrer!), pensei que o tempo poderia ter mudado algo, ou ele, ou eu, mas ao terminar aquela bravata, descobri que não houve mudança, nem de minha tolerância para com a mediocridade e nem dele para com o bom senso. O texto continuava recheado de frases de efeitos, chavões, bordões e pensamentos lugares-comuns, com interpretações, diga-se de passagem questionáveis, sobre os fatos, como se fossem os próprios fatos, e ainda por cima permeado daquela postura arrogante e prepotente que só ele consegue ter: “quem discorda de mim ou é corrupto ou então é massa de manobra, não tem condições intelectuais para me entender!”.

Meu azedume com este sujeito tornou-se mais acentuado desde que ele vendeu seu passado de independência e resistência à censura ditatorial militar e tornou-se o porta-voz extra-oficial das ORM (Organizações Roberto Marinho), passando a apresentar diariamente o “editorial” da organização com a versão malbaratada dos fatos, caricaturando a realidade para parecer engraçado e cult

Jabor é carioca de 1940, seu pai era oficial da Aeronáutica e sua mãe era dona de casa, não sei até que ponto ela é culpada pela mediocridade e incoerência do filho. Antes de ser o cineasta famoso, tão propalado pela Globo e jornalista “culto”, ele foi técnico de som, crítico de teatro, roteirista e diretor de curtas e longas metragens. Ele fez parte do que se chamou à época de segunda fase do Cinema Novo, que era caracterizado pela busca por análise da conjuntura nacional, com inspiração no neo-realismo italiano e na nouvelle vague francesa. Sua primeira obra que merece destaque é também um dos grandes sucessos de bilheteria do cinema brasileiro: Toda Nudez Será Castigada (1973), adaptada da peça homônima de Nelson Rodrigues, tinha viés humanista, porém recheada de críticas implacáveis à hipocrisia da moral burguesa e de seus costumes, um verdadeiro golpe numa sociedade decadente, a qual ele se opunha, já que a mesma apoiava sem reservas o regime ditatorial que reinava à época, do qual ele era um crítico (Ver verbete com o nome do mesmo na Wikipédia©).

Seguindo na trilha das críticas à sociedade considerada como padrão, ele adapta outro romance de Nelson, no qual investe fortemente contra as deformidades comportamentais e sexuais da sociedade: O Casamento (1975) e em Tudo Bem (1978) consegue se superar e apresenta num tom de forte sátira e ironia, as contradições da sociedade brasileira já vitimada pelo fracasso do milagre econômico, foi porém com Eu Sei que Vou Te Amar, que conseguiu seu último sucesso nas bilheterias. Jabor é um cineasta que há 30 anos não faz nada de relevante no cinema, mesmo assim ainda é decantado como cineasta. Seus filmes fizeram sucesso na época, é bem verdade, mas se o fizeram foi mais pela transgressão que apresentavam do comportamento que a sociedade hipócrita defendia do que pela plástica da arte cênica. Em outra época teria sido mais um besteirol, como tantos outros. Como seus filmes eram recheados de pornografia e palavrões, muitos enxergavam nisso uma forma de transgredir a censura, ainda que não fosse pelo pensamento revolucionário, ainda assim era transgressão, é por esta causa que tantos filmes desse período abusam demasiadamente do sexo e da nudez.

Depois que viu sua carreira definhar, com a mudança que o fim da ditadura impôs, não vendo outra alternativa, já que o momento pedia películas com outros tipos de abordagens, as quais não lhe eram familiares, rendeu-se às Organizações Globo e passou a destilar o seu veneno contra todos aqueles que ousem entrar em seu caminho e no caminho da empresa que tão bem representa.

Este texto tem uma causa, tem um motivo, tem um propósito: Deixem-me pensar o que eu quiser, deixem-me achar Jabor medíocre em paz, parem de me patrulhar, eu tenho o direito de achar que ele é pau mandado, medíocre, parcial, vendido, traidor de amigos e de ideologias, incoerente e até mesmo babaca. Estou farto do seu preconceito contra os nordestinos e pobres que ascenderam na vida e agora podem comprar carros, viajar de avião e fazer viagens de turismo ao exterior, do seu preconceito contras os que não tiveram acesso à educação requintada, mas por serem eficientes e determinados em suas áreas de atuação alçaram voos e hoje são destacados profissionais e políticos, ainda que não possuam curso superior, estou farto de sua bajulação da classe rica e dominante, daquelas famílias tradicionais que ainda não aprenderam que o Brasil mudou, estou cansado do ranço dele contra os pobres e negros que estudaram, fizeram faculdade e conseguiram ser destaques em alguma área, contrariando a lei da seleção natural que a elite brasileira defendia, estou cansado de ouvi-lo repetir que brasileiro compra iPhone, iPad e Tablets, mas nem sabe para que servem. Como protestante histórico, estou farto de que, no auge de sua ignorância jornalística, ele confunda os herdeiros da Reforma com ladrões, charlatões e incultos, criando estereótipos caricaturescos ao gosto da “cultura Global” para nos ridicularizar.

Por que Jabor nunca fala do público medíocre que assiste ao Faustão, dos espectadores manipulados, e sem a mínima capacidade de exercerem uma crítica, que assistem ao Big Brother Brasil? Por que Jabor nunca expõe o que as novelas da Globo fazem com a mente de quem as assiste? Por que não critica a TV Globo que manipula o futebol brasileiro e que por conta disso arruinou o futebol do Norte e de boa parte do Nordeste? Por que ele não fala do contrassenso que é Xuxa falar de pedofilia quando ela foi protagonista de um filme em que “seduzia” um adolescente com menos de 13 nos? Por que ele não presta um serviço ao Brasil e não critica a forma com que o Império da Globo faz jornalismo? Não é ele um intelectual independente e sem “rabo preso”?

O fato de alguém admirar Jabor não o torna mais inteligente do que é, da mesma forma que quem não o “curte” não é menos inteligente por isso. As pessoas, todas elas, têm o direito de escolher quem lhes serve de referência e o fato de não ser render às falas de um produto da mídia não torna ninguém inculto por isso. Ainda que nem ligue para o fato de alguém me criticar por eu ojerizar Jabor, me incomodo que isto seja a ponta de um iceberg de algo bem mais denso e profundo: o medo de parecer diferente, já que todo mundo, que parece cult, sorri com o que ele escreve e todo mundo, que parece inteligente, comenta o que ele escreve, alguns lhe apoiam tacitamente com medo de não serem confundidos com imbecis. Seria uma massa que se deixa manobrar para não parecer “burra”, é o avesso do avesso!

Não gosto das “tiradas” de Jabor não é por ser medíocre e burro, antes fosse, as razões pelas quais detesto o sorrisinho irônico desse rapaz é justamente por entender aonde ele quer chegar e saber quem pagou a passagem dele.

Salmo Borderline (IX)


"Como a corça anseia por águas correntes, a minha alma anseia por ti, ó Deus.
A minha alma tem sede de Deus, do Deus vivo. Quando poderei entrar para apresentar-me a Deus?
Minhas lágrimas têm sido o meu alimento de dia e de noite, pois me perguntam o tempo todo: "Onde está o seu Deus? "
Quando me lembro destas coisas choro angustiado. Pois eu costumava ir com a multidão, conduzindo a procissão à casa de Deus, com cantos de alegria e de ação de graças entre a multidão que festejava.
Por que você está assim tão triste, ó minha alma? Por que está assim tão perturbada dentro de mim? Ponha a sua esperança em Deus! Pois ainda o louvarei; ele é o meu Salvador e o meu Deus. A minha alma está profundamente triste; por isso de ti me lembro desde a terra do Jordão, das alturas do Hermom, desde o monte Mizar.
Abismo chama abismo ao rugir das tuas cachoeiras; todas as tuas ondas e vagalhões se abateram sobre mim.
Conceda-me o Senhor o seu fiel amor de dia; de noite esteja comigo a sua canção. É a minha oração ao Deus que me dá vida.
Direi a Deus, minha Rocha: "Por que te esqueceste de mim? Por que devo sair vagueando e pranteando, oprimido pelo inimigo?"
Até os meus ossos sofrem agonia mortal quando os meus adversários zombam de mim, perguntando-me o tempo todo: "Onde está o seu Deus? "
Por que você está assim tão triste, ó minha alma? Por que está assim tão perturbada dentro de mim? Ponha a sua esperança em Deus! Pois ainda o louvarei; ele é o meu Salvador e o meu Deus".

Salmos 42:1-11 (NVI)
Fonte: http://www.bibliaonline.com.br

Tabacaria


Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.

Janelas do meu quarto,
Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é
(E se soubessem quem é, o que saberiam?),
Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente,
Para uma rua inacessível a todos os pensamentos,
Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa,
Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres,
Com a morte a por umidade nas paredes e cabelos brancos nos homens,
Com o Destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada.

Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade.
Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer,
E não tivesse mais irmandade com as coisas
Senão uma despedida, tornando-se esta casa e este lado da rua
A fileira de carruagens de um comboio, e uma partida apitada
De dentro da minha cabeça,
E uma sacudidela dos meus nervos e um ranger de ossos na ida.

Estou hoje perplexo, como quem pensou e achou e esqueceu.
Estou hoje dividido entre a lealdade que devo
À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora,
E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro.

Falhei em tudo.
Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada.
A aprendizagem que me deram,
Desci dela pela janela das traseiras da casa.
Fui até ao campo com grandes propósitos.
Mas lá encontrei só ervas e árvores,
E quando havia gente era igual à outra.
Saio da janela, sento-me numa cadeira. Em que hei de pensar?

Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou?
Ser o que penso? Mas penso tanta coisa!
E há tantos que pensam ser a mesma coisa que não pode haver tantos!
Gênio? Neste momento
Cem mil cérebros se concebem em sonho gênios como eu,
E a história não marcará, quem sabe?, nem um,
Nem haverá senão estrume de tantas conquistas futuras.
Não, não creio em mim.
Em todos os manicômios há doidos malucos com tantas certezas!
Eu, que não tenho nenhuma certeza, sou mais certo ou menos certo?
Não, nem em mim...
Em quantas mansardas e não-mansardas do mundo
Não estão nesta hora gênios-para-si-mesmos sonhando?
Quantas aspirações altas e nobres e lúcidas -
Sim, verdadeiramente altas e nobres e lúcidas -,
E quem sabe se realizáveis,
Nunca verão a luz do sol real nem acharão ouvidos de gente?
O mundo é para quem nasce para o conquistar
E não para quem sonha que pode conquistá-lo, ainda que tenha razão.
Tenho sonhado mais que o que Napoleão fez.
Tenho apertado ao peito hipotético mais humanidades do que Cristo,
Tenho feito filosofias em segredo que nenhum Kant escreveu.
Mas sou, e talvez serei sempre, o da mansarda,
Ainda que não more nela;
Serei sempre o que não nasceu para isso;
Serei sempre só o que tinha qualidades;
Serei sempre o que esperou que lhe abrissem a porta ao pé de uma parede sem porta,
E cantou a cantiga do Infinito numa capoeira,
E ouviu a voz de Deus num poço tapado.
Crer em mim? Não, nem em nada.
Derrame-me a Natureza sobre a cabeça ardente
O seu sol, a sua chava, o vento que me acha o cabelo,
E o resto que venha se vier, ou tiver que vir, ou não venha.
Escravos cardíacos das estrelas,
Conquistamos todo o mundo antes de nos levantar da cama;
Mas acordamos e ele é opaco,
Levantamo-nos e ele é alheio,
Saímos de casa e ele é a terra inteira,
Mais o sistema solar e a Via Láctea e o Indefinido.

(Come chocolates, pequena;
Come chocolates!
Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates.
Olha que as religiões todas não ensinam mais que a confeitaria.
Come, pequena suja, come!
Pudesse eu comer chocolates com a mesma verdade com que comes!
Mas eu penso e, ao tirar o papel de prata, que é de folha de estanho,
Deito tudo para o chão, como tenho deitado a vida.)

Mas ao menos fica da amargura do que nunca serei
A caligrafia rápida destes versos,
Pórtico partido para o Impossível.
Mas ao menos consagro a mim mesmo um desprezo sem lágrimas,
Nobre ao menos no gesto largo com que atiro
A roupa suja que sou, em rol, pra o decurso das coisas,
E fico em casa sem camisa.

(Tu que consolas, que não existes e por isso consolas,
Ou deusa grega, concebida como estátua que fosse viva,
Ou patrícia romana, impossivelmente nobre e nefasta,
Ou princesa de trovadores, gentilíssima e colorida,
Ou marquesa do século dezoito, decotada e longínqua,
Ou cocote célebre do tempo dos nossos pais,
Ou não sei quê moderno - não concebo bem o quê -
Tudo isso, seja o que for, que sejas, se pode inspirar que inspire!
Meu coração é um balde despejado.
Como os que invocam espíritos invocam espíritos invoco
A mim mesmo e não encontro nada.
Chego à janela e vejo a rua com uma nitidez absoluta.
Vejo as lojas, vejo os passeios, vejo os carros que passam,
Vejo os entes vivos vestidos que se cruzam,
Vejo os cães que também existem,
E tudo isto me pesa como uma condenação ao degredo,
E tudo isto é estrangeiro, como tudo.)

Vivi, estudei, amei e até cri,
E hoje não há mendigo que eu não inveje só por não ser eu.
Olho a cada um os andrajos e as chagas e a mentira,
E penso: talvez nunca vivesses nem estudasses nem amasses nem cresses
(Porque é possível fazer a realidade de tudo isso sem fazer nada disso);
Talvez tenhas existido apenas, como um lagarto a quem cortam o rabo
E que é rabo para aquém do lagarto remexidamente

Fiz de mim o que não soube
E o que podia fazer de mim não o fiz.
O dominó que vesti era errado.
Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me.
Quando quis tirar a máscara,
Estava pegada à cara.
Quando a tirei e me vi ao espelho,
Já tinha envelhecido.
Estava bêbado, já não sabia vestir o dominó que não tinha tirado.
Deitei fora a máscara e dormi no vestiário
Como um cão tolerado pela gerência
Por ser inofensivo
E vou escrever esta história para provar que sou sublime.

Essência musical dos meus versos inúteis,
Quem me dera encontrar-me como coisa que eu fizesse,
E não ficasse sempre defronte da Tabacaria de defronte,
Calcando aos pés a consciência de estar existindo,
Como um tapete em que um bêbado tropeça
Ou um capacho que os ciganos roubaram e não valia nada.

Mas o Dono da Tabacaria chegou à porta e ficou à porta.
Olho-o com o deconforto da cabeça mal voltada
E com o desconforto da alma mal-entendendo.
Ele morrerá e eu morrerei.
Ele deixará a tabuleta, eu deixarei os versos.
A certa altura morrerá a tabuleta também, os versos também.
Depois de certa altura morrerá a rua onde esteve a tabuleta,
E a língua em que foram escritos os versos.
Morrerá depois o planeta girante em que tudo isto se deu.
Em outros satélites de outros sistemas qualquer coisa como gente
Continuará fazendo coisas como versos e vivendo por baixo de coisas como tabuletas,

Sempre uma coisa defronte da outra,
Sempre uma coisa tão inútil como a outra,
Sempre o impossível tão estúpido como o real,
Sempre o mistério do fundo tão certo como o sono de mistério da superfície,
Sempre isto ou sempre outra coisa ou nem uma coisa nem outra.

Mas um homem entrou na Tabacaria (para comprar tabaco?)
E a realidade plausível cai de repente em cima de mim.
Semiergo-me enérgico, convencido, humano,
E vou tencionar escrever estes versos em que digo o contrário.

Acendo um cigarro ao pensar em escrevê-los
E saboreio no cigarro a libertação de todos os pensamentos.
Sigo o fumo como uma rota própria,
E gozo, num momento sensitivo e competente,
A libertação de todas as especulações
E a consciência de que a metafísica é uma consequência de estar mal disposto.

Depois deito-me para trás na cadeira
E continuo fumando.
Enquanto o Destino mo conceder, continuarei fumando.

(Se eu casasse com a filha da minha lavadeira
Talvez fosse feliz.)
Visto isto, levanto-me da cadeira. Vou à janela.
O homem saiu da Tabacaria (metendo troco na algibeira das calças?).
Ah, conheço-o; é o Esteves sem metafísica.
(O Dono da Tabacaria chegou à porta.)
Como por um instinto divino o Esteves voltou-se e viu-me.
Acenou-me adeus, gritei-lhe Adeus ó Esteves!, e o universo
Reconstruiu-se-me sem ideal nem esperança, e o Dono da Tabacaria sorriu.

Álvaro de Campos (Fernando Pessoa), 15-1-1928

Tabacaria por Antônio Abujamra


Este vídeo é uma sugestão do meu amigo Eudes Silva.

Há Teologia em Branca de Neve?


Quando ouvi pela primeira vez o conto “A Branca de Neve e os Sete Anões” fiquei extasiado, estava deitado no chão da sala da casa em que morava com meus pais e meus três irmãos, meu pai, um grande contador de histórias, tinha escolhido este conto para nos distrair, no sarau doméstico, numa noite perdida entre 1974 e 1975, ele se deitava na sala, fechava os olhos, ficava puxando os cabelos já ralos de sua cabeça e então viajava nas suas estórias, acho que ele viajava mais do que nós, se no outro dia ele resolvesse contar a mesma estória, certamente que teria um viés diferente, ele nunca contava a estória como tinha ouvido (meu pai não sabia ler e isso só fazia com que sua imaginação fosse ainda mais aguçada), para ele não tinha graça contar a estória ipsis literis a ouvira, a graça consistia em contá-la por sua própria perspectiva e com a roupagem que ele achasse adequada e esta sua cosmovisão incluía distorções, acréscimos, subtrações, digressões e interpretações próprias, tudo isso com muita generosidade e naturalidade.

Logo cedo me tornei viciado em livros, e passei a selecionar com cuidado o que deveria aprender e o que queria conhecer com mais afinco, numa ocasião, em que estava “perdido” entre as estantes da biblioteca da escola que estudava, me deparei com um livro de contos dos irmãos Grimm, eu o devorei de uma “sentada”! Foi então que eu pude ter contato pela primeira vez com a versão “oficial” de uma estória que me encantava há muitos anos, porém, a primeira coisa que descobri foi que a versão escrita não tinha muita semelhança com a que eu conhecia, a estória original também não era tão empolgante como aquela (ou talvez fosse melhor dizer aquelas!) que meu pai cristalizara no meu imaginário infantil. Depois disso vi dezenas de filmes, peças e versões variadas de Branca de Neve, seja como uma criança sonhadora, seja como uma ingênua adolescente, seja como uma mulher dona de si.

Hoje, aos 44 anos, ainda gosto de ler contos, (excluindo os contos de fadas, estes não me empolgam mais!), porém depois que li A psicanálise dos contos de fada de Bruno Bettelheim (Paz e Terra, São Paulo:2006), perdi a visão fantasiosa de meu pai, perdi a visão lírica dos Grimm e passei a ler os contos sempre em busca do significado das metáforas e das verdades latentes por trás das verdades aparentes. Faço isso com os contos de minha infância e com as mitologias: grega, romana, nórdica ou oriental. Busco sempre o que Don Richardson chama de Fator Melquisedeque (ver livro com este título da Editora Betânia), que ele concebe como os traços das verdades divinas que o Espírito preservou em todas as culturas, mesmo naquelas isentas de influência da cultura judaico-cristã.

Sei que depois que analisamos algum conto, usando o processo de desmitologização, no rumo da bússola hermenêutica de Ruldolf Bultmann, importante teólogo alemão do início do século passado, aparentemente o encanto se perde, eu porém entendo que quando analisamos um conto, uma estória ou um mito, passamos a compreender que contribuição ele(a) trouxe para a nossa mente pueril e para a de nossos filhos. Entender como funcionam estes mecanismos e relações mentais, além de saudável, é necessário se quisermos compreender a nós mesmos e a nossos filhos. Eu ainda proporia outro prisma para análise dos contos de fadas: a visão teológica, se não bíblica, pode ser uma tarefa hercúlea, mas não creio que não deva ser tentada, pode ser que não alcancemos os resultados desejados, mas pelo menos tentamos.

Marilena Chauí classifica o Conto da Branca Neve como um conto de partida, que na visão dela é aquele que é marcado por ritos de passagem, recheado de “... provações e provas até ser ultrapassada rumo ao amor e à vida nova. Nesses contos, a adolescência é um período de feitiço, encantamento, sortilégio que tanto podem ser castigos merecidos quanto imerecidos, mas que servem de refúgio ou de proteção para a passagem da infância à idade adulta...” (Repressão sexual: essa nossa (des)conhecida, Ed. Brasiliense, 1984, pág. 32-54). O que mais caracteriza este tipo de conto é o tempo de espera que o personagem principal passa, é como se fosse uma parúsia, uma expectativa de algo grandioso que ocorrerá, no caso da teologia cristã este fato grandioso é a segunda vinda de Jesus, que culminará com o fim da história e o começo de uma outra realidade histórica.

Dentro desta esfera de expectativa, os personagens, especialmente as meninas, são vítimas de feitiços que as fazem dormir ou as transformam em animais frágeis, por isso que se fala tanto de esperar "pela princesa encantada" que aponta, não para a espera por alguma donzela muito boa e bela, mas sim para o fato de que é necessário aguardar os que estão enfeitiçados porque ainda não chegou a hora do desencantamento, ou aquele que é capaz de desfazer o feitiço ainda não foi manifestado. Vejo muitas metáforas das verdades evangélicas por trás disso.

Branca de Neve não teve o seu corpo mutilado, ou violado, graças à piedade e ética do caçador que havia recebido esta missão da madrasta de Branca, ele prefere enganar a bruxa a ter que matar a inocente, preferiu cometer um mal menor que evitasse que um mal maior fosse praticado. Quando não arrancou o coração da menina, ele não apenas poupou a vida dela, mas, metaforicamente, ele também poupa e preserva a sua pureza virginal. Ele só não pode evitar que ela fosse, bem mais tarde, facilmente enredada no ardil da madrasta (que tornou-se um estereótipo de maldade para todas as demais madrastas, tachadas a partir de então como bruxas), por meio da gula (um dos sete pecados capitais da teologia latina de Roma) que é fruto da sedução que cativou seus olhos (luxúria? Outro pecado capital).

Um fato que merece destaque aqui é o objeto utilizado para seduzir Branca: uma maçã (ressalte-se que vermelha!), segundo as tradições judaico-cristãs teria sido esse o fruto utilizado para uma outra sedução, segundo os relatos do Gênesis, que culminou com a Queda do homem no Jardim do Éden. O fato de Branca de Neve permanecer imóvel encerrada num caixão de cristal é bastante metafórico, já que o caixão simboliza os seus órgãos sexuais e o fato de estar imóvel indica que estava sendo impedida de se tornar adulta, permanecendo presa na adolescência sem ter condição de se tornar adulta-mulher.

A maçã que fica na sua garganta sem que ela engula ou a expila é outra metáfora para a entrada do mal, ela está no limiar de ter contato com algo que a pode destruir, ela consegue de certa forma barrá-lo, muito embora não fique imune à ação maléfica do fruto que a envenena, mas não tem forças suficientes para erradicá-lo de si de uma vez por todas, e esse mal a condena ao sono eterno, à morte. Isto tem muita analogia com os efeitos da queda, ainda que o homem caído possa praticar boas ações, ele por si mesmo é incapaz de inclinar-se para o bem ou de erradicar esse mal de dentro de si.

Outro elemento que merece ser mencionado é a cor vermelha, presente em muitas partes deste conto e sempre de forma cheia de significância. O vermelho, que é trazido pela bruxa, possui uma carga de simbologia medieval muito grande, já que naquela época acreditava-se que as bruxas fabricavam as poções de amor usando esperma e o sangue menstrual, esta simbologia aponta pois para a puberdade de Branca, mas também parece sugerir que só com a expelição da mesma, ela poderia reviver.

Outro fato cheio de significado parece amedrontador, já que o belo príncipe pretendia levar o corpo de Branca consigo, seria uma necrofilia velada? Não creio, isso estaria mais associado à crença de que algo poderia ser feito e ela fosse então, libertada do feitiço e da morte.

Alguns elementos que não são tão imprescindíveis para o desenvolvimento da história merecem ser destacados: o espelho mágico, que é usado metaforicamente como “espelho da alma”, pode ser usado também como figura de linguagem do perigoso narcisismo e o auto-encantamento, o que abriria caminho para a vaidade e a soberba, passos que foram dados por Lúcifer antes de sua queda e do consequente afastamento de Deus. E é por ele que é instalada a discórdia entre as personagens principais do conto.

Outro elemento metafórico que merece consideração é que a estagnação, paralisia do desenvolvimento de Branca, é mais importante do que a sua morte, interessava mais que ela permanecesse “criança” e frágil, do que uma adulta confiante que pudesse se defender e que tomasse as rédeas de sua própria vida. Faz um paralelo com os ardis luciferianos que prefere incentivar que os seus alvos sejam religiosos ao extremo, fanáticos presos às superstições e aos ritos fetichistas que os impedem de crescer e de amadurecer, antes, busca atrofiá-los e privá-los de experimentar uma vida de maturidade da fé e de plenitude.

O período em que Branca de Neve adormece e que por fim, com a ajuda do Príncipe, consegue expelir a maça envenenada e então contrair bodas com este mesmo príncipe tem também paralelismos com as histórias evangélicas de Jesus e a Igreja, sua noiva, que contrairão bodas após a volta (ou segunda vinda do noivo) e o “despertar” de parte dessa noiva que terá dormido (morrido).

A metáfora do sapato de ferro em brasas que a bruxa madrasta passará a usar até a morte como castigo por suas maldades e por ter induzido Branca de Neve ao erro, tem analogia na prisão de Lúcifer, que procurou por toda a história da igreja induzi-la ao erro, seja afastando-a do príncipe, seja incentivando-a a colocar no lugar dele um simulacro, seja distorcendo a expectativa por meio de ação exagerada ou de omissão, ou esperava de forma errada ou não esperava mais.

Só recentemente depois de adulto e quando passei a fazer uma releitura destes contos eu fiquei chocado com a violência que eles contêm e me surpreendi com o fato de que não percebia isso quando era criança, na verdade posso afirmar que acabava me comprazendo nela. Isto decorre do fato de que a grande maioria das crianças aceita naturalmente o mundo maravilhoso dos contos e não se assusta e nem é pessimista quanto ao destino de seus heróis, pois sabe que de uma forma ou outra todos eles terminarão bem e a frase "e foram felizes para sempre" nunca vai deixar de encerrar um conto. Nos enganamos quando tentamos suavizar a dor, a violência ou o lado negro de um conto, são coisas que as crianças esperam que aconteçam, pois sabem que isso não é para sempre, e que ao fim e ao cabo o Bem triunfará. Isso é algo muito positivo para uma mente infantil: saber que não importa qual o alcance ou tamanho do Mal, ele será vencido sempre pelo Bem.

Muitos de nós nos surpreendemos com o fato de que as crianças não só desejarem ouvir inúmeras vezes os mesmos contos (numa repetição que deixa os adultos extenuados), mas também não admitirem qualquer mudança no enredo, por menor que seja (cobram do adulto que "encurta" a estória, omite ou esquece algum detalhe, altera alguma ação). Essa relação quase maníaca e obsessiva da criança com a narrativa é essencial.

Creio que para começo de reflexão o que discutimos é razoável, o que podemos fazer a partir de agora é seguir buscando estes “ventos” que o Espírito sopra nas culturas, dotando-as de lampejos da verdades eternas. Basta ler com os óculos certos, descobriremos que existem mais verdades evangélicas espalhadas por nossas estórias infantis do que imaginamos.