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Trotsky na Netflix


Acaba de chegar aos telespectadores brasileiros a série Trotsky, exibida pela Netflix. Ela é original da Rússia, foi produzida pela TV Pevry Kanal sob a direção-geral de Konstantin Ernst e tem a produção de Alexandre Tsekalo. No momento que soube da notícia que a Netflix iria exibir a série, como admirador da figura política e intelectual, sobretudo por que o biografado desempenhou um importante papel junto com Lênin na condução da primeira revolução operária/camponesa duradoura, fiquei entusiasmado. Mas, fui advertido por colegas e pessoas que conhecem a história do processo revolucionário e também a vida e obra do criador do Exército Vermelho.

Mesmo com as advertências, fiz questão de assisti-la e comprovar o quanto é problemática do ponto de vista histórico e político, tanto no que se refere à biografia do personagem principal, como também à ambientação na qual lhe fez ser conhecido internacionalmente: a revolução russa. Portanto, confirmei que o enredo da série não é só reacionário politicamente, como também pratica indigência teórica e histórica do co-líder da revolução russa e o processo da revolução, ou seja, nem fatos históricos a série teve a dignidade de respeitar. Acredito que os erros sucessivos que aparecem ao longo dos episódios se dão por questão de escolha, e não por falta de conhecimento da produção do seriado. Basta uma pequena olhada na produção cinematográfica para perceber que teve um alto investimento e não foi feita com baixo orçamento. Sendo assim, seria muito tranquilo a produção contratar uma consultoria de historiadores sérios que não cometessem equívocos. Mas, como se trata deliberadamente de falsificar a história da revolução russa e, com isso, produzir grosserias, eles não se preocuparam nem um pouco com os fatos históricos.

O tamanho do absurdo que aparece ao longo da série faz inveja à grande maioria das produções anticomunistas de Hollywood durante a guerra fria. O fato é que trata-se da narrativa oficial do Governo Putin e daqueles que na derrocada da URSS espoliaram os meios de produção. O objetivo é a reescritura da história recente da Rússia.

Portanto, antes de relatar e desmentir algumas passagens da série (sim, algumas, pois se eu fosse tentar desfazer todas as mentiras e falsificações que existem nela, certamente este texto seria longo e cansativo para os leitores) queria elencar alguns pontos que considerei importante que a narrativa da série tenta inculcar naqueles que a assistem.

A primeira é a maneira como é retratada a vida e a personalidade de um dos principais dirigentes da revolução de Outubro. Trotsky é mostrado como um homem egoísta, ambicioso financeiramente, machista, tirano e sanguinário.

O segundo alvo das inverdades contidas no enredo da série localiza-se sobre o movimento socialista russo, sobretudo sobre o partido bolchevique, que é tratado como uma facção criminosa que só pensa em iludir o povo em beneficio dos seus dirigentes – especialmente Lênin, que é colocado como o chefe da máfia –, mostrando os debates dentro do partido não como embates de ideias e princípios socialistas, mas como uma disputa de egos para ver quem comandaria a facção. Em suma, a intenção é desmoralizar ao máximo o partido bolchevique, que liderou a revolução de Outubro.

A terceira e, para mim, o elemento principal do enredo reacionário da série, foi mostrar que a revolução russa foi um grande erro que só gerou violência e barbárie, indo ao ponto da série demonstrar que a atitude do partido que dirigiu a revolução foi motivada por dinheiro, e não pelo princípio da emancipação humana, que foi o significado maior daquele outubro de 1917. O fato é que a revolução não foi produzida pelo partido bolchevique, e não foi financiada pelo governo alemão (como mostra a série), mas, sim, pelos operários e camponeses que viram nas Teses de Abril de Lênin um programa de sua emancipação, e que atendiam suas reivindicações mais básicas e imediatas.

A primeira cena da série mostra a famosa imagem do trem blindado no qual Trotsky foi “morador” durante os tempos difíceis da guerra civil, quando foi comissário de guerra, organizador e comandante do Exército Vermelho. Assim, era imprescindível o transporte sob trilhos para coordenar essas tarefas. Em seguida, as câmeras focam o interior do Trem, com um Trotsky conversando com uma moça charmosa, vestida de modo pomposo, e fumando no interior do vagão. Seguem-se algumas palavras, beijos e sexo. Parece uma cena inocente, retratando um caso de extra-conjugal, porém é uma cena lastimável quando olhamos com mais rigor. A primeira observação é a de que o biógrafo de Trotsky mais gabaritado, Isaac Deutscher, não apresenta em nenhum momento que ele teve algum caso com uma moça chamada Larissa Reissnerque teria nascido na Polônia em 1895, se tornando socialista na Alemanha e que finalmente vai para a Rússia em 1917 acompanhar o processo revolucionário russo ao lado dos bolcheviques. Na invasão dos exércitos estrangeiros na Rússia, ela aceitou de prontidão se alistar nas fileiras do partido para defender a revolução dos ataques estrangeiros, e foi nesta tarefa que foi convidada a acompanhar e auxiliar Leon Trotsky na coordenação do Exército Vermelho. Mas a série a retrata como uma espécie de concubina de Trotsky, cujas atenções negligenciavam as tarefas principais do conflito,enquanto o mundo soviético desabava sob a guerra civil. Ou seja, mostra o co-líder da revolução como uma pessoa sem escrúpulos.

Posteriormente, a série dá uma guinada temporal para o México, país de seu último exílio. A cena que acabamos de descrever foi construída como uma espécie de memória do comandante do Exército Vermelho. A série então se desloca temporalmente para a apresentação do então namorado de sua secretária, de pseudônimo Jacson, que na realidade se chamava Ramón Mercader. Ao conhecer Trotsky (isto é, depois do atentado à sua vida pelos agentes stalinistas), Mercader começa a fazer uma série de entrevistas na casa do líder soviético. Porém, esta informação também não consta nas biografias sobre vida e a obra do líder revolucionário. Mas o processo de falsificação não para por aí. O enredo da série começa a mostrar que Jacson era um ferrenho defensor de Stálin, colocando-o em constante conflito com Trotsky. E ainda pior: com Trotsky sempre provocando-o, dando a ideia que Ramón assassinou-o não por motivos políticos, mas por questões pessoais. Se Jacson já se apresentou como um stalinista, então por que Trostsky iria manter amizade com ele, uma vez que Stálin já tinha mandado lhe assassinar? O fato é que o afã de desmoralizar Trotsky e o partido bolchevique foi tão grande, que até elementos de ficção foram utilizados.

A propósito da ficção,  um episódio que me chamou muita atenção: os encontros que Leon Trotsky teve com Sigmund Freud, o pai da psicanálise.Mas a ficção vai além.  também uma cena em que Freud entra em debate com o co-líder da revolução russa. Aquele lhe faz um diagnóstico de um homem obcecado pela revolução comunista a ponto de passar por cima de tudo e todos para atingir este objetivo. E, diga-se, que este objetivo é um projeto pessoal de Trotsky, e não o projeto de uma emancipação dos trabalhadores russos.

Para além das mentiras do diagnóstico de Trotsky feito por Freud nas cenas mencionadas, nunca houve um tal encontro entre os dois – nenhuma biografia minimamente séria sobre a vida e a obra do revolucionário russo menciona tal encontro. O problema não é utilizar-se de ficção. Basta que se anuncie que trata-se de uma obra de tal gênero. Porém, em entrevista ao site de O Globo, o produtor diz: “É difícil ser objetivo cem anos depois, mas tentamos produzir uma série fundamentada em acontecimentos reais”.

Na segunda e última parte deste texto, mostrarei as outras deformações do enredo referente à biografia de Trotsky e à revolução russa, concatenando uma resposta para os supostos motivos por detrás das falsificações grosseiras que a série produz, tanto contra Trotsky como contra a revolução de Outubro.

Jefferson Lopesmestre em História pela UFCG.

Gente boa da roça


Além da expressão neutra que ela carregava quando estava sozinha, a Senhora Freeman tinha outras duas, uma afirmativa e outra retroativa, que ela usava para todas as suas relações humanas. Sua expressão afirmativa era firme e forte como a de um caminhão pesado. Seus olhos nunca desviavam para a esquerda ou direita, mas viravam de acordo com o rumo da estória como se seguissem uma linha amarela bem no centro da estória. Ela raramente usava a outra expressão porque muitas vezes não era necessário retirar uma declaração, mas quando usava, seu rosto parava completamente, havia um movimento quase imperceptível em seus olhos negros, enquanto eles pareciam retroceder, e então o observador via que a Senhora Freeman, embora estivesse lá, tão real quanto sacos de grão jogados em cima uns dos outros, não estava mais lá em espírito. Fazê-la entender qualquer coisa quando isso acontecia era impossível, a Senhora Hopewell havia desistido. Ela poderia falar até morrer. A Senhora Freeman nunca seria convencida a admitir seu erro em qualquer aspecto. Ela permaneceria lá e, se a pudessem convencer a falar qualquer coisa, seria algo como: “Bem, eu não diria que sim ou não diria que não” ou, ao direcionar seu olhar vago para a prateleira de cima da cozinha onde havia várias garrafas empoeiradas, ela poderia mencionar: “Eu vejo que você não comeu muitos dos figos das conservas que você fez no verão passado”.

Elas cuidavam de seus assuntos mais importantes na cozinha durante o café da manhã. Todas as manhãs a Senhora Hopewell se levantava às sete e ligava seu aquecedor à gás e o de Joy. Esta era sua filha, uma moça loira e alta que tinha uma prótese na perna. A Senhora Hopewell ainda via Joy como uma criança mesmo que ela tivesse trinta e dois anos e alto nível de formação. Joy se levantava enquanto sua mãe estivesse comendo e arrastava-se para o banheiro, batendo a porta, e logo a Senhora Freeman chegava à porta dos fundos. Joy ouvia sua mãe dizer: “Entre”, e então as senhoras conversavam por um tempo em voz baixa, inaudível no banheiro. No momento em que Joy entrava, elas já haviam terminado o relatório da previsão do tempo e estavam falando sobre uma das filhas da Senhora Freeman, Glynese ou Carramae. Joy as chamava de Glicerina e Caramelo. Glynese, uma moça ruiva, tinha dezoito anos e muitos admiradores; Carramae, uma moça loira, tinha apenas quinze, mas já estava casada e grávida. Ela não conseguia manter qualquer coisa em seu estômago. Todas as manhãs a Senhora Freeman contava à Senhora Hopewell quantas vezes Carramae havia vomitado desde o último relatório.

A Senhora Hopewell gostava de dizer para as pessoas que Glynese e Carramae eram duas das moças mais finas que ela conhecia, que a Senhora Freeman era uma lady e que ela nunca teria vergonha de levar a Senhora Freeman a qualquer lugar ou apresentá-la a qualquer pessoa que elas pudessem encontrar. Então ela contava como havia contratado os Freeman em primeiro lugar, como eles eram uma benção de Deus para ela e como estavam junto dela há quatro anos. A razão para mantê-los por tanto tempo era que eles não eram lixo. Eram boa gente do interior. Ela havia telefonado para o homem cujo nome havia sido dado como referência e ele contou para ela que o Senhor Freeman era um bom agricultor, mas que a Senhora Freeman era a mulher mais barulhenta a caminhar pela terra. “Ela tem que estar em tudo”, disse o homem. “Se ela não chegar lá antes que a poeira assente, pode apostar que ela está morta, só isso. “Ela vai querer saber de toda a sua vida. Eu o considero muito”, ele disse, “mas nem eu nem minha esposa conseguiríamos aguentar aquela mulher mais um minuto”. Isso desencorajou a Senhora Hopewell por alguns dias.

Por fim ela os contratou porque não houve outros candidatos, mas decidiu de antemão como lidaria com a mulher. Já que a Senhora Freeman era do tipo de se meter em tudo, a Senhora Hopewell decidiu que ela não apenas seria incluída em tudo, mas providenciaria para que ela estivesse em tudo, ela seria a pessoa encarregada. A Senhora Hopewell não tinha defeitos, mas tinha a habilidade de usar os defeitos de outras pessoas de maneira tão construtiva que ela já tinha os Freeman há quatro anos.

Nada é perfeito. Este era um dos ditados favoritos da Senhora Hopewell. O outro era: é a vida! E ainda mais um, o mais importante, era: bem, outras pessoas têm suas opiniões também. Ela diria essas expressões geralmente à mesa, em tom de insistência gentil, como se ninguém soubesse deles além dela, e a grande desajeitada Joy, cujo ultraje constante havia apagado qualquer expressão em seu rosto, apenas direcionaria um pouco seu olhar para o lado, seus frios olhos azuis, com o jeito de alguém que havia ficado cego por vontade própria e se manteve assim.

Quando a Senhora Hopewell dizia à Senhora Freeman que a vida era assim, esta dizia: “Eu sempre digo isso”. Nada acontecia sem que a Senhora Freeman soubesse primeiro. Ela era mais rápida que o Senhor Freeman. Quando a Senhora Hopewell disse a ela, após certo tempo da chegada deles: “Sabe, você é a comandante deste navio” e deu uma piscadela, a Senhora Freeman respondeu: “Eu sei. Sempre fui rápida. Há sempre aqueles que são mais rápidos que os outros”.

“Todos são diferentes”, disse a Senhora Hopewell.

“Sim, a maioria é”, respondeu a Senhora Freeman.

“É preciso gente de todos os tipos para formar o mundo”.

“Eu sempre disse isso”.

A menina estava acostumada com esse tipo de diálogo no café da manhã e também no jantar; de vez em quando elas conversavam no lanche também. Quando não tinham visitas, elas comiam na cozinha porque era mais fácil. A Senhora Freeman se esforçava para chegar durante a refeição e assisti-las terminar. Ela ficava na porta se fosse verão, mas no inverno ela apoiava um cotovelo em cima da geladeira e olhava para elas de cima, ou ficava ao lado do aquecedor a gás, levantando um pouco a parte de trás da saia. Ocasionalmente ela se apoiava na parede e rolava a cabeça de um lado para o outro. Ela nunca tinha pressa de ir embora. Tudo isso era muito penoso para a Senhora Hopewell, mas esta era uma mulher de grande paciência. Ela havia percebido que nada é perfeito, que os Freeman eram boa gente do interior e que, se em tempos presentes há boa gente no interior, era melhor segurá-la.

Ela teve muita experiência com lixo. Antes dos Freeman, ela tivera em média uma família de caseiros por ano. As mulheres desses agricultores não eram do tipo que você gostaria por perto por muito tempo. A Senhora Hopewell, que havia se divorciado do marido há anos, precisava de alguém que tocasse a plantação para ela; e quando Joy tinha de ser mandada a fazer esses serviços, as coisas que ela fazia eram geralmente tão malfeitas e sua expressão tão carrancuda que a Senhora Hopewell dizia: “Se você não faz de boa vontade, eu não quero”, ao que a moça, firme, com os ombros rígidos e o pescoço um pouco jogado para a frente, respondia: “Se você me quer, aqui estou – COMO SOU”.

Deus Não é Grande: Como a Religião Envenena Tudo


Quando eu li Christopher Hitchens pela primeira vez eu fiquei genuinamente emocionado. Hitchens resgata o sentimento de indignação com as barbáries cometidas pela religião e nos ajuda a perceber como, de fato, a religião envenena tudo, incluindo nossa capacidade crítica a respeito dela. Se você for ler apenas um livro esse ano, o que infelizmente será verdade para a maioria dos brasileiros, já que uma pesquisa recente aponta que o brasileiro lê em media apenas dois livros completos por ano e que o livro mais lido é a Biblía, eu recomendaria que você lesse esse livro.

Separei algumas passagens de cada capítulo.
Capítulo 1: Colocando Gentilmente
E aqui está o ponto, sobre mim e meus colegas pensadores. Nossa crença não é uma crença. Nossos princípios não são uma fé. Nós não confiamos exclusivamente na ciência e na razão, porque estes são necessários, em vez de fatores suficientes, mas desconfiamos de tudo que contradiga a ciência ou ultraje a razão. Podemos divergir sobre muitas coisas, mas o que respeitamos é a indagação livre, a mente aberta, e a busca de ideias para seu próprio bem. Não temos convicções dogmáticas.

Capítulo 2: Religião Mata
Certa vez ouvi o falecido Abba Eban, um dos diplomatas e estadistas mais polido e pensativo de Israel, dar uma palestra em Nova York. A primeira coisa a bater o olho sobre o conflito israelo-palestino, disse ele, foi a facilidade de sua solubilidade. A partir deste início cativante ele passou a dizer, com a autoridade de um ex-chanceler e representante da ONU, que o ponto essencial era simples. Dois povos de tamanho equivalente tinha um crédito a mesma terra. A solução seria, obviamente, a criação de dois Estados lado a lado. Certamente, algo tão evidente estava dentro do espírito do homem para abranger? E assim teria sido, décadas atrás, se os rabinos e mulás messiânicos e padres pudessem ter sido mantidos fora da questão. Mas os clamores exclusivos para a autoridade dada por Deus, feita por clérigos histéricos de ambos os lados e ainda mais felizmente por cristãos que esperam trazer o Apocalipse (precedido pela morte ou a conversão de todos os judeus), tornaram a situação insuportável, e colocaram toda a humanidade na posição de refém de uma briga que apresenta agora a ameaça de guerra nuclear. A religião envenena tudo. Bem como uma ameaça à civilização, tornou-se uma ameaça à sobrevivência humana.

Capítulo 3: Uma pequena digressão sobre o porco, ou, por que o céu odeia presunto?
A atração e repulsão simultânea é derivado de uma raiz antropomórfica: o olhar do porco, e com o sabor do porco, e os moribundos gritos do porco, e a inteligência evidente do porco, eram de uma demasiada e incômoda reminiscência do ser humano.

Capítulo 4: Uma nota sobre a saúde, para qual a religião pode ser perigosa
Feche os olhos e tente imaginar o que você diria se você tivesse que infligir o maior sofrimento possível no menor número de palavras.
"... Durante o carnaval no Brasil, o bispo auxiliar do Rio de Janeiro, Rafael Llano Cifuentes, disse à sua congregação em um sermão que "a igreja é contra o uso do preservativo. As relações sexuais entre um homem e uma mulher tem que ser natural. Eu nunca vi um cãozinho usar um preservativo durante a relação sexual com um outro cão." Figuras clericais experientes de vários outros países, como o cardeal Obando y Bravo da Nicarágua, o arcebispo de Nairobi, no Quênia, e o Cardeal Emmanuel Wamala de Uganda, tem todos ditos aos seus rebanhos que as camisinhas transmitem AIDS.

Capítulo 5: As afirmações metafísicas da religião são falsas
Todas as tentativas de conciliar a fé com a ciência e a razão estão fadadas ao fracasso e ao ridículo por precisamente estas razões. Eu li, por exemplo, de alguma conferência ecumênica dos cristãos que desejam mostrar sua mente aberta e convidar alguns físicos para participarem. Mas sou obrigado a lembrar o que eu sei, que é que não haveriam tais igrejas, em primeiro lugar, se a humanidade não tivesse temido coisas como o clima, o escuro, a peste, o eclipse, e toda sorte de outras coisas agora facilmente explicáveis. E também se a humanidade não tivesse sido obrigada, sob pena de consequências extremamente agonizantes, a pagar os dízimos e impostos exorbitantes que elevaram os edifícios imponentes da religião.

Capítulo 6: Argumentos sobre Design
Ceticismo e descoberta libertaram (os religiosos) do fardo de ter que defender seu deus de ser absurdo, desajeitado, um cientista louco, e também de ter que responder perguntas perturbadoras sobre quem infligiu o bacilo da sífilis ou criou o leproso ou a criança deficiente, ou concebeu os tormentos do trabalho. O fiel repousa absolvido dessa acusação: não temos mais qualquer necessidade de um deus para explicar o que não é mais misterioso. O que os crentes vão fazer, agora que sua fé é opcional e privada é irrelevante, é uma questão para eles. Nós não deve se preocupar, desde que eles não façam nova tentativa de forçar a religião sob qualquer forma de coerção.

Capítulo 7: Apocalipse: O pesadelo do "Antigo" Testamento
Em Deuteronômio Moisés dá ordens para os pais que seus filhos sejam apedrejados até a morte por indisciplina (que parece violar pelo menos um dos mandamentos) e continuamente faz pronunciamentos dementes ("Aquele que está ferido nas pedras, ou tem o seu membro cortado , não entrará na congregação do Senhor "). Em Números, ele aborda seus generais depois de uma batalha e se enfurece com eles por poupar tantos civis: "Agora, pois, matem todos os meninos entre as crianças, e matai toda mulher que tiver conhecido homem, deitando-se com ele. Mas todas as mulheres-crianças que não tem conhecido um homem, deitando-se com ele, manter as viva para vós."

Capítulo 8: O "Novo" Testamento excede o mal da"Velho"
Muitos dos ensinamentos de Jesus são ininteligíveis e mostram uma crença na magia, vários são absurdos e mostram uma atitude primitiva para com a agricultura (isso se estende a todas as menções de arar e semear, e todas as alusões a árvores de mostarda ou figueira), e muitos são claramente imorais. A analogia de seres humanos para os lírios, por exemplo, sugere juntamente com muitas outras passagens, que coisas como economia, inovação, vida familiar, e assim por diante são uma pura perda de tempo. ("Não fazeis plano para o dia de amanhã.").

Capítulo 9: O Corão é uma cópia de mitos judaicos e cristãos.
Em vinte e cinco anos de discussões, muitas vezes ferrenhas, apenas uma vez fui ameaçado com violência real. Isso ocorreu em Washington, DC quando eu estava jantando com alguns funcionários e apoiadores da Casa Branca de Clinton. Um dos presentes, um na época conhecido democrata arrecadador de fundos para o partido, questionou-me sobre a minha mais recente viagem ao Oriente Médio. Ele queria a minha opinião sobre a razão pela qual os muçulmanos eram tão "tudo nervosos, malditos fundamentalistas." Eu descrevi meu repertório de explicações, acrescentando que muitas vezes é esquecido que o Islã é uma fé relativamente jovem, e ainda no calor da sua auto-confiança. Os muçulmanos ainda não tiveram tempo de sofrer a crise de insegurança que havia superado o cristianismo ocidental. Acrescentei que, por exemplo, enquanto havia pouca ou nenhuma evidência para a vida de Jesus, a figura do Profeta Maomé era ao contrário pessoa significativamente documentada na história. O homem mudou de cor mais rápido do que eu já havia visto. Depois de gritar que Jesus Cristo tinha mais significado para as pessoas mais do que eu jamais poderia imaginar, e que eu era nojento acima de qualquer insulto por falar tão casualmente de Cristo, ele recuou o pé e mirou um pontapé que só a sua decência, concebivelmente seu cristianismo, o impediu de desferir contra minha perna. Ele então ordenou que sua esposa o acompanhasse enquanto se retirava.

Capítulo 10: O enfeite barato do milagroso e o declínio do Inferno
Depoimento de Ken Macmillan, o cinegrafista do documentário "Algo Bonito Para Deus":
"Durante as filmagens, houve um episódio em que fomos levados para um prédio que Madre Teresa chamava de Casa dos Moribundos. Peter Chafer, o diretor, disse: "Ah, bem, é muito escuro aqui. Você acha que podemos conseguir alguma coisa?" E nós tínhamos acabado de receber na BBC um novo filme feito pela Kodak, que não tivemos tempo para testar antes de sairmos, então eu disse a Pedro: "Bem, nós podemos tentar e pode dar certo."Então, nós filmamos. E quando voltamos, algumas semanas depois, um mês ou dois mais tarde, nós estamos sentados na sala de projeção no Ealing Studios e, eventualmente, se vêm as imagens da Casa dos Moribundos. E foi surpreendente. Você podia ver todos os detalhes. E eu disse: "Isso é incrível. Isso é extraordinário." E eu ia dizer, você sabe, três vivas para a Kodak. Eu não tive a chance de dizer isso, porém, porque Malcolm, sentado na primeira fila, virou-se e disse: ".. É luz divina. É Madre Teresa. Você verá que é a luz divina, meu velho" E três ou quatro dias depois eu estava recebendo telefonemas de jornalistas de jornais de Londres que diziam coisas como: ". Ouvimos dizer que você acabou de voltar da Índia com Malcolm Muggeridge e que você testemunhou um milagre"
Assim nascia uma estrela...

Capítulo 11: "O Selo humilde de sua origem": O começo corrupto da Religião
Não são os livros sagrados do monoteísmo oficial absolutamente encharcado de desejo material e com descrições - quase de dar água na boca- das riqueza de Salomão, das pastagens e rebanhos prósperos e bem sucedidos dos fiéis, as recompensas para um bom muçulmano no paraíso, para não falar de muitos, muitos contos sombrios de pilhagem e saque? Jesus, é verdade, não mostra nenhum interesse pessoal no ganho, mas ele fala de um tesouro no céu e até mesmo de "mansões" como um incentivo para segui-lo. Não é mais verdade que todas as religiões ao longo dos tempos têm mostrado um grande interesse no recolhimento de bens materiais no mundo real?

Capítulo 12: Um Epílogo: Como a Religião Acaba
Pode ser igualmente útil e instrutivo vislumbrar o encerramento de religiões ou movimentos religiosos. Os mileritas, por exemplo, não existem mais. E nós não ouviremos falar novamente, a não ser de forma vestigial e nostálgica, de Pan ou Osíris ou qualquer um dos milhares de deuses já escravizaram pessoas absolutamente.

Capítulo 13: A Religião Faz as Pessoas Comportarem-se Melhor?
A primeira coisa a ser dita é que o comportamento virtuoso de um crente não é prova da verdade de sua crença de forma alguma, não é nem mesmo um argumento a seu favor. Eu poderia, vamos imaginar, agir de forma mais caridosa se ​​eu acreditasse que Buda nasceu de uma fenda no lado de sua mãe. Mas isso não faria o meu impulso de caridade dependente de algo muito tênue? Da mesma forma, não digo que se eu pegar um sacerdote budista roubando todas as oferendas deixadas pelo povo simples em seu templo, o budismo é, assim, desacreditado. E esquecemos em qualquer caso, como tudo isto é contingente. Das milhares de religiões possíveis que haviam no deserto, assim como haviam milhões de espécies potenciais, um ramo criou raízes e cresceu. Passando por suas mutações judáicas até a sua forma cristã, que foi adotado por motivos políticos pelo Imperador Constantino, e transformada em uma fé oficial com (eventualmente) a forma codificada e aplicável ​​de seus muitos livros caóticos e contraditórios. Já para o Islã, ele se tornou a ideologia de uma conquista de grande sucesso que foi adotado por dinastias de sucesso, codificados e estabelecido por sua vez, e promulgado como lei da terra.

Capítulo 14: Não há Solução "Oriental"
A espécie humana é uma espécie animal sem muita variação dentro dela, e é ingênuo e inútil imaginar que uma viagem ao Tibete, por exemplo, vai revelar uma harmonia inteiramente diferente com a natureza ou com a eternidade. O Dalai Lama, por exemplo, é inteiramente e facilmente reconhecível para um secularista. Exatamente da mesma maneira como um príncipe medieval, ele faz a afirmação não só que o Tibete deve ser independente da hegemonia chinesa - uma solicitação aceitável - mas que ele próprio é um rei hereditário nomeado pelo próprio céu.Que conveniente! Seitas dissidentes dentro de sua fé são perseguidas; seu governo de um homem em um enclave indiano é absoluto, ele faz declarações absurdas sobre sexo e dieta e quando em suas viagens para Hollywood os principais doadores como Steven Segal e Richard Gere são ungidos com o status de "santos" dentro da religião budista. (Na verdade, mesmo Gere foi forçado a reclamar um pouco quando o Sr. Segal foi reconhecido como "tulku',ou "pessoa de alta iluminação". Deve ser chato ser derrotado em um leilão tão espiritual.)

Capítulo 15: Religião Como Um Pecado Original
Há, de fato, várias formas nas quais a religião não é apenas amoral, mas definitivamente imoral. E estas falhas e crimes não estão a ser encontradas no comportamento dos seus adeptos (que às vezes pode ser exemplar), mas em seus preceitos originais.

Capítulo 16: Seria a Religião Abuso de Menores
Como podemos saber quantas crianças tiveram suas vidas físicas e psicológicas irreparavelmente ​​mutiladas pela inoculação compulsória da fé? Isso é quase tão difícil de determinar como o número de sonhos e visões espirituais e religiosos e que se tornaram "verdade", que a fim de possuir ainda uma verificação real teria que ser medido contra todos os sonhos não registrados e esquecidos que não se realizaram. Mas podemos ter certeza de que a religião sempre exerceu sua influência sobre as mentes disformes e indefesas dos jovens, e tem feito grandes sacrifícios para certificar-se deste privilégio, fazendo alianças com os poderes seculares no mundo material.

Capítulo 17: Uma Objeção Antecipada: O último argumento contra o secularismo
Se eu não posso provar definitivamente que a utilidade da religião está no passado, e que seus livros fundamentais são fábulas transparentes, e que é uma imposição feita pelo homem, e que tem sido um inimigo da ciência e da investigação, e que tem subsiste em grande parte a mentiras e medos e foi cúmplice da ignorância e da culpa, bem como da escravidão, do genocídio, do racismo e da tirania, posso certamente afirmar que a religião está agora plenamente consciente dessas críticas. E também está plenamente consciente da evidência sempre crescente, sobre as origens do cosmo e da origem das espécies, coisas que ela tenta levar à marginalidade, se não tão somente à irrelevância.

Capítulo 18: Uma Tradição Melhor: A Resistência do Racional
É fato que alguns seres humanos sempre notaram a improbabilidade de Deus, o mal feito em seu nome, a probabilidade de que ele é feito pelo homem, e a disponibilidade de crenças alternativas menos prejudiciais e outras explicações. Não podemos saber os nomes de todos estes homens e mulheres,porque eles foram, em todos os tempos e todos os lugares, objetos de repressão implacável. Por motivo idêntico, nem podemos saber quantas pessoas ostensivamente devotas eram secretamente descrentes. No final dos séculos XVIII e XIX, em sociedades relativamente livres, como a Grã-Bretanha e os Estados Unidos, os incrédulos, mesmo seguros e prósperos como James Mill e Benjamin Franklin sentiram que seria aconselhável manter as suas opiniões privadas. Assim, quando lemos sobre as glórias da pintura "cristã" e da arquitetura, astronomia ou da medicina "islâmica", nós estamos falando sobre os avanços da civilização e da cultura (alguns deles previstos pelos astecas e chineses) que têm tanto a ver com "fé", como seus predecessores tinham a ver com sacrifício humano e imperialismo. E nós não temos meios de saber, exceto em alguns poucos casos especiais, quantos desses arquitetos e pintores e cientistas decidiram preservar seus pensamentos mais íntimos do escrutínio dos fiéis.

Capítulo 19: Conclusão: A Necessidade de uma nova iluminação
Acima de tudo, temos necessidade de uma iluminação renovada, que vai basear-se na proposição de que o estudo apropriado da humanidade é o homem e mulher. Este esclarecimento não vai precisar depender, como seus antecessores, dos avanços heroicos de poucas pessoas talentosas e extremamente corajosas. Está ao alcanço da pessoa comum. O estudo da literatura e da poesia, tanto para seu próprio bem como para as eternas perguntas éticas da qual eles tratam, agora podem facilmente derrubar o exame dos textos sagrados que foram provados ser corruptos e inventados. A busca da investigação científica desenfreada, e da disponibilidade de novas descobertas para as massas por fáceis meios eletrônicos, vai revolucionar nossos conceitos de pesquisa e desenvolvimento. Muito importante, o divórcio entre a vida sexual e o medo, e a vida sexual e as doenças,e a vida sexual e tirania, pode agora, finalmente, ser tentada, sob a única condição de que todas as religiões sejam banidas da questão. Tudo isto e muito mais está, pela primeira vez em nossa história, ao alcance de todos.

Você acredita em Deus?

Átomos e partículas. Estória do acelerador


Neste segundo remix da obra de Carroll (2012) (C) sobre a partícula do fim do universo (bóson de Higgs), vamos estudar dois capítulos: átomos e partículas; estória do acelerador.

I. ÁTOMOS E PARTÍCULAS
Busca-se particionar a matéria até “seus últimos constituintes, quarks e léptons” (C:39). É a ideia fixa da física: achar o fim do fim, sem nunca encontrar, talvez porque a realidade mais se assemelha a um círculo ingente, do que a uma linha reta que começa e acaba. Conta Carroll que no início dos 1800, o médico alemão Hahnemann fundou a prática da homeopatia. Desiludido pela medicina da época, desenvolveu nova abordagem com base no princípio de “igual cura igual” – doença pode ser tratada precisamente pela mesma substância que a causa, desde que seja manipulada adequadamente. A manipulação é chamada de “potencialização”, consistindo em diluir a substância repetidamente em água, agitando vigorosamente cada vez. Método típico de diluição é misturar uma parte da substância de 99 partes de água – prepara-se remédio homeopático diluindo, agitando e diluindo de novo, agitando de novo, até 200 vezes. Mais recentemente, Jago, consultor profissional de software e cético recreativo, quis demonstrar que não cria em homeopatia como abordagem válida. Decidiu aplicar o método de diluição serial a uma sustância obtida facilmente: sua própria urina. E que depois bebeu – por ser um pouco impaciente, diluiu apenas 30 vezes – não chamou de “urina”, mas de “mijo” (piss), dizendo que desenvolvia a cura por ser mijado (piss nos Estados Unidos significa também ficar com raiva; na Inglaterra, inebriar-se). Os resultados vieram num vídeo espalhafatoso no YouTube. Após a diluição em trinta vezes, ao final de urina não tinha mais nada. Tudo isso pela razão de tudo ser feito de átomos, combinados em moléculas. Estas são as menores unidades das substâncias.

Separadamente, dois átomos de hidrogênio e um de oxigênio são só átomos; combinados, viram água. Podemos diluir as coisas para sempre e manter a identidade – uma colher de urina pode conter cerca de 1024 moléculas; se diluímos uma vez misturando uma parte de urina com 99 partes de água, ficaremos com 1022 moléculas de urina. Diluindo duas vezes, ficarão 1020. Com 12 vezes, haverá em média apenas uma molécula restante. A partir daí já estaremos misturando água com água. Assim Jago, ao final, bebia água apenas. Adeptos da homeopatia, sabendo disso, creem que moléculas da água retêm uma “memória” de qualquer erva ou químico usado na diluição e que, de fato, a solução final é mais potente que a substância no início. Isto viola o que sabemos sobre física e química e experimentos clínicos classificam remédios homeopáticos como placebos. Mas sempre houve quem acredita nisso. A física toma dois fatos incisivos: i) podemos particionar a matéria em pedaços menores, na unidade menor possível;  ii) ao fundo há apenas alguns elementos que podem combinar-se, resultando na variedade do mundo observado. Num primeiro momento, o zoológico das partículas parece bagunçado, mas há apenas 12 partículas, em dois grupos de sei: quarks, que sentem a força forte nuclear, e léptons, que não. É uma estória estupefaciente, secular, desde a descoberta do elétron em 1897 até a do férmion (o neutrino tau) em 2000.

Visivelmente, Carroll acredita num ponto final na partição da matéria – sempre se prometeu isso, mas nunca deu certo. A cada momento inventa-se algo a mais, indicando que, assim como o universo parece “infinito” para cima, também parece para baixo. Tratando-se de algo material, esperamos que comece em algum lugar, mas este lugar até hoje fugiu...

II. IMAGENS DOS ÁTOMOS
As imagens mais comuns dos átomos – em revistas em quadrinhos, por exemplo – aparecem como pequenos sistemas solares, com núcleo central e elétrons orbitando-o – serve também de logo da Atomic Energy Commission americana. Mas traz equívoco de modo sutil – representa-se o modelo de Bohr, aplicando a mecânica quântica da época, oriunda de Rutherford. No modelo de Rutherford, elétrons orbitam o núcleo em qualquer distância imaginável, como planetas no sistema solar, exceto que são atraídos por eletromagnetismo, não gravidade. Bohr modificou a ideia insistindo que os elétrons podem viajar apenas em certas órbitas particulares, um grande passo em frente para entender a radiação emitida por átomos. Hoje sabemos que elétrons “não orbitam”, pois não possuem posição ou velocidade – a mecânica quântica diz que elétrons persistem em nuvens de probabilidade conhecidas como “funções de onda”, que nos dizem onde poderíamos achar a partícula se formos observar. Mas a imagem popular não é tão ruim assim. Elétrons são relativamente leves; mas de 99.9% da massa de um átomo é localizada no núcleo. Este é feito de combinação de prótons e nêutrons – um nêutron é um pouco mais pesado que um próton – um nêutron é cerca de 1.842 vezes mais pesado que um elétron, enquanto um próton é cerca de 1.836 vezes mais pesado. Prótons e nêutrons são chamados de “núcleons”, pois perfazem o núcleo. À parte o fato de que próton tem carga elétrica e nêutron é mais pesado, os dois núcleons são similares. Elétrons são atraídos para o núcleo pela força do eletromagnetismo, que é muitíssimo mais forte que a gravidade. A atração eletromagnética entre um elétron e um próton é cerca de 1039 vezes mais forte que a atração gravitacional entre eles. Enquanto gravidade é simples – tudo atrai tudo – eletromagnetismo é mais sutil. Nêutrons recebem o nome do fato de serem neutros, sem carga elétrica. A força eletromagnética entre elétron e nêutron é zero. Partículas com o mesmo tipo de carga elétrica repelem-se. Elétrons são atraídos para os prótons dentro do núcleo porque elétrons carregam carga negativa e prótons positiva. Elétrons não sentem a força forte (assim como nêutrons não sentem eletromagnetismo), mas prótons e nêutrons sim, o que permite fazer o núcleo. Mas até certo ponto. Se o núcleo engordar demais, a repulsão elétrica vira excessiva, e o núcleo se torna radioativo – pode sobrevier um pouco, mas tende a decair em núcleos menores.

A estória de elétrons, prótons e nêutrons se formou no início dos 1930. A natureza, porém, é mais contorcionada e Dirac, já nos 1920, já fizera uma equação do elétron – todo férmion está associado com um tipo oposto de partícula – antipartícula. Partículas da antimatéria têm exatamente a mesma massa, mas carga oposta elétrica. Quando se ajuntam, se aniquilam em radiação energética. Coligir antimatéria é, por isso, pelo menos em teoria, modo de estocar energia e gerou muita especulação sobre propulsão de foguetes na ficção. A teoria de Dirac virou realidade em 1932, quando Anderson descobriu o pósitron – a antipartícula do elétron. Há simetria estreita entre matéria e antimatéria; mas o universo observado está cheio de matéria e contém muito pouca antimatéria. Por que é assim, ainda é mistério. Anderson estudava raios cósmicos, partículas de alta energia do espaço que se espatifam na atmosfera terrestre, produzindo outras partículas que eventualmente nos atingem no chão. Para criar imagens do rastro das partículas carregadas, Anderson usou tecnologia incrível conhecida como “câmara da nuvem” – o princípio básico é similar às nuvens reais que vemos no céu – enche-se câmara com gás que é supersaturado com vapor da água. “Supersaturado” significa que o vapor de água está para formar gotículas de água líquida, mas não o faz sem algum empurrão externo. Em nuvem regular, este empurrão vem na forma de algum grão de impureza, como poeira ou sal. Na câmara, o empurrão vem quando partícula carregada passa por ela – a partícula esbarra nos átomos dentro, chacoalhando elétrons soltos e criando íons. Estes servem como locais de nucleação para gotículas mínimas de água. Assim, uma partícula carregada passando deixará rastro de gotículas em sua esteira, bem como o rabo deixado por um avião, deixando amostra de sua passagem. Anderson tomou sua câmara de nuvem, enrolou em magneto poderoso, até ao teto do prédio aeronáutico em California Institute of Technology (Caltech) e aguardou os raios cósmicos. Para se obter vapor apropriadamente supersaturado dentro exigiu decréscimo rápido em pressão, induzido por pistão que causaria estrondo forte a cada vez que fosse deslanchado. Funcionava só à noite por consumo massivo de energia.

Estrondos reverberariam no ar de Pasadena toda noite, como testemunho ruidoso de que segredos do universo estavam sendo descobertos. Anderson tirou fotos que mostraram número igual de partículas que se curvavam no sentido relógio e contrarrelógio. A explicação seria que havia número igual de prótons e elétrons contidos na radiação; de fato, é o que se espera. Mas Anderson tinha outro tanto de dados que podia usar: a espessura do rastro do íon deixado na câmara. Reconheceu que, dada a curvatura dos rastros, todo próton que os produzia teria de estar se movendo relativamente devagar (menos de 95% da velocidade da luz) – deixando rastros mais espessos de íons do que era observado. Parecia que partículas misteriosas passando na câmara estavam carregadas positivamente, como próton, mas relativamente leves, como elétron. Havia outra possibilidade lógica: talvez os rastros eram simplesmente elétrons movendo-se para trás. para testar isso, ele introduziu uma placa de chumbo dividindo a câmara. Uma partícula movendo-se de um lado do chumbo para outro iria mover-se mais devagar, indicando claramente a direção da trajetória. Em foto icônica da história da física de partículas, vemos partícula em cura contrarrelógio movendo pela câmara, passando pelo chumbo e voltando mais devagar – a descoberta do pósitron. Gigantes da área, como Rutherford, Pauli e Bohr se mostraram incrédulos no início, mas experimento bonito sempre se impõe à intuição. Eis a antimatéria entrando no mundo da física de partículas.

III. NEUTRINOS
Arranjamos assim mais três férmios (antipróton, antinêutron, pósitron), num total de seis. Outros problemas vieram; por exemplo, quando nêutrons decaem, viram prótons emitindo elétrons. Medidas meticulosas do processo pareciam indicar que energia não era conservada – o total de energia do próton e elétron eram sempre um pouco menos. A resposta foi sugerida em 1930 por Pauli, sacando que a energia extra podia ser carregada por partícula ínfima neutra difícil de achar; chamou de “nêutron”, antes de o nome ficar ligado à partícula pesada neutra nos núcleos. Logo após, para evitar confusão, Fermi chamou de “neutrino” – de fato, um nêutron emite o que agora reconhecemos como antineutrino, mas o princípio estava bem correto. Pauli sentiu-se incomodado por sugerir partícula difícil de detectar, mas hoje neutrinos são coisa comum. Havia ainda a questão do processo exato pelo qual nêutrons decaem; quando partículas interagem entre si, implica algum tipo de força, mas o decaimento de um nêutron seria o esperado da gravidade, eletromagnetismo ou força nuclear. Então físicos passaram a atribuir o decaimento de nêutron à “força nuclear fraca”, pois tinha algo a ver com núcleons, mas não era a força que mantém os núcleos (força nuclear forte). O neutrino estabeleceu um pouco de simetria na partículas elementares. Havia duas partículas leves, elétron e neutrino, que eventualmente se diziam “léptons” (do grego, pequeno); e havia duas partículas pesadas, próton e nêutron, chamados “hádrons” (do grego, grandes). Os hádrons sentem a força nuclear forte, enquanto os léptons não. Cada categoria continha uma partícula e uma neutra. Parece inventado!

Em 1936, chegou mais um visitante do céu – o múon; Anderson, descobridor do pósitron, e Neddermeyer estavam estudando rádios cósmicos de novo; acharam uma partícula com carga negativa como elétron, mas mais pesada, embora mais leve que antipróton seria. Chamou-se “mu meson”, vendo-se logo tratar-se de méson (bóson feito de um quark e um antiquark), formando a abreviação “múon”. Nos 1930, metade das partículas elementares conhecida  (elétron, pósitron, próton, nêutron, múon e antimúon) foram descobertas na Caltech com Anderson. Depois veio a colheita do LHC. O múon foi surpresa total – já tínhamos o elétron – por que teria primo mais pesado? Em 1962, experimentalistas Lederman, Schwartz e Steinberger mostraram que havia realmente dois tipos diferentes de neutrinos – neutrinos elétrons, que interagem com elétrons e são muitas vezes criados com ele, mas também neutrinos múons, que andam juntos com múons; quando nêutron decai, emite elétron, próton e antineutrino elétron; quando o múon decai, emite elétrons e um antineutrino elétron, mas também um neutrino múon. E o processo se repetiu. Nos 1970, a partícula tau foi descoberta, também negativamente carregada como o elétron, mas pouco mas pesada que o múon; as três acabaram vistas como primas idênticas, diferindo apenas em massa. Todas sentem as forças fracas e eletromagnéticas, mas não a forte; a tau tem seu tipo de neutrino, já antecipado, mas não detectado até 2000.

Então, seis léptons, em três “famílias” ou “gerações”: o elétron com seu neutrino; o múon com seu neutrino; e a tau com seu neutrino. É perfeitamente natural ponderar se uma quarta geração ou mais vão vir... Por enquanto, só um talvez, embora pareça haver evidência que isto seria tudo! É porque os neutrinos conhecidos têm massas bem pequenas – certamente mais leves que o elétron. Agora sabemos como buscar novas partículas leves, analisando cuidadosamente os decaimentos das mais pesadas. Podemos contar quantas partículas similares a neutrino teriam de haver para dar conta dos decaimentos, e a resposta são três. Não há certeza total, porém.

A vinda dos aceleradores de partículas levou a um boom no número de partículas elementares. Havia píons, cáons, méson seta, méson ro, híperons e mais. Lamb, em sua preleção do Nobel de 1955, saiu-se com essa: “O descobridor de nova partícula elementar costumava ser premiado com o Nobel, mas tal descoberta agora deveria ser punida com multa de $10 mil” (C:49). As novas eram hádrons – ao contrário dos léptons, interagem fortemente com nêutrons e prótons, levando à suspeita crescente de que novatos não eram propriamente “elementares”, refletindo algo mais profundo estrutural. Isto se revelou em 1964 por Gell-Mann e Zweig, que, de modo independente, propuseram que hádrons eram feitos de partículas menores chamadas “quarks”. Como os léptons, vêm em seis diferentes sabores: up, down, charm, estranho, top e inferior. Os quarks up/charm/top têm carga elétrica +2/3, enquanto down/estranho/inferior -1/3; são agrupados por vezes como “tipo up” e “tipo down”, respectivamente. Ao contrário dos léptons, cada caso de quark representa um terceto de partículas, ao invés de uma. Os três tipos de cada quark são fantasiosamente chamados por cores: vermelho, verde ou azul. Quarks são “confinados”, significando que existem apenas em combinações dentro dos hádrons, nunca isoladamente. Quando se combinam, é sempre em combinações “sem cor”. Prótons e nêutrons possuem três quarks dentro: um próton é dois ups e um down, enquanto um nêutron é dois downs e um up. Um dos quarks será vermelho, um verde e outro azul; juntos se tornam brancos, sem cor.

IV. A FORÇA QUE NÃO SE ENCAIXA
Os férmions do Standard Model são o que dão à matéria à volta tamanho e molde. Mas são as forças e partículas bósons associadas que facultam aos férmions interagir entre si. Férmions podem empurrar ou puxar uns aos outros tocando bósons para frente e para trás, ou podem perder energia e decair para outros férmions cuspindo algum tipo de bóson. Sem bósons, os férmions simplesmente se moveriam retamente sempre, não afetados por nada. A razão por que o universo é tão incrivelmente complexo e interessante é que tais forças são diferentes, empurrando/puxando em modos complementares. Físicos muitas vezes dizem haver quatro forças da natureza – não incluem o Higgs, por ser diferente dos outros bósons. Os outros se dizem “bósons calibre” (gauge boson) (mais tarde se discute isso). O gráviton é um pouco diferente dos outros; toda partícula elementar tem certo “spin” intrínseco, e fóton, glúons e bóson W/Z têm um spin igual a 1, enquanto o gráviton de 2. Não sabemos ainda reconciliar gravidade com as demandas da mecânica quântica, porém.

O Higgs, por sua vez, é totalmente diverso; é bóson “escalar”, significando que tem zero spin. Ao contrário dos bósons calibre, o Higgs emerge de simetria ou outro princípio natural. Um mundo sem o Higgs seria bem diferente, mas ainda assim consistente com a teoria física. Mesmo importantíssimo, parece deformidade na estrutura matemática do Standard Model. É bóson e por isso pode ser intercambiado para trás e para frente com outras partículas, dando azo à força da natureza. É uma vibração no campo de Higgs, dando massa a todas as partículas elementares. O Higgs interage com todas as partículas massivas em nosso zoo – os quarks, o léptons carregados e os bósons W e Z (deixemos neutrinos de lado). Quanto mais massiva é partícula, mais fortemente se acopla ao Higgs. A realidade, porém, vai noutra direção: quanto mais fortemente uma partícula se acopla com o Higgs, tanto mais massa pega movendo-se no campo ambiental de Higgs que pervade espaço vazio. O Higgs é partícula pesada, e mesmo quando a produzimos não somos capazes de vê-la diretamente; rapidamente decai em outras partículas. Esperamos haver certo ritmo de decaimento para (exemplo) bósons W, diferente do quark inferior, dos mésons tau etc. Não é algo aleatório – sabemos exatamente como ele interage, de sorte que calculamos bem exatamente a frequência esperada de tipos diferentes de decaimentos.

V. ESTÓRIA DO ACELERADOR
Discute-se a história de colidir partículas a energias cada vez mais intensas. A ideia por trás do acelerador parece simples: tomar algumas partículas, acelerar a altas velocidades e espatifar com outras, para ver no que dá. Comparou-se isso com espatifar dois relógios suíços para ver o que sobra com os pedaços... Esta analogia não vale. Quando esmagamos partículas entre si, não estamos vendo como são feitas, mas criando nova partículas. Para chegar a tais velocidades usa-se princípio básico: partículas carregadas (elétrons e prótons) podem ser empurradas à volta por campos magnéticos; usamos campos elétricos para acelerar partículas a velocidades crescentes e campos magnéticos para mover na direção correta, como em tubo circular do LHC. Afinando tais campos delicadamente, pode-se reproduzir condições especiais não vistas na terra. O desafio é então: acelerar partículas o quanto pudermos, esmagá-las entre si e ver o que se cria de novo. Todos os passos são complexos. LHC representa a culminação de décadas de trabalho duro.

Quando o Bevatron criou antipróton, não foi porque havia escondidos, mas, porque as colisões trouxeram novas partículas à existência. Na teoria quântica, ondas representam partículas originais vibrando no campo antipróton; para ocorrer, o ingrediente crucial é que tenhamos suficiente energia. O insight que torna possível a física de partículas é a equação de Einstein E = mc2 – massa é realmente forma de energia; a massa do objeto é o mínimo de energia que pode ter; quando algo está parado, o montante de energia que carrega é igual à massa vezes o quadrado da velocidade da luz. A velocidade da luz é número grande (300 mil km/h). Mas, quando o objeto de move? Discussões sobre relatividade gostam de falar como se a massa aumentasse quando uma partícula se aproxima da velocidade da luz, mas é equívoco – prefere-se ver a massa como constante – a energia cresce chegando perto da velocidade da luz. Quando um acelerador empurra prótons a energias mais altas, vão se aproximando da velocidade da luz, embora nunca se chegue propriamente lá. Podem-se fazer partículas pesadas a partir de leves.

Prótons são hádrons – partícula que interagem fortemente; quando se esmagam duas, os resultados são um tanto imprevisíveis. O que realmente ocorre é que um dos quarks ou glúons dentro do hádron esmaga-se em um dos quarks ou glúons do outro, mas não se sabe a energia precisa de cada lado. Uma máquina que faz elétrons colidir é bem diferente: construída para precisão, não força bruta. Quando elétron e pósitron colidem, sabe-se bem o que está sucedendo; os resultados são melhor apropriados para mensurações exatas das propriedades. Aceleradores foram criados em muitas versões, mas hoje o show acontece no LHC.

CONCLUSÃO
Carroll esforça-se por mostrar um quadro simétrico, simples, bonito das partículas elementares, mas, na verdade, é um chão complicado. A própria condição aparentemente anômala (uma deformidade no Standard Model) do Higgs indica que podemos ser surpreendidos por novas elaborações, que com certeza vão vir no futuro. É possível mesmo que o modelo padrão venha a ser superado com o tempo, como já se insinua na mecânica quântica, que continua sendo vista como “mecânica”, por tradição positivista, não porque se imagina como cláusula pétrea. Se aceitarmos que a física de hoje explica talvez 5% do universo, na prática não sabemos ainda “nada”. Tudo pode vir a ser virado de cabeça para baixo. Por isso, não convém assegurar um chão final da matéria, porque sempre este chão foi se afastando. É melhor não se açodar. Provavelmente, qualquer explicação da realidade é menos real do que se gostaria.

REFERÊNCIAS
CARROLL, S. 2012. The particle at the end of the universe: How the hunt for the Higgs Boson leads us to the edge of a new world. Dutton, N.Y.

Pedro Demo (2016)

Por que não sou cristão


Como afirmou o vosso presidente, o tema que irei versar esta noite é Por que não sou cristão1. Convém, de início, procurar estabelecer o que se entende pela palavra cristão. Ela é usada nos nossos dias num sentido vago por um grande número de pessoas. Alguns aplicam-na a todo aquele que procura levar uma vida virtuosa. Nesse sentido, suponho que se encontrariam cristãos em todas as seitas e em todas as crenças, razão por que penso que não constitua o melhor significado para essa palavra, pois implicaria que todas as pessoas que não são cristãs — budistas, maometanas, confucionistas e outras — não pudessem levar uma vida virtuosa.

Não entendo por cristão quem procura viver de modo convincente e de harmonia com a razão. Penso que é necessária uma certa dose de determinada crença antes de ter o direito de se intitular cristão. De qualquer modo, a palavra não tem o rico sentido que possuía no tempo de Santo Agostinho e de S. Tomás de Aquino. Nessas épocas, se alguém se confessava cristão sabia-se o que isso significava. Aceitava-se todo um conjunto de crenças estabelecidas com grande precisão e a todas as palavras dessas crenças se associava uma fé inabalável.

O que é um cristão?
Nos nossos dias não se passa o mesmo. É necessário ser-se um pouco mais vago no significado de “cristão”. Julgo, no entanto, que existem dois pontos necessários para todo aquele que se proclama como tal. O primeiro é de natureza dogmática — ou seja, que se deve acreditar em Deus e na imortalidade. A não acreditar nesses dois princípios, penso que ninguém se poderá proclamar cristão. Depois, como o nome implica, deverá possuir-se a crença da existência de Cristo. Os maometanos, por exemplo, crêem igualmente em Deus e na imortalidade, e no entanto não se proclamam cristãos. Dever-se-á ter como base fundamental a crença de que Cristo, a não ser de essência divina, é pelo menos o melhor e o mais sábio dos homens. Se não possuís, no mínimo, esta crença na existência de Cristo, não creio que tenhais o direito de vos intitulardes cristãos.

Sem dúvida, existe outro sentido que se pode encontrar no Whitaker’s Almanack ou nos livros de geografia, onde se declara que a população do globo se divide em cristãos, maometanos, budistas, adoradores de fetiches, etc.; e nesse sentido todos seremos cristãos. Os tratados de geografia englobam-nos a todos, mas esse é um critério puramente geográfico que, suponho, não deve ser considerado. De onde concluo que, quando pretendo expor por que não sou cristão, devo ater-me a outras duas ordens de razões: primeira, por que não creio em Deus e na imortalidade; segunda, por que não penso que Cristo tenha sido o melhor e mais sábio dos homens, ainda que lhe reconheça um grau elevado de virtude moral.

Sem os frutuosos esforços dos cépticos do passado, não me seria possível dar uma definição tão elástica de cristão. Como já afirmei, antigamente esta palavra possuía um sentido mais rico. Incluía, por exemplo, a crença no Inferno. A crença num fogo infernal, eterno, foi um princípio essencial da fé cristã até uma época relativamente recente. No nosso país, como deveis saber, deixou de constituir um princípio essencial depois da decisão do Privy Council, que os Arcebispos de Canterbury e de York não reconheceram; mas como no nosso país a religião é determinada pela lei do Parlamento, o Privy Council pôde sobrepor-se à opinião dos Arcebispos. Assim, a crença no Inferno deixou de ser necessária para se ser cristão, razão por que não insistirei nela.

A existência de Deus
Abordar a questão da existência de Deus, eis uma grande e séria questão, e se me determinasse tratá-la de modo adequado, seria necessário reter-vos aqui até à chegada do reino de Deus. Por isso, espero que me desculpareis por a tratar de um modo um tanto sumário. Sabeis, naturalmente, que a igreja católica erigiu em dogma que a existência de Deus pode ser demonstrada pela via racional. É um dogma assaz curioso mas não deixa de o ser. Tornou-se necessário introduzi-lo porque em determinado momento os livre-pensadores adoptaram o hábito de declarar que existiam este e aquele argumentos racionais contra a existência de Deus e que a aceitação dessa existência era matéria de fé. Os argumentos e as razões foram expostos minuciosamente e a igreja católica entendeu que lhes devia pôr um ponto final. E adoptou mais esse princípio de que a existência de Deus pode ser demonstrada pela simples via racional, e ela própria estabeleceu o que considerava como argumentos dessa prova. São sem dúvida bastantes, mas contentar-me-ei em invocar alguns.

O argumento da causa primeira
O argumento da causa primeira é talvez o mais simples e o de mais fácil compreensão. (Mantém que tudo o que existe no mundo tem uma causa, e que percorrendo a cadeia de causas se chegará fatalmente à causa primeira, a que se dá o nome de Deus). Este argumento, suponho, não pesa demasiado na nossa época, porque, entretanto, a noção decausa não é a mesma de outrora. Os filósofos e cientistas têm estudado esse conceito e ele não possui actualmente a força que se lhe atribuía; mas, no entanto, podereis verificar que oargumento da causa primeira é daqueles que não possui qualquer validade. Devo dizer-vos que, quando era jovem e debatia estes problemas muito seriamente comigo próprio, aceitei por largo tempo o argumento da causa primeira, até que um dia, pelos meus dezoito anos, lendo a Autobiografia de Stuart Mill, descobri esta frase: “Meu pai ensinou-me que a pergunta “Quem me criou?” não comporta qualquer resposta porque levantaria imediatamente outra interrogação: “Quem criou Deus?” Esta frase tão simples revelou-me, como ainda creio, a falácia do argumento da causa primeira. Se tudo tem de ter uma causa também Deus tem de a possuir; e se algo existe sem causa tanto pode ser o mundo como Deus — razão da inutilidade desse argumento. Ocorre-me a história do indiano que afirmava estar o mundo assente num elefante e este sobre uma tartaruga; e quando se pergunta: “E a tartaruga?” o indiano responde: “E se mudássemos de assunto?” Na verdade o argumento não tem mais valor do que este.

Não há razão para que o mundo não tenha nascido sem causa; nem, além disso, e por outro lado, que não tenha existido sempre. A ideia de que as coisas têm de ter um começo é uma opinião resultante da pobreza da nossa imaginação. Assim não me parece necessário ocupar mais tempo com o argumento da causa primeira.

O argumento da lei natural
A seguir, há o argumento muito conhecido da lei natural. Foi um argumento muito em voga ao longo do século XVIII, especialmente devido à influência de Isaac Newton e da sua cosmogonia. Observavam-se os planetas que giram à volta do Sol segundo a lei da gravitação, e pensava-se que Deus tinha dado ordem para se movimentarem nessa trajectória, razão por que a efectuavam. Essa era, naturalmente, uma explicação fácil e simples que evitava o trabalho de procurar uma explicação para a lei da gravitação.

Actualmente, explicamos a lei da gravitação de um modo um pouco mais complicado, de harmonia com o que Einstein nos ensinou. Não me proponho fazer uma conferência sobre a interpretação einsteiniana dessa lei porque nos ocuparia bastante tempo; em todo o caso, já se não aceita essa espécie de lei natural que fazia parte do sistema newtoniano, onde, por uma razão que se compreendia, a natureza se comportava de modo uniforme. Muitas coisas que considerávamos como leis naturais são actualmente demonstradas como constituindo puras convenções humanas. Sabeis que mesmo no mais longínquo ponto do espaço sideral uma jarda é igual a três pés. É, sem dúvida, um facto importante mas que dificilmente poderá ser classificado como lei da natureza. E quantas coisas mais, tidas como leis da natureza, são do mesmo género?

Por outro lado, até onde chega o nosso conhecimento real sobre os átomos, descobris que eles se encontram muito menos submetidos a leis do que se pensava, e que as leis estabelecidas são apenas médias estatísticas que lembram justamente aquelas que dependem do acaso. Existe, e todos nós a conhecemos, uma lei segundo a qual, no lançamento de dados, o doble de seis sai apenas uma vez sobre trinta e seis, sem que se conceba esse facto como prova de que essa combinação obedeça a qualquer projecto; ao contrário, se o doble de seis saísse sempre é que pensaríamos que se tratava de coisa determinada! A maior parte das leis da natureza são desse género. São médias estatísticas como aquelas leis que dependem do acaso, o que transforma todo este assunto das leis naturais numa coisa menos extraordinária do que anteriormente se pensava.

Além desta verificação, demonstrativa do carácter epocal da ciência, susceptível de mudança de rumo, a própria ideia segundo a qual as leis da natureza implicam um legislador, resulta duma confusão entre a chamada lei natural e a lei humana. Esta, ordena que vos conduzais de certo modo, embora possais conformar-vos com isso ou adoptar não o fazer; mas as leis naturais são uma descrição do modo como a realidade efectivamente se comporta, e pelo facto de serem uma simples descrição da sua acção real não torna necessário sustentar que tem de existir alguém que imponha essa prescrição. A ser necessário isso, teríamos então de responder à seguinte interrogação: Qual a razão por que Deus prescreveu precisamente estas leis naturais e não outras? Se dizeis que Ele assim fez porque quis, sem qualquer razão, passareis então a admitir que existe alguma coisa não submetida a leis, rompendo-se, então, o vosso encadeamento de leis naturais. Mas se afirmais, como o fazem os teólogos ortodoxos, que em todas as leis feitas por Ele havia uma razão para impor estas e não outras — razão que seria naturalmente a de criar o melhor dos mundos, ainda que isso nos pareça duvidoso — concluiremos, então, que há uma causa para as leis impostas por Deus. E Deus teria sido Ele próprio submetido a uma lei, não havendo qualquer vantagem em o ter introduzido como intermediário. Ter-se-á estabelecido uma lei exterior e anterior às ordens divinas, pelo que Deus não serve os propósitos de primeiro legislador. Em resumo: o argumento de lei natural não é tão consistente quanto se pretendia. Estou a tentar seguir uma ordem cronológica na revisão dos argumentos a favor da existência de Deus, dado que estes têm mudado de harmonia com os tempos. Foram de início argumentos difíceis, intelectuais, comportando determinados sofismas. A medida que nos aproximamos da época actual, tornam-se intelectualmente menos respeitáveis e cada vez mais afectados por uma espécie de imprecisão moralizante.

O argumento do plano ou argumento teleológico
O degrau seguinte desta exposição leva-nos ao argumento do plano. Conheceis esse argumento: tudo no mundo está disposto de modo a nele podermos viver, e se o mundo fosse diferente, ainda que ligeiramente, não seria possível essa existência. Tal é o argumento do plano ou argumento teleológico. Ele assume por vezes uma forma bastante curiosa; por exemplo, sustenta-se que os coelhos têm a cauda branca para facilmente serem descobertos pelo caçador. Não sei o que os coelhos pensariam desta aplicação do argumento. Conheceis aquela reflexão de Voltaire de que o nariz foi visivelmente concebido de forma a poder segurar os óculos. Este género de paródia não estava longe do alvo, tanto quanto se podia pensar no século XVIII, porque depois de Darwin sabemos melhor por que os seres vivos se adaptam ao mundo que os cerca. Não foi o meio ambiente criado para se adaptar a eles, mas sim os seres que evoluíram de modo a ele se adaptarem — este, o fundamento da adaptação. A prova do plano não tem aplicação neste caso.

Quando se examina de perto este argumento do plano, é surpreendente verificar-se que alguém possa acreditar que este mundo, com tudo aquilo que encerra, com os seus defeitos, tenha de ser o melhor que um ser omnipotente e omnisciente tenha podido criar ao longo de milhões de anos. Não o posso aceitar. Imaginai que sois omnipotentes e omniscientes e vos são dados milhões de anos para aperfeiçoar o mundo — não vos seria possível criar nada de melhor do que a Ku-Klux-Klan ou o Fascismo? Além disso, se aceitais as leis ordinárias da ciência, deveis supor que a vida do homem, e a vida em geral, desaparecerá em devido tempo em todo este planeta: é uma etapa do declínio do sistema solar. Numa determinada fase do declínio, chegar-se-á a um conjunto de condições de temperatura e outras, inadequadas ao protoplasma e haverá vida por pouco tempo em todo o sistema solar. Vê-se na Lua o exemplo do que acontecerá na Terra — uma coisa morta, fria, desértica.

Dir-se-á que esta opinião é deprimente e que as pessoas seriam incapazes de continuar a viver se dela participassem. Não acredito nisso; é uma pura tolice. Ninguém se preocupará verdadeiramente pelo que acontecerá daqui a milhões de anos. Mesmo que o afirmem, enganam-se a si próprias. As razões dos seus cuidados são mais imediatas, ou resultam simplesmente duma má digestão; na verdade, ninguém ficará seriamente preocupado ao pensar num acontecimento que se produzirá neste mundo daqui a milhões e milhões de anos. Por isso, ainda que seja lúgubre supor-se que a vida desaparecerá — suponho que se possa dizer isso, ainda que por vezes, quando considero o que as pessoas fazem da sua vida, chegue a pensar que isso constitui uma consolação — esse sentimento não é suficiente para tornar a vida miserável. Simplesmente, obriga a nossa atenção a voltar-se para outros assuntos.

O argumento moral a favor da divindade
Abordamos mais uma etapa daquilo a que poderia chamar o rebaixamento intelectual que os deístas mostraram nos seus argumentos e chegamos agora ao capítulo dos chamados argumentos intelectuais a favor da existência de Deus. Sabeis, naturalmente, que existem três argumentos intelectuais a favor da existência de Deus e que todos foram refutados por Kant na Crítica da Razão Pura; mas logo que os refutou inventou um novo, um argumento moral que acreditou ser inabalável. Agiu como muitos outros: no domínio da inteligência era um céptico, mas no campo da moral acreditou implicitamente em máximas que tinha bebido com o leite materno. O que ilustra uma particularidade a que os psicanalistas atribuem tanta importância: a influência exercida sobre nós pelas recordações da primeira infância é extraordinariamente mais forte do que as recordações mais recentes.

Kant, como disse, inventou um novo argumento moral a favor da existência de Deus que, sob formas diferentes foi extremamente usado ao longo do século XIX. Teve toda a espécie de formas. Uma delas consistia em afirmar que não haveria o mal ou o bem se Deus não existisse. De momento, não importa a questão de saber se há alguma diferença entre obem e o mal, ou se não existe: este é outro problema. O que me interessa agora é que, a existir essa diferença, sereis colocados perante uma nova questão: essa distinção será ou não devida a um decreto de Deus? No caso afirmativo não haverá, para Deus, qualquer distinção entre o bem e o mal e, nesse caso, não constituirá declaração sensata o afirmar-se que Deus é bom. Se dizeis como os teólogos que Deus é bom, torna-se necessário que obem e o mal tenham uma significação independente dum decreto de Deus, porque as leis de Deus serão boas e não más, independentemente do facto de serem ditadas por Ele. A ser assim, declarais implicitamente que não é pela intervenção de Deus que existem o bem e o mal, mas que as suas essências são logicamente anteriores a Deus. Podeis, sem dúvida, se o desejardes, afirmar que existe uma divindade superior que impôs ordens ao Deus que criou o mundo ou, seguindo o exemplo dos gnósticos2 — partido que muitas vezes tenho considerado como bastante plausível — afirmar que o mundo, tal e qual o conhecemos, foi criado por um demônio num momento em que Deus estava distraído. Isto poderia ser discutido longamente mas não estou interessado em refutar tal ponto de vista.

O argumento da reparação da injustiça
Existe ainda outra forma muito curiosa do argumento moral, que é: a existência de Deus é necessária para introduzir a justiça neste mundo. Nesta parte do universo que conhecemos reina uma grande injustiça: quantas vezes sofre o justo, prospera o mau, e mal se sabe qual destes dois casos é o mais perturbador; mas, se se pretende que a justiça reine no conjunto do universo, é necessário supor uma vida futura capaz de estabelecer o equilíbrio da existência cá na Terra. Portanto, diz-se, é necessário que exista um Deus, um paraíso e um inferno para que reine a justiça. É um argumento muito curioso. Se o considero dum ponto de vista científico, direi: “Afinal de contas, apenas conheço este mundo. Nada sei do resto do universo, mas na medida em que me é permitido raciocinar com base em probabilidades, direi que este mundo constitui um belo exemplo e que, se a injustiça reina nele, é quase certo que a injustiça reinará igualmente nos outros”. Suponhamos que recebeis um cabaz de laranjas e, ao abri-las, descobris que as de cima estão apodrecidas. Por certo que não direis: “Debaixo devem estar sãs para que o equilíbrio seja restabelecido”, mas sim: “É provável que tudo esteja estragado”. É exactamente assim que raciocinaria um cientista em face do universo. Diria: “Verificamos neste mundo uma quantidade de injustiças e essa é uma razão para se supor que a justiça o não governa; e, consequentemente, tanto quanto compreendo, isso constitui um argumento contra uma divindade e não a seu favor”. Sem dúvida, sei que este género de argumentos intelectuais não convence realmente as pessoas. O que as persuade a acreditar em Deus não é um argumento intelectual mas, geralmente, acredita-se porque se criou o hábito de o fazer desde criança.

E penso que a razão que imediatamente se segue é o desejo de segurança, uma espécie de aspiração à existência de um irmão mais velho que olhe por nós. Isto desempenha um papel muito profundo e leva as pessoas a desejarem acreditar em Deus.

A personalidade de Cristo
Desejo agora dizer algumas palavras sobre um assunto que penso não ter sido tratado convenientemente pelos racionalistas. É o problema de saber se Cristo foi o melhor e o mais sábio dos homens. Geralmente admite-se que todos devemos estar de acordo com isso. Pela minha parte não o admito, embora existam muitos aspectos sobre os quais estou de acordo com Cristo e talvez em maior número do que os praticantes cristãos. Penso que não poderei segui-lo em tudo mas irei mais longe do que a maior parte dos cristãos. Recordais que Ele disse: “Tendes ouvido dizer: olho por olho e dente por dente. Eu porém digo-vos que não resistais ao que vos fizer mal; mas se alguém te ferir na tua face direita, oferece-lhe também a outra”.3 Este não é um preceito ou um princípio novo. Foi usado por Lao-Tsé4 e Buda uns cinco ou seis séculos antes de Cristo, embora não seja um princípio a que os cristãos se submetam verdadeiramente. Não duvido que o actual primeiro-ministro5, por exemplo, seja um cristão muito sincero, mas não aconselho nenhum dos presentes a dar-lhe uma bofetada. Estou certo que descobriria que ele apenas atribui a esse texto um significado simbólico.

Há uma outra máxima que tenho como excelente. Recordais que Cristo disse: “Não queirais julgar, para não serdes julgados”6. Não acredito que encontreis este princípio nos tribunais das nações cristãs. Cristo disse também: “Dá a quem te pede e não te esquives ao que te pede emprestado”7. É um bom princípio.

O nosso Presidente lembrou que não estamos aqui para falar de política, mas não posso deixar de observar a luta das últimas eleições gerais.

Há igualmente uma outra máxima de Cristo que me parece importante, mas que julgo não estar muito em voga entre os nossos amigos cristãos. Diz o seguinte: “Se queres ser perfeito, vende os teus bens, e dá-os aos pobres”8. Eis uma excelente máxima mas que não é muito praticada! Todas são, ao que penso, excelentes — ainda que seja bem difícil viver de acordo com elas. Não pretendo segui-las, mas no fim de contas o caso é diferente para um cristão.

Imperfeições nos ensinamentos de Cristo
Depois de ter reconhecido a excelência dessas máximas, vejamos outros textos onde se não manifesta a extraordinária sabedoria e suprema bondade que os Evangelhos atribuem a Cristo, omissão feita ao problema da historicidade do personagem. Com efeito, é muito duvidoso que Cristo tenha existido e, se existiu, nada podemos afirmar da sua vida como certo, razão por que não estou interessado nessa difícil questão histórica. Reporto-me apenas ao Cristo tal qual aparece nos Evangelhos e aceito estes como nos são apresentados — e lá descobriremos afirmações que não nos parecem de grande sabedoria.

Entre outras coisas, Cristo pensava que o seu segundo advento se efectuaria entre nuvens de glória e ainda durante a vida dos seus contemporâneos. Existem inúmeros textos que o atestam. Diz ele, por exemplo: “Não acabareis de percorrer as cidades de Israel, sem que o Filho do homem tenha chegado”9. E adiante afirma: “Muitos dos que aqui estão não conhecerão a morte sem que vejam o Filho do homem voltar na majestade do seu reino”10. Há muitas outras passagens onde é bem evidente que acreditou num segundo advento ainda em vida daqueles que o escutavam. De resto, essa era a crença dos seus primeiros discípulos e constituía a base de uma grande parte dos seus ensinamentos morais. Quando diz: “Não vos inquieteis com o dia de amanhã”11, e outras palavras do mesmo género, é porque tinha para breve esse segundo advento e, portanto, decretava o desinteresse pelos negócios terrenos. Conheci um padre que assustou as suas ovelhas ao afirmar que esse advento estaria eminente, mas sentiram-se mais confortadas quando o viram plantar árvores no seu jardim. Os primeiros cristãos, porque tomavam à letra este género de oráculos, abstiveram-se evidentemente de tais iniciativas porque Cristo os tinha persuadido de que era eminente essa segunda vinda.

O problema moral
Vamos versar agora os problemas morais. Quanto a mim há um sério defeito na moral de Cristo, que é a sua crença no inferno. Não posso admitir que uma pessoa profundamente humana possa acreditar num castigo eterno.

Ora Cristo, tal como o descrevem os Evangelhos, acreditava nesse castigo e descobrem-se muitas frases que testemunham um furor vingativo contra aqueles que não aceitavam a sua doutrina — atitude que pode estar de harmonia com um pregador mas que prejudicará a reputação dum ser a quem se atribui uma perfeição extraordinária. Se comparardes Jesus a Sócrates, por exemplo, verificareis que o filósofo era suave e cortês para quem se recusava a escutá-lo. Ao que penso, é muito mais próprio dum sage adoptar essa linha de conduta do que deixar-se dominar pela indignação. Recordem-se as palavras de Sócrates no momento da sua morte e aquelas que correntemente dirigia aos que estavam em desacordo consigo.

Nos Evangelhos ouvireis Cristo exprimir-se deste modo: “Serpentes, raça de víboras, como podereis escapar ao castigo do inferno?”12 Isto era dirigido às pessoas que não apreciavam as suas palavras. Infelizmente, são muitas as imprecações do mesmo estilo, no que se refere ao inferno, nesses textos sagrados. Especialmente, cito aquele que se aplica ao pecado cometido contra o Espírito Santo: “Todo aquele que fala contra o Espírito Santo, não terá perdão neste mundo ou no outro”13. Este texto tem provocado no mundo um número indizível de tormentos. Não aceito que um ser possuindo um grama de bondade natural fosse capaz de instaurar no mundo crenças e terrores deste gênero.

Cristo diz ainda: “O Filho do homem enviará os seus anjos que arrancarão do seu reino todos os escândalos e aqueles que cometerem o mal, lançando-os na fornalha de fogo, onde haverá choros e ranger de dentes”14. E obstina-se em falar de choros e ranger de dentes, versículo após versículo, parecendo evidente aos leitores que Cristo considerava tudo isso sem qualquer desgosto. Se tal não correspondesse à verdade, essas palavras não apareceriam tantas vezes. Por certo que estais recordados do episódio das ovelhas e das cabras. Aquando o segundo advento, Jesus separará as ovelhas das cabras e dirá a estas: “Afastai-vos de mim, malditas, e ide para o fogo eterno”15. E prossegue: “Se o teu pé é para ti uma oportunidade de pecado, corta-o; porque é melhor entrares na vida eterna coxo, do que, tendo os dois pés, seres lançado no fogo do inferno, o fogo que nunca será extinto; onde os vermes não morrem e o fogo jamais é extinto”16.

As repetições não cessam. Devo dizer que considero toda esta doutrina, segundo a qual o fogo do inferno é a punição do pecado, como a doutrina da crueldade, doutrina que introduziu a crueldade no mundo e tem justificado séculos de torturas. O Cristo dos Evangelhos, tal como os seus Apóstolos o apresentam, deve ser considerado como parcialmente responsável por esses acontecimentos.

Entre outros casos de menor importância há o dos porcos de Gadarena. Não é das atitudes mais gentis introduzir demônios nestes animais e fazê-los precipitar no mar, do alto de uma colina17. Não era Jesus todo-poderoso e não podia simplesmente afastar os demônios? Mas preferiu alojá-los nos porcos.

Há também a curiosa história da figueira que não tem deixado de me intrigar. Sabeis o que aconteceu com a figueira. “E, ao outro dia, como saíssem de Bethânia, teve fome; e vendo ao longe uma figueira coberta de folhas avançou para ver se encontrava algum fruto. Aproximou-se então da árvore mas encontrou apenas folhas porque não era ainda a estação dos figos. E Jesus disse então para ela: que jamais alguém coma do teu fruto... e Pedro disse para Jesus: Mestre, olhai! A figueira que haveis amaldiçoado secou”18.

Esta é uma história muito curiosa, visto não ser a época própria dos figos e não ser possível responsabilizá-la. Penso que em matéria de sabedoria ou de virtude, Cristo não está tão alto como outras figuras históricas. Nesses aspectos colocarei acima dele Buda ou Sócrates.

O factor emocional
Como já disse, não acredito que o motivo que leva as pessoas a aceitar uma religião tenha alguma coisa a ver com o raciocínio. Aceitam uma religião por motivos emocionais. Afirma-se muitas vezes que é prejudicial atacar uma religião, porque ela torna os homens virtuosos. Confesso que não estou convencido disso. Conheceis, por certo, a paródia que Samuel Butler fez deste argumento no seu livro Erewhon Revisited19]. Estais recordados de que um certo Higgs chegou a uma remota região onde passa algum tempo e depois se escapa num balão. Vinte anos depois, tendo aí regressado, ficou surpreendido ao deparar com um novo culto no qual ele próprio era adorado sob o nome de Filho do Sol. Recorde-se que, com efeito, ele subiu aos céus. Estava para breve a celebração da Festa da Ascensão, quando ouviu os prosélitos Hanky e Panky, altos dignitários da religião dos Filhos do Sol, confidenciar um ao outro que nunca tinham visto o chamado Higgs e que esperavam que jamais isso acontecesse. Cheio de indignação, aproximou-se e disse-lhes: “Vou esclarecer neste dia toda esta mistificação e dizer ao povo de Erewhon que eu, Higgs, sou apenas um homem como os outros e que, simplesmente, me servi dum balão para deixar o vosso país”. Responderam-lhe: “Não faças isso, porque todos os princípios morais deste povo estão ligados a esse mito, e se souberem que não subiste ao céu, transformar-se-ão todos em malfeitores”. Persuadido, abandonou o país silenciosamente.

Em face desse preceito, seremos todos pecadores se não observarmos os mandamentos da religião cristã. Parece-me que o povo que se sente seguro das suas crenças se torna muito mais perverso. Facto curioso: quanto mais fervorosa foi a religião numa determinada época e mais profundo o dogmatismo, tanto maior foi a crueldade e pior o estado do mundo. Nos séculos em que a fé foi mais viva e em que os homens aceitaram a religião cristã na sua integridade, tivemos a Inquisição e as torturas. Penso nos milhões de mulheres queimadas como sacrílegas e em todos os horrores de que a religião foi o pretexto.

Basta relembrar a história mundial para nos apercebermos que o progresso, em todos os domínios (humanização da guerra, brandura na escravatura, comportamento para com as pessoas de cor), foi constantemente contrariado pela oposição das igrejas, quaisquer que sejam. Eu afirmo, pesando bem as minhas palavras, que a religião cristã, tal qual é estabelecida nas suas igrejas, foi e continua a ser a principal inimiga do progresso moral do mundo.

Como as igrejas têm retardado o progresso
Pode ser que penseis que sou demasiado ousado quando faço essa afirmação. Julgo que não. Tomemos um exemplo. Não será agradável referi-lo mas a atitude das pessoas religiosas obriga-nos a isso. Suponhamos que, neste mundo em que hoje vivemos, uma adolescente sem experiência se casa, sem o saber, com um sifilítico. Neste caso, a igreja proclama: “O casamento é um sacramento indissolúvel; obriga-vos a manter a união para toda a vida”. E esta mulher nada pode fazer para impedir que dela nasçam crianças sifilíticas. Tal é o ponto de vista da igreja católica. Ninguém poderá sustentar, a menos que tenha o coração absolutamente fechado ao sofrimento dos outros, que seja conveniente e justo que um tal estado de coisas se deva perpetuar.

Isto não é mais do que um exemplo. Existem ainda muitos outros domínios onde a Igreja, pelo controlo que exerce sobre aquilo a que lhe apraz chamar moralidade, impõe gratuitamente sofrimentos inúteis a um grande número de seres humanos. E sem dúvida, sabemo-lo, manifesta-se como adversária de todo o progresso quando se trata de diminuir o sofrimento neste mundo. Sob o nome de moralidade, etiquetou uma série de regras de conduta que brilham pela sua estreiteza e que nada têm a ver com a felicidade do homem; e quando se diz que é necessário fazer isto ou aquilo em vista à felicidade da humanidade, ela responde que nada tem a ver com o assunto: “A finalidade da moral não é a felicidade das pessoas”.

O temor, base da religião
A religião é fundamentada primeiramente e sobretudo no temor. Por um lado é o terror perante o desconhecido, por outro o desejo de sentir uma espécie de irmão mais velho que esteja ao nosso lado quando nos sentimos receosos ou em dificuldades. O temor é a base deste problema — temor do misterioso, temor do malogro, temor da morte. E o temor engendra a crueldade, razão por que a vemos de mãos dadas com a religião. O temor está na base de uma e de outra. Neste mundo, começamos a compreender as coisas, a dominá-las um pouco com a ajuda da ciência — que vai abrindo caminho pouco a pouco apesar da oposição da religião cristã, das igrejas em geral e de todas as superstições. A ciência pode ajudar-nos a vencer esse covarde terror em que a humanidade tem vivido durante tantas gerações; a ciência pode ensinar-nos, e penso que o nosso próprio coração nos pode também ajudar, a não mais procurar apoios imaginários à nossa volta, a não mais forjar aliados nos céus, mas a concentrar todos os nossos esforços aqui na terra, a fim de fazer deste mundo um lugar onde se possa viver agradavelmente, ao contrário do que têm feito todas as igrejas ao longo dos séculos.

O que devemos fazer
Devemo-nos manter de pé com os nossos próprios meios e olhar francamente para o mundo — ver os seus aspectos bons, seus aspectos maus, suas belezas e suas fealdades; olhar para o mundo tal qual ele é, sem pavor. Conquistar o mundo pela inteligência e não nos deixarmos subjugar como escravos do terror. Todo o conceito de Deus é tirado do velho despotismo oriental. É uma concepção absolutamente indigna de homens livres. Quando sei de pessoas que se curvam nas igrejas confessando-se miseráveis pecadoras, e tudo o mais, tenho isso como desprezível, incompatível com o respeito que devemos a nós próprios. Devemos, ao contrário, olhar o mundo francamente e no seu rosto. Devemos melhorar este mundo e, se ele não é tão bom quanto desejávamos, que ele seja melhor do que o construído no passado pelos outros. Um mundo à nossa medida exige saber, bondade e coragem; não exige uma intensa nostalgia do passado, nem o acorrentar da livre inteligência aos entraves impostos pelas fórmulas que os antigos ignorantes inventaram. O que uma perspectiva do futuro desligada do terror exige é uma visão clara das realidades. O que exige a esperança no futuro não é o refluxo constante a um passado morto, que, estamos certos, será em muito ultrapassado pelo futuro que a nossa inteligência é capaz de criar.

Bertrand Russell
Retirado de Por que não sou cristão (Brasília Editora, Porto, s.d.), pp. 11-32.
Tradução de Mário Alves e Gaspar Barbosa
Fonte: http://criticanarede.com/brussellporquenaosoucristao.html
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Notas
1- Esta conferência foi pronunciada em 6 de Março de 1927, na Câmara Municipal de Battersea, sob os auspícios da South London Branch of the National Secular Society.
2- Movimento herético que se estendeu ao cristianismo, logo no seu primeiro século. De “gnôsis” (conhecimento), afirma a possibilidade de os seus discípulos conhecerem os ensinamentos secretos de Jesus (N. do T.).
3- S. Mateus, V, 38 e 39. (N. do T.)
4 -Controverso primeiro chefe do movimento taoísta na China, século VI antes de Cristo. (N. do T.)
Stanley Baldwin.
5- S. Mateus, VII, 1. (N. do T.)
6- Ibid., V, 21. (N. do T.)
7- S. Mateus, XIX, 21. (N. do T.)
8- Ibid., X, 23. (N. do T.)
9- Ibid., XVI. 28. (N. do T.)
10- S. Mateus, VI, 34. (N. do T.)
11- S. Mateus, XXIII, 33. (N. do T.)
12- Ibid., XII, 32. (N. do T.)
13- Ibid., XIII, 41-42. (N. do T.)
14- S. Mateus, XXV, 41. (N. do T.)
15- S. Marcos, IX, 44 e 45. (N. do T.)
16- Referência ao episódio narrado em S. Marcos. V, 1 a 20. (N. do T.)
17- S. Marcos, X1, 12 a 21. (N. do T.)
18- Regresso a Erewhon. (N. do T.)