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Os Testamentos

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"O Hológrafo de Árdua Hall

Apenas os mortos têm permissão para ter estátuas, mas eu ganhei uma ainda em vida. Eu já estou petrificada.

Aquela estátua era um pequeno sinal de agradecimento por minhas várias contribuições, dizia o discurso, que foi lido pela Tia Vidala. Ela fora incumbida dessa tarefa pelos nossos superiores e estava longe de transmitir entusiasmo. Agradeci-lhe com o máximo de modéstia que pude e puxei a corda que desatava o manto que me encobria; ele flutuou morosamente ao chão, e lá estava eu. Aqui em Ardua Hall não se ovaciona ninguém, mas ouviu-se uma discreta salva de palmas. Inclinei minha cabeça em agradecimento.

A minha estátua é algo descomunal, como tende a ser toda estátua, e me retrata mais jovem, mais magra e em melhor forma do que tenho estado há tempos. Estou ereta, ombros para trás, meus lábios curvos num sorriso firme, mas benevolente. Meus olhos se fixam em algum ponto de referência cósmico que se presume representar meu idealismo, meu compromisso inabalável com o dever, minha determinação em seguir em frente a despeito de qualquer obstáculo. Não que qualquer parte do céu esteja à vista da minha estátua, plantada onde está, naquele melancólico aglomerado de árvores e arbustos ao lado da trilha de pedestres que passa em frente do Ardua Hall. Nós, as Tias, não podemos ter grandes pretensões, mesmo em forma de pedra.

Agarrada à minha mão esquerda há uma menina de sete ou oito anos, mirando-me cheia de confiança. Minha mão direita está apoiada na cabeça de uma mulher agachada a meu lado, de cabelos cobertos, seus olhos voltados para cima em uma expressão que poderia ser lida tanto como amedrontada quanto como grata – uma de nossas Aias –, e atrás de mim há uma de minhas Pérolas, pronta para partir em seu trabalho missionário. Pendendo do cinto que contorna minha cintura está minha arma de choque. Esta arma me lembra de minhas limitações: se eu tivesse sido mais eficiente, não teria necessitado desse acessório. A persuasão da minha voz teria sido suficiente.

Como grupo estatuário, não somos um grande sucesso: há elementos demais. Eu preferiria uma maior ênfase na minha pessoa. Mas pelo menos eu pareço estar em meu perfeito juízo. Poderia ter sido bem outro o caso, dado que a escultora idosa – uma crente fervorosa que veio a falecer – tendia a esbugalhar os olhos das modelos para sinalizar devoção. O busto que ela fez da Tia Helena tem ares de hidrofobia, o de Tia Vidala está com hipertireoidismo, e o de Tia Elizabeth parece prestes a explodir.

Na inauguração, a escultora estava nervosa. Será que havia me adulado o suficiente com sua escultura? Eu a aprovava? As pessoas iam entender que aprovei? Cogitei franzir a testa assim que o manto caísse, mas achei melhor não: não sou totalmente destituída de compaixão.

– Ficou muito realista – falei.

Isso foi há nove anos. Desde esse dia minha estátua vem se deteriorando: pombos me adornaram, musgo brotou nas minhas dobras mais úmidas. Devotos adquiriram o hábito de deixar oferendas a meus pés: ovos pela fertilidade, laranjas para sugerir a corpulência da gravidez, croissants em referência à lua. Ignoro os artigos de padaria – geralmente eles pegaram chuva –, mas embolso as laranjas. Laranjas são muito refrescantes.

Escrevo essas palavras no meu gabinete particular dentro da biblioteca do Ardua Hall – uma das poucas bibliotecas restantes após as animadas fogueiras de livros que têm ocorrido em nossa terra. As digitais pútridas e ensanguentadas do passado precisam ser expurgadas para deixar uma tábula rasa para a geração moralmente pura que com certeza vai nos suceder. Em teoria, pelo menos, é isso.

Mas entre estas digitais sangrentas estão as que nós mesmos deixamos, e estas não são tão fáceis de apagar. Com o passar dos anos enterrei muitos ossos; agora minha vontade é de exumá-los – nem que seja só para te edificar, meu leitor desconhecido. Se você estiver lendo isso, pelo menos este manuscrito terá sobrevivido. Embora talvez eu esteja fantasiando: talvez eu nunca venha a ter um leitor. Talvez eu só esteja falando com as paredes, ou muros, em todos os sentidos.

Chega de escrevinhar por hoje. Minha mão está doendo, minhas costas ardendo, e meu copo noturno de leite morno me aguarda. Vou guardar essa arenga no seu devido esconderijo, evitando as câmeras de vigilância – que sei bem onde estão, já que eu mesma as instalei. Apesar dessas precauções, estou ciente do risco que corro: escrever pode ser perigoso. Que traições, e então que acusações, podem estar à minha espera? Há muita gente em Ardua Hall que adoraria se apoderar dessas páginas.

Aguardem, aconselho-os silenciosamente: pois vai ficar pior."
____________________________
'Os Testamentos', continuação de 'O Conto da Aia', escrita por Margaret Atwood

O caminho de Barrabás



Eu dava assistência pastoral a uma pequena comunidade presbiteriana na periferia do Recife. Tentava, não com muito sucesso, equacionar o ministério pastoral com uma nascente e promissora carreira acadêmica teológica. Antes mesmo de concluir o bacharelado em teologia eu já atuava como professor de diversas disciplinas nas turmas de noviços (os calouros, como chamávamos) e de segundo ano. Por conta dessa atuação numa instituição de muito prestígio na região, expandi a carreira para outras instituições de ensino teológico, ser professor então me atraía muito mais que ser pastor. Usava a pequena comunidade que assistia como laboratório de exposição bíblica, aquilo que mais me atraía na área depois das disciplinas de história da igreja e de Israel.

Um dia, resolvi fazer uma exposição dos evangelhos no que era denominado de “Culto de Doutrina”, tomando por base o evangelho de Lucas e cotejando com as passagens paralelas dos demais sinóticos (os que tinham a mesma visão que Lucas: Mateus e Marcos). Quando tangenciei o capítulo 27 de Mateus, que tratava da experiência de Pilatos com o Nazareno eu, que buscava a interação com o grupo, perguntei: - Quem era Barrabás e qual o crime que ele cometeu? A irmã Diana, lépida como sempre, levanta a mão e brada: “- Ele estuprou uma moça!”. Eu fiquei pasmo, extático. Já havia lido a bíblia toda diversas vezes e, obviamente nunca me deparara com tal afirmação. Olhei para a irmã Diana e perguntei: - Onde você leu isso? Ao que ela me respondeu em meio ao espanto geral dos que estavam na igreja naquela noite: “- Na bíblia, olhe aqui em Lucas, 23:17, e Barrabás havia sido preso por sedição na cidade e por ter cometido um crime” (suponho hoje que a versão que ela usava era alguma antiga de Figueiredo ou Almeida, versão corrigida). O resto do culto eu tive que explicar a diferença entre sedição e “sedução” (ela havia confundido os termos e tirado conclusões a partir dessa interpretação), e foi, talvez, a exegese laica mais inusitada que me deparei na vida sacerdotal.

Nas tradições armênia e siríaca há manuscritos dos evangelhos que dão testemunho que o nome do preso que Pilatos apresentou como alternativa para ser solto por ocasião da prisão de Jesus, era Jesus, o Barrabás (Filho do pai em aramaico, ou talvez, segundo alguns estudiosos: “filho de um rabino”), que teria sido suprimido pelos escribas em respeito ao Jesus, o Nazareno. Já que a história que estava sendo contada era a de Jesus, o chamado Cristo, não fazia sentido que outro lhe ofuscasse (Jesus era um nome muito comum naquela época). Barrabás é mais um título do que nome próprio, e é correto afirmar que Jesus, o Nazareno, também podia ser chamado de Barrabás, já que ele se posicionava como “Filho do Pai”. Então fica fácil entender essa supressão pelos copistas dos manuscritos.

Quem era então esse prisioneiro, segundo o fraseado da Bíblia de Jerusalém, acusado de motim e homicídio? O texto já nos deixa saber de antemão que ele era bastante conhecido e gozava de boa fama com o povo. Qual o motivo desta fama e qual parte da população (a sociedade judaica da época era bastante fragmentada) lhe tinha apreço? Em Marcos 15:7 somos informados que ele era um dos “amotinadores que, numa revolta, haviam cometido um homicídio”, em outras palavras, um assassino e revolucionário. É bastante razoável pensar que ele fosse o líder de um motim contra os romanos liderados por Pilatos (quando este tentou usar os fundos financeiros do Templo em proveito próprio), tinha cometido o mesmo crime que os judeus atribuíram falsamente ao Nazareno. Alguns estudiosos pensam, não sem embasamento, que ele fosse um sicário (em latim: sicarius - “homem da adaga”; grupo que promovia atentados contra os romanos e a elite judaica que colaborava com o regime intervencionista, usavam as adagas escondidas no manto, praticavam atentados contra os alvos inimigos no meio da multidão e depois sumiam sem deixar vestígios). Tal grupo tinha aceitação entre o populacho que era espoliado, tanto pelos ricos judeus colaboracionistas quanto pelos romanos, logo não causa surpresa alguma sua escolha por aqueles que o tinham como herói.

Houve uma combinação de forças da aristocracia com a massa pobre e manipulável (boa parte era de áreas rurais e estava em Jerusalém apenas para as festividades pascais) na escolha de Barrabás. O que precisa ser percebido é que, quando os judeus gritaram o nome de Barrabás, eles escolheram simultaneamente, intrinsecamente, o caminho da violência, do arbítrio, da Lei do Talião [da retaliação], do sangue, da vingança, da Lei inclemente e excludente mosaica, da força das armas. Era o regime do olho por olho, dente por dente, bastante atrativo para um povo que havia perdido a liberdade há bastante tempo e se acostumara com a opressão. Esse discurso encontrou guarida nos corações do piedoso, porém oprimido povo de Israel. É possível acreditar que a revolta de Barrabás contra o saque que Pilatos fizera nos fundos do templo, lhe angariou também a simpatia dos sacerdotes que viam com desgosto e desconfiança a ingerência romana no seu espaço sagrado. Eu denominaria este viés escolhido por uma turba ensandecida como o Caminho de Barrabás, em contraposição ao Caminho do Nazareno.

Nasci na tradição calvinista puritana, no melhor sentido que este termo possui. Cresci ouvindo Dona Guiomar ler um “jogral” todo ano por ocasião do 31 de outubro (na Igreja Presbiteriana do Brasil em Monteiro, Paraíba), Dia da Reforma Protestante, dia em que Lutero fixou suas 95 Teses na porta da Capela de Wittenberg, teses estas que eram uma declaração escrita para abrir um debate sobre a venda de indulgências pela Igreja Católica. Eu sabia de cor sua história, tinha apreço pela história de Savonarola, John Wycliffe, Ulrich Zwínglio, Jan Huss e o mais notável de todos para mim: João Calvino. Eu tinha pouco mais de cinco anos de idade. Fico surpreso até hoje quando vejo muitas pessoas se denominarem “calvinistas”, pois sei que muitos sequer leram o mínimo de Calvino, eu li As Institutas em espanhol e posteriormente no português rebuscado e incompreensível de Waldir Carvalho Luz, além de vários comentários bíblicos, e não julgo que tenha conseguido compreender com propriedade o pensamento teológico dele.

Até os 12 anos permanecemos nesta tradição, quando urgências familiares nos conduziram a uma igreja presbiteriana que havia abraçado o pentecostalismo da década de 1970, éramos então presbiterianos “renovados” como se chamava à época. Foi um momento difícil para mim, tive que passar por um processo de desconstrução doutrinária, até que resolvi cursar teologia depois que abandonei a carreira militar na Marinha, entrei numa instituição também presbiteriana de cunho anti-pentecostal (da linha de Carl McIntire do ICCC – Concílio Internacional de Igrejas Cristãs, que morreu execrado por seus pares, quando se descobriu que era um agente da CIA), que me fez retornar à tradição da infância. Pude assim ter acesso a lados opostos do que chamaria de “protestantismos”, já que considero impróprio falar de protestantismo brasileiro, tal é o caráter multifacetado deste (fui presbiteriano moderado, pentecostal, fundamentalista e da Igreja Presbiteriana Unida, de orientação da Teologia da Libertação, tudo isso numa vida só).

Com a aproximação com Robinson Cavalcanti (ícone da minha infância a quem tinha acesso através da revista Ultimato), bispo anglicano de Recife, eu me senti aceito naquela tradição de caráter tão heterogêneo e ecumênico, eu podia ser calvinista, esquerdista, não ter uma visão literalista da bíblia e ainda assim ser aceito. Porém, ser aceito incondicionalmente implicava em aceitar o outro incondicionalmente, o que nem sempre é verdade e a história da Diocese Anglicana do Recife serve como amostra de que é fácil falar de tolerância e inclusividade, desde que estas “diferenças” sejam apenas litúrgicas, ou seja, puramente cosméticas.

Hoje, primavera de 2018 (outubro, 26), a grande maioria dos líderes eclesiásticos brasileiros induziu seus rebanhos (segundo alguns votos de cajado, segundo minha visão, voto de cabresto mesmo) a escolher o mesmo caminho que a aristocracia judaica e o movimento sacerdotal induziram o povo judeu a escolher naquele fatídico dia: o Caminho de Barrabás! Mesmo sabendo quais foram as consequências da escolha feita pelo populacho judeu no primeiro século da Era Comum.

Não tenho como ficar indiferente às escolhas que foram feitas, no aço que fui temperado não há incoerência, seja política, social, intelectual ou religiosa, também não conheço a categoria da indiferença. Em virtude dessa escolha em massa, venho por meio deste manifestar publicamente algo que já fiz na prática há alguns anos, desde 2013 para ser preciso: corto todo e qualquer laço de ligação, seja histórico, seja cúltico, seja de herança, com o protestantismo brasileiro. Aos muitos amigos dessa tradição, por favor, não me considerem mais vosso irmão, posso ser e vou continuar sendo vosso amigo, mas não irmão.

Não posso ser irmão de quem escolheu o Caminho de Barrabás, mesmo sabendo que é um caminho de violência, um caminho do mal, um caminho de derramamento de sangue inocente. Não posso ser irmão de quem apoia um regime que será homofóbico e estimulará a violência contra aqueles que pensam sua sexualidade “supostamente” de forma distinta da maioria. Não posso ser irmão de quem propiciou que um regime racista e fascista chegasse ao poder por meio do voto. Não posso ser irmão de quem contribuiu para que a misoginia seja legalizada e regulamentada no país. Não posso ser irmão de quem votou num candidato que fez do discurso de liberação das armas a única proposta real e concreta de sua plataforma de governo. Não posso chamar de irmão quem deixou o ódio dominar o coração a ponto de ficar cego às verdades que eram postas todos os dias, aos apelos e clamores das minorias e daqueles que sabiam que seriam perseguidos no futuro. Não posso ser irmão de quem colaborou para colocar no poder um regime que pode me prender, me exilar ou me matar, pelo simples fato de que eu seja contrário ao que ele prega e defende e por eu ser também intransigentemente defensor da vida e dos direitos básicos do ser humano.

A leitura que aprendi a fazer do evangelho do Nazareno choca-se frontalmente com tudo o que vocês defendem, não posso sequer dizer uma boa parte de vocês, me desespero pensar que mais de 95% do evangelicalismo brasileiro adotou o Caminho de Barrabás. Acredito que o termo que melhor define a experiência evangélica brasileira é um trecho de uma música gospel: “Gadara é assim, ninguém se importa com os outros. Cada um vive pra si, alimentando os seus porcos. São indiferentes, vivem para seus interesses. Só querem ter! Querem ter! Só querem ter”. Não quero fazer parte sociedade de Gadara, vou apagar da minha história teu nome, não quero lembrar que um dia tive orgulho de ser cidadão de ti e a muitos convidei para que se tornassem cidadãos também, hoje sou peregrino em terras ermas, mas não beberei de tuas águas fétidas e nem dormirei em tuas camas de espinho. Parafraseando um antigo hino que eu sempre amei: Adeus Gadara, há Deus!

Eu vou continuar no Caminho do Nazareno, caminho difícil, cheio de pedras e espinhos, mas, neste caminho, quando parar para descansar e colocar a minha cabeça numa pedra, não terei nenhuma contradição ou incoerência para afastar meu sono, da mesma forma, quando diante do espelho não terei do que me envergonhar. Os que estão neste Caminho, estes sim, são meus irmãos (alguns são protestantes, outros católicos, alguns espíritas, outros de religiões de matriz africana, alguns ateus, alguns judeus, alguns sem religião, alguns gays, alguns indígenas, alguns negros, etc.), são poucos, porém são persistentes e determinados, não são movidos pela busca desenfreada por prosperidade ou poder, são movidos por três coisas apenas: a fé, a esperança e o amor, porém o maior destes é o amor.

Primeira carta: livros e leituras



Jaboatão dos Guararapes, primavera de 2018.

Prezado e estimado Nilton,

Primeiramente sente-se em algum lugar sossegado, pode ser aquele banco de pedra no quintal ou nos degraus da escada, leia esta carta devagar, calmamente. Eu sei que você está assustado em recebê-la, na verdade é a primeira carta que você receberá na vida e ela foi enviada por alguém que tem o mesmo nome que o teu e está com a data de um futuro tão longe (vou logo te adiantar: o mundo não vai se acabar no ano 2.000, aquela teoria do pastor Oliveira que o mundo terminará ao fim desse milênio é um erro de interpretação da parte dele, não adianta você dizer-lhe isso, vai te perguntar como você sabe, se disser que alguém do futuro te contou, vão dizer que você ficou louco, mais ainda!), mas, não se assuste. O nome que está no envelope é o seu mesmo, não há engano algum, espero que tenha recebido essa carta das mãos do Assis, o carteiro, não se admire com o que vou dizer: um dia você será colega dele de profissão e sentirá saudades da época em que ele passava na frente de tua casa e gritava: - Corrêêêêêiô! Mas a farda que você vai usar será uma outra, não é essa toda amarela, não cairia muito bem você, creio que nisso nós dois concordamos.

Você também precisa se acostumar com o tipo de linguagem com a qual esta carta foi escrita. Ela é uma carta do futuro, foi escrita quase 45 anos depois desse momento em que você está vivendo, não se espante com essa questão temporal e nem com as outras cartas que chegarão depois, algumas em ocasiões banais e outras nem tão banais assim, depois você entenderá e até esperará ansioso para que cheguem. No tempo certo todas que foram escritas chegarão as tuas mãos, apenas leia, somente isso: leia!

Você está com quase seis anos, essa carta foi escrita para chegar no momento em que aprendeu a ler, antes não faria sentido e elas não são para serem lidas pelos outros, mas sim apenas por você, foram escritas por você e para você.

Você ainda pensa em como foi perceber que sabia ler, foi uma experiência e tanto, de repente abrir um Almanaque do Tio Patinhas e entender todas as narrativas e diálogos, você nunca esquecerá, absolutamente nunca, repetirá sempre extasiado esse momento tão marcante. Mesmo aos 50 anos ainda lembrará daquele dia, logo, não precisa ficar acordado a noite toda com medo de dormir e acordar e descobrir que foi um sonho, não é um sonho, você sabe ler.

No futuro você não lerá com tanta frequência gibis, portanto aproveite e leia os que puder, desde os de Tio Patinhas, Donald, Zagor, Ken Parker, Tex Willer, Universo Marvel, Super Homem, Aquaman, Vingadores, Luluzinha, Bolinha, Homem-Aranha, Batman, Homem de Ferro e todos os outros que tiver acesso. Seja generoso com as leituras, em algum momento você vai se lembrar de cada um deles quando estiver no cinema assistindo filmes com sua filha. Sim, você terá uma filha, mas não é momento de falar disso agora.

Você vai roubar livros da biblioteca da escola para poder ler mais, já que só poderá pegar um livro de cada vez e isso será pouco para você. Não cultive sentimento de culpas, no futuro vão fazer um filme de sucesso sobre uma menina que também gostava de livros e como não podia pagar por eles, roubava-os sem constrangimento. O filme será um sucesso e ninguém chama a menina de ladra, ela é bem mais bonita que você (sinto dizer isso), mas ninguém vai te condenar quando disser um dia que roubava livros. Roubar livros é mais perdoável até do que roubar comida, pode apostar nisso, quem rouba livros para ler, rouba para alimentar a alma. Não há como julgar alguém que faz isso. Não se preocupe, você não continuará roubando livros, vai ganhar muitos e vai comprar mais ainda, até mesmo mais do que a capacidade de lê-los (você terá um emprego de “consultor” numa livraria no qual você ganhará uns 50 livros todo mês, alguns ficarão no plástico durante anos, até você conseguir ler). Em média você comprará 70 ou 80 livros por ano e lerá sempre uma média de 100 ou 120, não se preocupe, você terá onde guardá-los, você terá uma biblioteca na sua casa, algumas vezes você se trancará no quarto e ficará olhando para cada livro, resgatando a emoção que sentiu ao ler o livro pela primeira vez.

Sim, você lerá alguns livros mais de uma vez, alguns serão lidos até 06 vezes, esse será um hábito que você alimentará e terá o costume de ler 10 ou 15 livros ao mesmo tempo, se acostumará com isso e não conseguirá ler apenas um. Portanto leia todos os clássicos antes dos 15 anos, a quantidade de livros que terá que ler depois dos 30 não permite que você pense em ler os 03 mosqueteiros ou 20.000 légua submarinas com quase 40 anos, leia todos, leia com sofreguidão, você não sabe o que é isso ainda: leia como se a sua vida dependesse disso. Leia Júlio Verne, Victor Hugo, C.S. Lewis, Tolkien, Charles Dickens, Alexandre Dumas, Machado de Assis (eu sei que você vai achar chato, te garanto que no futuro vai considerá-lo o maior escritor brasileiro), Cecília Meireles, Raquel de Queiroz, José Lins do Rego e tantos outros. Se você pegar algum livro de Clarice Lispector, grave bem esse nome, não leia, você não vai entender tão fácil, mesmo aos 50 você não julga que a entende tão bem. A mesma coisa para Nietzsche, Søren Kierkegaard, Kafka e Gabriel Garcia Márquez. No futuro você vai amar Tolstoi, Dostoiévski, Mia Couto, José Saramago e Amós Oz, todos chegarão até você no devido tempo, não se preocupe em decorar esses nomes, você lembrará dessa nossa conversa quando estiver com algum exemplar deles em mãos.

Acostume-se a ser olhado de forma esquisita, mesmo aos 50 anos você ainda lerá andando. Isso mesmo, você estará tão acostumado a ler que não escolherá lugar para fazer isso: fila de banco (um dia eu te explicarei o que é um banco e porque deverá ficar na fila), ônibus (eu sei que você vomita quando anda de ônibus), no futuro você andará de ônibus para poder ler, mesmo tendo carro e sabendo dirigir (sim, você terá carro e deixará na garagem para poder andar de ônibus e metrô – com o devido tempo eu explicarei o que é isso – e ler alguns livros). Não se incomode quando for desprezado por teus colegas de escola ou vizinhos, você não tem culpa por ter duas pernas esquerdas e não possuir coordenação motora suficiente para jogar futebol com desenvoltura (no futuro você saberá o que cada palavra dessa significa, as que não souber, anote e procure no dicionário Aurélio da biblioteca da escola, você não vai acreditar quando eu te falar de um negócio chamado “Google”, mas esquece, você não compreenderá tão fácil assim!), teus amigos e colegas não são maus, eles são apenas crianças sendo crianças, não são culpados por você ter a cabeça no mundo da fantasia e da ficção, tenha paciência com eles, você vai precisar se acostumar com pessoas que não têm as mesmas prioridades que você. Para não ser tão esquisito, aprenda a contar piadas, procure ser engraçado, decore todas que puder e conte-as como se tivessem acontecido com você, as pessoas te acharão um cara legal e nem notarão que você não costuma sorrir.

Você vai cair numa ladeira por causa desse costume de ler andando, não se preocupe antecipadamente, alguns arranhões nos joelhos não causam tanto estrago assim. Terá um transtorno maior quando cair da bicicleta com o Rui, ele vai balançar a bicicleta sentado no bagageiro, ele acha que ela estará sem freios, não adianta você dizer que sabe o que está fazendo, o pânico vai dominá-lo e ele vai provocar a queda de vocês. Você precisa perdoar esta fraqueza dele, num futuro razoavelmente distante, algumas dores não curadas dentro dele vão levá-lo a cometer alguns equívocos e por causa desses equívocos ele vai encerrar a jornada aqui nesta dimensão. Você sequer lembrará dessa queda quando souber que ele foi embora, por isso, valorize o que é de fato importante e ele será o teu primeiro amigo de verdade e por muito tempo, teu único amigo. A queda vai te deixar de cama, porém uma coisa boa acontecerá: você terá tempo de sobra para ler mais livros. Outra coisa: devolva os livros de faroeste de Tio Chico, você lerá uns 500 ou 600 (vai desistir de contar depois de passar de 300), cuidado para não perdê-los, ele certamente nem perceberá se você perder, mas ele troca os que já leu por livros novos, por isso cuidado, do contrário não vai ter mais o que ler.

O costume que você vai adquirir de ler à noite pela réstia de luz da lua que entra no teu quarto através da telha de vidro vai te deixar míope, você não conseguirá ler na cozinha e nem no banheiro, tua mãe não deixará, não se pergunte porque alguém impediria um garoto de ler tanto, aos 50 anos você ainda não entenderá, logo, gaste seus neurônios (uns negócios que você tem no cérebro que está dentro da cabeça, vai descobrir depois para que serve, te ajuda a pensar, nem sempre você vai dar atenção devida ao que eles dizem, mas eles estão aí para isso), não se preocupe com a miopia, você vai usar óculos com lentes grossas para poder ler, mas não sentirá desconforto, eles te ajudarão a ser proteger das pessoas, verá que não é tão ruim assim quanto parece.

Cada carta que receberá abordará um tema, por isso não vamos tratar de outro assunto desta vez, não fique ansioso para receber a próxima carta, ela vai chegar no momento exato. Você só saberá que é o momento exato quando ele acontecer, confie em mim, eu sei quando será esse momento.

Por ora era só isso, aproveite a infância, deixe tua imaginação fluir, nunca tenha vergonha de ser um sonhador, você conhecerá pessoas e visitará lugares antes dos 10 anos que a maioria das pessoas não visitará a vida toda, portanto, você já sabe que ler não dá sono, ler dá sonhos, leia muito, leia tudo, leia a vida.

Até breve garoto, cuide bem de minha mente, cuide bem de meus olhos, cuide bem de minha alma.

Eu,

"Sangue nas mãos"


Senhores (as) líderes evangélicos, graça, paz e discernimento!

As eleições se avizinham, e boa parte dos pastores de nosso país tem manifestado seu apoio à candidatura de Jair Bolsonaro. A maioria alega ser ele o que melhor representa os anseios do povo evangélico, principalmente devido ao seu discurso favorável à família tradicional e aos valores morais tão caros ao cristianismo.

De repente, sinto-me como se houvesse viajado no tempo e revivesse os dias da guerra fria, quando o mundo se via ameaçado pela eclosão de uma guerra nuclear envolvendo as duas potências mundiais: A União Soviética e os Estados Unidos. Colegas vociferam de seus púlpitos sobre o perigo do comunismo que ronda a nossa sociedade. Pergunto-me em que mundo estamos vivendo, afinal? Qualquer um que levante sua voz a favor do pobre, do excluído, do oprimido, logo é tachado de esquerdopata, comunista, “agente do inferno”, e coisa parecida.

Os senhores já pararam para se perguntar sobre o que estaria por trás deste discurso ultraconservador? Há uma onda conservadora varrendo a Europa e os EUA, suscitando velhos rancores contra os imigrantes, os homossexuais, as minorias, a classe operária, etc.

No meio desta avalanche de intolerância, eis que uma voz destoante se faz ouvir mundo afora. Não de um pastor como foi nos dias de Luther King nos EUA, ou de Bonhoeffer na Alemanha, mas de um Papa, líder da instituição mais conservadora do mundo. Por ironia, justamente o primeiro Papa latino-americano se levanta contra tudo e contra todos os que insistem em ressuscitar um discurso que há décadas parecia ter sido abandonado e enterrado. Enquanto isso, a igreja evangélica, que por tanto tempo esteve na vanguarda na luta pelos direitos humanos passa a se aliar com o que há de mais retrógrado e ultrapassado. Que vergonha! Tudo em nome de nossos escrúpulos moralistas.

Conseguiram a façanha de diluir o puro Evangelho da graça num discurso de ódio e intolerância.

Esquecemo-nos dos colegas que foram perseguidos, torturados, e, alguns até mortos e desaparecidos, durante o regime militar. Justificamo-nos no fato de que o tal candidato defenda os mesmos valores. Será que ser a favor da tortura soa menos cruel quando se é contrário ao aborto? Será que ser a favor do armamento da população condiz com o que foi ensinado por Jesus? Afinal, bem-aventurados são os pacificadores ou os que pretendem armar a população? Ser pela família tradicional abona a conduta de quem se revela contrário aos direitos trabalhistas conquistados a duras penas? Se você, pastor, é contra tais direitos, recomendo que não aceite mais dízimos de décimo-terceiro ou de férias de seus membros.

Não ajamos como o profeta Natan que encorajou a Davi a construir o templo, afirmando-lhe categoricamente que Deus o havia escolhido para aquela empreitada. Porém, o Senhor não o tinha autorizado a fazer tal coisa, de modo que, mesmo constrangido, teve que retornar ao rei e dizer-lhe a verdade. Por causa do sangue que havia em suas mãos, Deus não o designou para edificar Sua casa, ainda que já houvesse levantado todos os recursos para tal, e recebido do Senhor a planta, caberia ao seu sucessor tocar a obra.

Quem somos nós para abençoar o que Deus não abençoou? Quem somos nós para encorajar o que contraria frontalmente a Sua vontade?

Sei que muitos alegarão que tudo não passa de manipulação da mídia esquerdista. Mas basta assistir aos inúmeros vídeos de discursos e entrevistas do candidato para verificar que exatamente assim que ele pensa. Ele mesmo afirma que o trabalhador terá que escolher entre ter seus direitos assegurados ou o emprego. Ele é quem diz com todas as letras que o Estado não é laico, mas cristão e que as minorias terão que se dobrar à vontade das maiorias. Ele diz que seria incapaz de amar um filho homossexual e que a homossexualidade é falta de p*rrada na infância. Diz que não empregaria uma mulher, já que esta engravida. Diz que educou seu filhos para que jamais namorassem negras. Diz que em seu governo os índios não receberiam nem mais um centímetro de terra. Se ele é a favor da família tradicional, por que disse que usava o apartamento para “comer gente”? Como defender quem diz que uma mulher não merecia ser estuprada por ser feia? Como apoiar quem defende o uso da tortura se somos seguidores de um Cristo torturado e morto numa cruz? Como apoiar quem diz que ordenaria que helicópteros metralhassem uma favela se os criminosos não se rendessem? Será que na favela só mora bandido? Com que cara visitaremos os presídios para pregar o amor de Cristo depois de apoiar que tem como slogan “bandido bom é bandido morto”?

O sangue de toda uma geração poderá cair em nossas mãos!

Se você é pastor de uma pequena congregação, talvez esteja indo na onda de grandes líderes que já manifestaram seu apoio a Bolsonaro. Não seja ingênuo. Muitos deles o fazem, não por convicção, mas por conveniência, movidos por interesses nem sempre louváveis (alguns até sórdidos).

Lembre-se de quem nos considerou fiéis, pondo-nos em seu ministério (1 Timóteo 1:12), e que um dia, teremos que prestar contas (Hebreus 13:17).

Por isso, deixo aqui uma recomendação que deveria perturbar o sono de todos os que levam a sério o ministério pastoral:

“Pastoreiem o rebanho de Deus que está aos seus cuidados. Olhem por ele, não por obrigação, mas de livre vontade, como Deus quer. Não façam isso por ganância, mas com o desejo de servir. Não ajam como dominadores dos que lhes foram confiados, mas como exemplos para o rebanho.” 1 Pedro 5:2,3

Não compete a pastor algum dizer em quem seu rebanho deve votar. Mas compete-nos instrui-los a reconhecer os riscos por trás de todo discurso de ódio e intolerância.

Jesus disse que enquanto o bom pastor dá a vida pelas ovelhas, o ladrão, ao ver o lobo, foge e deixa suas ovelhas à mercê do perigo. Portanto, cumpramos nosso papel. Pois cuidar das ovelhas que nos foram confiadas é a melhor maneira de dizer: TU SABES QUE TE AMO, SENHOR.

Hermes Carvalho Fernandes é pastor, escritor, conferencista e teólogo com doutorado em Ciências da Religião e editor do blog HermesFernandes.com
Fonte: Sangue nas mãos

Promete Mysha!


Promete que não vai crescer distante
Promete que vai ser pra sempre assim
Promete esse sorriso radiante
Todas as vezes que você pensar em mim

Promete cuidar bem dos seus cachinhos
E sempre me abraçar quando eu chegar
Promete sorrir sempre com os olhinhos

E cantar cantigas na sala de estar

Que eu prometo ser pra sempre o seu
Porto seguro
Eu prometo dar-te eternamente o meu amor

Promete aproveitar cada segundo
Desse tempo que já passa tão veloz
Me lembro quando você chegou nesse mundo
Sorrindo aos poucos quando ouvia a minha voz

E hoje corre pela sala
Brinca de existir
Giz de cera, pega-pega
Eu só sei sorrir
Ao imaginar você crescer

Para um pouco com a bagunça
Deixa eu te olhar
Que o tempo voa e olha só
Você sabe falar
E diz tudo que eu preciso escutar

Laialaiá

Promete ser pra sempre o meu menino
Me deixar cantar pra te fazer dormir
Que eu prometo que vou te cuidar pra sempre
Eu te amo infinito
Meu guri.

Composição: Ana Vilela




A última carta de Kurt Cobain



Para Boddah
Falando como um simplório experiente que obviamente preferiria ser um efeminado, infantil e chorão. Este bilhete deve ser fácil de entender.

Todas as advertências dadas nas aulas de punk rock ao longo dos anos, desde minha primeira introdução a, digamos assim, ética envolvendo independência e o abraçar de sua comunidade, provaram ser verdadeiras. Há muitos anos eu não venho sentindo excitação ao ouvir ou fazer música, bem como ler e escrever. Minha culpa por isso é indescritível em palavras. Por exemplo, quando estou atrás do palco, as luzes se apagam e o ruído ensandecido da multidão começa, nada me afetava do jeito que afetava Freddie Mercury, que costumava amar, deliciar com o amor e adoração da multidão – o que é uma coisa que totalmente admiro e invejo.

O fato é que não consigo enganar vocês, nenhum de vocês. Simplesmente não é justo para vocês e para mim. O pior crime que posso imaginar seria enganar as pessoas sendo falso e fingindo que estou me divertindo 100 por cento. Às vezes acho que eu deveria acionar um despertador antes de entrar no palco. Tentei tudo que está em meus poderes para gostar disso (e eu gosto, Deus, acreditem-me, eu gosto, mas não o suficiente). Me agrada o fato de que eu e nós atingimos e divertimos uma porção de gente. Devo ser um daqueles narcisistas que só dão valor às coisas depois que elas se vão. Eu sou sensível demais. Preciso ficar um pouco dormente para ter de volta o entusiasmo que eu tinha quando criança.

Em nossas últimas três turnês, tive um reconhecimento por parte de todas as pessoas que conheci pessoalmente e dos fãs de nossa música, mas ainda não consigo superar a frustração, a culpa e a empatia que tenho por todos. Existe o bom em todos nós e acho que eu simplesmente amo as pessoas demais, tanto que chego a me sentir mal. O triste, sensível, insatisfeito, pisciano, pequeno homem de Jesus. Por que você simplesmente não aproveita? Eu não sei! Tenho uma esposa que é uma deusa, que transpira ambição e empatia, e uma filha que me lembra demais como eu costumava ser, cheia de amor e alegria, beijando todo mundo que encontra porque todo mundo é bom e não vai fazer mal a ela. Isto me aterroriza a ponto de eu mal conseguir funcionar. Não posso suportar a idéia de Frances se tornando o triste, autodestrutivo e mórbido roqueiro que eu virei.

Eu tive muito, muito mesmo, e sou grato por isso, mas desde os sete anos de idade passei a ter ódio de todos os humanos em geral. Apenas porque parece muito fácil se relacionar e ter empatia. Apenas porque eu amo e sinto demais por todas as pessoas, eu acho. Obrigado do fundo de meu nauseado estômago queimando por suas cartas e sua preocupação ao longo dos anos. Eu sou mesmo um bebê errático e triste! Não tenho mais paixão, então lembrem, é melhor queimar do que se apagar aos poucos. Paz, Amor, Empatia.

Kurt Cobain

Frances e Courtney, estarei em seu altar. Por favor, vá em frente, Courtney, por Frances. Pela vida dela, que vai ser tão mais feliz sem mim.
EU TE AMO, EU TE AMO!

Fonte: www.morreuhoje.com.br

Carta à mãe de um Borderline (I)

Advertência: Se você não for Borderline, não for mãe de um Borderline ou não for uma mãe que esteja em busca de saber como não tornar seu filho um Borderline, abandone este post, vá ler algo mais alegre, sugiro que vá ler uma Marie Claire ou mesmo assistir novelas, este artigo não foi escrito para você, você não o entenderá e ele não lhe trará proveito algum, conselho sério: Caia fora!

***   ***


Sei que você nunca vai ler estas cartas, pois eu nunca vou te dizer que as escrevi, as postarei sem alarde, apenas por questão de honestidade comigo mesmo, não quero mais calar a dor que me consome e me corrói, e se forem lidas por outros Borderlines terei atingido meu objetivo, talvez para eles ainda haja tempo de redenção, para mim, sei que não há mais condição alguma, não há mais chance. Não estou escrevendo para que leia, estou escrevendo como forma de me restaurar, estou tentando esquecer tudo o que aconteceu, estou querendo encontrar em meu coração e em minha alma um lugar de perdão, pois do contrário eu morrerei com estas mágoas abrigadas em minha mente e que só me fazem mal, mais mal do que tudo o que sofri e que me tornaram o que sou. Se você as lesse, sei que tomaria a postura de vítima e me “puniria” da pior forma possível, o que só faria que eu me sentisse culpado e o ciclo recomeçasse, mas eu estou disposto a romper esta roda de miséria, quero dar um basta, por isso não quero que leia, não preciso que leia, não vou deixar que leia.

Não sei por onde começar, se pelo os últimos acontecimentos, ou se pelos mais remotos que me lembro, alguns dos quais me fizeram ser o que sou: um afetado pelo Transtorno de Personalidade Borderline. Acho que não vou me preocupar com a ordem cronológica dos acontecimentos, mas sim pela densidade com que fui afetado, talvez assim, eu mesmo consiga me dar conta de fato da gravidade do que ocorreu, para que desta forma eu descubra como perdoar.

Tenho orado e pedido a Deus que me ensine e me ajude a perdoar, pois eu mesmo não tenho condições sozinho, e como o teu temperamento soberbo só aumenta a minha ira e indignação, pois você é incapaz de reconhecer seus erros, vou ter que me esforçar mais ainda para conceder perdão a quem não quer receber ou não acha que precisa.

Sábado (22) eu te falei que não se preocupasse com amenidades, quando você chorou por conta de um vazamento no banheiro, eu te disse que se preocupasse com a saúde e com a vida espiritual que eram coisas mais importantes, lembra o que você me disse? Acho que lembra sim! Você disse:

- Eu não preciso me preocupar com minha vida espiritual, ela vai muito bem! Não tenho problemas nesta área.

Gostaria que a minha vida fosse como a tua, se caso isso que você me disse seja real, talvez nem tenhas mentido, apenas não tens consciência exata do que disseste, mas confesso que soou como soberba, e eu me recolhi para não discutir e nem te contradizer, pois já descobri que tens a convicção arraigada de que você não tem o que aprender, seja em qualquer área, você sempre tem razão, sempre tem opinião formada, ainda que não tenha base alguma, ainda assim mantém o que pensa, sem se importar com os argumentos que contradigam os teus.

Nos últimos cinco anos, cada vez que recebi alguma ligação tua, pedia a Deus misericórdia, pois eu sabia que, de uma forma, ou de outra, eu ficaria, após a ligação, me sentindo mal, pois infelizmente tens este poder sobre mim, de fazer com que eu me sinta destroçado por uma simples conversa de 05 (cinco) míseros minutos. E isso faz com que a minha culpa, por não tolerar tuas idiossincrasias, aumente cada vez mais.

Quando tive que vir morar contigo há três ou quatro meses atrás, eu sabia que teria uma enorme dificuldade, mas não achei que fosse tanto, imaginei que por viver só há 07 (sete) anos, você iria desfrutar um pouco de minha companhia e com isso talvez criássemos até um vínculo de amizade, já que estávamos tão afastados nestes últimos cinco anos, por opção mútua, mas eu estava errado. A minha companhia não te fez bem, não te faz bem, e só ainda continuo morando contigo por necessidade, e no dia em que esta necessidade não existir mais, vou embora, sem arrependimentos, pois eu sei que tentei, eu sei que me esforcei, mas tua postura de deusa do Olimpo, que quer todos aos seus pés em constante veneração não te permitiu dar um passo sequer em minha direção.

No dia em que te disse que era um Borderline, você por acaso procurou entender o que eu disse? Quando você me viu com diversas caixas de remédio na mão, você acreditou de fato que minha doença era grave? Aceitou isto como um fato ou me fez lembrar de que você tem ou tinha também diversas doenças? Lembro que você me disse que não colocasse na cabeça tudo o que lia na internet não, pois quase tudo o que estava neste ambiente era mentira e que eu não deveria dar crédito.

Lembra da vez em que te disse que eu tinha vontade de tomar todos os teus remédios? Lembra o que você disse? Você começou a chorar, como sempre fazes quando queres chantagear alguém, e me disse que eu tivesse pena de você, pois você estava sozinha comigo e não podia me socorrer ou me ajudar. Por acaso você perguntou por que causa eu queria morrer? Procurou saber que angústia era essa? Não, você, infelizmente, só se preocupa com você mesma, com mais ninguém. Você se trancou no quarto, escondeu teus remédios e foi assistir televisão, eu fiquei só na sala, diante de um computador, escrevendo para todo mundo, ou mesmo para ninguém, tentando me manter são.

A sensação que tenho é que não represento nada para você, quando passas do banheiro em direção ao teu quarto e trancas a porta com chave e liga a TV para assistir novelas, sem ao menos um “Boa noite!”, eu percebo o quanto ainda sou insignificante para você. Quando você sai do seu quarto e estabelece alguma conexão comigo ou algum diálogo, sempre é para efetuar uma consulta ou para pedir algum favor, como destravar teu celular ou coisa parecida.

O teu costume de colocar a campainha do telefone num volume ensurdecedor, da rua é possível ouvir o telefone tocando, ou mesmo o teu costume de ouvir programas de TV numa altura desnecessária, sem que tenhas nenhum indício de surdez, me faz acreditar que fazes isso para irritar mesmo, queres provar que a casa é tua, por isso podes fazer o que bem quiseres.

Não sou apenas eu que tenho impressões sobre o teu comportamento, acho apenas que sou o único que tem a hombridade de expor o que penso, por isso que sou mal compreendido.

Um dia, anos atrás você me mandou uma carta, expondo o que pensava da vida que eu estava levando, me expunha todos os meus erros, só lamento que em nenhuma parte dela tenha assumido a culpa que lhe cabe por alguns atos meus, quer sejam errados quer não. Lembra da vez que eu te procurei para falar do que pensava da forma que você tinha me criado e o que isso tinha causado em mim? Você começou a gritar e a dizer que não era culpada de nada, eu sim, tinha cometido erros e estava transferindo para você. Desde esse dia eu não tenho mais como dialogar com você.

Quero perdoar, quero ser perdoado, não quero que morra e eu ainda tenha mágoas de você, e não quero morrer com estas mágoas. Espero que por este instrumento eu alcance o tipo de perdão que Jesus pregou, quero fazer isso, preciso fazer isso, vou fazer isso. Não me importa se reconheça teus erros, ofereço o meu perdão quer queiras, quer não.

O mais estranho em tudo isso é que se eu escrever estas cartas de forma direta, poderei ser visceral ou condescendente, se eu começar e terminar depois, durante o fluxo da mesma poderei mudar minha abordagem, e não estarei sendo incoerente e nem tampouco desonesto ou hipócrita, estarei sendo eu mesmo, estarei sendo apenas Borderline. Esta anamnese não tem o caráter de julgamento, tem antes a intenção de dizer o que nunca disse, só assim, só assim eu curo minha alma e me preparo para morrer em paz, sem mágoas e sem rancores.

Se eu pudesse...

Quem me dera que eu não fosse tão incapaz,
Quem me dera que eu não tivesse tão pouca força.
Quem me dera que eu tivesse realmente capacidade,
Quem me dera que eu realmente pudesse,
Quem me dera que o meu poder fosse do tamanho do meu querer,
Assim, se eu pudesse tirar esse sofrimento de sua alma, eu o faria.
Eu entraria nas mais íntimas fímbrias de seu coração,
E arrancaria com minhas mãos essa angústia
E a despedaçaria entre os meus dedos,
Ah, se eu pudesse tirar toda a sua dor,
Eu a extrairia de dentro de sua alma,
E a faria minha, para que ela nunca mais voltasse para você,
Eu faria isso sem vacilo algum, eu faria isso sem receio,
Eu faria isso sem pestanejar, sem titubear.
Algo que posso te dizer com toda a certeza é que:
"Existe uma razão para tudo que está acontecendo contigo",
Pois nada é por acaso, não existe um destino cego,
Às vezes a estrada da vida tem trechos obscuros,
Muitas vielas frias, muitos becos sombrios,
Muitos desvios que tomamos conduzem a precipícios paralisantes,
Esses caminhos são muito difíceis de serem trilhados
E fazem com que tudo pareça tormentoso e sem saída.
Olhamos para o lado e nos desesperamos,
Eu, porém, quero que você tenha sempre a certeza...
Não importa o lugar, não importa o momento,
Não importa a situação, nem os motivos,
Que eu estarei aqui se você precisar conversar,
Mesmo que não queira conversar, estarei aqui,
Quando você precisar chorar, estarei aqui,
Para chorar com você, ou para enxugar suas lágrimas,
Para dar conforto, se você precisar
Ou tão somente, simplesmente, para calar,
Se você quiser confidenciar seu silêncio comigo.
Quero que saiba, que nunca esqueça,
Que grave indelevelmente em seu coração,
Que eu me importo com você e,
Estarei sempre ao seu lado!
Sou teu amigo, teu cúmplice, teu pai!

[No dia 12 de abril de 2007, quando ela entrava na adolescência, ele escreveu-lhe num site de relacionamento uma pequena reflexão que inspirou este texto, quando ela começou a encarar todos os medos que a idade lhe punham frente a frente, ambos estavam dilacerados, cada um por suas próprias lutas por suas próprias derrotas, ele com a alma dilacerada de tristeza tentou demonstrar-lhe o que sentia por ela, nenhum coração de pai podia dizer com mais sinceridade estas palavras, amava-a incondicionalmente e isto bastava].

Legado

Eu, Jocelenilton Gomes, confessadamente um maltrapilho de Abba, me encontrando no meu perfeito juízo e entendimento, exceto pelo fato de ser afetado pelo TPB (Transtorno de Personalidade Borderline) livre de qualquer coação, excetuando as exigências que a minha personalidade Borderline requer de mim mesmo, deliberei fazer esse meu testamento particular, como efetivamente o faço, sem constrangimento, em presença de centenas de testemunhas, qualificados aqui como os leitores que acessam, ou acessarem este blog, no qual exaro minha última vontade, pela forma e maneira seguinte: sou brasileiro, casado, com 43 anos de idade, tendo nascido em Monteiro, PB, filho de José Trezena e de Marilene Gomes, tendo dois descendentes até o presente momento, instituo como herdeiros de meu legado de vida, exposto em 06 itens, Ulrich Zwínglio Gomes, 18 anos, meu descendente, falecido em 31 de agosto de 1993 e Jessicah Rhebeccah Gomes, 16 anos também minha descendente, e quaisquer outros descendentes que porventura nasçam após esta data. Assim expressando este testamento particular minha última vontade, pedindo à Justiça de meu País que o faça cumprir como este se contém e declara e às testemunhas, perante as quais postei este mesmo testamento, que o confirmem em juízo, de conformidade com a lei. Dou, assim, por concluído este meu testamento particular, que com as aludidas testemunhas, assino, nessa cidade de Recife, PE, aos 31 dias do mês de agosto do ano de dois mil e onze(2011).

Seguem os termos do meu legado:
  • Caráter: muitas vezes fui acusado injustamente, inclusive por pessoas próximas a mim, de que não tinha caráter ou que era mau-caráter, algumas que disseram isso nem me conheciam de verdade, mas eu sei, sem nenhum narcisismo, que não sou isso, sou alguém que tem um caráter sem mácula, as falhas de minha personalidade transtornada não danificaram o que resta de bom em mim, por isso tenho a convicção que posso lhes legar isso, e talvez seja o que há de melhor que posso lhes conceder. Meu caráter foi talhado pela vida e depois foi moldado e retocado por diversas circunstâncias, mas o que há de melhor nele, foi preservado graças à misericórdia de Abba;
  • Honra: Se alguma coisa tem valor expressivo para mim, esta coisa é a honra, não tenho apreço por imóveis, fama, dinheiro e carros, tudo isso passa, mas lutar para viver com dignidade e honra é algo que eu faria e o farei até à morte. Já perdi muitas coisas materiais, empregos e oportunidades, apenas pelo fato de honrar o que sou, sem soberba, com humildade, mas com muita honestidade. Deixo isso também como parte do legado. Fui demitido um dia de uma empresa que trabalhava, pois fui defender meu chefe que estava sendo acossado por um diretor obtuso, o diretor em parte tinha razão, meu chefe não era competente, mas todos estavam crucificando-o, eu não podia ver aquilo sem fazer nada, eu o defendi, ainda que soubesse que ele não gostava de mim, que falava mal de mim e demonstrava sinais evidentes de inveja de minha atuação como profissional, apresentei as falhas da argumentação do diretor. Ocorre que este diretor queria demitir meu chefe e me colocar no lugar dele, mesmo sabendo disso, eu o defendi e me indispus com o diretor que me demitiu e deixou meu chefe na empresa, depois ele também saiu. No outro dia, depois que fui demitido, ao me olhar no espelho, não tive do que me envergonhar de minha conduta, eu fiz aquilo por honra, somente por honra;
  • Determinação: Se querem algo, lutem por isso, não desistam, eu já tive que enfrentar muitas pessoas e algumas muito poderosas, apenas porque eu queria que as coisas saíssem de forma correta, mas elas achavam que deveriam ser da forma delas, eu porém, não achava que estava correto, por isso lutei e lutaria mil vezes se preciso fosse. Eu mesmo não sabia que eu era tão forte e determinado, muitas vezes me admirei de mim mesmo, posso legar isso a vocês também. Já caí muitas vezes, mas tantas quanto as quedas que levei foram as vezes que me levantei, me ergui. Não tenho medo de quedas, de derrotas, de cair, eu sei que vou me erguer, pode custar, pode demorar, não é fácil, pode ser doloroso, mas eu vou me erguer. Willard Marriott uma vez disse: “Quanto mais forte o vento, mais forte as árvores”, e eu tomei esta frase como a que define minha trajetória de vida, digo sempre para as circunstâncias: podem me derrubar, podem me deixar caído ao chão por um tempo, por um ano, ou mesmo décadas, mas eu vou me levantar e quando eu me erguer, estarei mais forte do que nunca, por isso, trabalhem bem, pois eu sei que vou me erguer;
  • Palavra: Só existe uma palavra para um homem ou uma mulher de bem, de honra, só prometam o que possam cumprir e cumpram o que prometerem. Eu honro a minha palavra, e não aceito de forma alguma que não honrem a palavra empenhada comigo. Recentemente pedi demissão de uma grande empresa, onde eu tinha prestígio, um bom salário e uma carreira pela frente, por conta do diretor da empresa não ser um homem de palavra, pedi para sair, perdi muito dinheiro por isso, tive dificuldades financeiras, mas não voltei atrás naquilo que penso, posso lhe dar isso como legado também. Quando disserem que farão algo, não se liberem de fazer, a palavra de vocês vale muito mais do que tudo o que perderão, eu já perdi muitas coisas, que sequer consigo enumerar, tão somente por ter dito que faria algo e quando fui fazer, percebi que aquilo me traria enorme prejuízo, mas tinha dado a minha palavra, não podia voltar atrás, fiz isso, mesmo que em prejuízo próprio, sejam cativos de suas próprias palavras, se querem ser respeitados pelas pessoas que cercam vocês, então honrem as palavras que pronunciarem, não empenhem suas palavras em nada pelo qual não possam viver ou morrer, pois é assim que deve ser;
  • Coerência: Isso é, de certa forma, um sinônimo de integridade, ser inteiro, não ter lacunas, ser coerente é viver, em âmbito particular, de acordo com aquilo que crê, de acordo com aquilo que pensa, de acordo com aquilo que se defende em público. Não pensem e nem creiam em nada que não possam viver, não vivam uma vida, por melhor que aparentemente seja, que não possam crer e defender, sejam coerentes, desprezem a hipocrisia, afastem de vocês o viver de modo aparente e o farisaísmo, sejam coerentes, sejam inteiros. Abba, os compreenderá quando esta coerência cobrar um preço muito alto, paguem este preço, melhor morrer por algo que se crer do que viver 100 anos sem que um ideal dirija suas vidas, sem que haja ligação entre o que se crer e o que se vive, vivam aquilo que creem, creiam naquilo que vivem, caso não consigam fazer isso, abandonem as crenças que não mereçam ser vividas, ou mudem de vida para que se ajuste às crenças e ideias que tenham, sejam coerentes, prometo que terão consciência tranquila, não prometo que serão felizes e nem ricos, mas que colocarão a cabeça no travesseiro sem que sejam condenados pela mente, ser coerente nem sempre garante sono restaurador;
  • Honestidade: Nada faz mais falta no mundo moderno do que a honestidade. Num mundo em que as pessoas só querem levar vantagens, só querem ganhar e ganhar, ser honesto muitas vezes é sinônimo de fraqueza e de pouca inteligência, às vezes parece antônimo de esperteza. Bom, se for assim, lhe peço: não sejam espertos, sejam honestos! Nada que é conquistado de modo não honesto, permanece, ou tem valor. A fama ou a riqueza conquistada de forma desonesta, pode até permanecer por muitos longos anos, mas o preço da desonestidade um dia é cobrado, os juros são altos. Se tiverem que escolher entre a vantagem de uma vida em que as preocupações diárias sejam apenas banalidades, e outra em que as lutas pela sobrevivência apareçam de minuto a minuto, escolham a segunda, desde que o que leve a uma vida de abastança não seja alcançado de modo honesto. Entre a honestidade e a esperteza, escolham a honestidade, não sejam espertos, sejam dignos, vivam com dignidade;
  • Não posso lhes dar bens, nem riquezas, posso oferecer apenas o que sou, meu nome e a certeza de que vivi a minha vida, até este momento, procurando honrar o nome dos meus pais, só lhes peço que façam o mesmo, vivam e deixem um legado, deixem algo que faça com que seus filhos possam se orgulhar de vocês, deixem algo perene, que nem o tempo e nem as intempéries possam destruir e derribar, sejam vocês mesmos, sejam felizes, orgulho de vocês eu já tenho, a mim não devem nada, cumpram o propósito de Deus em suas vidas e encontrarão a felicidade.

Se (If) Rudyard Kipling

Se és capaz de manter tua calma, quando,
todo mundo ao redor já a perdeu e te culpa.
De crer em ti quando estão todos duvidando,
e para esses no entanto achar uma desculpa.

Se és capaz de esperar sem te desesperares,
ou, enganado, não mentir ao mentiroso,
Ou, sendo odiado, sempre ao ódio te esquivares,
e não parecer bom demais, nem pretensioso.

Se és capaz de pensar - sem que a isso só te atires,
de sonhar - sem fazer dos sonhos teus senhores.
Se, encontrando a Desgraça e o Triunfo, conseguires,
tratar da mesma forma a esses dois impostores.

Se és capaz de sofrer a dor de ver mudadas,
em armadilhas as verdades que disseste
E as coisas, por que deste a vida estraçalhadas,
e refazê-las com o bem pouco que te reste.

Se és capaz de arriscar numa única parada,
tudo quanto ganhaste em toda a tua vida.
E perder e, ao perder, sem nunca dizer nada,
resignado, tornar ao ponto de partida.

De forçar coração, nervos, músculos, tudo,
a dar seja o que for que neles ainda existe.
E a persistir assim quando, exausto, contudo,
resta a vontade em ti, que ainda te ordena: Persiste!

Se és capaz de, entre a plebe, não te corromperes,
e, entre Reis, não perder a naturalidade.
E de amigos, quer bons, quer maus, te defenderes,
se a todos podes ser de alguma utilidade.

Se és capaz de dar, segundo por segundo,
ao minuto fatal todo valor e brilho.
Tua é a Terra com tudo o que existe no mundo,
e - o que ainda é muito mais - és um Homem, meu filho!

[Para você, meu filho Ulrich Zwínglio, neste dia em que completas 18 anos. Parabéns garoto!]

Teu olhar!


Às vezes esbarro com tua Bíblia gasta ainda guardada na gaveta,
Ou com aquele velho guarda-chuva que guardavas com capricho,
Ou mesmo com teus sapatos empoeirados no armário,
Ou com tua roupa arrumada no guarda-roupas,
Ou com a cadeira que costumavas usar,
A tua presença é invisível, mas perceptível, por toda casa.
Muitas vezes a tua ausência se faz presente,
Ultimamente, se faz mais presente do que de costume.
Quando um instante de calmaria se instala,
E o silêncio domina o ambiente e a mente para,
A tua ausência é tangível, tocável, palpável,
Então procuro algo que me traga você de volta,
Só então é que me dou conta de que,
É  o teu olhar que me faz mais falta!
Só então é que me dou conta disso.
Não são os objetos, nem mesmo tua roupa.
Não são tuas mãos afáveis que me lembram mais você,
Nem teu sorriso de criança que recordo mais,
Nem teu jeito simples e encantador,
Nem teu abraço cálido e suave,
Nem teu beijo protetor e marcante,
Nem a tua voz peculiar e meiga.
Mas sim teu olhar, teu simples olhar.
Foi por meio dos teus olhos que eu aprendi a te conhecer,
Por meio deles que eu te descobri,
Sabia o que tua alma queria dizer,
Sabia se estavas triste ou alegre,
Sabia se estavas ou não suscetível ao cansaço,
Sabia até mesmo o que te preocupava,
Não havia em você nada mais transparente.
Por meio dos teus olhos eu te lia,
Como faria com qualquer livro,
Eras o que os teus olhos mostravam,
E o que teus olhos mostravam, era de fato você.
Não havia incoerência, não havia distorção.
São teus olhos azuis, quais diamantes,
Que me fazem mais falta hoje.
Teus lindos olhos azuis meu pai!
Saudades deles, saudade de você,
Ainda lembro deles na última vez que te vi,
Quando beijei tua testa febril e disse: - Te amo!
Sei que um dia, quando tudo acabar,
Terei o teu abraço cálido e suave,
Quando voltar para a casa eterna.
Mas antes de qualquer palavra que possa ser dita,
Quero olhar em teus olhos, olhar mais uma vez.
Depois eu sei que nada mais precisa ser dito,
Aí poderemos nos sentar na beira desse lago de prata,
Pegar anzóis e fingir que estamos pescando,
E deixar o tempo passar lentamente,
E o tempo jamais será um problema para nós.
Até breve vaqueiro, até breve herói!

Mensagem para você, meu filho!

Não acho que esta música seja de teu gosto, um adolescente de 16 anos não deve gostar de músicas melancólicas, a não ser os “emos” e pelo que me consta você não é emo, mas mesmo estes não devem gostar dela, talvez a achem “brega”. Por isso peço licença para começar esta carta reproduzindo um verso composto por um grande cantor: Antônio Marcos, que era um gênio, mas também era um desajustado, um inconformado, provavelmente morreu infeliz e incompreendido:

"... Como vai você, eu queria saber da sua vida,
peço alguém pra me contar sobre os seus dias,
anoiteceu e eu preciso só saber..."

Essa música ele cantava com a alma, muito melhor que o insosso Roberto Carlos. Pena que você nunca o viu cantar, pena mesmo! Utilizo-me desta parte da música como uma forma de expressar o quanto eu sinto saudades de você. Há 16 anos ela tem sido o “hino” que eu canto em cada aniversário teu, o clamor de minha garganta em cada dia dos pais em que a tua ausência é tão presente e o grito inaudível de meu peito em cada dia das crianças. Sei que você nem se considera mais sequer adolescente e deve ser como todos os demais garotos de tua idade, como eu mesmo fui um dia, livre e independente, certamente que não desejaria presentes e nem aceitaria recebê-los hoje, afinal de contas hoje é apenas “Dia das Crianças”, por isso que para marcar esta data eu te escrevo esta mensagem, que há 200 anos estaria numa garrafa lançada ao mar, há 100 anos seria uma missiva entregue pelo carteiro à cavalo, há 10 anos seria um telegrama e hoje é “postada” num blog, mas todas expressariam, como esta, o amor incondicional de um pai que tem por sobrenome saudade. Há muito tempo que não paramos para conversar, já se passaram tantos anos desde a última vez.

A vida tem sido tão difícil, marcada por sonhos irrealizados e que nunca se realizarão e planos que foram lançados no mar do esquecimento para não lancetarem tanto, ela é tão corrida, ela passa tão rápido, ou deixamos que ela passe tão rápido, que eu chego a me perguntar se vale a pena viver oitenta anos em vinte.

Nem parece que sou pai de um adolescente com essa idade, ainda não me acostumei com a idéia. Tenho apenas a certeza do que é difícil educar filhos desta faixa etária hoje em dia, são tantos desafios, tantas dificuldades, que às vezes bate um desespero, tenho lido muito sobre o assunto, procuro me informar para poder enfrentar bem as situações que podem me sobrevir, além de você ainda tenho a Mysha (caso não saibas, Mysha é o epíteto de Jessicah Rhebeccah, tua irmã) com 14 anos, uma linda garota, no mais amplo sentido da palavra, tanto interiormente, quanto exteriormente. Inteligente, culta, sensível, escreve bem demais, tem centenas de contos que eu vivo pedindo que ela publique, mas ela sempre procrastina, digo, protela, prorroga, vocês dois são dois universos diferentes, cada um com seu mundo, cada um com suas “certezas”. Você precisa ver o que ela fala de si mesma, as lutas que tem e, olha que dá vontade de rir, as paranóias de que é feia, uma verdadeira Cinderela que se acha Gata Borralheira! Dá uma olhada de leve no blog que ela mantém e depois ver as fotos no perfil dela no Orkut. Vá entender as mulheres! Conselho de pai, não tente, é uma roubada, para cada coisa que elas disserem, diga apenas hum, hum! E balance a cabeça afirmativamente, isso vai fazer com que te considerem atencioso e você não se meterá em problemas.

Só agora que já tens capacidade de me entender e compreender de fato é que te escrevo esta, e um dos motivos é para dizer o quanto lamento não ter visto você dar os primeiros passos, eu não estava à tua frente com os braços abertos te dando a confiança que precisavas nesta fase tão importante de tua vida, eu também não limpei as feridas, que as muitas quedas e os muitos tombos te causaram. Não pude também te ensinar as primeiras palavras, como também não ouvi sequer quais foram as que você primeiro pronunciou. Nunca troquei uma fralda sequer tua, nunca me levantei à noite para te colocar no braço até que a dor ou o desconforto te deixasse dormir. Nunca arranquei nenhum dente teu e nunca te coloquei para dormir ninando-te me meus braços.

Lamento profundamente o fato de não ter te ensinado a andar de bicicleta, nem sei se sabes, se aprendeste de alguma forma, também não te ensinei a jogar bola, muito embora eu nem saiba muito, sempre fui meio desajeitado, parece que nem tenho coordenação motora, nem sei se seria capaz de fazer isso, mas com certeza correr contigo atrás de uma bola teria sido um prazer imenso para mim..

Não te ensinei a jogar pião, bola de gude e construir e empinar pipas, coisas que eu sei que os meninos de hoje nem sabem que um dia existiram, pensam que são peças de museu, mas também poderia jogar contigo no computador ou em qualquer videogame irado desses modernos.

Não pude te levar à escola, nem no primeiro dia e nem outro dia qualquer depois, não pude ver teus jogos, tuas competições esportivas, nunca pude ir à escola para comemorar o Dia dos Pais ao teu lado.

Nunca te levei ao Santuário Maior dos Rubro-negros de Recife, a majestosa Ilha do Retiro, covil do Leão do Norte, se bem que neste momento as coisas não andam muito boas por aquelas bandas não. Nunca assistimos a jogos do Sport e nem tomamos sorvetes juntos.

Nunca te levei à igreja, você nunca me viu pregando ou ensinando e nunca pudemos falar de Deus e de Jesus. Nunca pude ler histórias (e estórias também) para você, como fazia para a tua irmã quando ela era menor. Nunca pude te contar minhas aventuras, como o dia em fugi de casa ou o dia em que toquei fogo numa plantação, mas isso fica para outro dia, eu já estou correndo o risco de entrar numa digressão, e em outro lugar eu já escrevi sobre isso.

Não fiz nada disso não foi por estar ocupado, talvez se esse fosse o motivo eu estaria agora feliz, pelo menos poderia recuperar o tempo perdido, mas não fiz nada disso porque você foi embora muito antes que eu pudesse fazer algo, foi embora sem um sorriso, sem uma lágrima, sem um choro e até mesmo sem um adeus.

O dia 31 de agosto de 1993 ainda está marcado à ferro e fogo em minha alma, deixou marcas indeléveis, que, acredito eu, são eternas. Neste dia, ainda que eu tivesse 25 anos, para mim foi o dia em que perdi a noção do “mundo maravilhoso de Alice”. Onde tive que enfrentar todos os meus medos, todos de uma só vez, onde a sombra começou a pairar sobre minha vida e a “noite escura” da alma chegou de vez.

Neste dia você nasceu e floresceu, neste dia você definhou e morreu.

Você foi como um presente de Deus, chegou quando disseram que era impossível que você viesse, e foi embora quando eu achava impossível que fosse verdade. 16 longos anos imaginando como seria toda uma vida, como seria ter você e Mysha, juntos, curtindo a infância de cada um e vivenciado cada momento e cada vitória, e dividindo o peso de cada derrota que por acaso sobreviesse.

Senti-me só no dia em sepultei você, perdido, ainda que muita gente estivesse ao meu lado, uma dor profunda como eu nunca havia sentido, como nunca senti depois, porém a dor nunca mais foi embora, resisti por muito tempo, depois me acostumei, caso ela vá embora eu creio que sentirei muita falta. Não é que ela virou amiga, apenas não sei como é existir sem ela.

Alguns anos depois senti a mesma solidão, o mesmo sentimento de desamparo e abandono à beira da sepultura do meu pai, você já o deve ter conhecido, é claro! Não sabes o quanto eu sonhei com vocês dois juntos, tenho certeza que ele te colocaria nas costas e te deixaria fazer cavalinho nele, seria um problema para mim, pois ele como um bom avô iria te colocar no mau caminho, como o pai de minha mãe me colocou. A dor que eu senti foi diferente, a dor que senti quando me despedi de você foi uma dor não natural, nenhum pai deveria enterrar um filho, nenhum pai!

A saudade dói, mas a saudade que sinto pode ser, parafraseando um escritor americano, um “rumor da outra vida” que um dia teremos juntos, quando nos reencontrarmos, então a tua presença e a presença eterna da Luz Divina preencherão todos os vazios que porventura ainda existam. Sobre os vazios que só Abba pode preencher, um santo do passado um dia disse: "Fizeste-nos para Ti, e inquieto estará o nosso coração enquanto não encontrar em Ti descanso". Você já deve tê-lo conhecido, é um cara esquisito que gostava de roubar pêras, por nome Santo Agostinho. Sei que já experimentas essa plenitude, sabes bem do que estou falando, muito melhor do que eu.

E então sentaremos na beira de um rio, pescaremos, andaremos e conversaremos, colocaremos os assuntos em dia. Mas neste dia, já não terei mais lágrimas para derramar, pois elas serão enxugadas por Abba, a saudade vai desaparecer e só alegria do reencontro dominará nossos corações. E aí esperaremos aqueles que virão depois de nós e então “estaremos juntos para sempre com o Senhor”.

Até breve Ulrich, até breve garoto, dê lembranças ao teu avô, diga-lhe que sinto muito a sua falta, até breve meu filho.