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A limpeza étnica da Palestina

 

Comentário sobre o livro de Ilan Pappé

Há livros difíceis de serem lidos. Às vezes empacamos diante de conceitos ou de formulações rebuscadas. Há, também, outros tipos de dificuldades. Paramos a leitura para tomar ar, para dar ao pensamento tempo para se conectar com a narrativa de experiências históricas terríveis, devastadoras. Somos postos diante do precipício daquilo que chamamos “humanidade”.

Os crimes contra a humanidade nos arrancam do nosso lugar confortável e nos fazem pensar sobre os próprios sentidos que os criminosos dão ao “humano”. Foi a conta-gotas que li A limpeza Étnica da Palestina, do historiador israelense Ilan Pappé. A cada página o autor nos apresenta aos horrores cometidos pelos sionistas para expulsar os/as palestinos/as de suas terras para que pudessem fundar um Estado judeu.

Nas duas viagens que fiz à Palestina vi fragmentos. Conheci parte considerável dos 700 quilômetros de muro, serpentes de concreto; as barreiras militares. Escutei tiros que executaram um jovem na Cidade Velha de Jerusalém, ritual de morte que acontece quase todos os dias nas barreiras militares. Acompanhei e chorei com os moradores de Silwan (bairro palestino em Jerusalém Oriental) que tiveram suas casas demolidas. Conversei com crianças que tinham sido presas pelo Estado de Israel. Visitei alguns campos de refugiados.

Faltava, contudo, ligar os vários pontos dos múltiplos atos de terror cometidos pelo Estado de Israel contra o povo palestino. Tão logo voltei ao Brasil, em janeiro de 2017, o livro de Ilan Pappé foi lançado. Este livro me deu um quadro histórico mais coerente e completo, que seria impossível de alcançar apenas pela dimensão da experiência. O que eu tinha assistido era, de fato, a continuidade da política iniciada em 1947 pelo futuro Estado de Israel: eu vi a continuidade da limpeza étnica da Palestina.

Um dos principais mitos que tenta justificar a existência de Israel se fundamenta no lema “Uma terra sem povo para um povo sem terra”. A narrativa sionista é mais ou menos assim: “judeus miseráveis, perseguidos pelos antissemitas na Europa, finalmente, voltam para suas terras ancestrais. Encontraram terras desocupadas e, com seu trabalho, fizeram da terra seca brotar a abundância. Cercado de inimigos por todos os lados, os/as heroicos/as soldados/as judeus/judias resistiram, lutaram e fundaram o glorioso Estado de Israel!”. Após a pesquisa de Ilan Pappé, este mito foi definitivamente destruído.

A tese da limpeza étnica não é nova. Walid Khalidi, por exemplo, nos seus escritos, já seguia este caminho. Em sua obra-prima, Una Historia de los Palestinos a traves de la fotografia 1876-1948, Khalidi nos apresenta uma Palestina pulsante, com uma vida urbana conectada com grandes centros culturais e econômicos do mundo. O autor combina vários elementos narrativos em seu livro: fotografias, mapas, dados censitários e textos analíticos. A própria palavra síntese, usada pelos/as palestinos/as para se referir ao que lhes aconteceu, principalmente a partir de novembro de 1947, Nakba (catástrofe), nos revela que a tese de limpeza étnica não é nova.

Qual seria, então, a singularidade da obra de Ilan Pappé e por que sua leitura deve ser obrigatória para todos/as que estão conectados/as com a luta do povo palestino e/ou interessados/as em entender os mecanismos de dominação do neocolonialismo materializados nas políticas do Estado de Israel? Pela primeira vez, um pesquisador entra na alma do projeto sionista: vale-se dos arquivos da Haganá, das FDI (Forças de Defesa de Israel), arquivos centrais sionistas, registro das reuniões da Consultoria, diário e os arquivos pessoais de Ben-Gurion.

Com rigor científico cirúrgico, o autor nos apresenta também cartas, documentos da ONU, repercussão em jornais de alguns dos massacres cometidos contra o povo palestino, arquivos da Cruz Vermelha. Além da descrição e análise histórica dos fatos, o livro ainda mostra fotos, cronologia dos fatos principais, mapas e um apartado com centenas de notas explicativas das fontes consultadas. São estas notas que garantem o rigor científico e o compromisso com a verdade. São centenas, iguais à Nota 5 (Capítulo 6): “Isso estava nas ‘Ordens operacionais para as brigadas de acordo com o Plano Dalet’, Arquivos das FDI, 22/79/1.303” (p. 313).

No primeiro capítulo, o historiador irá apresentar o conceito de “limpeza étnica” aceita por todos os organismos internacionais como “um esforço para deixar homogêneo um país de etnias mistas, expulsando e transformando em refugiados um determinado grupo de pessoas” (p. 23). Logo depois, nos conduzirá aos antecedentes históricos do projeto sionista de construção de um Estado para os judeus (por exemplo, a Declaração Balfour, de 1917) e nos apresentará aos “intelectuais orgânicos” da limpeza étnica, destacando-se o grande arquiteto Ben-Gurion.

Em carta ao filho, em 1937, Ben-Gurion antecipará o que iria acontecer: “Os árabes terão de ir, mas para fazê-lo acontecer, é necessário um momento oportuno, como uma guerra” (p. 43). Dez anos depois, em 1947, Yigael Yadin (outro importante quadro político-militar que planejou e executou a limpeza) afirmará: “os árabes palestinos não têm ninguém para organizá-los devidamente” (p. 42). Ou seja, a suposta guerra que Ben-Gurion já desejava em 1937 não aconteceu. Guerra só existe quando há um mínimo de equilíbrio na correlação de forças bélicas entre os inimigos. O que mostra a falsidade da retórica acionada sem timidez por Ben-Gurion de que os judeus na Palestina corriam risco de serem vítimas de um segundo Holocausto. Ao descrever os palestinos como nazistas, “a estratégia era uma manobra deliberada de relações públicas para garantir que, três anos depois do Holocausto, o ímpeto dos soldados judeus não vacilasse quando eram ordenados a limpar, matar e destruir outros seres humanos” (p. 93).

Foram três planos, ao todo, para realizar a limpeza étnica (Plano A, 1937; Plano B, 1946 e que passou a integrar o Plano C, de 1948). No entanto, o mais minucioso e melhor estruturado foi o Plano Dalet (“D” em hebraico). Assim, “alguns dias depois de escrito, o Plano D foi distribuído entre os comandantes das 12 brigadas incorporadas agora à Haganá. Junto à lista recebida vinha uma descrição detalhada dos vilarejos no seu raio de ação e de seu destino imanente: ocupação, destruição e expulsão. Os documentos israelenses liberados pelo arquivo das Forças de Defesa de Israel, no fim dos anos 1990, mostram claramente que, ao contrário das alegações feitas por historiadores como Benny Morris [historiador israelense], o Plano Dalet foi entregue aos comandantes de brigadas não como diretrizes gerais, mas como categóricas ordens para a ação” (p. 103).

Valsa com Bashir


Título Nacional: Valsa com Bashir
Título Original: Vals im Bashir 
Idioma: Hebraico 
Diretor: Ari Folman 
Gênero: Filme/Documentário/Biográfico 

O conflito no oriente médio não é de agora. Há décadas, países lutam por questões territoriais e religiosas, resultando em grandes destruições e aumentando ainda mais o ódio étnico e a intolerância multicultural vizinha. A migração de refugiados de guerra também é uma questão para se analisar com bastante cautela. 

O filme-documentário-biográfico "Valsa com Bashir" (em hebraico Vals im Bashir) aborda essa última questão. O ex-combatente israelense e diretor do filme, Ari Folman, retrata um dos períodos mais conturbados na história, marcados por intensos conflitos durante a ocupação das forças Israelenses no Líbano até a chegada à capital Beirute, em 1982, no intúito de derrubar as forças palestinas. 

O assassinato do presidente cristão Bashir Gemayel colaborou no massacre de dois mil civis nas cidades de Sabra e Chatila, cidades em destaque no filme. 

Diferente da linha comercial cinematográfica, Ari Folman relata a sua angústia e intensa busca às lembranças dos acontecimentos em formato de animação. Alías, "Valsa com Bashir" foi o primeiro documentário animado a ser veiculado e indicado a cinco Oscars de melhor filme estrangeiro.

Ser antissionista é ser antissemita?

 

O lobby israelense e seus ferrenhos apoiadores não lutam contra o antissemitismo que alegam existir, eles lutam contra a crítica à Israel. 

Em geral, quando se inicia um debate crítico a respeito da política do Estado de Israel, suas ações militares e de intervenção em território da Palestina ou mesmo em outras regiões do Oriente Médio, surgem diversos comentários de seus apoiadores em sua defesa, para explicar e justificar as barbáries cometidas pela “única democracia do Oriente médio”. Dentre esses comentários, surgem diversas acusações, sendo a mais grave acusar de antissemita todos os que se opõem ao Estado e a política de Estado de Israel.

Toda crítica política ao sionismo é tomada como sinônimo de antissemitismo, segundo intelectuais sionistas e apoiadores. De fato, dentre algumas críticas ao Estado de Israel, existem manifestações antissemitas de organizações neonazistas e, entre outras, de organizações que se declaram islâmicas. O ponto central é contextualizar ao leitor como cada conceito se encaixa nessa discussão, para não serem mal interpretados ou tirados de contexto como comumente tem ocorrido.

De acordo com Santos (2018, p. 12) “Sionismo é um movimento político com aspirações nacionalistas, que afirma o direito à existência de um Estado Judaico” e que historicamente propõe a erradicação da diáspora judaica, tendo como seu principal teórico o judeu Theodor Hetz (1860-1904). Dentro do movimento sionista, três locais foram pensados para construção do Estado: Argentina por ter uma das maiores comunidades judaicas do mundo, Uganda por estar sob mandato britânico na época de negociações com o movimento sionista e a Palestina por também estar sob mandato britânico e ser uma região historicamente importante para os judeus.

Hetz teorizou e concentrou essas ideias em sua principal obra O Estado Judeu (1896). Essa ideia ganha força frente aos violentos atentados e perseguições contra judeus no ocidente sobretudo na Inglaterra, Alemanha, França e Rússia que se intensificaram durante os séculos XVIII e XIX. Essas perseguições a judeus ficaram conhecidas como pogroms.[i]

Antissionismo é um termo utilizado por ativistas sociais dos Direitos Humanos, movimentos que se opõem à ideia de criação de um Estado nacional judaico na Palestina histórica e sobretudo que se opõem à política do Estado de Israel. Antissemitismo é o preconceito e discurso de ódio contra semitas, englobando principalmente o ódio contra judeus. Os Semitas englobam várias etnias como judeus, árabes hebreus, arameus, fenícios e assírios.

Durante o século XX a máquina de propaganda israelense se apropriou do termo “antissemita” como preconceito cometido apenas contra judeus excluindo os outros povos semitas. Em protesto a isso alguns autores preferem utilizar o termo “judeofobia”. Um judeu étnico, por lógica, nunca poderá ser antissemita, mas pode manifestar oposição política e religiosa ao sionismo. Muitos judeus étnicos e religiosos ortodoxos rejeitam veemente o Estado judeu ou como preferem chamar o Estado sionista. A comunidade judaica no pós-Segunda Guerra Mundial passou por uma de suas maiores rupturas da história quando se tratou de apoiar a criação do Estado de Israel e consequentemente a política de imigração para a Palestina onde se tornaram colonos.

A ideia de que durante 2000 anos os judeus anseiam retornar à Terra Santa é falso e desmentido pela comunidade judaica tradicional. Rabinos fiéis a interpretação da Torá afirmam constantemente em seus protestos contra o sionismo que o retorno à Terra Santa, segundo o livro sagrado, só poderia ocorrer por ocasião do advento do Messias.

“Os judeus piedosos que criticam publicamente o sionismo creem que devem agir assim por causa de obrigações impostas pela Torá. A primeira é impedir a profanação do nome de Deus. Como o Estado de Israel pretende atuar em nome de todos os judeus do mundo, inclusive em nome do judaísmo, esses judeus sentem-se obrigados a explicar publicamente, principalmente aos não judeus, o que consideram uma interpretação fraudulenta. A segunda obrigação deriva do preceito de preservar a vida humana. Ao ressaltar a rejeição judaica ao sionismo, eles esperam afastar os judeus da animosidade que, em sua opinião, o Estado de Israel provoca entre as nações. Desejam evitar que os judeus de todo o mundo se transformem em reféns das políticas israelenses e de suas consequências. Afirmam que o Estado de Israel deve ser conhecido como o “Estado sionista” e não como “o Estado judeu” ou “Estado hebreu”.[ii]

Essa tentativa de assimilar antissionismo a antissemitismo é uma grande ferramenta por parte do Estado de Israel e seus aliados para silenciar qualquer crítica direcionada aos mesmos como se fossem críticas ao judaísmo e aos judeus. Isso não passa de uma forma discursiva genial para silenciar os críticos do sionismo israelense. Interessante observarmos que esse tipo de silenciamento tem se tornando uma política por parte do Estado sionista e seus apoiadores.

Podemos utilizar como exemplo de silenciamento o professor Steven Salaita[iii] que em 2014 teve sua oferta de emprego rescindida pela universidade de Illinois após uma série de tweets que direcionaram críticas ao Estado de Israel. Após muito lobby por parte do movimento sionista americano o professor não foi aceito em qualquer outra universidade, tempos depois o professor entrou na justiça e conseguiu reverter a situação entrando em acordo com a universidade e recebendo cerca de US $ 600.000.

A associação dos judeus com o Estado de Israel é quase que automática quando mencionada em mídias ou meios acadêmicos. Quando quaisquer opositores ferrenhos do sionismo gritam pelo fim do Estado de Israel e pedem a autodeterminação do Estado Palestino pluri étnico e laico logo são associados como inimigos do povo judeu espalhados pelo mundo. Os sionistas fizeram algo muito bem além de expulsar os palestinos de suas terras e serem responsáveis pela diáspora do povo descendente dos filisteus, souberam criar e reforçar a ligação da comunidade judaica mundial com o Estado de Israel se apresentando como a vanguarda dos judeus. A escola de pensamento e propagação das ideias sionistas não deve de modo algum representar o judaísmo, assim como a Al-Qaeda e o ISIS-Estado Islâmico não representam o Islã.

A filósofa judia Judith Butler vê nessas associações consequências extremamente negativas para o movimento judeu: “Nos Estados Unidos, fiquei alarmado com o número de judeus que, desanimados com a política israelense, incluindo a ocupação, as práticas de detenção por tempo indeterminado, o bombardeio de populações civis em Gaza, buscam negar sua condição de judeu. Eles cometem o erro de pensar que o Estado de Israel representa o judaísmo para nossos tempos, e que, se alguém se identifica como judeu, apoia Israel e suas ações. E, no entanto, sempre houve tradições judaicas que se opõem à violência estatal, que afirma a coabitação multicultural e defendem princípios de igualdade, e essa tradição ética vital é esquecida ou marginalizada quando qualquer um de nós aceita Israel como base da identificação judaica”.[iv]

Antissionismo não é de modo algum antissemitismo, pelo mesmo fato de ser antinazista não significa ser contra o povo alemão. Ser contra o sionismo israelense e sua política de apartheid, segregação, violação dos direitos humanos, limpeza étnica contra os palestinos, não pode ser considerado um ato “antissemita”. O lobby israelense e seus ferrenhos apoiadores não lutam contra o antissemitismo que alegam existir, eles lutam contra a crítica à Israel.

Gustavo Alves Lima é graduado em história pela Universidade Federal da Integração Latino-americana (UNILA).

Notas
[i] Pogroms (em russo “destruição”): Eram massacres organizados para o aniquilamento de qualquer grupo ou classe, especialmente com a conivência do governo russo contra os judeus. O termo foi usado pela primeira vez fora da Rússia ao tempo dos levantes antijudaicos organizados pelas Centúrias Negras na Rússia no ano de 1905, mas é frequentemente aplicado às insurreições russas anteriores, a partir de 1881 (ROTH, 1966, p. 976).
[ii] Rabkin, Yakov M. Judeus contra Judeus – a História da Oposição Judaica ao Sionismo. Cotia, SP: Acatu, 2009. p.17
[iii] professor e intelectual palestino-americano que ficou conhecido por ganhar um processo contra a universidade de Illinois. https://www.thenation.com/article/archive/why-unhiring-steven-salaita-threat-academic-freedom/
[iv] Judith Butler responds to attack: ‘I affirm a Judaism that is not associated with state violence’ – Judith Butler on August 27, 2012 – Mondoweiss, Disponível: <http://mondoweiss.net/2012/08/judith-butler-responds-to-attack-i-affirm-a-judaism-that-is-not-associated-with-state-violence/>

Os Testamentos

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"O Hológrafo de Árdua Hall

Apenas os mortos têm permissão para ter estátuas, mas eu ganhei uma ainda em vida. Eu já estou petrificada.

Aquela estátua era um pequeno sinal de agradecimento por minhas várias contribuições, dizia o discurso, que foi lido pela Tia Vidala. Ela fora incumbida dessa tarefa pelos nossos superiores e estava longe de transmitir entusiasmo. Agradeci-lhe com o máximo de modéstia que pude e puxei a corda que desatava o manto que me encobria; ele flutuou morosamente ao chão, e lá estava eu. Aqui em Ardua Hall não se ovaciona ninguém, mas ouviu-se uma discreta salva de palmas. Inclinei minha cabeça em agradecimento.

A minha estátua é algo descomunal, como tende a ser toda estátua, e me retrata mais jovem, mais magra e em melhor forma do que tenho estado há tempos. Estou ereta, ombros para trás, meus lábios curvos num sorriso firme, mas benevolente. Meus olhos se fixam em algum ponto de referência cósmico que se presume representar meu idealismo, meu compromisso inabalável com o dever, minha determinação em seguir em frente a despeito de qualquer obstáculo. Não que qualquer parte do céu esteja à vista da minha estátua, plantada onde está, naquele melancólico aglomerado de árvores e arbustos ao lado da trilha de pedestres que passa em frente do Ardua Hall. Nós, as Tias, não podemos ter grandes pretensões, mesmo em forma de pedra.

Agarrada à minha mão esquerda há uma menina de sete ou oito anos, mirando-me cheia de confiança. Minha mão direita está apoiada na cabeça de uma mulher agachada a meu lado, de cabelos cobertos, seus olhos voltados para cima em uma expressão que poderia ser lida tanto como amedrontada quanto como grata – uma de nossas Aias –, e atrás de mim há uma de minhas Pérolas, pronta para partir em seu trabalho missionário. Pendendo do cinto que contorna minha cintura está minha arma de choque. Esta arma me lembra de minhas limitações: se eu tivesse sido mais eficiente, não teria necessitado desse acessório. A persuasão da minha voz teria sido suficiente.

Como grupo estatuário, não somos um grande sucesso: há elementos demais. Eu preferiria uma maior ênfase na minha pessoa. Mas pelo menos eu pareço estar em meu perfeito juízo. Poderia ter sido bem outro o caso, dado que a escultora idosa – uma crente fervorosa que veio a falecer – tendia a esbugalhar os olhos das modelos para sinalizar devoção. O busto que ela fez da Tia Helena tem ares de hidrofobia, o de Tia Vidala está com hipertireoidismo, e o de Tia Elizabeth parece prestes a explodir.

Na inauguração, a escultora estava nervosa. Será que havia me adulado o suficiente com sua escultura? Eu a aprovava? As pessoas iam entender que aprovei? Cogitei franzir a testa assim que o manto caísse, mas achei melhor não: não sou totalmente destituída de compaixão.

– Ficou muito realista – falei.

Isso foi há nove anos. Desde esse dia minha estátua vem se deteriorando: pombos me adornaram, musgo brotou nas minhas dobras mais úmidas. Devotos adquiriram o hábito de deixar oferendas a meus pés: ovos pela fertilidade, laranjas para sugerir a corpulência da gravidez, croissants em referência à lua. Ignoro os artigos de padaria – geralmente eles pegaram chuva –, mas embolso as laranjas. Laranjas são muito refrescantes.

Escrevo essas palavras no meu gabinete particular dentro da biblioteca do Ardua Hall – uma das poucas bibliotecas restantes após as animadas fogueiras de livros que têm ocorrido em nossa terra. As digitais pútridas e ensanguentadas do passado precisam ser expurgadas para deixar uma tábula rasa para a geração moralmente pura que com certeza vai nos suceder. Em teoria, pelo menos, é isso.

Mas entre estas digitais sangrentas estão as que nós mesmos deixamos, e estas não são tão fáceis de apagar. Com o passar dos anos enterrei muitos ossos; agora minha vontade é de exumá-los – nem que seja só para te edificar, meu leitor desconhecido. Se você estiver lendo isso, pelo menos este manuscrito terá sobrevivido. Embora talvez eu esteja fantasiando: talvez eu nunca venha a ter um leitor. Talvez eu só esteja falando com as paredes, ou muros, em todos os sentidos.

Chega de escrevinhar por hoje. Minha mão está doendo, minhas costas ardendo, e meu copo noturno de leite morno me aguarda. Vou guardar essa arenga no seu devido esconderijo, evitando as câmeras de vigilância – que sei bem onde estão, já que eu mesma as instalei. Apesar dessas precauções, estou ciente do risco que corro: escrever pode ser perigoso. Que traições, e então que acusações, podem estar à minha espera? Há muita gente em Ardua Hall que adoraria se apoderar dessas páginas.

Aguardem, aconselho-os silenciosamente: pois vai ficar pior."
____________________________
'Os Testamentos', continuação de 'O Conto da Aia', escrita por Margaret Atwood

The Handmaid's Tale - Cena do Protesto (Repost)

O Conto da Aia de Margaret Atwood (Repost)


A canadense Margaret Atwood, autora de O Conto da Aia, sempre gostou de afirmar que sua obra não é exatamente ficção científica, mas sim ficção especulativa, asseverando que, enquanto a primeira lida com elementos que a Humanidade ainda não pode fazer ou alcançar, de uma forma ou de outra, a segunda transporta o que a Humanidade já faz ou tem a capacidade de fazer para um cenário hipotético. Apesar de a ficção científica ser uma espécie do gênero ficção especulativa, essa diferenciação é sim importante para a compreensão do que a autora pretendeu aqui.

Lançada em 1985, a história se passa em um futuro distópico em que os Estados Unidos tornaram-se uma ditadura militar teocrática comandada por homens que anularam completamente a mulher, que não passam de seres categorizados como esposas, oficialmente as mulheres dos homens de posse, Martas, o que hoje são as empregadas domésticas e as aias, que têm a função de gerar filhos. Há outros tipos ainda, como as “econo-esposas”, mas que não são exploradas a fundo na obra. O fato é que, nesse “futuro” a mulher foi reduzida a funções pré-determinadas sem que possam fugir delas.

Com essa breve descrição, já é perfeitamente possível entender o que Atwood procurou fazer. Religiões fundamentalistas – e, aqui, o exemplo mais atual é a muçulmana, sem dúvida – já de certa forma categorizam suas mulheres, com muitos países proibindo que elas estudem, que elas cresçam independente de uma figura masculina ou mesmo que mostrem seu rosto e seus cabelos livremente (e não me venham dizer que proibir a mulher de mostrar o cabelo é alguma coisa diferente de deixar clara sua submissão ao homem). Se olharmos para o passado – e Atwood também bebe daí, já que o Puritanismo é uma de suas fontes mais claras para os trajes das aias – veremos a repetição disso em outras religiões, em um ciclo vicioso assustador.

E o que ela faz é transplantar o que ela vê ao seu redor em diversas regiões do mundo hoje (ou quando ela redigiu a obra, só para ser mais exato) para os Estados Unidos, ou, aqui, República de Gilead, imaginando uma situação em que um conflito de bases religiosas instaurou-se, tornando o país uma ditadura nos moldes acima e em que, por questões explicadas apenas muito brevemente, a taxa de natalidade caiu alarmantemente, tornando as aias tão importantes nesse cenário apocalíptico. Tenho sido propositalmente críptico na função de uma aia no romance, pois Atwood constrói essa revelação muito vagarosamente em seu texto, não porque é um plot twist ou uma revelação que muda os rumos narrativos, mas sim porque ela trabalha do pressuposto de que a narradora – uma aia – já sabe de sua função e não “corre” para nos contar, mas é impossível fazer uma crítica sem abordar esse elemento, que é da essência da obra.

Nesse futuro distópico, a aia, que usa uma vestimenta vermelha inspirada nos figurinos femininos da época da colonização americana, inclusive com um chapéu que cobre seus cabelos completamente e também sua visão periférica – têm a única função de ser fecundada, engravidar e parir uma criança. O “fecundador” é, via de regra, o marido de uma das “esposas” – normalmente mulheres que já não podem mais ter filhos em razão da idade ou outro fator – e a aia não tem escolha alguma. Na verdade, tem: ela pode se recusar e ser mandada para as “colônias”, o que é sinônimo de alguma forma de extermínio protraído no tempo.

Em outras palavras, apesar de serem aparentemente bem cuidadas por seus “senhores”, as aias são ritualisticamente estupradas pelos Comandantes (assim são chamados os maridos das esposas) e, quando engravidam e têm filhos, eles são cuidados exclusivamente pelas esposas. É a institucionalização do estupro debaixo de uma interpretação perversa do texto do Velho Testamento e sob a rubrica de “segurança da mulher” causada por uma alegada liberação sexual que teria gerado a cultura de contraceptivos, promiscuidade e violência. E, quando menciono “ritualisticamente”, é porque há mesmo um ritual que antecede o coito – com direito à leitura da Bíblia – que ocorre diante da “esposa” e em que o prazer de qualquer parte é veementemente proibido.

Para contar essa terrível história, Atwood usa única e exclusivamente a narrativa em primeira pessoa de uma aia que permanece sem nome, como todas as aias. Aliás, sem nome não. Ela se chama Offred (inclusive na tradução em português, por razões que não consigo entender) que é algo mais tenebroso do que meramente um nome. Offred significa Of Fred ou, em português, “De Fred”, transformando a aia em uma propriedade de um homem em um mundo em que a mulher realmente não é muito diferente do que um objeto ornamental ou, no máximo, com muita boa vontade, um animal de estimação.

Mas, ao usar esse recurso da primeira pessoa, Atwood brinca com as expectativas e mantém o leitor constantemente engajado. Offred, uma aia de primeira geração, ou seja, que se lembra do mundo pré-Gilead, conta sua história de seu próprio jeito e, como toda a memória, parte de lembranças imperfeitas de seu passado, além de capítulos não necessariamente cronológicos. Com isso, aprendemos vagarosamente quem ela é e como ela foi parar ali, como foi seu “treinamento” (o correto seria lavagem cerebral) para aceitar toda essa submissão e aos poucos vamos então vendo esse mundo além das abas do chapéu branco da aia narradora. E é um mundo simplesmente aterrador, daqueles que por diversas vezes dá vontade ao mesmo tempo de fechar o livro e continuar lendo vorazmente, em uma daquelas contradições que só fazem sentido realmente mergulhando na história.

E a perseverança é muito bem retribuída por Atwood, que consegue, de maneira simples, mas muito eficaz, não só estabelecer o cenário completo e crível que  levou a essa mundo distópico como, também, usar artifícios narrativos que manobram nossa percepção de Offred. Sem entrar em muitos detalhes, basta dizer que a autora é capaz de nos oferecer visões de “segunda” mão de situações que Offred apenas ouviu falar, costurando-as muito bem dentro da estrutura em primeira pessoa. Além disso, por muitas vezes somos convidados a duvidar de algumas situações que ela descreve, quase tornando-a uma narradora não confiável em determinados momentos, o que instiga o leitor a continuar em sua jornada de leitura.

Além disso, Atwood não é maniqueísta e não torna as conclusões fáceis para o leitor. Quando ela trata da condição da mulher nessa sociedade (não tão)futurista, ela encaixa elementos da atualidade como pontos usados pelo poder estabelecido para justificar o porquê de tudo. De certa forma, é possível ver críticas da autora até mesmo ao feminismo radical e do politicamente correto excessivo. Basta, para isso, que o leitor saia do dizem que ele deve esperar do livro e comece a perceber as entrelinhas do que ela escreve. E não, de forma alguma quero afirmar que o livro não é um alerta a algo que pode vir a acontecer se não estivermos alertas – e não falo só de EUA aqui -, mas sim que Atwood é mais inteligente do que alguém que só escreve o que se quer ler. Ela vai além e toca profundamente em vaidades, em consumismo, em egocentrismo, em preconceitos e diversas outras questões que, por intermédio de sua Offred, ela vai abordando sem nunca se valer de didatismo e de forma alguma subestimando o leitor.

O Conto da Aia é leitura obrigatória. Mas fica um aviso: o cenário hipotético criado por Margaret Atwood está mesmo ali na esquina, pelo que a obra é uma leitura que machuca a cada virada de página, mas a dor, aqui, é necessária e, mais do que isso, instrutiva.

O Conto da Aia (The Handmaid’s Tale, Canadá)
Autora: Margaret Atwood
Editora original: McClelland and Stewart
Data original de publicação: 1985
Editoras no Brasil: Editora Marco Zero, Editora Rocco
Datas de publicação no Brasil: 1987 (Marco Zero), 2006 e 2017 (Rocco)
Tradução: Ana Deiró (edição da Rocco)
Páginas: 368 (edição da Rocco)


Ritter Fan
Fonte: http://www.planocritico.com/critica-o-conto-da-aia-the-handmaids-tale-de-margaret-atwood/

Alívio após uma doença


Jair acordou a meio da noite. Mandara colocar uma cama dentro do closet e era ali que dormia. Durante o dia tirava a cama, instalava uma secretária e recebia os filhos, os ministros e os assessores militares mais próximos.

Alguns estranhavam. Entravam tensos e desconfiados no armário, esforçando-se para que os seus gestos não traíssem nenhum nervosismo. Interrogado a respeito pela Folha de São Paulo, o deputado Major Olímpio, que chegou a ser muito próximo de Jair, tentou brincar: “Não estou sabendo, mas não vou entrar em armário nenhum. Isso não é hétero.” Michelle, que também se recusava a entrar no armário, fosse de dia ou de noite, optou por dormir num outro quarto do Palácio da Alvorada.

Aliás, o edifício já não se chamava mais Palácio da Alvorada. Jair oficializara a mudança de nome: “Alvorada é coisa de comunista!” — Esbravejara: “Certamente foi ideia desse Niemeyer, um esquerdopata sem vergonha.”

O edifício passara então a chamar-se Palácio do Crepúsculo. O Presidente tinha certa dificuldade em pronunciar a palavra, umas vezes saía-lhe grupúsculo, outras prepúcio, mas achava-a sólida, máscula, marcial. Ninguém se opôs.

Naquela noite, pois, Jair Messias Bolsonaro despertou dentro de um closet, no Palácio do Crepúsculo, com uma gargalhada escura rompendo das sombras. Sentou-se na cama e com as mãos trêmulas procurou a glock 19, que sempre deixava sob o travesseiro.

— Largue a pistola, não vale a pena!

A voz era rouca, trocista, com um leve sotaque baiano. Jair segurou a glock com ambas as mãos, apontando-a para o intenso abismo à sua frente:

— Quem está aí?

Viu então surgir um imenso veado albino, com uma armação incandescente e uns largos olhos vermelhos, que se fixaram nos dele como uma condenação. Jair fechou os olhos. Malditos pesadelos.

Vinha tendo pesadelos há meses, embora fosse a primeira vez que lhe aparecia um veado com os cornos em brasa. Voltou a abrir os olhos. O veado desaparecera. Agora estava um índio velho à sua frente, com os mesmos olhos vermelhos e acusadores:

— Porra! Quem é você?

— Tenho muitos nomes. — Disse o velho. — Mas pode me chamar Anhangá.

— Você não é real!

— Não?

— Não! É a porra de um sonho! Um sonho mau!

O índio sorriu. Era um sorriso bonito, porém nada tranquilizador. Havia tristeza nele. Mas também ira. Uma luz escura escapava-lhe pelas comissuras dos lábios:

— Em todo o caso, sou seu sonho mau. Vim para levar você.

— Levar para onde, ô paraíba? Não saio daqui, não vou para lugar nenhum.

— Vou levar você para a floresta.

— Já entendi. Michelle me explicou esse negócio dos pesadelos. Você é meu inconsciente querendo me sacanear. Quer saber mesmo o que acho da Amazônia?! Quero que aquela merda arda toda! Aquilo é só árvore inútil, não tem serventia. Mas no subsolo há muito nióbio. Você sabe o que é nióbio? Não sabe porque você é índio, e índio é burro, é preguiçoso. O pessoal faz cordãozinho de nióbio. As vantagens em relação ao ouro são as cores, e não tem reação alérgica. Nióbio é muito mais valioso que o ouro.

O índio sacudiu a cabeça, e agora já não era um índio, não era um veado — era uma onça enfurecida, lançando-se contra o presidente:

— Acabou!

Anhangá colocou um laço no pescoço de Jair, e no instante seguinte estavam ambos sobre uma pedra larga, cercados pelo alto clamor da floresta em chamas. Jair ergueu-se, aterrorizado, os piscos olhos incrédulos, enquanto o incêndio avançava sobre a pedra:

— Você não pode me deixar aqui. Sou o presidente do Brasil!

— Era. — Rugiu Anhangá, e foi-se embora.

Na manhã seguinte, o ajudante de ordens entrou no closet e não encontrou o presidente. Não havia sinais dele. “Cheira a onça”, assegurou um capitão, que nascera e crescera numa fazenda do Pantanal. Ninguém o levou a sério.

Ao saber do misterioso desaparecimento do marido, Michelle soltou um fundo suspiro de alívio.

Os generais soltaram um fundo suspiro de alívio. Os políticos (quase todos) soltaram um fundo suspiro de alívio.

Os artistas e escritores soltaram um fundo suspiro de alívio. Os gramáticos e outros zeladores do idioma, na solidão dos respetivos escritórios, soltaram um fundo suspiro de alívio.

Os cientistas soltaram um fundo suspiro de alívio. Os grandes fazendeiros soltaram um fundo suspiro de alívio.

Os pobres, nos morros do Rio de Janeiro, nas ruas cruéis de São Paulo, nas palafitas do Recife, soltaram um fundo suspiro de alívio.

As mães de santo, nos terreiros, soltaram um fundo suspiro de alívio.

Os gays, em toda a parte, soltaram um fundo suspiro de alívio.

Os índios, nas florestas, soltaram um fundo suspiro de alívio.

As aves, nas matas, e os peixes, nos rios e no mar, soltaram um fundo suspiro de alívio.

O Brasil, enfim, soltou um fundo suspiro de alívio — e a vida recomeçou, como se nunca, à superfície do planeta Terra, tivesse existido uma doença chamada Jair Messias Bolsonaro.

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Publicado originalmente na revista “Visão” de Portugal. Reproduzido no blog do Juca Kfouri.
Por José Eduardo Agualusa

Fonte: https://www.brasil247.com/cultura/escritor-angolano-descreve-o-triste-fim-de-jair-messias-bolsonaro?fbclid=IwAR3SKBlHl6s4WL5xjFvLRxpGvrN7u8GoLC_ZKDmUX3E3JchB5kZX5gMX1js

O caminho de Barrabás



Eu dava assistência pastoral a uma pequena comunidade presbiteriana na periferia do Recife. Tentava, não com muito sucesso, equacionar o ministério pastoral com uma nascente e promissora carreira acadêmica teológica. Antes mesmo de concluir o bacharelado em teologia eu já atuava como professor de diversas disciplinas nas turmas de noviços (os calouros, como chamávamos) e de segundo ano. Por conta dessa atuação numa instituição de muito prestígio na região, expandi a carreira para outras instituições de ensino teológico, ser professor então me atraía muito mais que ser pastor. Usava a pequena comunidade que assistia como laboratório de exposição bíblica, aquilo que mais me atraía na área depois das disciplinas de história da igreja e de Israel.

Um dia, resolvi fazer uma exposição dos evangelhos no que era denominado de “Culto de Doutrina”, tomando por base o evangelho de Lucas e cotejando com as passagens paralelas dos demais sinóticos (os que tinham a mesma visão que Lucas: Mateus e Marcos). Quando tangenciei o capítulo 27 de Mateus, que tratava da experiência de Pilatos com o Nazareno eu, que buscava a interação com o grupo, perguntei: - Quem era Barrabás e qual o crime que ele cometeu? A irmã Diana, lépida como sempre, levanta a mão e brada: “- Ele estuprou uma moça!”. Eu fiquei pasmo, extático. Já havia lido a bíblia toda diversas vezes e, obviamente nunca me deparara com tal afirmação. Olhei para a irmã Diana e perguntei: - Onde você leu isso? Ao que ela me respondeu em meio ao espanto geral dos que estavam na igreja naquela noite: “- Na bíblia, olhe aqui em Lucas, 23:17, e Barrabás havia sido preso por sedição na cidade e por ter cometido um crime” (suponho hoje que a versão que ela usava era alguma antiga de Figueiredo ou Almeida, versão corrigida). O resto do culto eu tive que explicar a diferença entre sedição e “sedução” (ela havia confundido os termos e tirado conclusões a partir dessa interpretação), e foi, talvez, a exegese laica mais inusitada que me deparei na vida sacerdotal.

Nas tradições armênia e siríaca há manuscritos dos evangelhos que dão testemunho que o nome do preso que Pilatos apresentou como alternativa para ser solto por ocasião da prisão de Jesus, era Jesus, o Barrabás (Filho do pai em aramaico, ou talvez, segundo alguns estudiosos: “filho de um rabino”), que teria sido suprimido pelos escribas em respeito ao Jesus, o Nazareno. Já que a história que estava sendo contada era a de Jesus, o chamado Cristo, não fazia sentido que outro lhe ofuscasse (Jesus era um nome muito comum naquela época). Barrabás é mais um título do que nome próprio, e é correto afirmar que Jesus, o Nazareno, também podia ser chamado de Barrabás, já que ele se posicionava como “Filho do Pai”. Então fica fácil entender essa supressão pelos copistas dos manuscritos.

Quem era então esse prisioneiro, segundo o fraseado da Bíblia de Jerusalém, acusado de motim e homicídio? O texto já nos deixa saber de antemão que ele era bastante conhecido e gozava de boa fama com o povo. Qual o motivo desta fama e qual parte da população (a sociedade judaica da época era bastante fragmentada) lhe tinha apreço? Em Marcos 15:7 somos informados que ele era um dos “amotinadores que, numa revolta, haviam cometido um homicídio”, em outras palavras, um assassino e revolucionário. É bastante razoável pensar que ele fosse o líder de um motim contra os romanos liderados por Pilatos (quando este tentou usar os fundos financeiros do Templo em proveito próprio), tinha cometido o mesmo crime que os judeus atribuíram falsamente ao Nazareno. Alguns estudiosos pensam, não sem embasamento, que ele fosse um sicário (em latim: sicarius - “homem da adaga”; grupo que promovia atentados contra os romanos e a elite judaica que colaborava com o regime intervencionista, usavam as adagas escondidas no manto, praticavam atentados contra os alvos inimigos no meio da multidão e depois sumiam sem deixar vestígios). Tal grupo tinha aceitação entre o populacho que era espoliado, tanto pelos ricos judeus colaboracionistas quanto pelos romanos, logo não causa surpresa alguma sua escolha por aqueles que o tinham como herói.

Houve uma combinação de forças da aristocracia com a massa pobre e manipulável (boa parte era de áreas rurais e estava em Jerusalém apenas para as festividades pascais) na escolha de Barrabás. O que precisa ser percebido é que, quando os judeus gritaram o nome de Barrabás, eles escolheram simultaneamente, intrinsecamente, o caminho da violência, do arbítrio, da Lei do Talião [da retaliação], do sangue, da vingança, da Lei inclemente e excludente mosaica, da força das armas. Era o regime do olho por olho, dente por dente, bastante atrativo para um povo que havia perdido a liberdade há bastante tempo e se acostumara com a opressão. Esse discurso encontrou guarida nos corações do piedoso, porém oprimido povo de Israel. É possível acreditar que a revolta de Barrabás contra o saque que Pilatos fizera nos fundos do templo, lhe angariou também a simpatia dos sacerdotes que viam com desgosto e desconfiança a ingerência romana no seu espaço sagrado. Eu denominaria este viés escolhido por uma turba ensandecida como o Caminho de Barrabás, em contraposição ao Caminho do Nazareno.

Nasci na tradição calvinista puritana, no melhor sentido que este termo possui. Cresci ouvindo Dona Guiomar ler um “jogral” todo ano por ocasião do 31 de outubro (na Igreja Presbiteriana do Brasil em Monteiro, Paraíba), Dia da Reforma Protestante, dia em que Lutero fixou suas 95 Teses na porta da Capela de Wittenberg, teses estas que eram uma declaração escrita para abrir um debate sobre a venda de indulgências pela Igreja Católica. Eu sabia de cor sua história, tinha apreço pela história de Savonarola, John Wycliffe, Ulrich Zwínglio, Jan Huss e o mais notável de todos para mim: João Calvino. Eu tinha pouco mais de cinco anos de idade. Fico surpreso até hoje quando vejo muitas pessoas se denominarem “calvinistas”, pois sei que muitos sequer leram o mínimo de Calvino, eu li As Institutas em espanhol e posteriormente no português rebuscado e incompreensível de Waldir Carvalho Luz, além de vários comentários bíblicos, e não julgo que tenha conseguido compreender com propriedade o pensamento teológico dele.

Até os 12 anos permanecemos nesta tradição, quando urgências familiares nos conduziram a uma igreja presbiteriana que havia abraçado o pentecostalismo da década de 1970, éramos então presbiterianos “renovados” como se chamava à época. Foi um momento difícil para mim, tive que passar por um processo de desconstrução doutrinária, até que resolvi cursar teologia depois que abandonei a carreira militar na Marinha, entrei numa instituição também presbiteriana de cunho anti-pentecostal (da linha de Carl McIntire do ICCC – Concílio Internacional de Igrejas Cristãs, que morreu execrado por seus pares, quando se descobriu que era um agente da CIA), que me fez retornar à tradição da infância. Pude assim ter acesso a lados opostos do que chamaria de “protestantismos”, já que considero impróprio falar de protestantismo brasileiro, tal é o caráter multifacetado deste (fui presbiteriano moderado, pentecostal, fundamentalista e da Igreja Presbiteriana Unida, de orientação da Teologia da Libertação, tudo isso numa vida só).

Com a aproximação com Robinson Cavalcanti (ícone da minha infância a quem tinha acesso através da revista Ultimato), bispo anglicano de Recife, eu me senti aceito naquela tradição de caráter tão heterogêneo e ecumênico, eu podia ser calvinista, esquerdista, não ter uma visão literalista da bíblia e ainda assim ser aceito. Porém, ser aceito incondicionalmente implicava em aceitar o outro incondicionalmente, o que nem sempre é verdade e a história da Diocese Anglicana do Recife serve como amostra de que é fácil falar de tolerância e inclusividade, desde que estas “diferenças” sejam apenas litúrgicas, ou seja, puramente cosméticas.

Hoje, primavera de 2018 (outubro, 26), a grande maioria dos líderes eclesiásticos brasileiros induziu seus rebanhos (segundo alguns votos de cajado, segundo minha visão, voto de cabresto mesmo) a escolher o mesmo caminho que a aristocracia judaica e o movimento sacerdotal induziram o povo judeu a escolher naquele fatídico dia: o Caminho de Barrabás! Mesmo sabendo quais foram as consequências da escolha feita pelo populacho judeu no primeiro século da Era Comum.

Não tenho como ficar indiferente às escolhas que foram feitas, no aço que fui temperado não há incoerência, seja política, social, intelectual ou religiosa, também não conheço a categoria da indiferença. Em virtude dessa escolha em massa, venho por meio deste manifestar publicamente algo que já fiz na prática há alguns anos, desde 2013 para ser preciso: corto todo e qualquer laço de ligação, seja histórico, seja cúltico, seja de herança, com o protestantismo brasileiro. Aos muitos amigos dessa tradição, por favor, não me considerem mais vosso irmão, posso ser e vou continuar sendo vosso amigo, mas não irmão.

Não posso ser irmão de quem escolheu o Caminho de Barrabás, mesmo sabendo que é um caminho de violência, um caminho do mal, um caminho de derramamento de sangue inocente. Não posso ser irmão de quem apoia um regime que será homofóbico e estimulará a violência contra aqueles que pensam sua sexualidade “supostamente” de forma distinta da maioria. Não posso ser irmão de quem propiciou que um regime racista e fascista chegasse ao poder por meio do voto. Não posso ser irmão de quem contribuiu para que a misoginia seja legalizada e regulamentada no país. Não posso ser irmão de quem votou num candidato que fez do discurso de liberação das armas a única proposta real e concreta de sua plataforma de governo. Não posso chamar de irmão quem deixou o ódio dominar o coração a ponto de ficar cego às verdades que eram postas todos os dias, aos apelos e clamores das minorias e daqueles que sabiam que seriam perseguidos no futuro. Não posso ser irmão de quem colaborou para colocar no poder um regime que pode me prender, me exilar ou me matar, pelo simples fato de que eu seja contrário ao que ele prega e defende e por eu ser também intransigentemente defensor da vida e dos direitos básicos do ser humano.

A leitura que aprendi a fazer do evangelho do Nazareno choca-se frontalmente com tudo o que vocês defendem, não posso sequer dizer uma boa parte de vocês, me desespero pensar que mais de 95% do evangelicalismo brasileiro adotou o Caminho de Barrabás. Acredito que o termo que melhor define a experiência evangélica brasileira é um trecho de uma música gospel: “Gadara é assim, ninguém se importa com os outros. Cada um vive pra si, alimentando os seus porcos. São indiferentes, vivem para seus interesses. Só querem ter! Querem ter! Só querem ter”. Não quero fazer parte sociedade de Gadara, vou apagar da minha história teu nome, não quero lembrar que um dia tive orgulho de ser cidadão de ti e a muitos convidei para que se tornassem cidadãos também, hoje sou peregrino em terras ermas, mas não beberei de tuas águas fétidas e nem dormirei em tuas camas de espinho. Parafraseando um antigo hino que eu sempre amei: Adeus Gadara, há Deus!

Eu vou continuar no Caminho do Nazareno, caminho difícil, cheio de pedras e espinhos, mas, neste caminho, quando parar para descansar e colocar a minha cabeça numa pedra, não terei nenhuma contradição ou incoerência para afastar meu sono, da mesma forma, quando diante do espelho não terei do que me envergonhar. Os que estão neste Caminho, estes sim, são meus irmãos (alguns são protestantes, outros católicos, alguns espíritas, outros de religiões de matriz africana, alguns ateus, alguns judeus, alguns sem religião, alguns gays, alguns indígenas, alguns negros, etc.), são poucos, porém são persistentes e determinados, não são movidos pela busca desenfreada por prosperidade ou poder, são movidos por três coisas apenas: a fé, a esperança e o amor, porém o maior destes é o amor.

Deus Não é Grande: Como a Religião Envenena Tudo


Quando eu li Christopher Hitchens pela primeira vez eu fiquei genuinamente emocionado. Hitchens resgata o sentimento de indignação com as barbáries cometidas pela religião e nos ajuda a perceber como, de fato, a religião envenena tudo, incluindo nossa capacidade crítica a respeito dela. Se você for ler apenas um livro esse ano, o que infelizmente será verdade para a maioria dos brasileiros, já que uma pesquisa recente aponta que o brasileiro lê em media apenas dois livros completos por ano e que o livro mais lido é a Biblía, eu recomendaria que você lesse esse livro.

Separei algumas passagens de cada capítulo.
Capítulo 1: Colocando Gentilmente
E aqui está o ponto, sobre mim e meus colegas pensadores. Nossa crença não é uma crença. Nossos princípios não são uma fé. Nós não confiamos exclusivamente na ciência e na razão, porque estes são necessários, em vez de fatores suficientes, mas desconfiamos de tudo que contradiga a ciência ou ultraje a razão. Podemos divergir sobre muitas coisas, mas o que respeitamos é a indagação livre, a mente aberta, e a busca de ideias para seu próprio bem. Não temos convicções dogmáticas.

Capítulo 2: Religião Mata
Certa vez ouvi o falecido Abba Eban, um dos diplomatas e estadistas mais polido e pensativo de Israel, dar uma palestra em Nova York. A primeira coisa a bater o olho sobre o conflito israelo-palestino, disse ele, foi a facilidade de sua solubilidade. A partir deste início cativante ele passou a dizer, com a autoridade de um ex-chanceler e representante da ONU, que o ponto essencial era simples. Dois povos de tamanho equivalente tinha um crédito a mesma terra. A solução seria, obviamente, a criação de dois Estados lado a lado. Certamente, algo tão evidente estava dentro do espírito do homem para abranger? E assim teria sido, décadas atrás, se os rabinos e mulás messiânicos e padres pudessem ter sido mantidos fora da questão. Mas os clamores exclusivos para a autoridade dada por Deus, feita por clérigos histéricos de ambos os lados e ainda mais felizmente por cristãos que esperam trazer o Apocalipse (precedido pela morte ou a conversão de todos os judeus), tornaram a situação insuportável, e colocaram toda a humanidade na posição de refém de uma briga que apresenta agora a ameaça de guerra nuclear. A religião envenena tudo. Bem como uma ameaça à civilização, tornou-se uma ameaça à sobrevivência humana.

Capítulo 3: Uma pequena digressão sobre o porco, ou, por que o céu odeia presunto?
A atração e repulsão simultânea é derivado de uma raiz antropomórfica: o olhar do porco, e com o sabor do porco, e os moribundos gritos do porco, e a inteligência evidente do porco, eram de uma demasiada e incômoda reminiscência do ser humano.

Capítulo 4: Uma nota sobre a saúde, para qual a religião pode ser perigosa
Feche os olhos e tente imaginar o que você diria se você tivesse que infligir o maior sofrimento possível no menor número de palavras.
"... Durante o carnaval no Brasil, o bispo auxiliar do Rio de Janeiro, Rafael Llano Cifuentes, disse à sua congregação em um sermão que "a igreja é contra o uso do preservativo. As relações sexuais entre um homem e uma mulher tem que ser natural. Eu nunca vi um cãozinho usar um preservativo durante a relação sexual com um outro cão." Figuras clericais experientes de vários outros países, como o cardeal Obando y Bravo da Nicarágua, o arcebispo de Nairobi, no Quênia, e o Cardeal Emmanuel Wamala de Uganda, tem todos ditos aos seus rebanhos que as camisinhas transmitem AIDS.

Capítulo 5: As afirmações metafísicas da religião são falsas
Todas as tentativas de conciliar a fé com a ciência e a razão estão fadadas ao fracasso e ao ridículo por precisamente estas razões. Eu li, por exemplo, de alguma conferência ecumênica dos cristãos que desejam mostrar sua mente aberta e convidar alguns físicos para participarem. Mas sou obrigado a lembrar o que eu sei, que é que não haveriam tais igrejas, em primeiro lugar, se a humanidade não tivesse temido coisas como o clima, o escuro, a peste, o eclipse, e toda sorte de outras coisas agora facilmente explicáveis. E também se a humanidade não tivesse sido obrigada, sob pena de consequências extremamente agonizantes, a pagar os dízimos e impostos exorbitantes que elevaram os edifícios imponentes da religião.

Capítulo 6: Argumentos sobre Design
Ceticismo e descoberta libertaram (os religiosos) do fardo de ter que defender seu deus de ser absurdo, desajeitado, um cientista louco, e também de ter que responder perguntas perturbadoras sobre quem infligiu o bacilo da sífilis ou criou o leproso ou a criança deficiente, ou concebeu os tormentos do trabalho. O fiel repousa absolvido dessa acusação: não temos mais qualquer necessidade de um deus para explicar o que não é mais misterioso. O que os crentes vão fazer, agora que sua fé é opcional e privada é irrelevante, é uma questão para eles. Nós não deve se preocupar, desde que eles não façam nova tentativa de forçar a religião sob qualquer forma de coerção.

Capítulo 7: Apocalipse: O pesadelo do "Antigo" Testamento
Em Deuteronômio Moisés dá ordens para os pais que seus filhos sejam apedrejados até a morte por indisciplina (que parece violar pelo menos um dos mandamentos) e continuamente faz pronunciamentos dementes ("Aquele que está ferido nas pedras, ou tem o seu membro cortado , não entrará na congregação do Senhor "). Em Números, ele aborda seus generais depois de uma batalha e se enfurece com eles por poupar tantos civis: "Agora, pois, matem todos os meninos entre as crianças, e matai toda mulher que tiver conhecido homem, deitando-se com ele. Mas todas as mulheres-crianças que não tem conhecido um homem, deitando-se com ele, manter as viva para vós."

Capítulo 8: O "Novo" Testamento excede o mal da"Velho"
Muitos dos ensinamentos de Jesus são ininteligíveis e mostram uma crença na magia, vários são absurdos e mostram uma atitude primitiva para com a agricultura (isso se estende a todas as menções de arar e semear, e todas as alusões a árvores de mostarda ou figueira), e muitos são claramente imorais. A analogia de seres humanos para os lírios, por exemplo, sugere juntamente com muitas outras passagens, que coisas como economia, inovação, vida familiar, e assim por diante são uma pura perda de tempo. ("Não fazeis plano para o dia de amanhã.").

Capítulo 9: O Corão é uma cópia de mitos judaicos e cristãos.
Em vinte e cinco anos de discussões, muitas vezes ferrenhas, apenas uma vez fui ameaçado com violência real. Isso ocorreu em Washington, DC quando eu estava jantando com alguns funcionários e apoiadores da Casa Branca de Clinton. Um dos presentes, um na época conhecido democrata arrecadador de fundos para o partido, questionou-me sobre a minha mais recente viagem ao Oriente Médio. Ele queria a minha opinião sobre a razão pela qual os muçulmanos eram tão "tudo nervosos, malditos fundamentalistas." Eu descrevi meu repertório de explicações, acrescentando que muitas vezes é esquecido que o Islã é uma fé relativamente jovem, e ainda no calor da sua auto-confiança. Os muçulmanos ainda não tiveram tempo de sofrer a crise de insegurança que havia superado o cristianismo ocidental. Acrescentei que, por exemplo, enquanto havia pouca ou nenhuma evidência para a vida de Jesus, a figura do Profeta Maomé era ao contrário pessoa significativamente documentada na história. O homem mudou de cor mais rápido do que eu já havia visto. Depois de gritar que Jesus Cristo tinha mais significado para as pessoas mais do que eu jamais poderia imaginar, e que eu era nojento acima de qualquer insulto por falar tão casualmente de Cristo, ele recuou o pé e mirou um pontapé que só a sua decência, concebivelmente seu cristianismo, o impediu de desferir contra minha perna. Ele então ordenou que sua esposa o acompanhasse enquanto se retirava.

Capítulo 10: O enfeite barato do milagroso e o declínio do Inferno
Depoimento de Ken Macmillan, o cinegrafista do documentário "Algo Bonito Para Deus":
"Durante as filmagens, houve um episódio em que fomos levados para um prédio que Madre Teresa chamava de Casa dos Moribundos. Peter Chafer, o diretor, disse: "Ah, bem, é muito escuro aqui. Você acha que podemos conseguir alguma coisa?" E nós tínhamos acabado de receber na BBC um novo filme feito pela Kodak, que não tivemos tempo para testar antes de sairmos, então eu disse a Pedro: "Bem, nós podemos tentar e pode dar certo."Então, nós filmamos. E quando voltamos, algumas semanas depois, um mês ou dois mais tarde, nós estamos sentados na sala de projeção no Ealing Studios e, eventualmente, se vêm as imagens da Casa dos Moribundos. E foi surpreendente. Você podia ver todos os detalhes. E eu disse: "Isso é incrível. Isso é extraordinário." E eu ia dizer, você sabe, três vivas para a Kodak. Eu não tive a chance de dizer isso, porém, porque Malcolm, sentado na primeira fila, virou-se e disse: ".. É luz divina. É Madre Teresa. Você verá que é a luz divina, meu velho" E três ou quatro dias depois eu estava recebendo telefonemas de jornalistas de jornais de Londres que diziam coisas como: ". Ouvimos dizer que você acabou de voltar da Índia com Malcolm Muggeridge e que você testemunhou um milagre"
Assim nascia uma estrela...

Capítulo 11: "O Selo humilde de sua origem": O começo corrupto da Religião
Não são os livros sagrados do monoteísmo oficial absolutamente encharcado de desejo material e com descrições - quase de dar água na boca- das riqueza de Salomão, das pastagens e rebanhos prósperos e bem sucedidos dos fiéis, as recompensas para um bom muçulmano no paraíso, para não falar de muitos, muitos contos sombrios de pilhagem e saque? Jesus, é verdade, não mostra nenhum interesse pessoal no ganho, mas ele fala de um tesouro no céu e até mesmo de "mansões" como um incentivo para segui-lo. Não é mais verdade que todas as religiões ao longo dos tempos têm mostrado um grande interesse no recolhimento de bens materiais no mundo real?

Capítulo 12: Um Epílogo: Como a Religião Acaba
Pode ser igualmente útil e instrutivo vislumbrar o encerramento de religiões ou movimentos religiosos. Os mileritas, por exemplo, não existem mais. E nós não ouviremos falar novamente, a não ser de forma vestigial e nostálgica, de Pan ou Osíris ou qualquer um dos milhares de deuses já escravizaram pessoas absolutamente.

Capítulo 13: A Religião Faz as Pessoas Comportarem-se Melhor?
A primeira coisa a ser dita é que o comportamento virtuoso de um crente não é prova da verdade de sua crença de forma alguma, não é nem mesmo um argumento a seu favor. Eu poderia, vamos imaginar, agir de forma mais caridosa se ​​eu acreditasse que Buda nasceu de uma fenda no lado de sua mãe. Mas isso não faria o meu impulso de caridade dependente de algo muito tênue? Da mesma forma, não digo que se eu pegar um sacerdote budista roubando todas as oferendas deixadas pelo povo simples em seu templo, o budismo é, assim, desacreditado. E esquecemos em qualquer caso, como tudo isto é contingente. Das milhares de religiões possíveis que haviam no deserto, assim como haviam milhões de espécies potenciais, um ramo criou raízes e cresceu. Passando por suas mutações judáicas até a sua forma cristã, que foi adotado por motivos políticos pelo Imperador Constantino, e transformada em uma fé oficial com (eventualmente) a forma codificada e aplicável ​​de seus muitos livros caóticos e contraditórios. Já para o Islã, ele se tornou a ideologia de uma conquista de grande sucesso que foi adotado por dinastias de sucesso, codificados e estabelecido por sua vez, e promulgado como lei da terra.

Capítulo 14: Não há Solução "Oriental"
A espécie humana é uma espécie animal sem muita variação dentro dela, e é ingênuo e inútil imaginar que uma viagem ao Tibete, por exemplo, vai revelar uma harmonia inteiramente diferente com a natureza ou com a eternidade. O Dalai Lama, por exemplo, é inteiramente e facilmente reconhecível para um secularista. Exatamente da mesma maneira como um príncipe medieval, ele faz a afirmação não só que o Tibete deve ser independente da hegemonia chinesa - uma solicitação aceitável - mas que ele próprio é um rei hereditário nomeado pelo próprio céu.Que conveniente! Seitas dissidentes dentro de sua fé são perseguidas; seu governo de um homem em um enclave indiano é absoluto, ele faz declarações absurdas sobre sexo e dieta e quando em suas viagens para Hollywood os principais doadores como Steven Segal e Richard Gere são ungidos com o status de "santos" dentro da religião budista. (Na verdade, mesmo Gere foi forçado a reclamar um pouco quando o Sr. Segal foi reconhecido como "tulku',ou "pessoa de alta iluminação". Deve ser chato ser derrotado em um leilão tão espiritual.)

Capítulo 15: Religião Como Um Pecado Original
Há, de fato, várias formas nas quais a religião não é apenas amoral, mas definitivamente imoral. E estas falhas e crimes não estão a ser encontradas no comportamento dos seus adeptos (que às vezes pode ser exemplar), mas em seus preceitos originais.

Capítulo 16: Seria a Religião Abuso de Menores
Como podemos saber quantas crianças tiveram suas vidas físicas e psicológicas irreparavelmente ​​mutiladas pela inoculação compulsória da fé? Isso é quase tão difícil de determinar como o número de sonhos e visões espirituais e religiosos e que se tornaram "verdade", que a fim de possuir ainda uma verificação real teria que ser medido contra todos os sonhos não registrados e esquecidos que não se realizaram. Mas podemos ter certeza de que a religião sempre exerceu sua influência sobre as mentes disformes e indefesas dos jovens, e tem feito grandes sacrifícios para certificar-se deste privilégio, fazendo alianças com os poderes seculares no mundo material.

Capítulo 17: Uma Objeção Antecipada: O último argumento contra o secularismo
Se eu não posso provar definitivamente que a utilidade da religião está no passado, e que seus livros fundamentais são fábulas transparentes, e que é uma imposição feita pelo homem, e que tem sido um inimigo da ciência e da investigação, e que tem subsiste em grande parte a mentiras e medos e foi cúmplice da ignorância e da culpa, bem como da escravidão, do genocídio, do racismo e da tirania, posso certamente afirmar que a religião está agora plenamente consciente dessas críticas. E também está plenamente consciente da evidência sempre crescente, sobre as origens do cosmo e da origem das espécies, coisas que ela tenta levar à marginalidade, se não tão somente à irrelevância.

Capítulo 18: Uma Tradição Melhor: A Resistência do Racional
É fato que alguns seres humanos sempre notaram a improbabilidade de Deus, o mal feito em seu nome, a probabilidade de que ele é feito pelo homem, e a disponibilidade de crenças alternativas menos prejudiciais e outras explicações. Não podemos saber os nomes de todos estes homens e mulheres,porque eles foram, em todos os tempos e todos os lugares, objetos de repressão implacável. Por motivo idêntico, nem podemos saber quantas pessoas ostensivamente devotas eram secretamente descrentes. No final dos séculos XVIII e XIX, em sociedades relativamente livres, como a Grã-Bretanha e os Estados Unidos, os incrédulos, mesmo seguros e prósperos como James Mill e Benjamin Franklin sentiram que seria aconselhável manter as suas opiniões privadas. Assim, quando lemos sobre as glórias da pintura "cristã" e da arquitetura, astronomia ou da medicina "islâmica", nós estamos falando sobre os avanços da civilização e da cultura (alguns deles previstos pelos astecas e chineses) que têm tanto a ver com "fé", como seus predecessores tinham a ver com sacrifício humano e imperialismo. E nós não temos meios de saber, exceto em alguns poucos casos especiais, quantos desses arquitetos e pintores e cientistas decidiram preservar seus pensamentos mais íntimos do escrutínio dos fiéis.

Capítulo 19: Conclusão: A Necessidade de uma nova iluminação
Acima de tudo, temos necessidade de uma iluminação renovada, que vai basear-se na proposição de que o estudo apropriado da humanidade é o homem e mulher. Este esclarecimento não vai precisar depender, como seus antecessores, dos avanços heroicos de poucas pessoas talentosas e extremamente corajosas. Está ao alcanço da pessoa comum. O estudo da literatura e da poesia, tanto para seu próprio bem como para as eternas perguntas éticas da qual eles tratam, agora podem facilmente derrubar o exame dos textos sagrados que foram provados ser corruptos e inventados. A busca da investigação científica desenfreada, e da disponibilidade de novas descobertas para as massas por fáceis meios eletrônicos, vai revolucionar nossos conceitos de pesquisa e desenvolvimento. Muito importante, o divórcio entre a vida sexual e o medo, e a vida sexual e as doenças,e a vida sexual e tirania, pode agora, finalmente, ser tentada, sob a única condição de que todas as religiões sejam banidas da questão. Tudo isto e muito mais está, pela primeira vez em nossa história, ao alcance de todos.

"Sangue nas mãos"


Senhores (as) líderes evangélicos, graça, paz e discernimento!

As eleições se avizinham, e boa parte dos pastores de nosso país tem manifestado seu apoio à candidatura de Jair Bolsonaro. A maioria alega ser ele o que melhor representa os anseios do povo evangélico, principalmente devido ao seu discurso favorável à família tradicional e aos valores morais tão caros ao cristianismo.

De repente, sinto-me como se houvesse viajado no tempo e revivesse os dias da guerra fria, quando o mundo se via ameaçado pela eclosão de uma guerra nuclear envolvendo as duas potências mundiais: A União Soviética e os Estados Unidos. Colegas vociferam de seus púlpitos sobre o perigo do comunismo que ronda a nossa sociedade. Pergunto-me em que mundo estamos vivendo, afinal? Qualquer um que levante sua voz a favor do pobre, do excluído, do oprimido, logo é tachado de esquerdopata, comunista, “agente do inferno”, e coisa parecida.

Os senhores já pararam para se perguntar sobre o que estaria por trás deste discurso ultraconservador? Há uma onda conservadora varrendo a Europa e os EUA, suscitando velhos rancores contra os imigrantes, os homossexuais, as minorias, a classe operária, etc.

No meio desta avalanche de intolerância, eis que uma voz destoante se faz ouvir mundo afora. Não de um pastor como foi nos dias de Luther King nos EUA, ou de Bonhoeffer na Alemanha, mas de um Papa, líder da instituição mais conservadora do mundo. Por ironia, justamente o primeiro Papa latino-americano se levanta contra tudo e contra todos os que insistem em ressuscitar um discurso que há décadas parecia ter sido abandonado e enterrado. Enquanto isso, a igreja evangélica, que por tanto tempo esteve na vanguarda na luta pelos direitos humanos passa a se aliar com o que há de mais retrógrado e ultrapassado. Que vergonha! Tudo em nome de nossos escrúpulos moralistas.

Conseguiram a façanha de diluir o puro Evangelho da graça num discurso de ódio e intolerância.

Esquecemo-nos dos colegas que foram perseguidos, torturados, e, alguns até mortos e desaparecidos, durante o regime militar. Justificamo-nos no fato de que o tal candidato defenda os mesmos valores. Será que ser a favor da tortura soa menos cruel quando se é contrário ao aborto? Será que ser a favor do armamento da população condiz com o que foi ensinado por Jesus? Afinal, bem-aventurados são os pacificadores ou os que pretendem armar a população? Ser pela família tradicional abona a conduta de quem se revela contrário aos direitos trabalhistas conquistados a duras penas? Se você, pastor, é contra tais direitos, recomendo que não aceite mais dízimos de décimo-terceiro ou de férias de seus membros.

Não ajamos como o profeta Natan que encorajou a Davi a construir o templo, afirmando-lhe categoricamente que Deus o havia escolhido para aquela empreitada. Porém, o Senhor não o tinha autorizado a fazer tal coisa, de modo que, mesmo constrangido, teve que retornar ao rei e dizer-lhe a verdade. Por causa do sangue que havia em suas mãos, Deus não o designou para edificar Sua casa, ainda que já houvesse levantado todos os recursos para tal, e recebido do Senhor a planta, caberia ao seu sucessor tocar a obra.

Quem somos nós para abençoar o que Deus não abençoou? Quem somos nós para encorajar o que contraria frontalmente a Sua vontade?

Sei que muitos alegarão que tudo não passa de manipulação da mídia esquerdista. Mas basta assistir aos inúmeros vídeos de discursos e entrevistas do candidato para verificar que exatamente assim que ele pensa. Ele mesmo afirma que o trabalhador terá que escolher entre ter seus direitos assegurados ou o emprego. Ele é quem diz com todas as letras que o Estado não é laico, mas cristão e que as minorias terão que se dobrar à vontade das maiorias. Ele diz que seria incapaz de amar um filho homossexual e que a homossexualidade é falta de p*rrada na infância. Diz que não empregaria uma mulher, já que esta engravida. Diz que educou seu filhos para que jamais namorassem negras. Diz que em seu governo os índios não receberiam nem mais um centímetro de terra. Se ele é a favor da família tradicional, por que disse que usava o apartamento para “comer gente”? Como defender quem diz que uma mulher não merecia ser estuprada por ser feia? Como apoiar quem defende o uso da tortura se somos seguidores de um Cristo torturado e morto numa cruz? Como apoiar quem diz que ordenaria que helicópteros metralhassem uma favela se os criminosos não se rendessem? Será que na favela só mora bandido? Com que cara visitaremos os presídios para pregar o amor de Cristo depois de apoiar que tem como slogan “bandido bom é bandido morto”?

O sangue de toda uma geração poderá cair em nossas mãos!

Se você é pastor de uma pequena congregação, talvez esteja indo na onda de grandes líderes que já manifestaram seu apoio a Bolsonaro. Não seja ingênuo. Muitos deles o fazem, não por convicção, mas por conveniência, movidos por interesses nem sempre louváveis (alguns até sórdidos).

Lembre-se de quem nos considerou fiéis, pondo-nos em seu ministério (1 Timóteo 1:12), e que um dia, teremos que prestar contas (Hebreus 13:17).

Por isso, deixo aqui uma recomendação que deveria perturbar o sono de todos os que levam a sério o ministério pastoral:

“Pastoreiem o rebanho de Deus que está aos seus cuidados. Olhem por ele, não por obrigação, mas de livre vontade, como Deus quer. Não façam isso por ganância, mas com o desejo de servir. Não ajam como dominadores dos que lhes foram confiados, mas como exemplos para o rebanho.” 1 Pedro 5:2,3

Não compete a pastor algum dizer em quem seu rebanho deve votar. Mas compete-nos instrui-los a reconhecer os riscos por trás de todo discurso de ódio e intolerância.

Jesus disse que enquanto o bom pastor dá a vida pelas ovelhas, o ladrão, ao ver o lobo, foge e deixa suas ovelhas à mercê do perigo. Portanto, cumpramos nosso papel. Pois cuidar das ovelhas que nos foram confiadas é a melhor maneira de dizer: TU SABES QUE TE AMO, SENHOR.

Hermes Carvalho Fernandes é pastor, escritor, conferencista e teólogo com doutorado em Ciências da Religião e editor do blog HermesFernandes.com
Fonte: Sangue nas mãos

Qual o sentido de um cristão apoiar a tortura?


A gente sempre acha que não dá mais para se surpreender, mas se surpreende. E até se assusta. Estou assustado com a maneira avassaladora como a “igreja brasileira” – usando um termo bastante impreciso para me referir a esse grande fenômeno de massa que ocupa enormes espaços na mídia, arrebanha multidões, e que tem um projeto claro de aparelhamento dos espaços de decisão, inclusive com representações nas câmaras, parlamentos e outros espaços da política nacional, como o Judiciário – vem dando mostras escancaradas de engajamento não apenas político, mas partidário.

Pois essa “igreja brasileira” – formada por uma salada infinita, que vai do fundamentalismo protestante e seus derivados, até as novíssimas igrejas pentecostais-neo-pós-tudo, e que se somam a um grande contingente de católicos (no plural mesmo, pois longe da uniformidade pensada, o Catolicismo se constitui de numerosíssimos movimentos que guardam entre si uma relação muito mais simbólica, posto que no campo das ideias e práticas são absurdamente diferentes, divergentes e contraditórios) – está se superando a cada dia que passa em seus malabarismos bíblico-teológicos para escancarar o seu apoio a um candidato que apoia abertamente a tortura e a eliminação de grupos divergentes. 

Qual o sentido de um cristão apoiar um candidato que se dizendo cristão, faz apologia à TORTURA??? 

Não há sentido bíblico, ao menos não à luz da pessoa e das obras do Jesus de Nazaré. Como combinar “Bandido bom é bandido morto” com o “Ouvistes o que foi dito: ‘Amarás o teu próximo e odiarás o teu inimigo’. Eu, porém, vos digo: Amai os vossos inimigos e orai pelos que vos perseguem” (Mt. 5:43-44)? Simplesmente não dá para “esticar” o texto para desdizer o óbvio ululante. Ou você apoia o candidato-torturador e abre mão de ser discípulo do nazareno, ou vice-versa. 

Não há, certamente, um sentido lógico. Minimamente uma reflexão lógica há de nos fazer refletir que, por exemplo, dois erros não fazem um acerto. Não é possível achar que por termos uma situação de violência vamos aumentar a violência para diminuir a violência. Não faz sentido.

Não há sentido ético. Se pensamos ética como uma busca pela realização humana, como é possível combiná-la com ideais de eliminação da diferença, imposição de uma moral estrita, e falta de respeito às diferenças? 

Resta o sentido histórico... Sim, talvez seja isso. Pois se lembrarmos que grandes porções dos “cristãos” ao longo da história apoiaram as Cruzadas, apoiaram a Inquisição, participaram das Guerras de Religião, da Caça às Bruxas, estiveram do lado de Hitler e de Mussolini, participaram e participam da “guerra contra o mal” empreendida pelo “gigante protestante” que são os EUA, matando com bombas e disfarçando com bíblias...

Sim, sim... Há um sentido histórico naqueles que cantam louvores ao Jesus, preso, torturado e morto como um bandido entre bandidos, mas que apoiam os torturadores e seus apoiadores de plantão. Talvez retorne aqui a frase de Nietzsche, que dizia lavar as mãos depois de apertar as mãos de um cristão. No caso atual, talvez seja por que essas mãos estão cobertas de sangue.

Joel Zeferino é pastor na Igreja Batista Nazareth