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O pentecostalismo sionista “made in USA”

O pentecostalismo sionista “made in USA” e o apoio às ilegalidades de Israel
"Derrotar o imperialismo em todas as suas formas é uma exigência da humanidade pelo respeito ao direito internacional e a pertença inalienável dos povos originários ao seu território ancestral", escreve Bruno Beaklini (Bruno Lima Rocha Beaklini), editor dos canais do Estratégia & Análise e militante socialista libertário de origem árabe-brasileiro, em artigo originalmente publicado por Monitor do Oriente Médio, 23-11-2020.

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Existe uma conta de chegada na política doméstica dos EUA que se dá na vitória ou derrota em alguns colégios eleitorais, a partir do chamado “cinturão bíblico”. Quase sempre a pregação moral, a mesma que alinha votos à direita do sistema político da Superpotência, aponta para a chamada “direita cristã”. Como cientista político de formação, considero mais preciso denominar “direita pentecostal” e, no tema desse artigo, mais especificamente “sionismo pentecostal”.

Não é apropriado associar diretamente um sistema de crenças de tipo religioso com um determinado posicionamento político. Isso seria algo próximo da apostasia e como tal é crime, combato esse tipo de afirmação com toda a veemência. Tampouco é correto relacionar toda a pregação protestante nos Estados Unidos com posições mais reacionárias. Durante os anos da grande industrialização, do início do sindicalismo massivo na década de 1880 até a consolidação do New Deal na segunda metade dos anos 1930, não foram poucos os pastores, ministros e ministras que se alinharam junto à classe trabalhadora e lutaram ombro a ombro por melhores condições de vida e direitos sociais. Talvez o exemplo mais evidente seja a luta dos mineiros do carvão e suas famílias, combinando um sindicalismo classista de resistência e a congregação religiosa como abrigo e guarida para uma vida, ou mesmo uma sobrevivência mais coletiva, e muito solidária.

O exemplo ganha contornos épicos com a Congregação das Igrejas Batistas do Sul e o papel de destaque das lideranças religiosas afro-americanas, a começar pelo próprio Dr. Martin Luther King Jr, à frente da Conferência de Lideranças Cristãs do Sul (SCLC). Ele, junto ao islamizado Malcolm X, são as maiores referências de intelectuais e pregadores afro-americanos dos EUA no século XX. Infelizmente, os supremacistas brancos profanam a cruz do profeta Issa (Jesus Cristo, portanto, o crucificado) e se utilizam de simbologia “cristã” para pregar justamente o oposto do realizado pelo Messias, quando enfrentou o imperialismo de seu tempo e de peito aberto. O mau exemplo é abundante.

Fundado no ano de 2015, o museu dos “cristãos sionistas” – Friends of Zion foi fruto de uma aliança entre o republicano Mike David Evans e a elite dirigente do Estado de Israel, incluindo Menahem Begin (o próprio), o terrorista da Irgun que virou primeiro ministro do Estado Colonial. Evans foi um dos proeminentes “assessores pentecostais” do derrotado Donald Trump. Mas não para por aí.


A poderosa rede International Fellowship of Christians and Jews envia um volume considerável de recursos para Israel, assim como promove imigração de famílias judaicas, sempre contrapondo o permanente desequilíbrio demográfico. Nas partes mais importantes do portal, não se observa nada da tradição humanista da esquerda judaica (não sionista), tampouco abordam o problema da extrema direita que sempre flerta com o nazi-fascismo. Outra “curiosa” coincidência.

Segundo o canal Vice, o alinhamento das congregações do chamado “cinturão bíblico” com Israel é de hegemonia absoluta, o que inclui um volume importante de recursos destinados aos assentamentos na Cisjordânia. Ou seja, em nome de algum tipo de leitura fundamentalista do Velho Testamento, empresas cujo negócio é arrecadar recursos em espécie de pessoas necessitadas, destinam parte desta verba para construções que são ilegais, perante o direito internacional, e vão de encontro a várias resoluções da ONU, a começar pela Resolução 242 que, em “tese”, obrigaria Tel Aviv a devolver os Territórios Ocupados na Naksa, em 1967. Alguém viu uma “expedição de capacetes azuis” desembarcando no litoral da Palestina Ocupada em 1948? Alguém foi informado de um “bloqueio econômico” de vulto ou uma “ação conjunta” sequer parecida com as condenações da África do Sul no período do Apartheid? Suponho que não, pois isso jamais existiu.


E tem mais. John Hagee é um pastor que coordena excursões para Israel e apoia os assentamentos ilegais na Cisjordânia. Também é líder da congregação protestante de teleevangelistas e ganhador de uma medalha dos “Friends of Zion” - inclusive afirma, na seção de “sistema de crenças”, um compromisso com Israel. A razão alegada é milenarista, como afirmado abaixo através de ampla pesquisa. Hagee diz que: “Cremos na promessa de Gênesis 12: 3 a respeito do povo judeu e da nação de Israel. Acreditamos que os cristãos devem abençoar e confortar Israel e o povo judeu. Os crentes têm um mandato bíblico para combater o anti-semitismo e falar em defesa de Israel e dos escolhidos.”


Suponho que para tais cidadãos estadunidenses, essa interpretação do Velho Testamento tenha mais “validade” do que as 850 mil pessoas que foram deportadas, expulsas de suas terras onde residem a tanto ou mais tempo do que a frase no Gênesis. Além da Nakba, como se fosse pouco, os cerca de 13% de árabes-palestinos de fé cristã, resultando em distintas comunidades simplesmente seriam simplesmente “irrelevantes”.

Curioso que um pouco mais abaixo do mesmo texto, afirma-se em Genesis 12:6: “E passou Abrão por aquela terra até ao lugar de Siquém, até ao carvalho de Moré; e estavam então os cananeus na terra.” Não entro no mérito dos sistemas de crenças e valores religiosos, mas tomando em conta o fenômeno histórico, o povo palestino sempre esteve lá e combateu o mesmo imperialismo. Enfim, nada justifica, a não ser que a propaganda milenarista ultrapasse o direito internacional. Daí para uma teoria “globalista” ou outras extravagâncias ao estilo de Steve Bannon e Alexander Dugin não falta nada.


É importante observar esta interpretação do historiador Walker Robins:
“Os Batistas do Sul viam amplamente a Palestina com olhos orientalistas, associando o movimento sionista à civilização ocidental, modernidade e progresso contra os árabes da Palestina, que eles viam como incivilizados, pré-modernos e atrasados. Essa visão era compartilhada por viajantes batistas, por missionários, por pré-milenaristas e por seus oponentes.”
Infelizmente, nada disso é “novidade” e é uma evidência na relação para-estatal de diplomacia pública, que realiza uma aliança direta através de enlaces do Ministério de Assuntos Estratégicos de Israel e as maiores congregações do cinturão bíblico. O jornal israelense Haaretz fez uma boa investigação a respeito, assim como a Al Jazeera, em inglês, corretamente afirma que:
“Como resultado de tais crenças, os sionistas cristãos apoiam o empreendimento de colonatos ilegais de Israel na Cisjordânia e, de facto, qualquer outra política - israelense, americana ou outra - que assegure a soberania judaica israelense sobre a terra desde o Mar Mediterrâneo até ao rio Jordão e mesmo mais além, até à margem oriental da Jordânia”. E termina reiterando que “Os sionistas cristãos geralmente ignoram as violações dos direitos palestinos por Israel, mesmo dos palestinos cristãos, ou as veem como um meio necessário para um fim.” (no mesmo link acima).
Considerando que 80% dos chamados evangélicos dos EUA (de um total de 70 milhões), com especial ênfase os pentecostais teleevangelistas, apoiam incondicionalmente o Estado de Israel, ignoram o Apartheid Colonial e a invasão de territórios soberanos dos países vizinhos, para além do lobby do AIPAC, existe uma demanda doméstica bem à direita, com crenças milenaristas e motivações imperiais para seu aliado estratégico.


Não me espanta. As Treze Colônias, quando unificadas, formadas por convencionais escravagistas, autoproclamaram o Destino Manifesto. Assim, romperam seguidos acordos e tratados com nações indígenas, forçaram duas guerras contra o México e terminaram por roubar metade do território do país vizinho. Era de se supor que a hegemonia da direita milenarista defenda quem faça no Oriente Médio o que os Estados Unidos fizeram no continente americano: expansionismo territorial, genocídio indígena, apartheid ou segregação e conquistas imperialistas como em Porto Rico, Filipinas e Havaí.

Derrotar o imperialismo em todas as suas formas é uma exigência da humanidade pelo respeito ao direito internacional e a pertença inalienável dos povos originários ao seu território ancestral.


Sionismo cristão e dispensacionalismo

 

O dispensacionalismo do sionismo cristão estadunidense
 A fim de compreender como se deu a fundação e fortalecimento do sionismo cristão norte-americano e suas diretas implicações na construção do movimento evangélico brasileiro – em especial, pentecostal e neopentecostal -, faz-se necessário analisar o papel central do dispensacionalismo. Charles C. Ryrie, importante teólogo norte-americano, busca em um de seus livros definir essa corrente. De início, é necessário compreender o que é uma dispensação. O autor parte de uma definição superficial adotada por muitos críticos e, também, adeptos ao dispensacionalismo; dispensação seria um período de tempo no qual Deus testa a obediência do Homem em relação a alguma revelação. O autor, entretanto, discorda que a concepção de uma dispensação deva ser atrelada a uma era, ou a um período de tempo determinado. No lugar, deve ser entendido como um acordo em que a administração da obra divina – a Terra, um reino, uma locação específica - é dada ao Homem com um objetivo, com a intenção de gerar uma revelação. Tempo e acordo coincidem cronologicamente, mas o que constitui a dispensação é o tipo e objetivo do acordo, e não sua periodicidade. O autor cita, ainda, que a descrição de uma dispensação envolve: uma revelação distinta, a responsabilidade dada ao Homem, os teste aplicados, o fracasso humano e o julgamento divino. Todas as dispensações da Bíblia possuem essas características (RYRIE, 1995). 

Essa hermenêutica bíblica entende que há sete dispensações na Bíblia: (1) a da Inocência, na qual Adão falha em suas tarefas de manter o Jardim do Éden, livre de pecado, e cede ao comer o fruto proibido; (2) a da Consciência, no qual o Homem deveria se comunicar com Deus por meio de sacrifícios de sangue, que não foram cumpridos por Caim (e outros) e trouxeram o homicídio ao mundo; (3) a do Governo Civil, no qual os humanos fracassaram em seguir a ordem divina de espalhar a população pelo planeta após o Dilúvio e decidiram, no lugar, construir a Torre de Babel; (4) a da Promessa, no qual o povo de Abraão deveria permanecer na Terra Prometida; (5) a do Quadro Legal, no qual o Homem era responsável por manter uma ordem jurídica justa, mas acabou levando à Crucificação injusta de Jesus Cristo; (6) a da Graça, na qual o Homem deve aceitar o caminho da Graça Divina e aqueles que o rejeitarem serão julgados com a segunda vinda de Cristo; e, por fim, (7) a dispensação do Milênio, na qual Jesus Cristo governará um reino de paz por mil anos, enquanto o Satanás permanece amarrado e a desobediência eliminada (RYRIE, 1995). Apesar de ser possível encontrar autores que discordem dessa divisão de sete dispensações, a tese de Ryrie é vastamente predominante. 

Ryrie (1995) exalta o caráter literal da hermenêutica bíblica proposta pelos dispensacionalistas. O autor ressalta como outras teorias, como a Teologia da Aliança (que será abordada em seções posteriores), se valem de interpretações não literais, marcadas por entendimentos subjetivos, que fogem à gramática. O autor defende que o dispensacionalismo é a única teologia que fornece um quadro consistente e objetivo de análise e leitura da Bíblia, por meio de sua interpretação literal; isso já prenuncia o caráter restritivo e limitante oferecido pelo dispensacionalismo para interpretação da realidade, dado que o texto bíblico deve ser interpretado sempre em sua literalidade. À luz desse entendimento, um dispensacionalista entende que Jerusalém e, por consequência, Israel são os lugares dos quais Jesus Cristo governará seu reino de mil anos de paz após seu retorno e, em razão disso, devem ser protegidos, para que essa visão teológica profética possa concretizar-se. 

O dispensacionalismo forma o sionismo cristão norte-americano. Wachholz e Reinke (2020) compreendem que o processo de formação do sionismo cristão alimentado pelo dispensacionalismo tem forte impulso nos Estados Unidos da América por algumas razões: 
“É bastante possível que o dispensacionalismo tenha tido ampla aceitação [...] justamente pela sua defesa da Bíblia em uma época em que sua autoridade era questionada pelo modernismo teológico. Além disso, os dispensacionalistas defendiam que qualquer cristão podia ler e interpretar as Escrituras sem a necessidade dos especialistas da academia teológica (WEBER, 2005, p.36- 39). [...] Blackstone criou o mito fundador do sionismo cristão dos Estados Unidos da América ao combinar a crença messiânica com a história nacional no seu mais profundo senso patriótico: para ele, o Estado norte-americano deveria desempenhar papel que Ciro teve na restauração dos judeus a Sião, pois Deus teria escolhido os puritanos pela sua superioridade moral.” (WACHHOLZ; REINKE, 2020) 

A tese defendida no trecho pelos autores reforça o caráter político que sionismo cristão e, especialmente, o dispensacionalismo possuem. A doutrina dispensacionalista ganha seu primeiro forte impulso com a criação do Estado de Israel em 1948, tendo sua completa popularização alcançada após a vitória israelense na Guerra dos Seis Dias. A cultura norteamericana começou a propagar uma espécie de discurso sobrenatural e profético, que atingiu inúmeros setores da sociedade e disseminou as concepções dispensacionalistas. Desde então, houve uma mobilização política de teólogos, religiosos e escritores para que o Estado de Israel fosse protegido e benquisto por aqueles que governam os EUA (WACHHOLZ; REINKE, 2020). 

Apesar do foco primário da literatura sobre sionismo cristão ressaltar o papel do dispensacionalismo, existem outras correntes. Em seu trabalho de mapeamento da expansão do capital político e social do evangélicos no Estados Unidos da América, Amstutz (2013) mapeia pelo menos outras duas narrativas evangélicas de apoio ao povo judeu. A primeira narrativa, a Teologia da Substituição (Replacement Theology), defende que a partir do advento de Jesus Cristo o povo judeu deixa de ser a prioridade e o povo a ser protegido nos planos divinos – substituídos pelo povo cristão. Originada por Santo Agostinho, não é tão relevante atualmente. As críticas contemporâneas se concentram no fato de que essa teologia é exacerbadamente focada na vida e morte de Jesus Cristo, sem considerar as bases morais judaicas do Cristianismo. Com foco em Cristo, a narrativa também perde força ao negligenciar ensinamentos presentes no Velho Testamento (AMSTUTZ, 2013, p. 121). 

A segunda narrativa a ser abordada é a Teologia da Aliança (Covenant Theology). Com origem com João Calvino, teólogo fundador do Calvinismo e central no Protestantismo, essa narrativa entende que há duas alianças distintas, mas interdependentes: a do Velho Testamento, conhecida como “Aliança da Lei”; a segunda, presente no Novo Testamento, conhecida como “Aliança da Graça”. Judeus e cristãos são partes plenas no plano de Deus, estando ambos dentro da Salvação (AMSTUTZ, 2013, p. 122). 

Por fim, o Dispensacionalismo. O autor defende que esta corrente não é a predominante entre os líderes evangélicos, diferente de outras literaturas sobre o tema. Ainda assim, reconhece o papel que esta corrente ocupa na mídia e seu impacto na interpretação evangélica sobre política internacional. O autor ressalta que sob o Dispensacionalismo, a Bíblia deve ser lida literalmente: a defesa do Estado de Israel é necessária dado que a criação deste é uma das etapas para a volta de Jesus Cristo à Terra. Sua crítica reside no fato de que essa leitura literal é simplista e não permite análises complexas sobre os conflitos atuais no Oriente Médio (AMSTUTZ, 2013, p. 123). 

Diante do exposto, entende-se que, para o cenário brasileiro – enraizado no estadunidense – sionismo cristão e dispensacionalismo são conceitos inseparáveis. Se nos EUA o dispensacionalismo teve força ao ser associado à crença de um povo prometido, bem próximo dos valores do Destino Manifesto, no Brasil sua tração se origina nas visões proféticas e apocalípticas adotadas pelas igrejas protestantes. A hermenêutica literal do dispensacionalismo fornece aos crentes e intérpretes um framework rígido, em que as respostas já estão dadas e possuem tanta simbologia subjetiva. Essa característica estimula que o apoio ao Estado de Israel se dê por razões puramente religiosas, sem levar em consideração outros fatores implicados no Oriente Médio.

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In: Miguel Filizola PizaSionismo cristão e dispensacionalismo: como estes fenômenos norteiam as relações entre grupos evangélicos, o governo de Jair Bolsonaro e política externa brasileira (2022)
Fonte: https://bdta.abcd.usp.br/directbitstream/7d8de9fb-aa21-4b10-b096-0222ae4c0dd0/TCC%20-%20Miguel%20Filizola%20Piz...

Palestina: o Holocausto dos Filhos de Ismael

Nota: Artigo escrito pelo bispo Robinson Cavalcanti para a revista Ultimato 194, em 1988. O mesmo texto também foi publicado no livro “A Utopia Possível”, em 1993. Foi bispo anglicano da Diocese do Recife e autor de, entre outros, Cristianismo e Política — teoria bíblica e prática histórica e A Igreja, o País e o Mundo — desafios a uma fé engajada. Faleceu no dia 26 de fevereiro de 2012 em Olinda (PE).


O mundo tem assistido consternado às cenas de violência envolvendo tropas israelenses e civis palestinos nos territórios ocupados. A brutalidade mostrada pela televisão causa perplexidade em muitos cristãos expostos, por tantos anos, a uma visão unilateral sempre favorável à causa sionista: os bons judeus versus os maus árabes.

Como é sabido, com a Guerra dos Seis Dias (1967), Israel anexa a Faixa de Gaza, a Cisjordânia e Jerusalém Oriental, onde vivem mais de um milhão de palestinos. Essas regiões permanecem sob governo militar e lei marcial, com seus habitantes sujeitos a condições subumanas, privados de direitos e transformados em mão de obra barata, como os guetos negros da África do Sul. Qualquer pessoa pode ser detida sem justificativa e por tempo indeterminado, sem poder ver o seu advogado. Todos são suspeitos do crime de querer se ver livres dos seus ocupantes. Segundo a Cruz Vermelha e a Anistia Internacional, o uso de torturas é uma prática habitual, e os presos são julgados por tribunais militares judeus. Ao mesmo tempo, grupos extremistas, como o Gush Emunin, vão erigindo, à força, povoamentos israelitas.

Enquanto isso, o Estado de Israel propriamente dito é uma sociedade estratificada e desigual, onde a minoria de judeus brancos askhenazitas detêm o controle do governo e da economia, com a massa dos judeus morenos sefarditas inferiorizada e discriminada e os árabes e drusos como cidadãos de terceira classe.

Não podemos esquecer que o sionismo significou um revés para a Igreja Cristã naquela região. Em 1948, 50% da população de Jerusalém era cristã, bem como 90% da população de Belém. O Patriarcado Ortodoxo Grego de Jerusalém data de 451 d.C. Discriminados como cristãos e perseguidos como árabes, a maioria dos cristãos deixou o país, não restando hoje mais do que 10%. Desde 1967, 100.000 cristãos árabes emigraram. A postura unilateralmente pró Israel dos cristãos ocidentais é um obstáculo à evangelização dos árabes e deixa em situação difícil os cristãos locais.

A História registra que o pró judaísmo entre os cristãos está ligado à figura do teólogo inglês dispensacionalista John Nelson Darby (1800 82) e à disseminação da Bíblia comentada Scofield. Em 1876, foi realizada a Conferência de Niágara sobre as Profecias, com forte influência sobre os Bible College. Por um literalismo, procurou se defender um direito divino dos judeus às terras palestinas, a qualquer preço. São esses protestantes que dão as bases bíblicas para o sionismo (esse originalmente secular e nacionalista, humanista e socialista). Isso é algo totalmente estranho ao pensamento evangélico do século XVI, que nem era pré-milenista nem dispensacionalista. Lutero e Calvino tomariam um susto com essas interpretações.

O Dr. Marvin Wilson, do Gordon College, denuncia que os fins não justificam os meios, que o Israel de hoje nem é uma teocracia nem o Reino de Deus, e que não pode ser julgado por outro padrão de moralidade diferente das outras nações. Para o Dr. Anthony Compolo, do Easton College, o dispensacionalismo nos fez entusiastas do desalojamento dos palestinos e indiferentes às injustiças praticadas contra aquele povo. E o Dr. Wesley Brown, presidente do Seminário Batista Americano do Oeste, na Califórnia, afirma que Deus está ao lado dos oprimidos, e no caso do conflito árabe israelense não há dúvida de que os palestinos árabes são os oprimidos, e que a maioria das interpretações dispensacionalistas é amplamente baseada numa hermenêutica inválida.

Quanto ao terrorismo palestino, é bom lembrar que Israel foi construído à base do terrorismo judeu contra os ocupantes ingleses e as populações árabes. Segundo o historiador menonita canadense Dr. Frank Epp, quatro ex Primeiros-Ministros israelenses estiveram envolvidos pessoalmente em atividades guerrilheiras ou militares para a expulsão dos palestinos. Menahem Begin (depois Prêmio Nobel da Paz), em seus verdes anos, escreveu um livro defendendo a ação terrorista e foi responsável, em 1948, pelo massacre da vila árabe de Deir Yassin, quando morreram 250 homens, mulheres e crianças. Sua organização, o Irgun, bem como a Haganah (fundada em 1920) e a Palmach, foram responsáveis por inúmeros massacres contra civis (vide Hotel Rei Davi).

Por séculos, árabes mulçumanos, cristãos, judeus e drusos viveram harmoniosamente na região, antes do retorno em massa dos judeus louros, eslavos e germânicos (estranhos para a paisagem humana da região) que migraram em massa para a Palestina em virtude do sionismo. Em 1948, a ONU concede a 1/3 de judeus o direito de mandar em 2/3 de árabes.

Não devemos temer a defesa da justiça com medo de sermos acusados de antissemitas. Os cristãos sentem a consciência culpada do antissemitismo da Inquisição e do Nazismo, sentem simpatia pelos “kibutsin” e pelos “moshavim”, mas não podem negar sua soteriologia histórica, que nos ensina que só há um caminho para Deus inclusive para os judeus que é Jesus Cristo, e que o Povo de Deus hoje é o Corpo de Cristo, a Igreja, chamada a exercer um ministério de reconciliação e a lutar pelos valores do Reino.

Não podemos sucumbir à tentação militarista e intolerante, genocida dos judeus, nem nos esquecer que os árabes também são filhos de Abraão, sob promessa de bênção de Deus, e que ali está presente a maior parte dos cristãos, nossos irmãos. Por dois Estados soberanos: Israel e Palestina. Por um estatuto internacional para Jerusalém.


Árabes, Israel e os prejuízos do dispensacionalismo cristão

As ramificações do pensamento dispensacionalista e a ausência de paz no Oriente Médio


O dispensacionalismo é um sistema teológico bastante criticado pelos que não o aceitam. Não obstante muitos evangélicos, especialmente nos Estados Unidos, mas também no Brasil e em outras partes do mundo, ou são dispensacionalistas ou são influenciados por suas vertentes, mesmo que não conheçam a palavra ou o seu conceito.

Este artigo não é escrito com a intenção de analisar se o dispensacionalismo é ou não resultado de uma hermenêutica correta, nem defender a perspectiva no outro extremo do espectro teológico, a saber, a Teologia da Aliança. Nem espero que os dispensacionalistas mudem suas convicções. Afinal, trata-se de uma escola de pensamento, uma entre muitas. O que pretendo apresentar são os efeitos da teologia dispensacional e seus subprodutos: (a) na política do mundo e do Oriente Médio, (b) na vida da Igreja no Oriente Médio e (c) no pensamento e prática missiológica da Igreja Ocidental, de modo que os que têm um ponto de vista influenciado pelo dispensacionalismo possam minimamente considerar se não há uma maneira bíblica de evitar a dor que, direta ou indiretamente, está sendo causada a milhões de pessoas no Oriente Médio e nos seus arredores.

Minha esperança também é a de que este artigo influencie, mesmo que de forma modesta, a Igreja Brasileira e seu esforço missionário no mundo muçulmano em geral, e no Oriente Médio em particular.

Todavia, é necessário apresentar uma ressalva importante antes de desenvolver o tema. Veremos, na sequência, alguns fatos lamentáveis que aconteceram nas últimas décadas por conta da iniciativa de evangélicos com influências dispensacionalistas, especialmente nos Estados Unidos. É de suma importância levar em conta que a popularização e ampla disseminação do dispensacionalismo se apoia em um forte sistema, que envolve um grande número de pessoas e da mídia. Seu avanço tomou proporções gigantescas. Tornou-se quase impossível falar a respeito de uma única versão de dispensacionalismo. Como consequência, nem todos os dispensacionalistas clássicos estão necessariamente de acordo com tudo que se desenvolveu ao redor desse sistema teológico, nem com tudo que tem sido dito e feito como resultado de convicções escatológicas encontradas em ambientes teológicos influenciados por essa abordagem.

Outrossim, é importante ressaltar que nem sempre é clara a distinção feita entre os diferentes conceitos (dispensacionalismo pré-milenista e pré-tribulacionista, restauracionismo, sionismo cristão, dispensacionalismo radical e até mesmo o cristianismo evangélico). Nas próximas linhas os termos podem ser usados de modo intercambiável.

Também vale dizer, já de início, que eu estou totalmente de acordo com o direito de o povo judeu ter o seu lar na Palestina, apesar de não concordar com a forma que o moderno Estado de Israel tem atuado em relação ao povo árabe palestino, que habita há mais de mil anos na “Terra Prometida”. Finalmente, é importante esclarecer que as opiniões expressadas neste artigo são de minha responsabilidade, e não representam, necessariamente, a opinião das organizações cristãs com as quais estou envolvido.

DEFININDO O DISPENSACIONALISMO
As principais características do que veio a ser definido como dispensacionalismo clássico, ou normativo1 (que inclui as posições pré-milenista e pré-tribulacionista2) desenvolveram-se no decorrer de anos, e ainda que haja discordâncias, o conceito pode ser sumarizado da seguinte maneira:

1. Deus em sua soberania decidiu que a revelação e a execução de seu plano para a humanidade aconteceriam através de diferentes dispensações, introduzidas por Deus mesmo, em diferentes épocas. Uma dispensação pode ser concisamente definida como “uma economia3 discernível na execução do plano de Deus”4 que pode “prevalecer em uma época especial”, mas “não necessariamente em outra”5. Os dispensacionalistas nem sempre estão de acordo sobre quantas são as dispensações, mas a maioria parece crer em sete.6 7 Eles entendem que o alvo da história é “o estabelecimento do reino milenar na terra […]”.8

2. Os judeus continuam sendo entendidos como o povo escolhido de Deus que irá desfrutar na terra as promessas ainda não cumpridas do Antigo Testamento9. Por conseguinte, a primeira das três condições sine qua non (ou a primeira das “pedras angulares”) do dispensacionalismo é a descontinuidade clara entre Israel e a Igreja. A Igreja está limitada apenas à presente era. Os judeus, enquanto nação, não pertencem ao mesmo grupo em que está a igreja, ou os gentios. Os que pertencem à igreja são diferentes dos santos que morreram antes de Cristo ou dos de uma dispensação futura. A Igreja do Novo Testamento não é o “Israel nacional”. Logo, não é o cumprimento das promessas dadas a esta nação. Deus tem seu povo redimido no decorrer das eras. Entretanto, o dispensacionalismo nega fortemente que isto constitui um mesmo povo. Eles creem nos “povos” de Deus.10 Para os dispensacionalistas, “a doutrina dos dois povos… deve ser sustentada eternamente […]”.11 Conforme Chafer, um grande defensor do dispensacionalismo,

É tão ilógico e enganoso argumentar que o judaísmo e o cristianismo irão se fundir como discutir que o céu e a terra deixarão de existir como esferas separadas. O dispensacionalismo tem sua base e é entendido na distinção entre judaísmo e cristianismo.12

O dispensacionalista crê que através das eras Deus está executando dois propósitos distintos: um relacionado à terra com pessoas terrenas e pautados por objetivos terrenos, que é o judaísmo, enquanto o outro está relacionado ao céu com pessoas celestiais e está envolvido com objetivos celestiais, que é o cristianismo […].13

3. Quando a atual dispensação (conhecida como Dispensação da Graça ou Era da Igreja) acabar, o “arrebatamento”14 irá acontecer. Jesus chamará os crentes, o que incluirá os santos ressuscitados de dispensações passadas e os vivos da dispensação presente, para o encontro com ele nos ares15. Eles adquirirão um corpo celestial e viverão no céu com Jesus.

4. O arrebatamento marcará o início da Grande Tribulação, um período de sete anos no qual o anticristo se manifestará e “conseguirá estabelecer-se firmemente na Palestina como um líder religioso e politico”.16 Durante esse tempo o terceiro templo será reconstruído em Jerusalém e o povo judeu mais uma vez viverá de acordo com a Lei Mosaica17.

5. Ao final dos sete anos da tribulação haverá a grande batalha do Armagedom, quando as nações se reunirão para combater Israel.

6. Nesse momento Jesus voltará para defender Israel, derrotar o anticristo e amarrar Satanás por mil anos.

7. É aí então que a última dispensação, o Milênio, terá lugar:

a) Será um período que durará literalmente mil anos e Jesus reinará sobre toda a terra18. Seu trono será em Jerusalém.

b) Imediatamente antes do início deste período os judeus de todos os cantos do mundo serão regenerados e restaurados, e retornarão à terra de Israel 19 20. Judeus e gentios serão “julgados para assegurar que apenas os que creem entrarão no reino.”21

c) De acordo com alguns dispensacionalistas, durante esse tempo os que foram arrebatados antes do início da Grande Tribulação terão retornado com Jesus em corpos glorificados e reinarão com ele. Assim, de acordo com essa perspectiva dispensacionalista, durante o Milênio haverá na terra pessoas com corpos celestiais e aqueles (judeus e gentios que sobreviveram à Grande Tribulação) com corpos terrestres 22 23. Outros, como Dwight Pentecost, são da opinião que durante o Milênio apenas os sobreviventes da Grande Tribulação estarão na terra, com seus corpos físicos, e viverão sob o senhorio de Jesus.24

d) Devido ao fato que os dispensacionalistas enfatizam grandemente a necessidade de utilizar uma interpretação da Bíblia que seja “literal, plena, normal ou histórico-gramatical”25 26 e para que a “igreja não roube as bênçãos de Israel”27, será durante o Milênio que as promessas parcialmente cumpridas ou ainda não cumpridas do Antigo Testamento (especialmente aquelas concernentes à Aliança Davídica, a posse incondicional e permanente da terra e suas fronteiras geográficas) serão completamente cumpridas e a nação de Israel finalmente terá sua plena extensão,28 que será “[…] do rio do Egito ao grande rio, o rio Eufrates […].”29 30. Outra promessa a ser cumprida durante o Milênio é Jeremias 31.31-34, que menciona que a lei de Deus será gravada nos corações dos judeus.

e) No final do Milênio Satanás será liberto por pouco tempo e haverá um tempo de rebelião31. Entretanto, Jesus triunfará.

f) Quando o Milênio acabar haverá um novo céu e uma nova terra. Não haverá necessidade de um templo, porque Deus mesmo será o santuário.

Se formos resumir esse sumário em poucas palavras provavelmente não haverá melhor maneira que citar Hal Lindsay, um dos mais importantes popularizadores do dispensacionalismo do século 20:
“Crucial para uma leitura dispensacionalista da profecia bíblica é a convicção que o período da tribulação é iminente, juntamente com o arrebatamento secreto da igreja e a reconstrução do templo judeu no lugar do, ou ao lado do Domo da Rocha. Isto assinalará o retorno do Senhor para restaurar o reino a Israel, centrado em Jerusalém. Esse evento pivotal também é entendido como o gatilho para o início da Guerra do Armagedom, na qual grande parte da população do mundo, juntamente com muitos judeus, irão sofrer e morrer”.32

Os evangélicos e o Estado de Israel


Desde o recrudescimento dos ataques do Estado de Israel a Gaza, no dia 7 de outubro, sob a justificativa de retaliação à ação de resistência armada contra a ocupação, chama a atenção, inclusive no Brasil, a defesa do Estado sionista por amplos setores evangélicos. Por que segmentos cristãos que, do ponto de vista religioso, em tese, compartilham de uma visão mais próxima do islamismo (o Islã, ao contrário do judaísmo, reconhece e reverencia a figura de Jesus Cristo como profeta), se alinham de forma tão incondicional ao Estado israelense?

Trata-se de uma história ao mesmo tempo antiga e recente. Uma construção ideológica de séculos que ganhou força e uma nova roupagem com o fortalecimento da extrema direita nos últimos anos. E que de “espiritual”, como veremos, não tem absolutamente nada.

Cristianismo e sionismo
A identificação entre protestantismo e o que viria a ser o sionismo, ou seja, a ideia de que o povo judeu deveria retornar à Palestina histórica, remonta ainda aos primeiros anos da Reforma Protestante. Um clérigo inglês do século XVI, Thomas Brightman, afirmava que os judeus deveriam “retornar a Jerusalém outra vez”, já que “os profetas de todos os cantos confirmam e falam sobre isso”.

Por trás dessa ideia estava uma leitura peculiar do evangelho, especificamente da escatologia cristã, que previa o retorno dos judeus à terra prometida, a reconstrução do Templo de Salomão (destruído pelos babilônicos e romanos), preparando a segunda vinda de Cristo e finalmente a conversão dos judeus ao cristianismo. Essa doutrina seria chamada mais tarde de “dispensacionalismo”. Trata-se de uma visão que pressupõe o abandono da fé judaica para o cumprimento das profecias, o que muitos judeus, não sem razão, tacham de antissemitismo.

Essa ideia se tornou uma força prática no século XIX com o movimento Templo Alemão Pietista, originado do luteranismo. Dois clérigos alemães, Christoph Hoffman e Georg David Hardegg, fundaram a Sociedade de Templer em 1861, com a ideia de colonizar a Palestina por meio de assentamentos. Com o apoio da Corte na Prússia e de teólogos anglicanos da Grã-Bretanha, instalaram o primeiro assentamento em Haifa ainda em 1866, espalhando-se pela região. Bem antes, portanto, de Theodor Herzl lançar o sionismo como corrente política e ideológica no congresso de 1897.

Os “templadores”, que acabariam sendo expulsos após a fundação do Estado de Israel, em 1948, tiveram seus métodos de instalação de assentamentos de povoação imitados pelas primeiras levas de sionistas, entre o final do século XIX e o começo do século XX, com forte apoio britânico. Para a Inglaterra, era estratégico fortalecer sua posição na região, ainda sob domínio Otomano.

Evidentemente, os primeiros sionistas não eram motivados por essa doutrina oriunda do protestantismo. Aliás, se o sionismo no século XIX, enquanto ideologia que advogava a construção de uma nação judaica, não era uma força majoritária entre os judeus – rivalizando com os que defendiam a completa integração dos judeus a seus respectivos países (ainda que mantendo certas tradições e a religiosidade) –, mesmo entre os sionistas, o sionismo religioso que defendia a volta a Jerusalém, tampouco predominava. Tanto que se cogitavam regiões como Bariloche, na Argentina, ou Uganda, na África.

A escolha pela Palestina e a construção do mito do retorno dos judeus à terra que teria sido prometida a eles teve como objetivo cerrar fileiras com Estados e atrair a simpatia e a defesa de amplos segmentos religiosos cristãos mundo afora. Para isso, tornou-se essencial a consolidação de outro mito: o de que os atuais judeus descendem diretamente do povo hebreu do Velho Testamento (ou da Torá).

Um mito funcional
Há muitos estudos e debates sobre a origem dos povos que se autointitulam judeus, principalmente após a publicação da obra de Shlomo Sand, A invenção do povo judeu (2008). O autor retoma estudos de Arthur Koestler que, em 1976, publicou o livro A décima terceira tribo, no qual afirma que os judeus são, na verdade, descendentes dos tzares, do Cáucaso, convertidos no século VIII. Essa versão é aceita por muitos pesquisadores sérios.

O historiador israelense Illan Pappé relativiza esse debate afirmando que “os povos têm o direito de se inventarem, como fizeram tantos movimentos nacionais em seu momento de concepção, mas alertando que “o problema se agrava quando a narrativa de gênese engendra projetos políticos como genocídio, limpeza étnica e opressão”.

E foi justamente isso o que aconteceu. Os diversos segmentos do sionismo, do religioso ao de “esquerda”, confluíram a essa interpretação bíblica de que seriam os judeus (os atuais) os legítimos descendentes do antigo povo hebreu. Essa autoridade histórica, moral e ancestral, garantiria a justificativa para ocupar a Palestina e expulsar os “invasores”, no caso, os palestinos. Ainda que ironicamente não sejam poucos os que afirmam que os atuais palestinos, os povos originários daquela terra, carreguem mais DNA dos antigos hebreus do que os atuais judeus.

Contudo, para muitos sionistas, pouco importa se essa justificativa era falsa ou não. Até porque ela foi empregada por sionistas “socialistas”, ateus etc. O importante era colonizar a Palestina, expulsar quem lá vivia e instaurar um Estado judeu. E até hoje esse mito é empregado para a crescente ocupação de Gaza e Cisjordânia e os massacres perpetrados pelo Estado sionista há sete décadas. E principalmente para justificar a manutenção de Israel como um enclave militar, se antes da Inglaterra, agora dos EUA, numa região estratégica.

Israel e a extrema direita
Voltemos aos atuais evangélicos. O que essa trajetória tortuosa tem a ver com o pastor da esquina de um bairro de periferia que convoca seus fieis a uma “vigília por Israel” no exato momento em que o país lança toneladas de mísseis nas cabeças de crianças e bebês em Gaza?

O protestantismo teve um crescimento significativo no Brasi no século passado, principalmente por meio de movimentos pentecostais, mas ainda num contexto de um Brasil majoritariamente católico. A proliferação das igrejas neopentecostais, num quadro de crise, abissal desigualdade social e as promessas oferecidas pela Teologia da Prosperidade, vem mudando o placar religioso no país e, em breve, os evangélicos devem ultrapassar os católicos.

Sempre houve uma “natural” associação entre protestantismo e os judeus, mas essencialmente simbólica e religiosa. Jesus é o “Leão da Tribo da Judá”, a “esperança de Israel”. Mas era praticamente consenso que a “Israel” agora não se referia mais aos antigos judeus, mas à totalidade dos fiéis. A “lei” foi substituída pelo sacrifício de Jesus no calvário. Alguns segmentos inclusive resvalam no antissemitismo responsabilizando os judeus por “terem matado Jesus”.

Percebe-se, porém, uma profunda mudança nos últimos anos. As referências a Israel vão deixando de ser simbólicas e tornam-se quase literais. O milenarismo, ainda que não seja estudado em praticamente nenhuma igreja, é assimilado de forma acrítica. As igrejas vão se “judaizando”, e os próprios crentes se identificam como parte da diáspora judaica. Tornou-se frequente o uso de bandeiras de Israel, pastores ministrando cultos com quipás e, maior expressão desse processo, o enorme Tempo de Salomão construído pela Igreja Universal na capital paulista.

Trata-se de um movimento sincronizado com a radicalização do público evangélico à extrema direita e, mais recentemente, com o bolsonarismo. Essa é a razão pela qual muitos estranham a atual hipervalorização do Antigo Testamento. Lá, temos uma divindade guerreira, que destrói seus inimigos de forma impiedosa, não aceita o culto a qualquer outra divindade e se impõe à força. Uma narrativa mais fácil de ser absorvida e moldada a um projeto político de ditadura e de perseguição a opositores do que seria, por exemplo, uma divindade que pregasse amor ao próximo, protegesse prostituas e dissesse que “é mais fácil um camelo passar pelo buraco de uma agulha que um rico entrar no reino dos céus”.

Nesse sentido, assim como Bolsonaro e Trump seriam homens enviados por Deus para proteger os valores morais tradicionais (ou a tão propalada cultura judaico-cristã), ameaçados pelo avanço dos direitos de mulheres, negros e LGBTI+, o Estado de Israel seria o Estado “ungido” para barrar os “selvagens islâmicos” e o “terrorismo”. Uma visão não só distorcida, como profundamente racista e xenófoba.

Junte-se a isso interesses que passam ao longe de ideologia. Há alguns anos, prolifera-se uma verdadeira indústria do turismo a Jerusalém, comando por pastores midiáticos e empresas voltadas ao público religioso. Ironicamente, os mais pomposos tratam de dar uma esticadinha na luxuosa Dubai, que tem tanto a ver com a bíblia quanto Osasco, aqui em São Paulo.

Massacre não tem nada a ver com religião
É comum pastores e igrejas apresentarem a questão como uma espécie de “batalha espiritual”. Porém o que ocorre de fato é a ação de um Estado, criado de forma artificial pelo império britânico e apoiado hoje pelos EUA, que o tem como seu enclave militar. Os palestinos, assim, são um “problema” a ser eliminado. O discurso religioso é usado de forma cínica para esse objetivo.

Muitos operários são evangélicos, e respeitamos suas crenças. No entanto, a luta contra o genocídio palestino não é uma luta contra a religião, mas sim contra um projeto de colonização, limpeza étnica e genocídio a serviço do imperialismo. Tanto que existem evangélicos que se posicionam contra isso, a exemplo de inúmeros grupos judeus antissionistas. Convidamos as companheiras e os companheiros evangélicos a se unirem a nós nesta luta.

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Diego Cruz

Como se formou o sionismo evangélico no Brasil



Este artigo, publicado na revista Religião & Sociedade, busca analisar o surgimento, entre grupos evangélicos brasileiros, do chamado “sionismo cristão”. Tal posicionamento pode ser entendido como argumentação religiosa que resulta em discurso e atuação política em apoio ao fortalecimento e ampliação territorial do Estado de Israel. 

Foram analisados fatores nacionais e internacionais para explicar a adoção desse tipo de posicionamento político por parte de importantes lideranças evangélicas brasileiras, especialmente nos últimos anos.

1 - A QUAL PERGUNTA A PESQUISA RESPONDE?
A questão central desse artigo é o surgimento entre grupos evangélicos brasileiros do chamado “sionismo cristão”, entendido como argumentação religiosa que resulta em discurso e atuação política em apoio ao fortalecimento e ampliação territorial do Estado de Israel. Buscamos, assim, identificar e analisar fatores nacionais e internacionais que expliquem a adoção desse tipo de posicionamento político por parte de importantes lideranças evangélicas brasileiras, especialmente nos últimos anos. Para entender essa genealogia, acessamos e discutimos livros e outras produções (vídeos, textos em sites) de autores evangélicos brasileiros que defendem o sionismo. Inicialmente expomos a literatura publicada ainda no século 20 e tentamos rastrear a difusão do sionismo cristão suas articulações nacionais e internacionais naquele contexto. A seguir procuramos identificar quem são os líderes evangélicos, que defendem o sionismo cristão e adotam práticas judaizantes no Brasil contemporâneo. Tal identificação nos conduziu à reflexão sobre o papel do turismo evangélico à Terra Santa e também do movimento chamado de NAR (New Apostolic Reformation) no surgimento de líderes sionistas cristãos no Brasil. Finalmente, refletimos sobre a incidência do governo Bolsonaro na consolidação e implementação do sionismo cristão evangélico no país. 

2 - POR QUE ISSO É RELEVANTE?
Embora o sionismo cristão seja já por muitas décadas uma força política significativa nos Estados Unidos e em certa medida na Inglaterra e em outros países europeus, não era observado no Sul Global. O êxito da empreitada sionista cristã varia não só nas articulações internas dos próprios movimentos e os vínculos dos cristãos locais com os centros irradiadores do sionismo no plano internacional (USA-Europa), mas também com as relações estabelecidas com o Estado de Israel. Entretanto os diferentes governos brasileiros, como os de outros países do “Sul”, não recebiam pressões de lideranças religiosas para apoiar Israel quando havia disputas na ONU, envolvendo esse Estado e o povo palestino. Por isso, em várias ocasiões os representantes brasileiros na ONU se opuseram à Israel e apoiaram palestinos. O sionismo cristão brasileiro, que ficará mais evidente nos últimos anos, quer reverter esse posicionamento de crítica ao Estado de Israel no plano diplomático e ir além, vide o empenho evangélico ao exigir de Bolsonaro levar a embaixada brasileira para Jerusalém. De tal forma que, a relevância do sionismo cristão também reside na sua capacidade de realizar articulações internacionais e nacionais para alcançar os objetivos que interessam ao Estado de Israel, gerando potenciais conflitos com o movimento pró palestinos no Brasil. Em termos religiosos, a importância desta reflexão encontra-se na possibilidade de ampliar a compreensão de como se concretizam essas narrativas sionistas cristãs internacionais no Brasil. Ao mesmo tempo, ajuda na percepção do tipo de adaptações teológicas, do envolvimento das lideranças e seus fiéis nessa causa e do porquê da proliferação da bandeira de Israel em eventos políticos, protestos sociais, processos eleitorais e templos evangélicos. 

3 - RESUMO DA PESQUISA
Essa pesquisa é parte de um projeto mais amplo iniciado em 2020, que está sendo realizado em equipe sob a coordenação de Paul Freston e de Joanildo Burity, com apoio da Fundaj, intitulado “O crescimento do Sionismo Cristão no Sul Global: o caso do Brasil e da Guatemala”. Esse artigo é apenas um resultado parcial baseado numa primeira etapa da pesquisa com coleta de dados no Brasil. Um dos objetivos dessa pesquisa era examinar como as ideias sionistas foram se difundindo em segmentos diferenciados do meio evangélico brasileiro a partir dos anos 60 com a ajuda das perspectivas teológicas do dispensacionalismo e foi se transformando nas décadas seguintes, gerando um ativismo político-religioso em defesa do Estado de Israel. Observou-se que, este ativismo tornou-se mais perceptível na coligação política que elegeu Jair Bolsonaro à presidência, envolvendo setores conservadores evangélicos, católicos, judeus, além de militares e liberais. As informações foram coletadas em sites e outras fontes de dados disponíveis na internet, complementadas por leituras de material de igrejas brasileiras, bibliografia e entrevistas com especialistas sobre o tema e algumas lideranças religiosas. 

4 - QUAIS FORAM AS CONCLUSÕES
O sionismo cristão não é novidade no Brasil. Há registro desse tipo de discurso já na década de 1920. Os eventos internacionais que fortaleceram o sionismo cristão, especialmente o profético, nos EUA e na Europa também tiveram seus reflexos no Brasil. No entanto, observa-se que a presença mais evidente desse discurso no espaço político brasileiro somente aparece no século 21, quando os evangélicos, além de bem mais numerosos, passaram a ter maior protagonismo na política, especialmente no legislativo. Procuramos mostrar que apesar de muito interligados, é possível distinguir o filossemitismo, da judaização e do sionismo cristão: esse último pressupõe a defesa do Estado de Israel contemporâneo. Desde o final dos anos de 1990 cresce o interesse por Israel, ora associado ao imaginário bíblico ora como um exemplo de prosperidade divina e ora na apropriação de uma estética judaica como se nota entre algumas igrejas evangélicas brasileiras, com destaque para a Igreja Universal do Reino de Deus. Salientamos a importância das viagens à Terra Santa e o contato com a Embaixada Cristã em Jerusalém na emergência do sionismo cristão no Brasil. Também, da influência do NAR, cujos Apóstolos Terra Nova, Milhomens, Itioka, Valadão são sionistas cristãos relevantes. Vale ressaltar que encontramos sionistas cristãos que não se vinculam ao NAR, como Silas Malafaia. Enfim, a posição pró Israel tende a crescer a partir de um filossemitismo e simpatia pelo povo de Deus, que e com as frequentes caravanas turísticas com líderes evangélicos à Terra Santa. 

5 - QUEM DEVERIA CONHECER SEUS RESULTADOS?
Esse tipo de dados e reflexão interessa a toda população que quer entender a importância da religião na política nacional e internacional, mas especialmente a líderes religiosos e políticos. Na academia, o texto contribui na discussão, sobre o Israel imaginário, a presença do Estado de Israel e do ativismo cristão em prol dessa nação que frequentemente se visibiliza, ora em eventos científicos, ora em publicações. As entrevistas realizadas que embasam os argumentos, representam um acervo importante para os especialistas que se debruçam na temática, pois fora do país se tem bibliografia significativa, porém são poucos os trabalhos sobre o sionismo cristão no Sul Global. O artigo tenta demonstrar como na prática setores evangélicos apropriam-se das ideias que circulam internacionalmente. Com isso, além de abraçar uma causa, eles visam conquistar a simpatia das autoridades israelenses para facilitar suas incursões turísticas na Terra Santa e conseguir que suas missões possam ser frutíferas no Oriente Médio. Mas, os dados indicam que o governo de Israel também está interessado em estimular esse tipo de sionismo no Brasil e certamente no Sul Global. Conhecer essa troca de interesses pode ser útil para setores religiosos e também diplomáticos. 

6 - REFERÊNCIAS
Carpenedo, M. (2021). Christian Zionist Religiouscapes in Brazil: Understanding Judaizing Practices and Zionist Inclinations in Brazilian Charismatic Evangelicalism. In: Social Compass 2021, Vol. 68(2) 204–217. 
Crome, A. (2018). Christian Zionism and English National Identity, 1600–1850. Palgrave Macmillan.
Freston, P. 2020 [b]). “Conclusion”. Palestra apresentada no congresso “Politics and Religion in Brazil and the Americas: Evangelical Churches and their Relations with Judaism, Zionism, Israel and the Jewish Communities”, Universidade de Haifa, 13-15 de Janeiro.
Reinke, A. Daniel (2018). O sionismo cristão e sua influência na cultura protestante brasileira. Dissertação, orientador: Wilhelm Wachholz – São Leopoldo: EST/PPG. 
Frossard, M. S. (2013). “Caminhando por terras bíblicas: religião, turismo e consumo nas caravanas evangélicas brasileiras para a Terra Santa”. (Tese) Programa de Ciências da Religião, UFJF (Universidade Federal de Juiz de Fora). 

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Maria das Dores Campos Machado  é professora titular e colaboradora do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), Rio de Janeiro, RJ, Brasil. Pesquisadora do CNPq, Brasil. Doutora em sociologia pelo Iuperj. 
Cecília Loreto Mariz  é professora titular do Departamento de Sociologia e do PPCIS (Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais) do Instituto de Ciências Sociais da Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro), Rio de Janeiro, RJ, Brasil. Coordenadora do Grupo de Estudo do Cristianismo “Clara Mafra”. Pesquisadora do CNPq, Brasil; Doutora em Sociologia pela UNI Boston University. 
Brenda Carranza  é professora visitante do PPGHS (Programa de Pós-Graduação em História Social) da Faculdade de Formação de Professores da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Coordenadora do Grupo de Estudo do Cristianismo “Clara Mafra”. Pesquisadora do CNPq, Brasil; Doutora em Sociologia pela UNI Boston University. 
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Dois modelos de homem, dois modelos de Igreja


Acabei de assistir o filme do consagrado cineasta brasileiro Fernando Meirelles: Dois Papas.

Considero o filme técnica e esteticamente bem elaborado, feito nos próprios espaços grandiosos do Vaticano. Sua base é fundada em fatos históricos, evidentemente, com a criatividade que este tipo de arte permite, particularmente na construção dos diálogos. Mas neles se entrevê suas respectivas teologias e afirmações conhecidas.

O que digo é opinião estritamente pessoal. Tive o privilégio de conhecer a ambos os Papas pessoalmente e com os quais entretive e entretenho relações de certa proximidade e até amizade.

O Papa Ratzinger: finíssimo e rigoroso
Com o Prof. Joseph Ratzinger tenho uma dívida de gratidão por ter apreciado minha tese doutoral sobre “A Igreja como Sacramento Fundamental no Mundo secularizado”, volumosa, mais de 500 páginas impressas. Ajudou-me financeiramente com uma soma considerável de marcos e encontrou um editora para sua publicação, pois ninguém queria assumir o risco de lançar um livro desta proporção. A acolhida na comunidade teológica internacional foi grande, considerada uma obra fundamental, especialmente pelo renomado especialista em Igreja Jean Yves Congar, dominicano francês.O Prof. Ratzinger é uma pessoa finíssima no trato, extremamente inteligente e nunca o vi alçando a voz; mas é muito tímido e reservado.

Ao saber de sua eleição a Papa, logo pensei: “É um Papa que vai sofrer muito, pois talvez jamais tenha abraçado pessoas, mesmo uma mulher e se exposto às multidões”.

Nossa amizade se fortaleceu porque durante cinco anos, a partir de 1974, toda semana de Pentecostes (por volta de maio) cerca de 25 teólogos e teólogas progressistas, renomados do mundo inteiro, nos encontrávamos em Nimega na Holanda ou em outra cidade europeia. Durante uma semana discutíamos ecumenicamente, acompanhados por um pequeno grupo de cientistas, inclusive de Paulo Freire, sobre temas relevantes do mundo e da Igreja. Editávamos uma revista Concilium que se publicava em 7 línguas que ainda continua a ser publicada (no Brasil pela Editora Vozes). Ai colaboraram as melhores cabeças mundiais, nas várias áreas do conhecimento que vai da sexualidade, da Teologia da Libertação, à moderna cosmologia.

O Prof. Ratzinger sentava-se quase sempre ao meu lado. Depois do almoço enquanto quase todos tiravam uma sesta eu e ele passeávamos pelo jardim, discutindo temas de teologia, nossos preferidos, Santo Agostinho e São Boaventura dos quais li praticamente toda obra.

Cada um com seu papel sem perder a relação
Feito Cardeal e Presidente da Congregação para a Doutrina da Fé, teve a ingrata missão de me interrogar sobre o livro Igreja: carisma e poder em 1984. Ele cumpria institucionalmente sua função de interrogador e eu de defensor de minhas opiniões. Foi um diálogo firme, mas sempre elegante da parte dele, mesmo quando, após o interrogatório, tivemos um encontro já mais duro com ele e os Cardeais brasileiros Dom Paulo Evaristo Arns e Dom Aloysio Lorscheider que me acompanharam em Roma e testemunharam a meu favor. Éramos três contra um. Devo reconhecer que ele se sentia constrangido.

Depois de um ano, recebi a solução do processo doutrinário com a deposição da cátedra de teologia, de minhas funções na Editora Vozes e a imposição de um “silêncio obsequioso” que me impedia de falar, de ensinar, de dar entrevistas e de publicar qualquer coisa. A decisão final após o interrogatório foi feita por 13 cardeais (13 para desempatar). Soube mais tarde, através de um emissário de seu secretário particular que ele, Card. Ratzinger, votou a meu favor mas foi voto vencido. Cabe dizer que sempre que jornalistas perguntavam a ele sobre mim, respondia, com certo humor, que sou “ein frommer Theologe”(um teólogo piedoso) que um dia vai aprofundar seu verdadeiro caminho teológico.

O filme não retrata a figura fina e elegante que o caracteriza. Em certa cena, levanta a voz e quase grita, o que, me parece, totalmente inverosímel e contra seu caráter.

Apesar de estarmos agora em situações diferentes, ele Papa e eu um um teólogo promovido a leigo, nunca perdemos a amizade. Por seus 90 anos, ao ser organizada uma Festschrift (um livro de homenagem), na qual muitos notáveis escreveram, a pedido dele solicitaram-me que escrevesse meu testemunho a seu respeito, o que fiz, prazerosamente. A amizade é mais forte que qualquer doutrina sempre humana.

O Papa Francisco: terno, fraterno e inovador
Com referência ao Jorge Mario Bergoglio, agora Papa Francisco, diria o seguinte: Conhecemo-nos em 1972 no Colégio Máximo de San Miguel em Buenos Aires, cada um discorrendo sobre a singularidade do caminho espiritual de Santo Inácio de Loyola (ele) e o caminho espiritual de São Francisco (eu). Ai discutimos a vertente da teologia da libertação de tipo argentino (do povo silenciado e da cultura oprimida) e a nossa brasileira e peruana (sobre a injustiça social e a opressão histórica sobre os pobres e afrodescendentes). Deste encontro há uma foto que ele, desde Roma, teve a gentileza de me mandar, onde aparecemos, todo um grupo de teólogos e teólogas, a maioria não mais entre nós, alguns perseguidos e torturados pela repressão bárbara dos militares argentinos ou chilenos. Depois nos perdemos de vista.

O Papa Francisco: teólogo da libertação integral
Soube pelo seu professor de teologia, recentemente falecido, Juan Carlos Scannone, o representante maior da teologia da libertação argentina. que Bergoglio entrou para a Ordem Jesuítica como vocação adulta (era químico antes, como aparece no filme). Entusiasmou-se logo com a teologia da libertação e aí mesmo fez um voto que cumpriu sempre, mesmo como cardeal de Buenos Aires: toda semana passar uma tarde ou mesmo um dia numa favela (villa miseria), sempre sozinho, entrando nas casas e conversando com todo mundo.

Foi Superior Maior da Província dos Jesuitas da região de Buenos Aires. Era muito rigoroso. Aqui teve que enfrentar uma situação gravíssima que carregou no coração até os dias de hoje: dois jesuítas, o padre Jalish e o padre Yorio (que conheci pessoalmente em Quilmes) viviam numa favela, apoiando os pobres e marginalizados. Quem trabalhava com o povo, como no Brasil de 1964 (e talvez também hoje sob o novo governo) seriam considerados marxistas e subversivos. Eram vigiados pelos órgãos de segurança dos militares. Bergoglio soube que seriam sequestrados com as torturas que se seguiam. Tentou salvá-los até apelando ao voto de obediência, típico de sua Ordem, no sentido de abandonaram a favela para não serem vítimas da repressão.

Eles argumentaram de forma evangélica: “um pastor não abandona seu rebanho, seu povo; participa de seu destino; vale mais obedecer ao Deus dos pobres do que obedecer a um superior religioso”.

Efetivamente foram sequestrados e duramente torturados. Jalish se reconciliou com Bergoglio e vive na Alemanha, enquanto Yorio se sentiu abandonado e distanciou-se dele (morreu no Uruguai, anos atrás). Pude sentir sua amargura pessoal, ao mesmo tempo que procurava entender o impasse que uma autoridade religiosa, com responsabilidade, enfrenta em situações-limite. Mesmo assim, Bergoglio escondeu a muitos no Seminário Maior de San Miguel ou os levou até a fronteira de outro país para fugirem da morte certa.

O Papa Francisco: o cuidado da Casa Comum
Ao ser eleito Papa, voltamos a nos comunicar. Sabendo que havia me ocupado intensivamente com o tema da ecologia integral, envolvendo a Casa Comum, a Mãe Terra, solicitou-me subsídios, coisa que fiz com assiduidade. Mas logo me advertiu:”não mande os textos para o Vaticano, pois, não me serão entregues (o famoso sottosedere da Cúria: sentar em cima e esquecer) mas envie-os diretamente ao embaixador argentino junto à Santa Sé, especialmente aquele que todos os dias, bem cedo, toma o chimarrão (el mate), comigo”. Assim fiz sempre, mesmo com textos sobre o Sínodo Panamazônico de 2019. Respondeu várias vezes agradecendo.

Ao escolher o nome de Francisco sob inspiração de seu amigo brasileiro, o Card. Dom Cláudio Hummes que lhe sussurrou logo fazer uma opção clara pelos pobres, ele se transformou. O rigor jesuítico se uniu com a ternura franciscana. Com os problemas internos da Cúria, a pedofilia, a corrupção financeira dentro do Banco do Vaticano é extremamente rigoroso. Contrariamente, com o povo é visivelmente terno e fraterno.

Nenhum Papa anterior castigou tão duramente o sistema que perdeu a sensibilidade, a solidariedade com os milhões de pobres e famintos, a capacidade de chorar e que são adoradores do ídolo do dinheiro. Depredam a natureza e são anti-vida e anti-Mãe Terra. Não precisamos declarar a que sistema se refere. Sua opção pelos pobres é altissonante. Tornou-se por suas posturas corajosas face à emergência ecológica da Terra, ao aquecimento global e à desumanização das relações humanas, um líder religioso e político. Sua voz é ouvida e respeitada pelo mundo afora.

Dois modelos de homem e dois modelos de Igreja
O propósito do filme é mostrar dois modelos de personagens religiosas e dois modelos de Igreja.

Primeiramente mostra como ambos, Ratzinger e Bergoglio. são humanos, profundamente humanos. Nesse sentido: ambos possuem seu lado luminoso e também seu lado sombrio. O Papa Bento XVI sua leniência com os pedófilos. Não devemos esquecer que escreveu a todos os bispos, sob sigilo pontifício que jamais deve ser quebrado, de não entregar os padres e os bispos pedófilos aos tribunais civis. Isso desmoralizaria a instituição Igreja. Deviam, sim, confessar-se do pecado e ser transferidos para outro lugar. O Papa não se deu conta suficientemente de que não tinha a ver apenas com um pecado perdoável pela confissão. Tratava-se de um crime contra inocentes que a justiça comum deve investigar e punir. Não se pensou nas vítimas, apenas na salvaguarda da imagem da instituição-Igreja.

O Papa Bento XVI colocou-se na esteira do João Paulo II que era moral e doutrinariamente conservador. Procurou relativizar arggiornamento do Concílio Vaticano II (1962-1965). Via a Igreja como uma fortaleza sitiada por todos os lados por inimigos, vale dizer, pelos erros e desvios da modernidade. A solução que se propunha era a de voltar à grande disciplina anterior, vinda do Concílio de Trento (século XVI) e do Concílio Vaticano I (1870). A centralidade era a ortodoxia e a sã doutrina, como se fossem as prédicas que salvassem e não as práticas. Nesta linha o Card. Joseph Ratzinger foi rigoroso: mais de 110 teólogos ou teólogas foram condenados, depostos de suas cátedras, silenciados (no Brasil Yvone Gebara e eu pessoalmente) ou de alguma forma punidos. Um deles, excelente teólogo, foi condenado sem receber nenhuma explicação. Ficou tão deprimido que pensou em suicidar-se. Só se curou quando foi à América Central trabalhar com as comunidades eclesiais de base.Viveu-se um inverno eclesial severo.Toda uma geração de padres foi formada nesse estilo doutrinário e com os olhos voltados ao passado, usando os símbolos do poder clerical.  Igualmente, toda uma plêiade de bispos foram sagrados, mais autoridades eclesiásticas ortodoxas que pastores no meio de seu povo.

Outro modelo de personalidade religiosa é o Papa Francisco. Ele vem do fim do mundo, de fora da velha e quase agônica cristandade europeia. Ele trouxe uma primavera para a Igreja e para o mundo secularizado.

Primeiramente inovou os hábitos. Ao negar-se de vestir a “mozzeta” o pequeno manto branco, cheio de brocados que os papas carregam aos ombros, símbolo do absoluto poder dos imperadores romanos pagãos, diz o filme claramente : “acabou-se o carnaval”. Não aceita a cruz dourada, continua com sua cruz de ferro; rejeita o sapato vermelho (Prada) e continua com o seu velho sapato preto. Não se anuncia como Papa da Igreja, mas como bispo de Roma e somente a partir daí, Papa da Igreja universal. Animará a Igreja não com o direito canônico, mas com o amor e com a colegialidade (consultando a comunidade dos bispos). Em sua primeira fala pública diz “como gostaria uma Igreja pobre para os pobres”. Não mora no palácio papal, o que seria uma ofensa ao poverello de Assis, mas numa casa de hóspedes. Come na fila como os outros e comenta, com humor:”assim é mais difícil que me envenenem”.

Dispensa um carro especial e um corpo de proteção pessoal. Mistura-se no meio do povo, dá as mãos a quem as estende e beija as crianças. É pai e avô querido das multidões.

Seu modelo de Igreja é o de “um hospital de campanha” que atende a todos, sem perguntar de onde vem e qual é sua situação moral. É uma “Igreja em saída” para as periferias humanas e existenciais. Respeita os dogmas e doutrinas mas diz claramente que prefere colocar-se vivamente diante do Jesus histórico, opta pelo encontro direto com as pessoas e a pastoral da ternura. Insiste que Jesus veio para nos ensinar a viver o amor incondicional, a solidariedade e o perdão. Central para ele é a misericórdia infinita de Deus. Vai mais longe ao dizer :”Deus não conhece uma condenação eterna pois perderia para o mal. E Deus não pode perder. Sua misericórdia não conhece limites”. Por isso chama a todos, uma vez purificados de suas maldades, para a casa que o Pai e Mãe de bondade preparou para todos desde toda a eternidade. Morrer é sentir-se chamado por Deus e vai-se alegre para o Grande Encontro.

Eis outro tipo de pontificado, outro modelo de ser humano que reconhece que perdeu a paciência quando uma mulher o puxou e apertou longa e duramente sua mão. Irritado, bateu-lhe a mão por duas ou três vezes. Mas no dia seguinte pediu publicamente perdão.

Dois Papas: diferentes e complementares
O Papa Francisco abriu sua inteira humanidade, dando-se o direito à alegria de viver, de torcer pelo seu time de estimação o San Lorenzo, de apreciar a música dos beatles até conquistar o Papa Bento XVI a dançar um tango, impensável a um severo acadêmico alemão. Aqui aparece não o Papa mas o homem Bergoglio que desentranha humanidade recolhida do homem Ratzinger. Ambos são diferentes mas se integram na dança de um tango de pessoas anciãs.

O filme é uma bela metáfora da condição humana, de dois modos diferentes de realizar a humanidade, que não se opõem mas se compõem e se completam, uma com a ternura e a outra com o rigor. Vale ver o filme, pois nos faz pensar e nos oferece lições de mútua escuta, de verdades ditas sem rebuços e de uma amizade que vai crescendo na medida em que a relação se descontrai  de encontro a encontro. O perdão que um dá ao outro e o abraço final, longo e carinhoso, engrandece o humano e o espiritual presentes em cada  um de nós.

Leonardo Boff é teólogo,filósofo e membro da Comissão Internacional da Carta da Terra
Fonte

"Sangue nas mãos"


Senhores (as) líderes evangélicos, graça, paz e discernimento!

As eleições se avizinham, e boa parte dos pastores de nosso país tem manifestado seu apoio à candidatura de Jair Bolsonaro. A maioria alega ser ele o que melhor representa os anseios do povo evangélico, principalmente devido ao seu discurso favorável à família tradicional e aos valores morais tão caros ao cristianismo.

De repente, sinto-me como se houvesse viajado no tempo e revivesse os dias da guerra fria, quando o mundo se via ameaçado pela eclosão de uma guerra nuclear envolvendo as duas potências mundiais: A União Soviética e os Estados Unidos. Colegas vociferam de seus púlpitos sobre o perigo do comunismo que ronda a nossa sociedade. Pergunto-me em que mundo estamos vivendo, afinal? Qualquer um que levante sua voz a favor do pobre, do excluído, do oprimido, logo é tachado de esquerdopata, comunista, “agente do inferno”, e coisa parecida.

Os senhores já pararam para se perguntar sobre o que estaria por trás deste discurso ultraconservador? Há uma onda conservadora varrendo a Europa e os EUA, suscitando velhos rancores contra os imigrantes, os homossexuais, as minorias, a classe operária, etc.

No meio desta avalanche de intolerância, eis que uma voz destoante se faz ouvir mundo afora. Não de um pastor como foi nos dias de Luther King nos EUA, ou de Bonhoeffer na Alemanha, mas de um Papa, líder da instituição mais conservadora do mundo. Por ironia, justamente o primeiro Papa latino-americano se levanta contra tudo e contra todos os que insistem em ressuscitar um discurso que há décadas parecia ter sido abandonado e enterrado. Enquanto isso, a igreja evangélica, que por tanto tempo esteve na vanguarda na luta pelos direitos humanos passa a se aliar com o que há de mais retrógrado e ultrapassado. Que vergonha! Tudo em nome de nossos escrúpulos moralistas.

Conseguiram a façanha de diluir o puro Evangelho da graça num discurso de ódio e intolerância.

Esquecemo-nos dos colegas que foram perseguidos, torturados, e, alguns até mortos e desaparecidos, durante o regime militar. Justificamo-nos no fato de que o tal candidato defenda os mesmos valores. Será que ser a favor da tortura soa menos cruel quando se é contrário ao aborto? Será que ser a favor do armamento da população condiz com o que foi ensinado por Jesus? Afinal, bem-aventurados são os pacificadores ou os que pretendem armar a população? Ser pela família tradicional abona a conduta de quem se revela contrário aos direitos trabalhistas conquistados a duras penas? Se você, pastor, é contra tais direitos, recomendo que não aceite mais dízimos de décimo-terceiro ou de férias de seus membros.

Não ajamos como o profeta Natan que encorajou a Davi a construir o templo, afirmando-lhe categoricamente que Deus o havia escolhido para aquela empreitada. Porém, o Senhor não o tinha autorizado a fazer tal coisa, de modo que, mesmo constrangido, teve que retornar ao rei e dizer-lhe a verdade. Por causa do sangue que havia em suas mãos, Deus não o designou para edificar Sua casa, ainda que já houvesse levantado todos os recursos para tal, e recebido do Senhor a planta, caberia ao seu sucessor tocar a obra.

Quem somos nós para abençoar o que Deus não abençoou? Quem somos nós para encorajar o que contraria frontalmente a Sua vontade?

Sei que muitos alegarão que tudo não passa de manipulação da mídia esquerdista. Mas basta assistir aos inúmeros vídeos de discursos e entrevistas do candidato para verificar que exatamente assim que ele pensa. Ele mesmo afirma que o trabalhador terá que escolher entre ter seus direitos assegurados ou o emprego. Ele é quem diz com todas as letras que o Estado não é laico, mas cristão e que as minorias terão que se dobrar à vontade das maiorias. Ele diz que seria incapaz de amar um filho homossexual e que a homossexualidade é falta de p*rrada na infância. Diz que não empregaria uma mulher, já que esta engravida. Diz que educou seu filhos para que jamais namorassem negras. Diz que em seu governo os índios não receberiam nem mais um centímetro de terra. Se ele é a favor da família tradicional, por que disse que usava o apartamento para “comer gente”? Como defender quem diz que uma mulher não merecia ser estuprada por ser feia? Como apoiar quem defende o uso da tortura se somos seguidores de um Cristo torturado e morto numa cruz? Como apoiar quem diz que ordenaria que helicópteros metralhassem uma favela se os criminosos não se rendessem? Será que na favela só mora bandido? Com que cara visitaremos os presídios para pregar o amor de Cristo depois de apoiar que tem como slogan “bandido bom é bandido morto”?

O sangue de toda uma geração poderá cair em nossas mãos!

Se você é pastor de uma pequena congregação, talvez esteja indo na onda de grandes líderes que já manifestaram seu apoio a Bolsonaro. Não seja ingênuo. Muitos deles o fazem, não por convicção, mas por conveniência, movidos por interesses nem sempre louváveis (alguns até sórdidos).

Lembre-se de quem nos considerou fiéis, pondo-nos em seu ministério (1 Timóteo 1:12), e que um dia, teremos que prestar contas (Hebreus 13:17).

Por isso, deixo aqui uma recomendação que deveria perturbar o sono de todos os que levam a sério o ministério pastoral:

“Pastoreiem o rebanho de Deus que está aos seus cuidados. Olhem por ele, não por obrigação, mas de livre vontade, como Deus quer. Não façam isso por ganância, mas com o desejo de servir. Não ajam como dominadores dos que lhes foram confiados, mas como exemplos para o rebanho.” 1 Pedro 5:2,3

Não compete a pastor algum dizer em quem seu rebanho deve votar. Mas compete-nos instrui-los a reconhecer os riscos por trás de todo discurso de ódio e intolerância.

Jesus disse que enquanto o bom pastor dá a vida pelas ovelhas, o ladrão, ao ver o lobo, foge e deixa suas ovelhas à mercê do perigo. Portanto, cumpramos nosso papel. Pois cuidar das ovelhas que nos foram confiadas é a melhor maneira de dizer: TU SABES QUE TE AMO, SENHOR.

Hermes Carvalho Fernandes é pastor, escritor, conferencista e teólogo com doutorado em Ciências da Religião e editor do blog HermesFernandes.com
Fonte: Sangue nas mãos