Mostrando postagens com marcador Karl Polanyi. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Karl Polanyi. Mostrar todas as postagens

Incontornável Polanyi


Escrevendo três meses antes do pedido de concordata do banco Lehman Brothers, marco do início da atual crise econômica mundial, o professor de economia da Universidade da Califórnia em Davies, Gregory Clark, publicou uma resenha crítica à obra-prima de Polanyi questionando-se sobre as razões da longevidade de seu interesse. Afinal:
A história não foi gentil com os prognósticos de Karl Polanyi. O capitalismo de livre mercado é um sistema estável e resistente na maior parte do mundo – particularmente, nos países de língua inglesa. […]. O padrão-ouro desapareceu, mas em seu lugar surgiu um sistema de taxas de câmbio flutuantes regulado por mecanismos de mercado. […]. Instrumentos mais eficientes de administração monetária reduziram enormemente a severidade dos ciclos de negócios. Medido pelo sucesso dos mercados, a civilização do século 19 parece estar desfrutando de um renascimento. O verdadeiro enigma do livro de Polanyi é, então, por que razão seu fascínio é tão duradouro tendo em vista a desconexão entre suas predições e as realidades modernas. […]. Assim, a popularidade de Polanyi representa o triunfo da vontade e do romantismo sobre a ciência em disciplinas como a sociologia.1
Ainda que o contexto presente tenha arruinado o otimismo de Clark sobre a estabilidade dos mercados, argumentaremos que, no tocante à sociologia crítica o livro de Karl Polanyi, A grande transformação, talvez seja a obra que mais perto tenha chegado de traduzir para a linguagem da teoria social o grande consenso popular formado no pós-Segunda Guerra em torno da necessidade imperiosa de regular o capitalismo a fim de proteger a humanidade dos efeitos deletérios da mercantilização do trabalho, da terra e do dinheiro. Publicado em 1944, mesmo ano do aparecimento do livro de Friedrich von Hayek, O caminho da servidão, o projeto intelectual por trás de A grande transformação foi, em grande medida, forjado nos anos 1920 enquanto Polanyi vivia em uma Viena “socialista” que marcou de forma indelével suas convicções socialistas democráticas.

Aliás, as trajetórias, os destinos e as fortunas críticas de Polanyi e Hayek não deixam de sintetizar boa parte das desventuras do capitalismo no pós-Segunda Guerra. Chegados juntos à Inglaterra como imigrantes no início dos anos 1930, ambos viveram na mesma Viena socialista que fascinou Polanyi e horrorizou Hayek e seu mentor intelectual Ludwig von Mises.2 Nos anos 1920, Hayek e von Mises ficaram traumatizados pela experiência da prefeitura socialista de Viena que por meio de suas políticas públicas de moradia popular e proteção social favorecia as classes trabalhadoras. Ambos consideraram o socialismo em todas as suas múltiplas variedades, utópicas, reformistas ou revolucionárias, como uma usurpação das liberdades individuais. E decidiram olhar para trás, isto é, para a utopia do mercado auto-regulado, a fim de recuperar essa ideologia completamente desacreditada pela grande crise de 1929.

Hayek e Polanyi são antípodas perfeitos. Principal representante da quarta geração da escola austríaca de economia, Hayek emigrou da Viena vermelha do pós-guerra para a Inglaterra onde lecionou na London School of Economics (LSE) e influenciou a criação do Instituto de Assuntos Econômicos (IEA) que, posteriormente, ajudaria a formatar as políticas neoliberais implementadas por Margareth Thatcher. Finalmente, Hayek estabeleceu-se nos Estados Unidos, onde se transformou na figura ideologicamente mais proeminente associada ao Departamento de Economia da Universidade de Chicago. De desajustado na Viena socialista dos anos 1920 a ganhador do prêmio Nobel de economia em 1974: Hayek foi redimido pela grande onda de mercantilização inaugurada nos anos 1970.

Polanyi viveu entre Budapeste e Viena, cidades onde, antes de 1914, revolucionários russos eram bem-acolhidos por sua própria família. Manifestando inclinações socialistas desde jovem, Polanyi rapidamente evoluiu da liderança ativa do movimento estudantil húngaro a fundador do Círculo Galileu (ao lado de György Lukács) e admirador da coragem e audácia dos revolucionários marxistas. Em 1914, Polanyi ajudou a fundar o Partido Radical Húngaro, atuando como seu secretário-geral. Durante a I Guerra Mundial, ele lutou no front russo e terminado o conflito apoiou o célere governo socialdemocrata húngaro.

Nos anos 1920, vivendo em Viena, ele envolveu-se em debates sobre a contabilidade socialista, chegando a delinear um modelo democrático, funcionalista e associativo de processo de deliberação socialista tanto no âmbito econômico, quanto na esfera política. Entre 1924 e 1933, atuando como editor de uma prestigiosa revista econômica austríaca, Polanyi criticou a Escola Austríaca de Economia por sua visão abstrata e desenraizada dos processos econômicos.3 Desde então, os conflitos entre a economia de mercado, assim como a importância da deliberação democrática na economia moderna transformaram-se temas frequentes em seus trabalhos.

Em 1933, após a ascensão de Hitler ao poder, Polanyi foi demitido da revista onde trabalhava e mudou-se para Londres onde passou a lecionar numa associação educacional de trabalhadores por um salário mínimo. Suas pesquisas e anotações de aula serviram de base para a redação do livro A grande transformação. Em 1940, Polanyi e sua esposa, a revolucionária comunista húngara Ilona Duczyńska, mudaram-se para Vermont nos Estados Unidos onde ele passou a lecionar em uma faculdade local. Após a II Guerra Mundial e devido ao sucesso obtido pela publicação d’A grande transformação Polanyi foi convidado a lecionar na Universidade de Columbia. No entanto, o passado comunista de sua esposa os impediu de obter o visto estadunidense. Assim, o casal mudou-se para o Canadá, onde Polanyi continuou sua pesquisa sobre a formação do sistema econômico moderno a partir de uma abordagem histórica comparativa, lecionando eventualmente, em Columbia, até por volta de sua morte em 1964.4

O legado teórico de Karl Polanyi espalhou-se por várias especialidades das ciências sociais, tais como a sociologia histórica, a economia política e a antropologia social. A abordagem “substantivista” do enraizamento das relações econômicas na sociedade, assim como a crítica à ideia do mercado auto-regulado, ambas centrais nos trabalhos de Polanyi, encontram-se, por exemplo, tanto na base das elaborações da Teoria Francesa da Regulação quanto na sociologia crítica da economia de Pierre Bourdieu. Se é verdade que seu legado intelectual influenciou muitos campos das ciências humanas e sua influência acadêmica é reconhecidamente mais abrangente do que a de seu antípoda, Friedrich Hayek, por exemplo, foi a capacidade de sintetizar o “espírito da época” fordista em seu afamado livro que fez de Polanyi um autor incontornável da sociologia.

Ruy Braga, professor do Departamento de Sociologia da USP e ex-diretor do Centro de Estudos dos Direitos da Cidadania (Cenedic) da USP, é autor, entre outros livros, de Por uma sociologia pública (Alameda, 2009), em coautoria com Michael Burawoy, e A nostalgia do fordismo: modernização e crise na teoria da sociedade salarial (Xama, 2003). 
Fonte: https://blogdaboitempo.com.br/2015/10/13/incontornavel-polanyi/
________________________________________
1 Gregory Clark. “Reconsiderations: ‘The Great Transformation’ by Karl Polanyi”. New York Sun, 4 de junho de 2008.
2 Para mais detalhes, ver Kari Polanyi Levitt. From the Great Transformation to the Great Financialization: On Karl Polanyi and Other Essays. Nova Iorque, Zed Books, 2013.
3 Para uma visão matizada a respeito da compreensão de Polanyi acerca do duplo processo de desenraizamento e re-enraziamento da economia, ver Gareth Dale. Karl Polanyi: The Limits of the Market. Malden: Polity Press, 2010. Sobre as raízes teóricas e políticas da visão do socialismo democrático de Polanyi, ver Kari Polanyi Levitt. From the Great Transformation to the Great Financialization: On Karl Polanyi and Other Essays. Nova Iorque, Zed Books, 2013.
4 Para mais detalhes biográficos de Karl Polanyi, ver Kari Polanyi Levitt. The Life and Work of Karl Polanyi. Montreal, Black Rose Books, 1996.

A grande transformação: as origens da nossa época


O autor Polanyi, no seu livro titulado “A grande transformação: as origens da nossa época”, trata, essencialmente, das implicações sociais de um sistema econômico particular, cuja economia de mercado atingiu sua plenitude no século XIX. A ideia de Polanyi é resgatar a história da formação dos mercados a fim de desvendar e (des)caracterizar certas ideias acerca do mesmo, revelando um novo olhar sobre as relações que fundaram e permeiam as relações de mercado.

Esta resenha trata do capítulo 6 do livro supracitado, cuja proposta é discutir o mercado auto- regulável e a sua relação com os elementos a ele inerentes, a saber, o trabalho, a terra e o dinheiro, que vestem, neste contexto, a roupagem de mercadorias fictícias.

Para tanto, Polanyi estrutura seu capítulo discutindo, primeiramente, sobre o sistema econômico e sua relação (intrínseca) com o sistema social. Em seguida ele trata sobre o mercado e a sua forma de administração, bem como as características do mercado auto-regulável. Polanyi segue para tratar a economia de mercado e o que ele pressupõe, apresentando em seguida aspectos da auto-regulação e um conjunto de pressupostos em relação ao estado e à sua política. Depois destas explanações Polanyi segue para uma volta ao sistema mercantil e aos mercados nacionais, para só depois apresentar-se apto a desenvolver, de forma mais concreta, a natureza institucional de uma economia de mercado, e os perigos que ela acarreta para a sociedade. Polanyi vai finalizando seu capítulo tratando sobre a existência dos Grandes Mercados e a postura protetora da sociedade para os perigos inerentes a um sistema de mercado auto-regulável.

O autor cita, logo no início do seu capítulo, que os mercados funcionam como acessórios da vida econômica. Em outras palavras, o sistema econômico era regido pelo sistema social, que no capítulo 5 do seu livro se mostra como o grande ator no mercado vigente.

O sistema mercantil conseguiu desenvolver muito os mercados, mas mesmo assim o autor chama a atenção para uma administração centralizada que já se incorporava neste contexto. Aqui destaca-se que a regulamentação e os mercados cresceram juntos, e o mercado auto-regulável não só era desconhecido nesta época, como era visto como uma inversão completa da tenência do desenvolvimento.

De posse de tais fatores, Polanyi comenta que é possível entender como funciona uma economia de mercado, onde (p. 89): “[…] um sistema econômico controlado, regulado e dirigido apenas por mercados; a ordem na produção e distribuição dos bens é confiada a esse mecanismo auto-regulável”.

A ideia de tal tipo de mercado é, ainda, segundo o autor, a busca por atingir o máximo de ganhos monetários, pressupondo mercados nos quais o fornecimento dos bens disponíveis (incluindo serviços) a um preço definido igualarão a demanda a esse mesmo preço. Ou seja, toda a ordem na produção e distribuição gira em torno do fator preço.

Já a auto-regulação significa, para Polanyi, que toda a produção é para venda no mercado, e que todos os rendimentos derivam de tais vendas. Neste sentido, outros fatores envolvidos na produção como o trabalho, a terra e o dinheiro possuem um preço que equivale a mercadorias, salários, aluguel e juros. Os preços formam rendas, sendo os juros o preço do dinheiro, o aluguel o preço da terra, e os salários o preço da força de trabalho. Já o preço da mercadoria contribui para a formação da renda, que também é chamada de lucro (o lucro decorre da diferença entre o preço do bem e o seu custo).

Polanyi discorre o capítulo apresentando em seguida outra série de pressupostos e relação ao estado e a sua política. Para ele (p. 90):

A formação dos mercados não será inibida por nada, e os rendimentos não poderão ser formados de outra maneira a não ser através das vendas. […] Assim, é preciso que existam não apenas mercados para todos os elementos da indústria, como também não deve ser adotada qualquer medida ou política que possa influenciar a ação desses mercados.

Aqui Polanyi cita a necessidade e a validade na existência de políticas que apenas ajudem a assegurar a auto-regulação do mercado. Neste momento o autor retorna ao sistema mercantil e aos mercados nacionais para explicar alguns elementos que compõem este pensamento.

Quando retorna ao feudalismo e ao sistema de guildas, Polanyi cita que a terra e o trabalho formavam parte da própria organização social. O uso da terra ficava à parte da organização de compra e venda, e sujeitas a um conjunto inteiramente diferente de regulamentações institucionais. Já a organização do trabalho, as motivações e as circunstâncias das atividades produtivas estavam inseridas na organização geral das sociedades, ou seja, era regulamentado pelo costume e pelas regras da guilda e da cidade.

Polanyi destaca a postura do mercantilismo nesta época (p. 91): “O mercantilismo, com toda a sua tendência em direção à comercialização, jamais atacou as salvaguardas que protegiam estes dois elementos básicos da produção – trabalho e terra – e os impedia de se tornarem objetos de comércio”.

Polanyi comenta que o mercantilismo, por mais que tivesse insistido na comercialização como política nacional, pensava a respeito dos mercados de maneira contrária à economia de mercado, o que fica bem demonstrado pela amplitude da intervenção estatal na indústria. Tal fator assemelha muito ao mercantilismo dos feudais (avessos à ideia da comercialização do trabalho e da terra – a precondição da economia de mercado), diferindo-os apenas em relação aos métodos de regulamentação.

Neste momento Polanyi evoca a transição para um sistema democrático e uma política representativa, que significou total reversão da tendência da época. Neste ínterim, a mudança de mercados regulamentados para auto-reguláveis, já ao final do século XVIII, representou uma transformação completa na estrutura da sociedade.

O autor comenta sobre características do mercado auto-regulável, trazendo, dentre elas, a separação institucional da sociedade em esferas econômica e política. Neste momento, para Polanyi (p. 93) “A sociedade do século XIX revelou-se, de fato, um ponto de partida singular, no qual a atividade econômica foi isolada e imputada a uma motivação econômica distinta”.

Ainda, para o autor (p. 93), “Um tal padrão institucional não poderia funcionar a menos que a sociedade fosse subordinada, de alguma forma, às suas exigências. Uma economia de mercado só pode existir numa sociedade de mercado”. Esta seria a análise, de forma geral, acerca de um padrão de mercado existente. Neste sentido, o autor destaca que uma economia de mercado deve compreender todos os componentes da indústria, incluindo trabalho, terra e dinheiro.

É neste momento do texto que Polanyi evoca a contradição, quando cita que (p. 93) “[…]o trabalho e a terra nada mais são do que os próprios seres humanos nos quais consistem todas as sociedades, e o ambiente natural no qual elas existem. Incluí-los no mecanismo de mercado significa subordinar a substância da própria sociedade às leis do mercado”.

Tal contradição deixa Polanyi confortável para abordar em seu capítulo uma análise que tanto esperava, a saber, a natureza institucional de uma economia de mercado, e os perigos que ela acarreta para a sociedade.

Nesta abordagem Polanyi cita que é com a ajuda do conceito de mercadoria que o mecanismo do mercado se entrosa aos vários elementos da vida industrial. A mercadoria é o objeto produzido para a venda, e o mercado são os contatos reais empíricos entre compradores e vendedores. Para Polanyi na prática isso significa existência de mercados para cada um dos elementos da indústria de modo a formar (de maneira integrada) um Grande Mercado.

O ponto crucial que o autor traz aqui é o seguinte: trabalho, terra e dinheiro são elementos essenciais da indústria. Assim, eles também têm que ser organizados em mercados e, de fato, esses mercados formam uma parte absolutamente vital do sistema econômico.

É neste ponto que jaz a descrição do trabalho, da terra e do dinheiro como mercadorias inteiramente fictícias. Não obstante, é com a ajuda dessa ficção que são organizados os mercados reais do trabalho, da terra e do dinheiro.

Polanyi destaca veementemente que em relação ao trabalho, à terra e ao dinheiro não se pode manter um tal postulado. Para ele (p. 94) “Permitir que o mecanismo de mercado seja o único dirigente do destino dos seres humanos e do seu ambiente natural, e até mesmo o árbitro da quantidade e do uso do poder de compra, resultaria no desmoronamento da sociedade”.

Neste momento Polanyi vai comentando sobre os diversos elementos do mercado e o que poderia acontecer com eles se fossem condicionados ao papel anteriormente aqui comentado. A força de trabalho, os “seres humanos” sucumbiriam sob os efeitos do abandono social; a natureza seria reduzida a seus elementos mínimos; e a administração do poder de compra por parte do mercado liquidaria empresas periodicamente.

O autor comenta que mercados de trabalho, terra e dinheiro são, sem dúvida, essenciais para uma economia de mercado, mas nenhuma sociedade suportaria estar “totalmente” subordinada aos efeitos (muitas vezes artificiais e severos) de tal sistema.

Mais tarde, na sociedade mercantil, a produção foi organizada por mercadores e não se restringia mais às cidades. Para Polanyi foi nessa ocasião que a produção industrial se colocou definitivamente, e em grande escala, sob a liderança organizadora do mercador. Adicionalmente (p. 95) “Durante séculos esse sistema cresceu em poder e objetivo até que finalmente, num país como a Inglaterra, a indústria da lã, produto básico nacional, atingiu grandes setores do pais onde a produção era organizada pelo negociante de tecidos”. Aqui o autor cita que até o final do século XVIII, a produção industrial na Europa Ocidental já era um mero acessório do comércio.

Polanyi comenta um fato importante neste contexto. Não foi o aparecimento da máquina em si, mas a invenção de maquinarias e fábricas complicadas e, portanto, especializadas, que mudou completamente a relação do mercador com a produção. Foi a criação de um sistema fabril (decorrente do uso destas máquinas) que trouxe as grandes mudanças.

Neste novo modelo (p. 96) “A produção industrial deixou de ser um acessório do comércio organizado pelo mercador como proposição de compra e venda; ela envolvia agora investimentos a longo prazo, com os riscos correspondentes, e a menos que a continuidade da produção fosse garantida, com certa margem de segurança, um tal risco não seria suportável”.

Tal constatação trouxe a maior necessidade de garantias obre os elementos básicos da produção: terra, trabalho e capital. Em tempo, em uma sociedade comercial esse fornecimento só podia ser organizado de uma forma: tornando-os disponíveis à compra. Da transformação dos três elementos, um se destaca mais: trabalho (mão-de-obra) é o termo técnico usado para os seres humanos na medida em que não são empregadores, mas empregados. E seguindo este raciocínio, a sociedade humana tornara-se, como cita Polanyi, um acessório do sistema econômico.

Polanyi vai finalizando o capítulo comentando do efeito devastador da Revolução Industrial na Inglaterra, e cita que a história social do século XIX foi resultado de um duplo movimento (p. 98): “a ampliação da organização do mercado em relação às mercadorias genuínas, acompanhada pela sua restrição em relação às mercadorias fictícias”. Ele complementa (p. 98) “Enquanto, de um lado, os mercados se difundiam sobre toda a face do globo e a quantidade de bens envolvidos assumiu proporções inacreditáveis, de outro uma rede de medidas e políticas se integravam em poderosas instituições destinadas a cercear a ação do mercado relativa ao trabalho, à terra e ao dinheiro”.

Para Polanyi esta foi a forma que a sociedade se protegeu dos ônus decorrente da implantação de um sistema auto-regulável, sendo este um aspecto, talvez o único, mais abrangente e acolhedor na história deste período.

Filed Under: Ensaios e Resenha
Fonte: http://visaocritica.adm.br/?p=937
Acesse o livro: A grande transfornação

Capitalismo - Episódio 6: Karl Polanyi, o Fator Humano



*   *   *

O autor Polanyi, no seu livro titulado “A grande transformação: as origens da nossa época”, trata, essencialmente, das implicações sociais de um sistema econômico particular, cuja economia de mercado atingiu sua plenitude no século XIX. A ideia de Polanyi é resgatar a história da formação dos mercados a fim de desvendar e (des)caracterizar certas ideias acerca do mesmo, revelando um novo olhar sobre as relações que fundaram e permeiam as relações de mercado.

Esta resenha trata do capítulo 5 do livro supracitado, cuja proposta é apresentar o papel do mercado na configuração da economia capitalista, revelando uma nova ótica (independente e reversa) acerca da relação entre ambos os elementos. Para tanto, Polanyi se utiliza de alguns elementos, tais como: o uso de princípios e padrões, dando especial atenção ao princípio de comportamento econômico da Permuta, barganha e troca; as relações existentes entre mercado externo e interno/local; e pontos de vista político (interno e externo) e econômico do papel do estado na economia.

Inicialmente Polanyi apresenta certos princípios do comportamento econômico e padrões dos quais eles necessitam para a sua efetivação no local que se chama mercado (produção de preço). Neste momento ele relaciona os princípios da Reciprocidade/ Redistribuição/ Domesticidade com os padrões de Simetria/ Centralidade/ Autarquia, respectivamente; sinalizando para importância da identificação de um padrão de mercado também para o princípio foco deste capítulo, a Permuta (mesmo que ela não produza o essencial do mercado- preço).

Em seguida Polanyi comenta que o princípio da Permuta não está em paridade estrita com os três outros princípios. Para o autor (p. 77): “O padrão de mercado, com o qual ele está associado, é mais específico do que a simetria, a centralidade ou a autarquia – os quais, em contraste com o padrão de mercado, são meros “traços” e não criam instituições designadas para uma função apenas”.

Polanyi aprofunda estas relações, citando que o padrão de mercado Simetria não dá origem a instituições isoladas, mas apenas padroniza as já existentes. Já o padrão de mercado Centralidade cria instituições distintas, mas não as particulariza para uma função específica única. E o padrão de mercado Autarquia é (p. 77) “[…] apenas um traço acessório de um grupo fechado existente”.

Para Polanyi, entretanto, o padrão de mercado, quando relacionado a um motivo peculiar próprio, a Barganha ou Permuta, é capaz de criar uma instituição específica – o mercado -, e é este mercado que, segundo Polanyi, que vai carregar com ele a sociedade. Aqui Polanyi traz uma revelação importante (p. 77):“[…] Em vez de a economia estar embutida nas relações sociais, são as relações sociais que estão embutidas no sistema econômico”. Aqui se comprova a existência do fator econômico como vital para a existência da sociedade, o que caracteriza o sistema econômico organizado em instituições separadas, baseado em motivos específicos e concedendo um status especial. Em outras palavras, uma economia de mercado funcionando (e só funcionando) em uma sociedade de mercado.

Aqui Polanyi (re)caracteriza o mercado como uma econômica de mercado auto regulável, deixando claro que isso decorreu não como resultado natural da difusão dos mercados, mas sim como efeito de estimulantes altamente artificiais administrados ao corpo social, representado pelas máquinas. Polanyi, neste momento, revela o que de fato emerge na atual pesquisa sobre este tema, a saber, o não reconhecimento da natureza limitada e não expansiva do padrão de mercado como tal.

Com base em pensamentos do Economics in Primitive Communities, de Thurnwald, Polanyi complementa seu estudo revelando que o dinheiro não seria o responsável pelas mudanças na sociedade. Cita ainda que o mercado seria apenas responsável (talvez) pelas questões de isolamento e tendência à reclusão, e que a organização interna da economia não seria explicada pela presença ou ausência de mercado, ou seja, a explicação é mais profunda.

Tal explicação se daria, pelo autor, por uma pequena frase (p. 78): “As razões são simples. Os mercados não são instituições que funcionam principalmente dentro de uma economia, mas fora dela”. As noções de comércio local e à longa distância são trazidas por Polanyi, cujo primeiro (o local) é de pouca importância e não compete com o segundo, dissolvendo a pressão para se criar um comércio territorial, o assim chamado mercado interno ou nacional.

Para Polanyi tal lógica vai na mão contrária à doutrina clássica, ou seja, o ensino ortodoxo parte do princípio do indivíduo à propensão à Permuta, o que traz a necessidade de mercados locais, divisão do trabalho e necessidade de comércio (inclusive à longa distância).

Neste ponto Polanyi reverte a sequência do argumento, colocando no centro do debate a localização geográfica (que levaria à prática do padrão de mercado Barganha ou Regateio) quando cita que (p. 79):“[…] o verdadeiro ponto de partida é o comércio de longa distância, um resultado da localização geográfica das mercadorias, e da “divisão do trabalho” dada pela localização. O comércio de longa distância muitas vezes engendra mercados, uma instituição que envolve atos de permuta e, se o dinheiro é utilizado, de compra e venda […].

O aspecto dominante nesta nova doutrina, segundo Polanyi, é a origem do comércio em uma esfera externa que, inclusive, não tem relação com a esfera interna da economia. Para tanto, Polanyi cita a obtenção de bens distantes, por meio da caça, para representar as origens do comércio. Aqui dois tipos de comércio se fazem presentes, o comércio unilateral, representado pela luta da espécie pela aquisição do produto, e o comércio bilateral, representado pela troca por conta das chantagens locais ou acordos de reciprocidade.

Retificando tal afirmação Polanyi cita que, originalmente, o comércio nem sempre envolveu mercados; bem como era muito mais voltado ao princípio da reciprocidade (aventura, caça) do que da permuta (mercado, economia). Para Polanyi (p. 80): “Ele pode implicar tanto em paz como em bilateralidade, porém, mesmo quando implica ambos, ele é baseado, habitualmente, no princípio da reciprocidade, e não da permuta”.

Neste momento do texto o autor começa a tratar a diferença (anteriormente evocada) entre mercado externo e comércio local, afirmando que, embora diferentes (tamanho, função e origem), se complementam. O primeiro é uma transação, já o segundo é limitado às mercadorias da região. Ainda: (p. 80): “Assim, tanto o comércio exterior quanto o local são relativos à distância geográfica, sendo um confinado às mercadorias que não podem superá-la e o outro às que podem fazê-lo. Um comércio desse tipo é descrito corretamente como complementar”.

Além do conceito de complementaridade que Polanyi traz aqui, ele apresenta também o conceito de competição, quando cita que (pg. 81): “Além das trocas complementares, ele inclui um número muito maior de trocas nas quais mercadorias similares, de fontes diferentes, são oferecidas em competição umas com as outras”.

Tentando tratar da origem dos mercados internos ou nacionais Polanyi cita que nem o porto, nem a feira e nem o empório foi o pai destes, acrescentando que atos individuais de permuta e troca também não são responsáveis por isso, especialmente em mercados onde predominam outros princípios de comportamento econômico.

Embora obscura esta origem, o autor sente segurança em afirmar que houveram uma série de salvaguardas destinadas a proteger a organização econômica vigente na sociedade de interferência por parte das práticas de mercado. Para ele (p. 82): “A paz do mercado era garantida ao preço de rituais e cerimônias que restringiam seu objetivo, enquanto asseguravam sua capacidade de funcionar dentro dos estreitos limites dados”. Aqui as cidades não só protegiam o mercado, mas também o impediam de se expandirem pelo campo, e, assim, incrustarem-se na organização econômica corrente da sociedade.

Polanyi chega ainda à conclusão de que os mercados locais não foram pontos de partida do comércio interno ou nacional, na medida em que são, essencialmente, mercados de vizinhança e, embora importantes para a vida das comunidades, em nenhum lugar revelam indícios de reduzir o sistema econômico vigente a seus padrões.

As chamadas nações eram, neste contexto, segundo o autor, apenas unidades políticas frouxas, auto-suficientes e sem significado para os mercados locais nas aldeias. Tais distritos organizados, como chama Polanyi, tinham atuação do comércio local ou a longa distância separadamente e sem infiltração no campo. Este fato peculiar constitui a chave da história social da vida urbana na Europa Ocidental.

Ao chegar a esta conclusão (sem alternativa) Polanyi evoca a intervenção estatal para explicar a formação do comércio local, mas antes de argumentar mais sobre isso, o autor faz um rápido esboço da história da civilização urbana conforme modelada pela separação peculiar entre o comércio e a longa distância, dentro dos limites da cidade medieval. Aqui aspectos como influencia militar e política da cidade (lidar com camponeses das redondezas); suprimento de alimentos (cuja regulamentação envolvia a aplicação de métodos tais como a publicidade obrigatória das transações e a exclusão de intermediários); artefatos industriais (separação profunda entre comércio local e a longa distância, dada a exportação afetada) foram abordados.

Tal desenvolvimento leva Polanyi a afirmar que se forçou o estado territorial a se projetar como instrumento da “nacionalização” do mercado e criador do comércio interno. Para Polanyi (p. 86):

A ação deliberada do estado nos séculos XV e XVI impingiu o sistema mercantil às cidades e às municipalidades ferrenhamente protecionistas. O mercantilismo destruiu o particularismo desgastado do comércio local e intermunicipal, eliminando as barreiras que separavam esses dois tipos de comércio não-competitivo e, assim, abrindo caminho para um mercado nacional que passou a ignorar, cada vez mais, a distinção entre cidade e campo […].

A partir deste momento, e em cima desta constatação, Polanyi faz análises do papel do estado sob os pontos de vista político e econômico. Do ponto de vista político, a nova política estatal mercantilista envolvia a disciplina dos recursos de todo território nacional para os objetos de poder nos assuntos externos.

Do ponto de vista econômico, o instrumento de unificação foi o capital, i.e., os recursos privados disponíveis sob a forma de dinheiro acumulado, e portanto, peculiarmente adequado para o desenvolvimento do comércio.

Agora a intervenção estatal, de posse de um fato – liberação do comércio dos limites da cidade privilegiada – tinha de lidar com dois perigos – o monopólio e a competição, o que desagua na total regulamentação da vida econômica, só que agora em escala nacional e não mais apenas municipal. Este mercado nacional assumiu o seu lugar ao lado dos mercados local e estrangeiro, às vezes sobrepujando-os em parte, o que conclui, segundo Polanyi, a sinopse do mercado até a época da Revolução Industrial.

Polanyi finaliza este capítulo deixando uma abertura para o estágio seguinte na história da humanidade, caracterizado pela tentativa de estabelecer um grande mercado auto-regulável, bem como deixa claro que a libertação do comércio, até aqui apresentada, o liberou do particularismo, ao tempo em que ampliou o escopo da regulamentação. Em outras palavras, ele – o mercado – ainda continua regulado e subordinado a uma autoridade social, o que costura o fim do capítulo ao seu início.

Filed Under: Ensaios e Resenha
Fonte: http://visaocritica.adm.br/?p=937