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Valsa com Bashir


Título Nacional: Valsa com Bashir
Título Original: Vals im Bashir 
Idioma: Hebraico 
Diretor: Ari Folman 
Gênero: Filme/Documentário/Biográfico 

O conflito no oriente médio não é de agora. Há décadas, países lutam por questões territoriais e religiosas, resultando em grandes destruições e aumentando ainda mais o ódio étnico e a intolerância multicultural vizinha. A migração de refugiados de guerra também é uma questão para se analisar com bastante cautela. 

O filme-documentário-biográfico "Valsa com Bashir" (em hebraico Vals im Bashir) aborda essa última questão. O ex-combatente israelense e diretor do filme, Ari Folman, retrata um dos períodos mais conturbados na história, marcados por intensos conflitos durante a ocupação das forças Israelenses no Líbano até a chegada à capital Beirute, em 1982, no intúito de derrubar as forças palestinas. 

O assassinato do presidente cristão Bashir Gemayel colaborou no massacre de dois mil civis nas cidades de Sabra e Chatila, cidades em destaque no filme. 

Diferente da linha comercial cinematográfica, Ari Folman relata a sua angústia e intensa busca às lembranças dos acontecimentos em formato de animação. Alías, "Valsa com Bashir" foi o primeiro documentário animado a ser veiculado e indicado a cinco Oscars de melhor filme estrangeiro.

Ser antissionista é ser antissemita?

 

O lobby israelense e seus ferrenhos apoiadores não lutam contra o antissemitismo que alegam existir, eles lutam contra a crítica à Israel. 

Em geral, quando se inicia um debate crítico a respeito da política do Estado de Israel, suas ações militares e de intervenção em território da Palestina ou mesmo em outras regiões do Oriente Médio, surgem diversos comentários de seus apoiadores em sua defesa, para explicar e justificar as barbáries cometidas pela “única democracia do Oriente médio”. Dentre esses comentários, surgem diversas acusações, sendo a mais grave acusar de antissemita todos os que se opõem ao Estado e a política de Estado de Israel.

Toda crítica política ao sionismo é tomada como sinônimo de antissemitismo, segundo intelectuais sionistas e apoiadores. De fato, dentre algumas críticas ao Estado de Israel, existem manifestações antissemitas de organizações neonazistas e, entre outras, de organizações que se declaram islâmicas. O ponto central é contextualizar ao leitor como cada conceito se encaixa nessa discussão, para não serem mal interpretados ou tirados de contexto como comumente tem ocorrido.

De acordo com Santos (2018, p. 12) “Sionismo é um movimento político com aspirações nacionalistas, que afirma o direito à existência de um Estado Judaico” e que historicamente propõe a erradicação da diáspora judaica, tendo como seu principal teórico o judeu Theodor Hetz (1860-1904). Dentro do movimento sionista, três locais foram pensados para construção do Estado: Argentina por ter uma das maiores comunidades judaicas do mundo, Uganda por estar sob mandato britânico na época de negociações com o movimento sionista e a Palestina por também estar sob mandato britânico e ser uma região historicamente importante para os judeus.

Hetz teorizou e concentrou essas ideias em sua principal obra O Estado Judeu (1896). Essa ideia ganha força frente aos violentos atentados e perseguições contra judeus no ocidente sobretudo na Inglaterra, Alemanha, França e Rússia que se intensificaram durante os séculos XVIII e XIX. Essas perseguições a judeus ficaram conhecidas como pogroms.[i]

Antissionismo é um termo utilizado por ativistas sociais dos Direitos Humanos, movimentos que se opõem à ideia de criação de um Estado nacional judaico na Palestina histórica e sobretudo que se opõem à política do Estado de Israel. Antissemitismo é o preconceito e discurso de ódio contra semitas, englobando principalmente o ódio contra judeus. Os Semitas englobam várias etnias como judeus, árabes hebreus, arameus, fenícios e assírios.

Durante o século XX a máquina de propaganda israelense se apropriou do termo “antissemita” como preconceito cometido apenas contra judeus excluindo os outros povos semitas. Em protesto a isso alguns autores preferem utilizar o termo “judeofobia”. Um judeu étnico, por lógica, nunca poderá ser antissemita, mas pode manifestar oposição política e religiosa ao sionismo. Muitos judeus étnicos e religiosos ortodoxos rejeitam veemente o Estado judeu ou como preferem chamar o Estado sionista. A comunidade judaica no pós-Segunda Guerra Mundial passou por uma de suas maiores rupturas da história quando se tratou de apoiar a criação do Estado de Israel e consequentemente a política de imigração para a Palestina onde se tornaram colonos.

A ideia de que durante 2000 anos os judeus anseiam retornar à Terra Santa é falso e desmentido pela comunidade judaica tradicional. Rabinos fiéis a interpretação da Torá afirmam constantemente em seus protestos contra o sionismo que o retorno à Terra Santa, segundo o livro sagrado, só poderia ocorrer por ocasião do advento do Messias.

“Os judeus piedosos que criticam publicamente o sionismo creem que devem agir assim por causa de obrigações impostas pela Torá. A primeira é impedir a profanação do nome de Deus. Como o Estado de Israel pretende atuar em nome de todos os judeus do mundo, inclusive em nome do judaísmo, esses judeus sentem-se obrigados a explicar publicamente, principalmente aos não judeus, o que consideram uma interpretação fraudulenta. A segunda obrigação deriva do preceito de preservar a vida humana. Ao ressaltar a rejeição judaica ao sionismo, eles esperam afastar os judeus da animosidade que, em sua opinião, o Estado de Israel provoca entre as nações. Desejam evitar que os judeus de todo o mundo se transformem em reféns das políticas israelenses e de suas consequências. Afirmam que o Estado de Israel deve ser conhecido como o “Estado sionista” e não como “o Estado judeu” ou “Estado hebreu”.[ii]

Essa tentativa de assimilar antissionismo a antissemitismo é uma grande ferramenta por parte do Estado de Israel e seus aliados para silenciar qualquer crítica direcionada aos mesmos como se fossem críticas ao judaísmo e aos judeus. Isso não passa de uma forma discursiva genial para silenciar os críticos do sionismo israelense. Interessante observarmos que esse tipo de silenciamento tem se tornando uma política por parte do Estado sionista e seus apoiadores.

Podemos utilizar como exemplo de silenciamento o professor Steven Salaita[iii] que em 2014 teve sua oferta de emprego rescindida pela universidade de Illinois após uma série de tweets que direcionaram críticas ao Estado de Israel. Após muito lobby por parte do movimento sionista americano o professor não foi aceito em qualquer outra universidade, tempos depois o professor entrou na justiça e conseguiu reverter a situação entrando em acordo com a universidade e recebendo cerca de US $ 600.000.

A associação dos judeus com o Estado de Israel é quase que automática quando mencionada em mídias ou meios acadêmicos. Quando quaisquer opositores ferrenhos do sionismo gritam pelo fim do Estado de Israel e pedem a autodeterminação do Estado Palestino pluri étnico e laico logo são associados como inimigos do povo judeu espalhados pelo mundo. Os sionistas fizeram algo muito bem além de expulsar os palestinos de suas terras e serem responsáveis pela diáspora do povo descendente dos filisteus, souberam criar e reforçar a ligação da comunidade judaica mundial com o Estado de Israel se apresentando como a vanguarda dos judeus. A escola de pensamento e propagação das ideias sionistas não deve de modo algum representar o judaísmo, assim como a Al-Qaeda e o ISIS-Estado Islâmico não representam o Islã.

A filósofa judia Judith Butler vê nessas associações consequências extremamente negativas para o movimento judeu: “Nos Estados Unidos, fiquei alarmado com o número de judeus que, desanimados com a política israelense, incluindo a ocupação, as práticas de detenção por tempo indeterminado, o bombardeio de populações civis em Gaza, buscam negar sua condição de judeu. Eles cometem o erro de pensar que o Estado de Israel representa o judaísmo para nossos tempos, e que, se alguém se identifica como judeu, apoia Israel e suas ações. E, no entanto, sempre houve tradições judaicas que se opõem à violência estatal, que afirma a coabitação multicultural e defendem princípios de igualdade, e essa tradição ética vital é esquecida ou marginalizada quando qualquer um de nós aceita Israel como base da identificação judaica”.[iv]

Antissionismo não é de modo algum antissemitismo, pelo mesmo fato de ser antinazista não significa ser contra o povo alemão. Ser contra o sionismo israelense e sua política de apartheid, segregação, violação dos direitos humanos, limpeza étnica contra os palestinos, não pode ser considerado um ato “antissemita”. O lobby israelense e seus ferrenhos apoiadores não lutam contra o antissemitismo que alegam existir, eles lutam contra a crítica à Israel.

Gustavo Alves Lima é graduado em história pela Universidade Federal da Integração Latino-americana (UNILA).

Notas
[i] Pogroms (em russo “destruição”): Eram massacres organizados para o aniquilamento de qualquer grupo ou classe, especialmente com a conivência do governo russo contra os judeus. O termo foi usado pela primeira vez fora da Rússia ao tempo dos levantes antijudaicos organizados pelas Centúrias Negras na Rússia no ano de 1905, mas é frequentemente aplicado às insurreições russas anteriores, a partir de 1881 (ROTH, 1966, p. 976).
[ii] Rabkin, Yakov M. Judeus contra Judeus – a História da Oposição Judaica ao Sionismo. Cotia, SP: Acatu, 2009. p.17
[iii] professor e intelectual palestino-americano que ficou conhecido por ganhar um processo contra a universidade de Illinois. https://www.thenation.com/article/archive/why-unhiring-steven-salaita-threat-academic-freedom/
[iv] Judith Butler responds to attack: ‘I affirm a Judaism that is not associated with state violence’ – Judith Butler on August 27, 2012 – Mondoweiss, Disponível: <http://mondoweiss.net/2012/08/judith-butler-responds-to-attack-i-affirm-a-judaism-that-is-not-associated-with-state-violence/>

Massacre na Palestina

Apenas a criação de um Estado palestino soberano e independente pode interromper décadas de hostilidades. É preciso que os assuntos mais espinhosos sejam abordados com urgência e coragem.


Imagino Gaza como refém do horror. Quantos funerais devem estar ocorrendo todos os dias... Quantas famílias destroçadas, sem casa, sem comida, sem esperança... Quantas mães choram a morte dos filhos, quantas ficaram com a lembrança do rostinho sorrindo, talvez com um brinquedo ou uma roupa... As bombas trazem o fim e o luto, dia e noite. Mais de 1 milhão de 2,4 milhões dos moradores de Gaza estão desalojados ou deslocados internamente.

Enquanto isso, o mundo silencia. Não se justifica vingar o massacre de civis com a matança da população. É desumano, criminoso. Impor a morte aos homens sem vínculos com extremistas, às crianças, às mulheres e aos idosos, como resposta à barbárie cometida por um grupo, equivale a tratar os palestinos como escória humana. Matar bebês, meninos e meninas em bombardeios é exterminar gerações inteiras. Para muitos, trata-se de genocídio.

Defender a causa palestina não é compactuar com as atrocidades cometidas pelo Hamas. Não consigo dimensionar o terror experimentado pelos moradores do sul de Israel em 7 de outubro. Assisti ao filme de 43 minutos com gravações feitas pelas câmeras corporais dos próprios extremistas do Hamas, com imagens captadas pelas Forças de Defesa de Israel ou pelo circuito interno de segurança nas casas dos kibbutzim. Estive no sul de Israel, em março passado; visitei um kibbutz, um ambiente pacato, onde a paz predominava boa parte do tempo. Eu me solidarizo com a população do sul de Israel.

Mas, também, estendo meus pensamentos aos palestinos de bem, a imensa maioria, vítimas de bombardeios massivos que, como o embaixador Ibrahim Alzeben me disse, são vítimas de uma "política da terra arrasada". Todos os dias recebo imagens e vídeos de Gaza. Um menino de uns dois ou três anos treme compulsivamente; um homem abraça a filha, uma garota de uns seis anos, e ambos choram compulsivamente; um palestino em prantos embala os restos mortais da mãe, envoltos em um cobertor. O mundo precisa chorar por Gaza e deter essa atrocidade, que somente alimenta o ódio e o desejo de vingança. Os palestinos de Gaza estão condenados à desesperança.

Apenas a criação de um Estado palestino soberano e independente pode interromper décadas de hostilidades. É preciso que os assuntos mais espinhosos sejam colocados à mesa e abordados com urgência e coragem: a partilha de Jerusalém, o retorno dos refugiados, o fim dos assentamentos judaicos e da ocupação israelense, a autodeterminação dos palestinos. Chega de mortes, de luto, de crimes abomináveis. Os dois povos podem e devem conviver em paz. Concordo com Avi Issacharoff, jornalista israelense criador da premiada série Fauda. Uma solução baseada em dois Estados seria capaz de ferir de morte o Hamas. Levaria progresso e esperança a Gaza e aos demais palestinos.

Rodrigo Craveiro
Fonte: https://www.correiobraziliense.com.br/opiniao/2023/11/6651989-artigo-massacre-na-palestina.html

“The Lobby”: censurado por Israel (Parte 3)

O terceiro episódio da série mostra como se articula a rede de difamação de ativistas pacíficos em favor dos direitos dos palestinos – e revela quem está por trás da Canary Mission: o presidente do Conselho Americano-Israelita e magnata do ramo imobiliário Adam Milstein. Sua identidade havia escapado dos ativistas pró-Palestina por anos, apesar dos esforços constantes para revelá-la.

Condenado por fraude fiscal em 2009, Milstein financia inúmeras organizações pró-Israel. Em uma conversa com o repórter infiltrado da Al Jazeera, ele também evidenciou a estratégia para minar o ativismo pró-Palestina: “Antes de mais nada, investigue quem são eles. Qual é a agenda deles? Eles estão se implicando com os judeus porque é fácil, porque é popular. Precisamos expor o que eles realmente são”, afirmou. “Precisamos botá-los para correr”.

Também sem saber que estava sendo gravado, o então diretor de desenvolvimento do The Israel Project Eric Gallagher revelou: “Adam Milstein, ele é o cara que financia [a Canary Mission]”. Segundo ele, o magnata trabalha com pessoas focadas em espionagem digital.

“Há um grupo de pessoas anônimas que têm uma estratégia digital muito sofisticada para expor essas pessoas e garantir que as coisas colem nelas. Não há ninguém do lado deles fazendo isso, então você não tem que se preocupar com sua reputação”, confessou.

Apesar de ser a arma mais temida na guerra psicológica travada por grupos pró-Israel, a Canary Mission não está sozinha nessa estratégia suja de difamação e perseguição.

A Fundação de Defesa das Democracias, grupo ligado ao Ministério de Assuntos Estratégicos de Israel, segue a mesma linha, forjando conexões infundadas entre o Hamas e os membros do BDS. O presidente da Organização Sionista da América, Morton Kelly, também reforçou: “Temos que deixar claro, de todas as maneiras possíveis, que eles estão sendo financiados e treinados por amantes perversos do Hamas”. O Hamas é oficialmente designado como uma organização terrorista pelos Estados Unidos, e o apoio material ao grupo é um crime.

O lobby de Israel também tem criminalizado o movimento não violento do BDS mais diretamente: dezenas de estados dos EUA aprovaram leis que proíbem e/ou penalizam o boicote a Israel. A Suprema Corte dos EUA, que atualmente é dominada por republicanos de direita, recusou-se este ano a ouvir uma contestação a uma dessas leis com base na liberdade de expressão.



Canary Mission à brasileira
Aqui no Brasil, o Instituto Brasileiro pela Liberdade começou a imitar o modus operandi da Canary Mission. Enquanto Israel comete um genocídio em Gaza, matando milhares de civis após o ataque do Hamas a israelenses em 7 de outubro, a organização criou um formulário para “identificar os professores universitários que apoiam o grupo terrorista Hamas dentro das instituições de ensino”.

O instituto esconde seu viés de extrema direita ao se definir como um promotor “da liberdade, da vida, da justiça, dos direitos humanos, da paz”. Mas suas ações recentes, além da criação do formulário, incluem a criação do 1º Colóquio Olavo de Carvalho em Duque de Caxias, cidade da Baixada Fluminense.

E a caça às bruxas não para por aí. Nesta semana, deputados bolsonaristas também começaram a divulgar em suas redes sociais nomes de brasileiros que seriam ligados ao Hamas. Uma das parlamentares chegou a pedir que seus seguidores enviem por e-mail provas de mais conexões de brasileiros com o Hamas. Segundo os deputados bolsonaristas, uma lista com os nomes foi enviada à embaixada americana com uma solicitação para que esses indivíduos tenham seus vistos dos EUA rejeitados ou revogados com base na acusação de serem apoiadores do terrorismo.

O deputado federal Ivan Valente, do PSOL paulista, foi apontado como um dos defensores do grupo terrorista. Em suas redes, ele afirmou: “Vamos ao STF [Supremo Tribunal Federal] com queixa-crime por injúria e difamação, ação civil por danos morais e Conselho de Ética”.

40 anos de Sabra e Chatila:

 

Há 40 anos, na noite de 16 de Setembro de 1982, milícias falangistas cristãs libanesas invadiram os campos de refugiados palestinos de Sabra e Chatila, nos arredores de Beirute, com o apoio do exército israelita que, desde Junho, ocupava a capital do Líbano.

Durante dois dias, os falangistas, instigados por Israel, levaram a cabo um hediondo massacre de que resultaram numerosas vítimas palestinas, em grande parte mulheres e crianças.

Soldados israelitas cercaram os campos para impedir que os refugiados saíssem, e durante a noite disparavam foguetes luminosos para ajudar a ação dos criminosos falangistas. Ao fim dos dois dias de massacre, Israel forneceu os buldózeres para cavar valas comuns.

O número exato de vítimas é difícil de determinar pois, além do milhar de corpos enterrados em valas comuns, muitas vítimas ficaram soterradas nas casas derrubadas a buldózer pelas milícias e centenas de palestinos foram por elas levados para destino desconhecido de onde nunca regressaram. Uma estimativa credível aponta para 3500 vítimas.

Um cenário de horror
O massacre foi de uma barbaridade inaudita. Ao entrar no campo de Chatila no dia 19, a jornalista americana Janet Lee Stevens deparou-se com a cena de corpos com membros e cabeças cortadas, alguns rapazes castrados, corpos retalhados com cruzes. "Vi mulheres mortas nas suas casas com as saias levantadas até a cintura e as pernas abertas; dezenas de jovens mortos a tiro depois de terem sido alinhados contra uma parede; crianças com a garganta cortada, uma mulher grávida com a barriga esventrada, de olhos ainda muito abertos, o rosto enegrecido gritando silenciosamente de horror; inúmeros bebés e crianças pequenas que tinham sido esfaqueadas ou despedaçadas e que tinham sido atiradas para pilhas de lixo."

Robert Fisk descreve um cenário de horror: "O que encontrámos no campo palestino de Chatila às 10 da manhã de 18 de Setembro, desafia qualquer descrição (…) Havia mulheres jazendo nas suas casas com as saias rasgadas até ao peito e as pernas todas abertas, crianças com as gargantas cortadas, filas de jovens baleados nas costas depois de alinhados numa parede de execução. Havia bebés (…) cujos corpos tinham sido lançados para pilhas de lixo, juntamente com latas vazias de rações do exército americano, equipamento médico do exército de Israel e garrafas vazias de whisky. (…). Havia uma pilha de corpos, mais de uma dúzia de jovens (…) mortos à queima-roupa (…) um tinha sido castrado (…) o mais novo teria só 12 ou 13 anos. (…). Encontrámos os corpos de cinco mulheres e várias crianças (…) Uma das mulheres tinha um bebé ao colo. A bala que lhe atravessou o peito matou também o bebé."

No seu ensaio Avenging Sabra and Shatila, citado por Ramzy Baroud em artigo recente evocativo da efeméride, Kifah Sobhi Afifi descreveu o ataque conjunto falangista-israelita ao seu campo de refugiados quando ela tinha apenas 12 anos de idade. "Por isso fugimos, tentando ficar o mais perto possível dos muros do campo. Foi então que vi as pilhas de cadáveres por todo o lado. Crianças, mulheres e homens, mutilados ou a gemer de dor enquanto morriam. As balas voavam por todo o lado. As pessoas estavam a cair à minha volta. Vi um pai a usar o seu corpo para proteger os seus filhos, mas eles foram todos alvejados e mortos na mesma".

As reações internacionais
No mesmo artigo de Ramzy Baroud, ele refere que a Dra. Swee Chai Ang, que tinha acabado de chegar ao Líbano como cirurgiã voluntária e estava colocada no Hospital de Gaza em Sabra e Chatila, escreveu num artigo recente que, após a divulgação de fotografias dos "montes de cadáveres nos becos do campo", seguiu-se um ultraje mundial, mas tudo isso foi de curta duração. "As famílias e os sobreviventes das vítimas foram logo deixados sozinhos para se dedicarem às suas vidas e reviverem a memória daquela dupla tragédia do massacre e das 10 semanas precedentes de intenso bombardeamento terrestre, aéreo e marítimo e bloqueio de Beirute durante a invasão".

Em 19 de Setembro de 1982 o Conselho de Segurança das Nações Unidas aprovou por unanimidade a Resolução 521 que "condena o massacre criminoso de civis palestinos em Beirute".

Em 16 de Dezembro desse mesmo ano, a Resolução 37/123 da Assembleia Geral da ONU "condena nos termos mais fortes o massacre em grande escala de civis palestinos nos campos de refugiados de Sabra e Chatila" e "resolve que o massacre foi um ato de genocídio".

No dia seguinte, a AG aprovou a Resolução 37/134 que "condena Israel pela sua invasão do Líbano que infligiu graves danos aos civis palestinos, incluindo pesadas perdas de vidas humanas, sofrimento intolerável e destruição material maciça".

E depois, o silêncio.

Os culpados
Quarenta anos passaram sobre o horror de Sabra e Chatila. Todos os responsáveis ficaram impunes. Os sobreviventes e os descendentes das vítimas continuam à espera que lhes seja feita justiça.

Robert Fisk não tem dúvidas: "Se os israelitas não tinham participado nas matanças, tinham certamente enviado milícias para o campo. Tinham-nas treinado, dado-lhes uniformes, entregado rações do exército americano e equipamento médico israelita. Depois tinham assistido aos assassinatos nos campos, tinham-lhes dado assistência militar - a força aérea israelita tinha lançado todos aqueles foguetes luminosos para ajudar os homens que estavam a assassinar os habitantes de Sabra e Chatila - e tinham estabelecido uma ligação militar com os assassinos nos campos."

A Comissão de Inquérito Kahan, criada por Israel em 28 de Setembro de 1982, concluiu que a "responsabilidade direta" recaía sobre os falangistas, embora Israel tenha sido considerado "indiretamente responsável". O Ministro da Defesa Ariel Sharon foi considerado como tendo "responsabilidade pessoal" por "ignorar o perigo de derramamento de sangue e vingança" e "não tomar as medidas adequadas para impedir o derramamento de sangue". Foi demitido do seu cargo, mas isso não obstou a que se tornasse Primeiro-Ministro de Israel em 2001.

Ariel Sharon, supremo comandante militar da invasão do Líbano, encontrava-se pessoalmente a poucas centenas de metros do local do crime e nada fez para impedir o massacre. Mas o seu envolvimento na morte de palestinos não começou nem terminou ali Uma publicação do Institute for Midle East Understanding enumera a longa lista de crimes de guerra e de crimes contra a humanidade imputáveis a Ariel Sharon, desde que, em Outubro de 1953, no âmbito da chamada Operação Shoshana, foi o responsável directo pelo massacre de 69 palestinos, dos quais dois terços eram mulheres e crianças, na aldeia de Qibya.

O primeiro-ministro israelita na altura, Menachim Begin, também escapou impune à sua responsabilidade pela morte de mais de 17 000 libaneses, palestinos e sírios na invasão do Líbano em 1982.

A responsabilidade
O massacre de Sabra e Chatila foi uma consequência directa da impunidade concedida a Israel pelos EUA e pela comunidade internacional. Ainda que particularmente hediondo, o massacre de Sabra e Chatila não é uma excepção, antes se inclui numa longa série de crimes contra o povo palestino que caracteriza a história de Israel, ainda desde antes da sua criação em 14 de Maio de 1948.

"Teria Israel sido capaz de invadir e massacrar à vontade se não fosse o apoio militar, financeiro e político dos Estados Unidos e do Ocidente?", questiona Ramzy Baroud no artigo que vimos citando. "A resposta é não. Aqueles que têm dúvidas quanto a tal conclusão só precisam de considerar a tentativa, em 2002, por parte dos sobreviventes do massacre dos campos de refugiados do Líbano, de responsabilizar Sharon. Levaram o seu caso à Bélgica, tirando partido de uma lei belga que permitia a acusação de alegados criminosos de guerra internacionais. Após muita discussão, muitos atrasos e intensa pressão por parte do governo dos EUA, o tribunal belga acabou por abandonar completamente o caso. Por fim, Bruxelas alterou as suas próprias leis para garantir que tal crise diplomática com Washington e Telavive não se repetiria."

A memória
Quarenta anos depois, os nomes de Sabra e Chatila permanecem vivos na memória da humanidade como sinónimos da barbárie e da natureza criminosa do Estado sionista.

São também um testemunho da natureza volúvel da comunidade internacional que passa rapidamente do estado de choque para o olvido, quando não para a desculpabilização.

Mas Sabra e Chatila, bem como todos os episódios da ocupação da Palestina, são também um sinal de que, apesar do longo cortejo de atrocidades israelitas e da sua impunidade, a resistência do povo palestino não quebra.

Violência e banalidade do mal

Jerome Kohn, assistente de ensino e intérprete de Hannah Arendt, escreveu que o problema do mal é o principal eixo argumentativo a atravessar toda a reflexão político-filosófica arendtiana. A base da reflexão da pensadora é a experiência totalitária. Ao ligar essa experiência ao mal, Hannah Arendt apontou o paroxismo da violência perpetrada pelos governos totalitários e mostrou a insuficiência das teorias e categorias científicas, econômicas e políticas tradicionais para captar e explicar a novidade do que estava acontecendo. O domínio total é mais opressor que a escravidão e a tirania, é mais destruidor que a miséria econômica e o expansionismo territorial. O controle total pretende atingir e capturar os humanos; adota, como critério de legitimidade governamental, a redução dos homens a seres naturais. O recurso à categoria do mal é uma forma de tentar compreender o inexplicável e visa aproximar-se reflexivamente da primeira tentativa de constituição de uma forma de governo, no Ocidente, baseada na purificação e no extermínio dos seres humanos. Trata-se, assim, de pensar o mal nas sociedades secularizadas sem apelar ao teor teológico-religioso.


O tema do mal, em Arendt, não tem como pano de fundo a malignidade, a perversão ou o pecado humano. A novidade da sua reflexão reside justamente em evidenciar que os seres humanos podem realizar ações inimagináveis, do ponto de vista da destruição e da morte, sem qualquer motivação maligna. O pano de fundo do exame da questão, em Arendt, é o processo de naturalização da sociedade e de artificialização da natureza ocorrido com a massificação, a industrialização e a tecnificação das decisões e das organizações humanas na contemporaneidade. O mal é abordado, desse modo, na perspectiva ético-política e não na visão moral ou religiosa.

Faz-se necessário esclarecer, antes de avançarmos, que Hannah Arendt nunca sistematizou suas reflexões sobre o assunto. Colhemos os elementos do seu ponto de vista nas seguintes obras: Origens do totalitarismo (1951), Eichmann em Jerusalém (1963), A vida do espírito (1971) e em outros textos publicados postumamente. Essa bibliografia está muito bem articulada no livro de Nádia Souki intitulado Hannah Arendt e a banalidade do mal (Ed. UFMG).

Contingência do mal
Em Origens, o tema aparece no cotejamento e prolongamento da reflexão kantiana sobre o mal radical. Kant percebeu que o mal pode ter origem não nos instintos ou na natureza pecaminosa do homem e, sim, nas faculdades racionais que o fazem livre. Dessa forma, o mal não possui dimensão ontológica, mas contingencial. Ele acontece a partir da interação e da reação das faculdades espirituais humanas às suas circunstâncias. O mal radical, em Kant, é uma espécie de rejeição consciente ao bem e está atrelado, ainda, ao uso dos homens como meios, instrumentos, e não fim em si mesmo. Arendt retém esse aspecto da reflexão kantiana, acrescentando-lhe a dimensão histórico-política do seu próprio tempo. Nela, o radicalismo vai relacionar-se à novidade e ao assombro diante das informações chegadas às suas mãos nos Estados Unidos, em 1943, sobre Auschwitz. Ela associou o mal radical aos campos de concentração, base de sustentação da nova forma de governo em gestação. Isso faz o assunto ultrapassar a questão judaica, embora seja incompreensível sem ela. Holocausto é pouco para captar o que surgiu, pois não se trata apenas da execução de judeus. Esse algo a mais faz sua obra dizer coisas relevantes para todos nós. O mal radical está associado ao totalitarismo, organização governamental e sistemática da vida dos homens prescindindo do discurso e da ação, considerando-os meros animais, controláveis e descartáveis. É uma forma de governar sustentada, explicitamente, no pressuposto do extermínio de setores da população e não apenas na sua opressão ou instrumentalização. Isso não diz respeito apenas à exclusão sócio-política do criminoso, nem à eliminação do opositor ou inimigo, mas a atualização da lógica da descartabilidade humana inerente àquelas formas de governo.

Ao considerar a população apenas do ponto de vista biológico, laborante, o governo total tratou de eliminar qualquer instituição ou vínculo humano que pudesse dar abrigo à solidariedade, à ação e à diferenciação entre os indivíduos. Destruindo o mundo comum (partidos, família, arte, religiões, sindicatos, justiça e outras formas de organização), no qual as pessoas poderiam ser amparadas e respeitadas, os governos totalitários constituíram-se baseados na propaganda, na espetacularização, na atomização, na solidão, na padronização, na coletivização das massas e na redução do homem a animal, ocupado exclusivamente com a sua reprodução biológica. Os regimes totais conceberam os homens apenas como seres vivos e prolongaram esse critério na escolha dos merecedores da vida. O grande temor, presente nos textos da pensadora, é que o extermínio, a nova terapia contra os humanos considerados impuros e indignos, inerente aos governos totalitários, viesse a constituir-se em elemento imanente aos governos e sociedades contemporâneas. Isso levou Arendt a afirmar: “talvez os verdadeiros transes do nosso tempo somente venham a assumir a sua forma autêntica – embora não necessariamente a mais cruel – quando o totalitarismo pertencer ao passado”.

Cumprir o seu dever
A questão do mal retorna, em Arendt, quando ela aceita o convite de uma revista americana para fazer a cobertura do julgamento de Eichmann ocorrido em Jerusalém, em 1962. As questões jurídicas e filosóficas envolvidas nesse caso foram muito bem debatidas no livro Justiça em tempos sombrios de Christina Ribas (Ed. UEPG). Se, ao mal radical, Arendt associa o surgimento e a prática da violência extremada e sistemática contra setores da população por parte de uma nova forma de governo, ao mal banal, ela vai relacionar a prática dos agentes encarregados de executar as ordens governamentais. Quem foi Eichmann? Trata-se do principal responsável pelo envio dos judeus aos campos de concentração. Em todos os relatos de Arendt, verificamos uma profunda perplexidade com a forma de Eichmann falar das suas atividades como carrasco nazista. Ele usava clichês, palavras de ordens e a moral da obrigação do bom funcionário para justificar o seu comportamento. Para ele, em nenhum momento, podia ser enquadrado como criminoso, pois apenas cumpria a sua obrigação, o seu dever. Eichmann era um ser humano normal, bom pai de família, não possuía nenhum ódio ao povo judeu e não era motivado por uma vontade de transgredir ou por qualquer outro tipo de maldade. No entanto, viabilizou o assassinato de milhões de pessoas. Foi justamente isso que levou Arendt a usar o termo banalidade do mal. Estamos diante de um tipo de mal sem relação com a maldade, uma patologia ou uma convicção ideológica. Trata-se do mal como causa do mal, pois não tem outro fundamento. O praticante do mal banal não conhece a culpa. Ele age semelhante a uma engrenagem maquínica do mal. O mal banal parece ser um fungo, cresce e se espalha como causa de si mesmo, sem raiz alguma e atinge contingentes enormes das populações humanas em diversos lugares da terra.

A pergunta de Arendt, ao se deparar com os depoimentos de Eichmann, foi: “o que faz um ser humano normal realizar os crimes mais atrozes como se não estivesse fazendo nada demais?” A resposta está no mal banal. Trata-se de uma prática do mal promissora nas sociedades massificadas, possuidoras de organizações econômicas, políticas e sociais potentes, nas quais os seres humanos tendem a se sentir sem poder, solitários, submissos e quase condicionados. Vivendo apenas como animal laborante, os homens tecnificam e burocratizam as suas obrigações e se tornam, desse modo, incapazes de pensar as conseqüências das ordens dadas pelos seus superiores ou grupos. Eichmann, segundo Arendt, agiu igual ao cão de Pavlov, que foi condicionado a salivar mesmo sem ter fome. Ele não praticou o mal motivado pela ambição, ódio ou doença psíquica. Nada disso foi encontrado em Eichmann. A única coisa que chamou atenção de Arendt foi a sua incapacidade de pensar. Ao renunciar ao pensamento, Eichmann destituiu-se da condição de ser dotado de espírito que lhe possibilitaria o descondicionamento e, assim, dizer: não, isso eu não posso.

O mal como renúncia à capacidade de julgar
O mal banal caracteriza-se pela ausência do pensamento. Essa ausência provoca a privação de responsabilidade. O praticante do mal banal submete-se de tal forma a uma lógica externa que não enxerga a sua responsabilidade nos atos que pratica. Age como mera engrenagem. Não se interroga sobre o sentido da sua ação ou dos acontecimentos ao seu redor. Buscar o sentido não é apenas se informar, não é algo da ordem do conhecimento nem da aferição da eficácia. Trata-se de medir e buscar a estatura do que está acontecendo a partir do crivo da dignificação dos envolvidos. Quem pensa resiste à pratica do mal. A busca da significação encontra muita dificuldade quando a pressa, os mecanismos e procedimentos técnicos, burocráticos e os processos econômicos auto-propelidos engolfam tudo. O praticante do mal banal renuncia à capacidade pertencente aos humanos de mudar o curso das ações rotineiras através do exercício da vontade própria. Repete heteronomamente o seu comportamento. Não se reconhece dotado de vontade, capaz de iniciar, fundar e começar. Ele também não exercita a habilidade, peculiar aos homens, de falar e comunicar o que está vendo e sentindo. Vive sem compartilhar o mundo com os outros. Renuncia, desse modo, à faculdade do julgamento. Em suma, recusa-se a viver com os dons provenientes das suas faculdades espirituais: pensar, querer e julgar.

Ao relacionar o mal ao vazio reflexivo, Arendt aponta para uma possível compreensão da violência nas sociedades contemporâneas. Nessas sociedades, o mal realiza-se na banalidade, na injustiça e nas radicais práticas de violência contra apátridas, imigrantes, mulheres, desempregados, índios, negros, crianças, idosos e a natureza.

A partir dessas teses, vemos emergir, na autora, formas de contraposição ao mal radical e ao mal banal. Na primeira, a autora propõe a recuperação da política, do mundo comum, principalmente, em A condição humana (1958); na segunda, aponta a retomada da dimensão ética em A vida do espírito (1971). Pensar, julgar e querer desembocam no cuidado com o mundo comum, no amor mundi, para usar a terminologia de Arendt, no respeito aos espaços onde os homens podem circular e se sentirem amparados pela presença dos iguais e dos diferentes. Nesse mundo comum os homens mostram que nasceram para começar e não para morrer. 

Odílio Alves Aguiar é professor de filosofia da UFC e autor de Filosofia política no pensamento de Hannah Arendt (UFC)

Ouvir Bolsonaro?


Realizado o desejo de que uma chacina ocorra a cada semana, como um ex-secretário nacional da juventude confessou recentemente, então começaremos a respirar.

“Um animal não passa sem inquietação
ao lado de um animal morto de sua espécie”
(Rousseau, Discurso sobe a desigualdade, I)

Pode ter havido mais de uma razão para que outros não tenham feito o mesmo que Jean Willys, mas a verdade é que muitos inclusive que votaram pelo impeachment poderiam ter se juntado ao deputado do PSOL para mostrar seu repúdio àquele que, ao defender o ex-militar que homenageou o coronel Ustra, acenava com uma ordem que supostamente iria além do que admitiriam muitos do partido do “sim” à revogação do mandato presidencial. Deputados do PSDB, do PSB, mesmo do DEM e do PTB, além, naturalmente, dos partidos de esquerda, poderiam, todos, sem distinção, ter reagido, para além do “decoro”, cuja manutenção, nessa altura, apenas duplicava o horror – é verdade que a câmara televisiva, fixada no local da votação, não permitiu ver muito. Em todo caso, o exagero retórico aqui é necessário, pois o nome “Ustra”, pronunciado com devoção – como se devesse adquirir características táteis, tomar corpo e grudar em outros corpos, especialmente no corpo de Dilma – constituía mais propriamente uma fórmula invocatória de tudo que não deveria jamais ser trazido à lembrança, a não ser sob uma controlada e precisa ritualização, pois deve ser respeitado o temor de que certas palavras acordem os mortos. Por isso, deixar essa palavra soar livremente, como se tem feito, em debates promovidos por clubes, programas de auditório, talk-shows, como a imprensa norte-americana fez tanto com Trump, a quem, no entanto, repudia (mas não repudiava as cifras trazidas pelo seu ibope), ao longo de anos e muito antes de sua campanha eleitoral, permitindo que se tornasse familiar o mais sinistro, ouvir o que ele tem para falar, “por sórdido que seja”, como dizem alguns bem-pensantes, pois isso seria respeitar o “Estado Democrático de Direito”, reduzido por alguns a uma espécie de fórmula mágica, salva-vidas precário daqueles que já não sentem o tapete debaixo dos pés e veem se dissolver a própria identidade política – não é ouvir, na verdade, mas consentir que soe livremente o veredito arcaico de seu enunciado, ávido por destruição tanto como o gesto de “não devo nada a ninguém”, lido como ousadia por seus entusiastas – oh ele ousa dizer o que estava na ponta de nossa língua, mas não dissemos até agora porque somos covardes. Ele é que tem colhões! E assim, na vala da covardia, vão sendo jogados decoro, respeito, senso de limite, assim como a expressão formalizada de uma convicção íntima, a tal opinião. Na verdade, seria interessante imaginar o que seria a convicção do deputado se minimamente formalizada, assim como as convicções de tantos que se expressam selvagemente em portais e redes sociais. Por uma imposição interna da forma, esse conteúdo mortífero teria de perder um pouco de si. Creio que nem o partido nacional-socialista alemão ousava se expressar assim em suas campanhas iniciais e falar tão cruamente de seu projeto de morte: ao menos na fachada, prometiam vida, comunidade, espírito, e se expressavam de um modo que mal se distinguiu em princípio das propostas do partido comunista, de que tiravam impulso para sua posição, atraindo até mesmo um certo contingente de forças progressistas para a sua base, como a promessa aos trabalhadores de que se apossariam dos meios de produção – ainda que aos capitalistas dissesse o contrário: impedir a expropriação. De fato, a assombrosa pobreza de linguagem do ex-sargento de polícia deve muito ao empobrecimento geral do vocabulário da política, também à esquerda.

Na falta de requisitos como forma e senso de limite, não há a menor perspectiva de debate esclarecido. Pois se se tratasse de debate republicano, esfera pública democrática, instituições iluministas, “o que ele tem para falar” talvez nem chegasse à consciência e buscasse outras soluções, não racionais, como um sintoma, um tique nervoso, mas jamais a expressão articulada. “O que ele tem para falar” só teria lugar no divã de um analista ou em convescotes subterrâneos com seus camaradas, jamais na esfera pública que se quer democrática. O que chamam, mesmo os que o desprezam, “ouvir a opinião de Bolsonaro”, que em pesquisa recente atinge 20% de intenções de voto, é permitir que se escoe a água mole do elogio da tortura, do estupro e do extermínio, sobre cabeças não tão duras assim, é permitir a relativização de máximas universais e a consideração de mil casos particulares em que cabe o assassinato, avulso ou de massa: em vista do momento, de certos grupos, em vista disso, daquilo – no fim de tudo chamado, conforme a expressão local e grosseira de seu fascismo, de bandidos

Por que então não houve mais manifestações como as de Willys, que solitariamente reagiu ao que no entanto deveria ter feito tremer boa parte daquele coletivo? Cuspir não seria a única reação possível –o corpo poderia exprimir, espontaneamente, sua repulsa de várias formas: gritando, desmaiando, vomitando, abandonando a sala, se enrugando numa careta. Em suma, haveria muitas maneiras, e, claro, também cuspindo, não necessariamente no deputado – alguém já o fazia –, mas no chão. Por que não cuspiram todos no chão em sinal de repulsa e em defesa da humanidade? Sim, o corpo poderia exprimir, só ele, na sua inteligência própria, formada ao custo de inúmeras lutas e perigos, que antecedem a própria história humana. O corpo tem memória – sim, ele tem, ele deve ter! Em quantos braços ali a linha dos pelos se eriçou? Em quantos dos presentes o pulso cardíaco se acelerou? Se fossem gambás, teriam certamente desprendido um cheiro ruim, que isolasse o agressor. Como já disse, não é possível saber pelas imagens se soou um sinal de alerta mais geral na Câmara. Mas o fato é que se buscou mais tarde advertir e punir o único que reagiu, mediante a sentença, tão cara, mas tão cara, aliás, ao espírito do capitalismo de forma geral e, na versão última, neoliberal, reduzida à única máxima geral que entre os homens da cidade ainda faria sentido: isso não é profissional – não é assim que se age com colegas, isso fere o decoro parlamentar, eles estavam em ambiente de trabalho e outras patacoadas. Quando era de supor que a Câmara devesse pertencer a uma esfera mais alta e mais livre de negócios e interesses humanos que o mundo do trabalho… Buscou se salvar por uma particularíssima ética o que afrontava o âmbito mais amplo da moral e da dignidade humana. O “profissional” só pôde entrar no lugar do humano por uma dessensibilização pelo sofrimento para o qual qual acenava a palavra nefanda – nessa dessensibilização, ou descolamento do corpo vivo, toda razoabilidade é rematada burrice e tão cega como criaturas de um olho só.

A sensibilidade para as dores alheias o filósofo Schopenhauer chamaria de compaixão, a propensão em diminuir o sofrimento do outro, a qual, apesar de seu pessimismo, ele considerava universal. Mas a compaixão como ato moral puro se revelaria especialmente no momento em que um corpo, em movimento espontâneo, sai em auxílio de alguém que vê sofrer ou está em perigo. Trata-se de “uma participação imediata, sem nenhum pensamento de fundo, em princípio nas dores do outro e em seguida na supressão desse mal”, o que supõe por um momento “que seja destruída a diferença entre mim e o outro”. Mais inimigo da piedade era para ele não o egoísmo, que tinha por um afeto antimoral embora humano, mas o sadismo, que chamava de crueldade, o interesse e o prazer no sofrimento alheio e mesmo em sua produção – interesse que considerava “diabólico”, e não mais humano. Por isso, apesar de emprestar da moral cristã alguns termos, era uma oração de antigos hindus a que mais admirava: “Não sei de oração mais bela que aquela de que os antigos hindus se servem para fechar seus espetáculos (…). Eles dizem: ‘Possa tudo o que tem vida ser libertado do sofrimento!’. É inequívoca a base somática da virtude que elege como anterior à justiça, a qual é tanto mais verdadeira quanto mais provém daquela. Por razões semelhantes é que Eduardo Pavlovski, grande dramaturgo argentino, psicanalista de formação e nome de referência do psicodrama na América Latina, escreveu num de seus artigos na imprensa: “A cumplicidade civil é um conglomerado de corpos imóveis e aterrados. Quando falo de corpos me refiro a um regime de afecção, ao regime de conexão com outros corpos”. No centro de muitas de suas peças e reflexões está o problema, muito reichiano, aliás (sua fonte teórica mais citada a esse respeito, porém, é Deleuze), do fascismo como uma forma de relação com o mundo e com o homem, de uma atitude diante da vida, para ele plenamente endossada pelo neoliberalismo: é essa a atitude do médico de Potestad, que vistoriava, com frieza profissional e a serviço do governo ditatorial, o estado clínico de recém-torturados. Não se trata em princípio de um homem cruel, mas antes de um patético e atribulado pai de família. Um homem banal – “O mal é banal”, como se espantou Hannah Arendt na análise que fez de Eichman, que, submetido, durante o processo de seu julgamento em Jerusalém, a diversas perícias com equipes de psicólogos e psiquiatras, foi julgado “normal”. Seria preciso então, diz ela, questionar esse conceito de normalidade.

São normais afinal os que não acodem quando se grita socorro, não desmaiam, não se enrugam, não se contraem num espasmo, mas apenas assistem impassíveis, quando não filmam, o espetáculo do sofrimento do outro se desenrolando diante dos seus olhos e ao vivo, ou tranquilamente jogam futebol ao lado de um corpo desovado na praia durante a madrugada? A atonia somática, que parece aumentar à proporção do incremento de estímulos e choques da mais variada natureza, inclusive midiática, precisaria ser investigada, mas em conexão com a barbárie já própria a uma sociedade de origem escravista, que criou condições especialmente propícias para a formação de indivíduos sádicos, perfeitamente frios, ao menos quando se trata de certa “classe” de gente. Quantos olhos não se envisgaram e pararam, absortos no espetáculo oferecido diariamente pelos nossos pelourinhos? – mas a compaixão, diz Schopenhauer, não reconhece classe (nem mesmo espécie). Ela é uma capacidade natural de retratibilidade como uma acusação mimética da dor do outro, seguida de uma ação com vista a impedi-la, mesmo que se corram riscos. Mais enigmáticos ainda que os que, tomados de fúria irracional, lincham – são os que assistem ao linchamento.

Numa entrevista à TV Câmara do Rio, sob a complacente escuta do jornalista, que tinha começado a conversa com Bolsonaro avisando se tratar de um “querido amigo”, o ex-policial afirmava, depois de dizer que um colega parlamentar deveria ser submetido ao pau-de-arara: “Você sabe que defendo a tortura…”. O programa está tranquila e espantosamente disponível na internet, e não devem ter chovido críticas e mensagens furiosas – não devem ter se viralizado – o suficiente para fazer que seu diretor e a emissora o retirassem com um devido “mea culpa” e o próprio entrevistado voltasse a colocar o rabo entre as pernas, pois não seria tempo de fazê-lo passear à luz do dia. Mas este tempo, passado ou futuro, chegou, e multiplicam-se as hipóteses e versões para isso ter acontecido – o mais importante de tudo é que ele chegou, não percamos isto de vista em nenhum momento nem adiemos mais essa constatação. Aquilo que jamais deveria ter acontecido aconteceu. Quanto à emissão (de 2009), vê-la é penetrar numa zona que toda civilização que merecesse esse nome deveria tratar como santuário, acessível a poucos e apenas mediante certas provas –porque também o horrendo precisa de santuários: “Não vai falar de ditadura militar aqui. Só desapareceram 282. A maioria marginais, assaltantes de bancos, sequestradores. (…) E fazemos um trabalho que a ditadura ainda não fez: matamos uns 30.000, começando com o FHC (…). Se vão morrer alguns inocentes, tudo bem”. Talvez o mais grave de tudo seja: parte da multidão não se importa e outra parte está entusiasmada (“ele é muito querido”, como disse esta semana o diretor do Clube Hebraica do Rio de Janeiro). Enunciados de conteúdo tão grave podem ser proferidos antes mesmo que o candidato seja eleito, ou a “batalha” comece. O governo de Bolsonaro provavelmente seria muito mais… do mesmo. Como ele já avisou, terão mais pulso firme em fazer que só um lado da batalha vá para o cemitério, como se isso já não fosse o mais comum… “O que falta neste Brasil, Sr. Presidente? Falta um Presidente da República que assuma, que diga o seguinte: ‘Em combate, soldado meu vivo não senta em banco de réu’. E ponto final. Estamos em combate!”. A escala em que o horror ocorre ainda não é suficiente…

Mas deixemos o entrevistado de lado, e contemplemos mais, já que nos é tão facilmente acessível, aqueles que o olham e ouvem, impassíveis, ou quase. Essa complacência – ela talvez seja mais assombrosa. A partir de que momento ela começou a existir? A partir de que momento se começou a defender publicamente a tortura, prática no entanto jamais extinta entre nós, da senzala à periferia, presídios e morros, e irradiada para corpos de outras classes em períodos de exceção mais generalizada? A sua defesa pública e continuada, nem sempre seguida de tremores e contemporizada por muitos (oh, ele é polêmico, chega a ser engraçado!), me parece inédita no país e pertence, ao mesmo tempo, a um contexto mais amplo, em que a justificativa de sua prática começou há muito a tomar espaço. A propósito da invasão do plenário da Assembleia Nacional em novembro de 2016 por 40 pessoas exigindo a volta da ditadura militar, bem foi lembrado que não se tratava de mera opinião. É verdade, sob a capa de “opinião” e, eu acrescentaria também, liberdade de imprensa, o mais bárbaro vem à tona na dita esfera pública, se replica e viraliza, com risadinhas nervosas ou não, condescendentes ou não, de quem lhe deu toda a corda pra falar, com toda a “liberdade”. Com esta palavra, muitas vezes se amordaça aquele que diz “basta, não suporto mais, piedade, senhores, piedade! Meus ouvidos e meus olhos não suportam tanto estímulo letal! Vocês não têm o direito que imaginam ter, a liberdade de me matar um pouco a cada dia”. Dando costas quentes para o criminoso e o cúmplice na incitação ao crime, ela garante que circule a última mercadoria de um mercado exausto, que alimentou de todas as formas e imagens que pôde a fome de morte Escutar um louco com sede de tortura e acenando com um futuro em que poderia ser presidente – sentimos um frisson, a morte de raspão, talvez no vizinho – consegue ser ainda mais emocionante do que assistir ao elogio ou a franca incitação ao crime, à tortura e ao linchamento da parte de alguns jornalistas ou âncoras. Trafegando numa zona entre política, policial e midiática, ela constitui valor de uso para o telespectador, acrescido, assim, de mais-emoção – o enunciado de um provável presidenciável acalentando crimes contra a humanidade! Dêem-me o voto, e vocês verão. Por enquanto, nos excitamos, acumulamos sensações.

Uma brisa passa, o leite se enruga numa nata – muitos não se enrugam, não se retraem, não parecem afetados pela descarga de forças mortíferas a seu lado. Estamos diariamente submetidos ao nefando, olhando o que jamais deve ser olhado sem nenhuma proteção, como o rosto de Medusa, que nos deveria petrificar a um único acontecimento destes, e continuamos –mas só deus sabe de que forma é que estamos continuando. De que forma afinal estamos continuando? Isso só é possível com partes vitais queimadas.

Conforme um juízo que Bolsonaro exprimiu em 2014: “A única coisa boa do Maranhão é o presídio de Pedrinhas”. Não está em jogo apenas um pronunciamento “polêmico”, adjetivo, aliás, com que o ex-sargento é frequentemente apresentado em programas televisivos e radiofônicos, como se se tratasse de uma “diferença” a mais no mercado identitário: há os gays, os negros, as mulheres etc. e os excêntricos hostis a gays, mulheres e negros. De novo, chamá-lo de “polêmico” é nos deixar engambelar pelo uso inapropriado, embora provavelmente não ingênuo, de um vocabulário iluminista, pelo qual se trataria de apenas “uma opinião” entre outras, a ser ouvida, apesar de horrenda. Na verdade, não estamos apenas diante de um de juízo de gosto, opinião ou qualquer outro termo que se poderia retirar de um vocabulário tão decrépito como o do mundo que este secundava e estertora. No enunciado conforme o qual o melhor de um Estado – aliás, esse é dos mais pobres do país – é o lugar onde rolam cabeças dos que não tiveram lugar nele, há desejo e projeto, pois mal se oculta que o melhor que se poderia fazer ao Maranhão é transformar Pedrinhas em totem e princípio de organização de toda a sociedade, o que aliás já está em andamento. Mas o edifício de uma verdadeira nação precisará de muito mais pedrinhas… O melhor não é o que se pode apontar para a vida da sociedade, mas o que se pode propor de morte – assim como alguns pastores neopentecostais preferem falar mais em Satã que em Deus – , separando-se o vasto joio de um trigo cada vez mais restrito. Para o joio imprestável se retira a universalidade dos direitos, cuja lei que os determina já vai sendo modificada a toque de caixa e em muitas madrugadas de modo que esta não venha rigorosamente a prometer mais nada. O que está sendo pavimentado é o caminho para a política meramente como extermínio, pois, acredita-se, depois de todos os indesejáveis terem sido abolidos, depois de os violentos (e não importa se sob essa categoria se “subsumem” também inúmeros pobres ladrões de galinha) terem sido violentados até a morte pelas milícias e grupos informais semelhantes a Einsatzgruppen e tribunais de exceção e, claro, pela polícia, a vida então poderá começar. Para isso, deixe-se, aliás, que a polícia, ainda mais desumanizada pelas condições de trabalho e formação, aja a seu bel-prazer, sem precisar de ordens de cima, como em parte já ocorre, autônoma ou anárquica, “pró-ativa”, pois há muito trabalho pela frente. 

Realizado o desejo de que uma chacina como a de Amazonas ou Roraima ocorra a cada semana, como um ex-secretário nacional de juventude confessou recentemente, então começaremos a respirar.

Por Priscila Figueiredo

Quem foi Janusz Korczak?




Janusz Korczak (pseudônimo tirado de um romance pouco conhecido de Kra Szewski. ) — cujo nome verdadeiro era Henryk Goldszmit — era um homem humilde e simples na sua mais profunda acepção.

Sua vida foi recontada inúmeras vezes e continuará sendo, porque ela mostra o horror da última guerra, a exterminação dos judeus poloneses e o holocausto em atos indescritíveis na maior atrocidade que a história e a humanidade já conheceu.

Nasceu em Varsóvia há pouco mais de cem anos. O fato de seu pai ter sido um advogado conhecido e seu avô um médico mostra até que ponto o seu meio foi assimilado. Pertencendo a uma família da elite cultural polonesa, teve a melhor formação pediátrica da época (1898-1904), pois estudou em Paris (que dava ênfase à pesquisa de novos conhecimentos) e em Berlim (conhecido pela aplicação metódica dos conhecimentos adquiridos). Nos seus 8 anos de prática pediátrica deu preferência à população pobre da qual não cobrava. Como pediatra tinha conceitos avançados para a época e modernos para os nossos dias.

Um pouco desgastado com a prática médica (decepcionado com a comercialização da medicina e as intrigas acadêmicas) reconciliou-se com ela através da pediatria social: "os remédios são instrumentos auxiliares e não substitutos da higiene e da ajuda social à família".

Ele cresceu na solidão, preservado das influências do exterior, sem se dar conta de que era judeu e sem saber o que isso significava. Antes de terminar a escola ele perdeu o seu pai, atingido por uma doença mental. A miséria sucedeu a abundância. O jovem Henryk tomou sobre si, da maneira como pode, o encargo de sua mãe e irmã, e nos anos seguintes, freqüentemente passando fome, estudou medicina com enormes dificuldades. Quando, por fim, obteve seu diploma, as coisas começaram a melhorar, contribuindo também para isso sua reputação de escritor que se afirmava. Mas isto não durou muito tempo. Repentinamente um tipo de necessidade interior mudou completamente seu destino.

Com trinta e quatro anos ele abandonou o exercício da medicina para se dedicar toda a sua vida às crianças. A ideia fixa de consagrar sua vida às crianças parecia possuí-lo. Ele não era um idealista ingênuo; o que o caracterizava era uma compreensão extraordinária da criança e a convicção da necessidade de lutar pelos seus direitos no mundo governado pelos adultos. Ele não tinha confiança no mundo governado pelos adultos, mas como cada verdadeiro reformador ele julgava que mesmo uma só pequena vela acesa valia mais que lamentar-se da escuridão. Sua intuição não excluía sua sensibilidade e ela está edificada sobre uma observação constante, clínica, poder-se-ia dizer, sobre um estudo minucioso dos fatos. Totalmente absorvido por sua única ideia, não havia lugar nele para tudo que os outros davam tanta importância – dinheiro, a celebridade, um lar, uma família.

Com o objetivo de criar um ambiente adequado para suas crianças e alunos, ele inaugurou, em abril de 1912, o orfanato Lar das Crianças, na rua Krochmalna, em Varsóvia. Seu público-alvo eram as crianças judias carentes. A casa acolheu 200 delas — e os fundos para o empreendimento foram conseguidos com judeus mais proeminentes do país.

O orfanato contava com salas confortáveis de estar, refeitórios, banheiros, biblioteca e dormitórios. Havia, ainda, uma sala silenciosa com quadros na parede e um aquário, destinada aos estudos e à meditação. Nesse espaço, as próprias crianças realizavam os principais trabalhos e administravam o orfanato por meio de duas instituições básicas: o Parlamento e o Tribunal, que organizavam a vida em comunidade e solucionavam os conflitos, exercitando as crianças e também os educadores no espírito da participação e responsabilidade.

"Sem uma infância serena e completa, toda vida posterior fica mutilada."

ideia expressa nessas palavras condiz com seu princípio fundamental de que o educador deveria sempre levar a sério a opinião do aluno, seu ponto de vista, porque não considerá-los oprimiria a personalidade da criança e seu amor próprio.

Em 1942, os nazistas ordenaram a transferência do orfanato para uma casa pequena e suja, no gueto de Varsóvia. Em 5 de agosto do mesmo ano, durante a liquidação do gueto de Varsóvia, os hitleristas ordenaram o agrupamento das crianças do orfanato de Korczak e o envio das mesmas ao campo de morte de Treblinka. O ‘Velho Doutor’ reuniu duzentos pupilos, os fez colocar-se sabiamente em fileiras e, à sua frente, partiu com eles para o ‘Umschlagplatz’, no cruzamento das ruas Stawki e Dzika, onde todos foram colocados em vagões de carga e enviados para os fornos crematórios.

Esta marcha nas ruas do gueto foi vista por algumas centenas de pessoas, e a silhueta pequena de Korczak dirigindo-se para seu calvário, inconsciente de seu heroísmo, fazendo aquilo que lhe parecia evidente, excitava as imaginações. A novidade espalhou-se imediatamente, repetida de boca em boca com a força de detalhes inventados: que Korczak carregava nos braços os dois menores, coisa pouco provável, porque ele mesmo estava doente e tinha dificuldades em andar; que o ‘Jundenrat’ tinha intervindo no derradeiro momento e tinha despachado em seguida um mensageiro atrás da fila, portador de um salvo conduto somente para Korczak, que foi por ele rejeitado com desprezo; que para apaziguar as crianças ele tinha lhes dito que iam em excursão e que eles, confiantes, o seguiam sem choro e sem protesto. Mas nenhum embelezamento é necessário diante dessa verdade nua e crua; não é preciso ajuntar qualquer coisa para torná-la mais eloquente. A antítese do espírito e das dificuldades é clara e definitiva: um homem sábio por excelência, desinteressado e bom, opondo-se aos covardes, bárbaros obtusos, que se mostravam sob seu aspecto mais satânico.

Entre os milhões de mortes anônimas, a de Korczak tem um grande significado. Nos campos e guetos, ele se tornou para muitos, uma inspiração, pois o que mais ajudava a sobreviver era a convicção obstinada e indestrutível que a dignidade humana poderia vencer , embora tudo parecesse provar o contrário.

A imprensa clandestina dos campos mostra bem o quanto esta derradeira caminhada sublime do "Velho Doutor" foi um reconforto e uma dose de ânimo para seus contemporâneos. A partir daí sua glória tem crescido e o mundo fez de Korczak um símbolo moral.

Quando os hitleristas fecharam os judeus de Varsóvia dentro do gueto, o orfanato perdeu sua casa à Rua Kruchmalna, do lado ‘ariano’, e transportou-se para locais provisórios, no interior dos muros do gueto. Naquele momento Korczak já percebia melhor que a maioria das pessoas que a máquina impiedosa os mataria a todos. Mas ele pensava em não renunciar ao seu direito de aliviar os sofrimentos.

Alquebrado e doente, cada dia ele reunia as forças que lhe restavam e partia à procura de viveres e de medicamentos para as crianças. Às vezes ele não trazia nada de suas buscas obstinadas, outras vezes ele voltava somente com uma ínfima parte do necessário. Apesar de fome incessante cada vez mais insuportável e às doenças sempre mais freqüentes, ele cuidava para que seu orfanato funcionasse normalmente, a fim de que seus alunos pudessem sentir-se bem. Freqüentemente ele trazia dos locais mais distantes uma nova criança encontrada na rua, no fim de suas forças, para quem a bondade do Velho Doutor significava a salvação durante algum tempo ainda.

Nestas condições rigorosas levadas ao extremo e que em tempo normal é difícil de se imaginar, nós temos em Korczak, no seu trabalho cotidiano, um exemplo do que pode fazer um genuíno homem guiado pelo amor.

Ele morreu com suas crianças na câmara de gás, em Treblinka. Mas apesar de mais de meio século ter se passado desde sua morte, a história não deixa margens a dúvidas: existe o homem, dentro dele um cérebro, junto com ele um coração e acima de todos seus sentidos uma faísca Divina: uma neshamá.

Como o próprio Korczak acreditava: "mesmo uma só pequena vela acesa vale mais que lamentar-se da escuridão", desejo que hoje não seja apenas um dia de dor e lamento. Que possamos sentir e chorar pelos que se foram, mas que ao mesmo tempo possamos acender a chama de muito mais luzes, verdadeiras obras divinas chamadas Filhos, Netos, Bisnetos daqueles que já não se encontram entre nós… fisicamente.

[Fonte: http://www.chabad.org.br/biblioteca/artigos/janusz/home.html]

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"Chora Palestina!"


O Sétimo, CD lançado em meados de 1997, representa uma fase da carreira do cantor e compositor Sérgio Lopes, generosamente considerado por muitos como “o poeta gospel” (alguns, porém, entre os quais eu me incluo, substituiriam com facilidade o “generosamente” por “exageradamente”), que poderia ser chamada de início da maturidade. Por vários motivos este disco é um marco na vida dele, dentre os quais eu citaria: é o seu sétimo CD (o que de cara já justifica o título); o lançamento foi pela Line Records, que já começava a figurar no rol das maiores gravadoras do país; o trabalho foi produzido com muita qualidade por Pedro Braconnot (aquele mesmo de Rebanhão!) e o principal motivo: foi por conta deste CD que Sérgio Lopes recebeu o primeiro Disco de Ouro de sua carreira e no ano seguinte (1998) recebeu, em Belo Horizonte (MG), o Troféu de Música do Ano pela faixa "O Lamento de Israel".

O que inspirou esta música, ou como diriam os poetas nordestinos: “o mote” que justificou a sua existência, foram as comemorações do Cinquentenário da fundação do moderno Estado de Israel, o CD foi lançado nos meses que antecederam às aludidas comemorações.

Naquela época eu já era bastante familiarizado com a obra de Sérgio Lopes, possuía todos os seis CDs anteriores ao sétimo e posso provar que não era um mero ouvinte, mas sim um legítimo apreciador de seu repertório: sabia cantar quase todas as suas músicas. Do ponto de vista do critério estético, com a devida honestidade que o caso requer, eu, ainda hoje, classificaria a maioria esmagadora de suas letras como de boa qualidade, por isso, junto com uma não tão pequena legião de “crentes”, passei a enxergar a carreira dele como uma grata surpresa e uma agradável exceção no meio evangélico (junto com Sinal de Alerta, Logos, Milad, VPC, Catedral, Rebanhão e outros poucos), que àquela altura já descambava para o besteirol e mediocridade (nem quero falar do critério heresia, porque entraria numa digressão que demandaria mais de dez páginas) que domina as rádios evangélicas e, infelizmente, as igrejas de hoje em dia. Porém o sétimo foi também o último CD de Lopes que eu comprei, desde então não adquiri mais nenhum! (Este artigo talvez sirva também para que eu exponha, ainda que não seja essa a proposta majoritária e inicial do texto, as razões que me levaram tomar esta atitude).

A música mais apreciada, reproduzida e lembrada é, sem dúvida, a já citada e premiada O Lamento de Israel, eu porém acho que A dor de Lázaro seja a música mais bela e tocante do CD (“... Outra vez Senhor, mostra o teu poder. Transforma a morte em vida, pois em tuas mãos a vida se formou. Se hoje não te ver livre desta cruz, eu vou esperar mesmo que adormeças sei que vai voltar. És a própria vida e jamais a morte te resistirá.”), preferências estéticas à parte, já que uma música religiosa, que tem como intenção conduzir o ouvinte à verdadeira adoração, aquela que mais se aproxima dos ensinos da Bíblia e que, por isso, agrade a Deus, não pode ser analisada apenas por esse prisma. Vamos relembrar a letra da música, para quem não a conhece, favor clicar aqui e ouvir antes de continuar a leitura.

“Quando em cativeiro te levaram de Sião
E os teus sacerdotes prantearam de aflição,
Foi como morrer de vergonha e dor
Caminhava triste o povo forte do Senhor.

Ah! Jerusalém por que deixaste de adorar
O Deus vivo que em tantas batalhas te ajudou?
Chora, Israel! Num lamento só
Talvez Deus se lembre do bichinho de Jacó!

Chora, Israel!
Babilônia não é teu lugar,
Clama ao teu Deus! E Ele te ouvirá
Do inimigo te libertará
”.

É uma bela música, sem sombra de dúvidas, e seria mais uma de suas músicas que eu cantaria sem nenhuma reserva, seria, mas não é! A teologia que subjaz esta música não me permite cantá-la, dois motivos principais me conduzem a isso: O pré-milenismo dispensacionalista que ele apresenta, que se propagou no meio evangélico brasileiro na década de 80 com a ênfase no “arrebatamento secreto da Igreja” (doutrina desconhecida das Escrituras Sagradas), confunde o Israel de Deus do Novo Testamento com o moderno Estado de Israel (o “povo forte do Senhor” e o “Israel” que ele cita não se referem à igreja, e isto contraria a escatologia reformada), com um sionismo exacerbado, que beira o preconceito racial e religioso, traz em seu âmago um fanatismo religioso por tudo que se refere aos judeus, como a bandeira de Israel em muitos púlpitos, o uso do shofar em algumas músicas, candelabros e outros objetos do abolido culto judaico e, o que é pior, um silêncio omisso diante da barbárie da limpeza étnica e do genocídio que Tel Aviv pôs em marcha nos últimos anos (eis o segundo motivo!)

A denúncia que Ualid Rabah (diretor de Relações Institucionais da Federação Árabe Palestina do Brasil) fez é estarrecedora (Para aqueles que quiserem entender de fato o que se passa: Genocídio na Palestina). O restante deste texto é baseado neste artigo dele.

Israel tem sistemática e indiscriminadamente atacado a população civil de Gaza, uma diminuta região da Palestina, na fronteira com o Egito, na qual vivem mais de 1,5 milhão de pessoas, o que torna aquela faixa a maior concentração populacional do mundo. Desde que a política de Tel Aviv passou a ser de ataques constantes aos civis, a cifra de mortos já se eleva aos milhares, outro tanto de feridos e mutilados, alguns dos quais em estado grave ou gravíssimo, e a destruição de toda a infra-estrutura básica, desde as redes de água e esgoto, de eletricidade, hospitais, escolas, universidades, centros religiosos, aos armazéns de alimentos, estradas, reservatórios de água e tudo o mais que pudesse assegurar a vida dos palestinos.

Estes ataques revelam um fato assustador: o holocausto palestino que já dura mais de 60 anos. Além disso, a manutenção do bloqueio por terra, pelo ar e pelo mar à Gaza que já dura mais de uma década, por meio do qual os sionistas não permitem a entrada de alimentos, medicamentos, equipamentos e insumos hospitalares ou farmacêuticos, energia ou qualquer outro item indispensável à vida. Até mesmo a ONU é impedida de entrar em Gaza ou de enviar alimentos e medicamentos previstos em seus programas para a população sofrida. Aos que insistem em furar este bloqueio, Tel Aviv responde com fogo e já afundou diversas naves de ativistas que não se intimidaram com suas ameaças.

Enquanto os turistas gastam seus dólares nas terras férteis de Israel, os moradores de Gaza convivem com uma miséria avassaladora, alta taxa de desnutrição, índice de mais de 50% de desemprego da população, doenças simples levando à morte centenas de crianças por falta de estrutura hospitalar ou medicamentos, destruição da agricultura e da pecuária e de todas as formas econômicas. Quando Richard Falk, relator especial de direitos humanos das Nações Unidas nos Territórios Palestinos disse que o bloqueio à Gaza era um: “castigo coletivo equivalente a um crime contra a humanidade”, e manifestou sua opinião de que o Tribunal Penal Internacional deveria investigar o papel dos dirigentes militares e civis de Israel no bloqueio a Gaza e levá-los a julgamento por violações do direito penal internacional, Tel Aviv mandou prender Richard Falk e o expulsou.

O sangue palestino está em nossas mãos (desde os massacres de Der Yassin e a expulsão, até 1949, de mais de 700 mil palestinos; ou dos massacres de Sabra e Chatila, no Líbano, em 1982, comandados por Ariel Sharon, depois eleito e reeleito primeiro ministro pela população judaica; ou o mais inacreditável e abominável massacre em Jenin, em 2001), pois, juntos com o resto do mundo, olhamos incrédulos para esse genocídio e não fazemos nada, nos calamos no silêncio pecaminoso de cumplicidade do extermínio de um povo.

Os banqueiros judeus de Wall Street calam os EUA, que servem como protetores de Israel e validam tudo o que o estado genocida faz ao povo palestino, isso sem falar dos ataques e das ocupações do Líbano, incluindo o último, em 2006, com destruição quase total da infra-estrutura do país e mortos e feridos às dezenas de milhares, somadas às quase centenas de milhares de mortos e feridos das ocupações e ataques anteriores.

Os palestinos são reféns de um estado genocida e criminoso por natureza, racista, que pratica crimes de lesa humanidade contra eles, que promove o apartheid, que confisca terras, que destrói plantações e olivais milenares, que leva à morte de gestantes e seus bebês em postos de controle propositalmente, que impede os jovens de concluir seus estudos, que os proíbe de frequentar cursos de pós-graduação, que constrói um muro que encarcera populações e cidades inteiras, corta escolas e propriedades ao meio e confisca milhares e milhares de hectares de terras de palestinos, que utiliza armas proibidas por todas as convenções internacionais, que pratica a tortura, inclusive com aprovação, em julgamento próprio em sua instância judicial máxima, que mantém em suas prisões mais de 11 mil palestinos, a maior população carcerária do mundo em termos proporcionais, incluindo mulheres e crianças, a maioria sem acusação ou julgamento.

Algo que deveria nos incomodar é: porque nós, homens e mulheres de fé cristã, sinceros em nossos propósitos, não fazemos nada para impedir o genocídio de um povo inteiro, ainda que sejamos testemunhas de tudo o que ocorre? Ainda valem os clamores por justiça dos profetas? Ainda valem os ensinos de Jesus para que seus seguidores busquem a paz, a justiça e se ponham ao lado do oprimido? O povo palestino não pode ser identificado com o “aos meus pequeninos” do sermão de despedida de Mateus?

Os judeus que hoje “compram” o silêncio dos EUA com dólares, são da mesma estirpe dos judeus que durante o período nazista, sabiam do que ocorria mas se calaram para não verem prejudicados seus interesses econômicos.

Estamos no caminho de que em 100 anos, ou ainda menos do que isso, o povo palestino desaparecerá da face da terra e todos nós, judeus e não judeus, responderemos como responsáveis por este crime frente à humanidade. Pode ser que, talvez percebamos, após isto, que ali esteve, por milhares de anos, um povo chamado de palestino, que resistiu como jamais um povo resistiu, mas desapareceu. Talvez para calar as nossas consciências, diremos que os palestinos não foram extintos por culpa de nossas omissões e covardias, mas assim porque era esta a vontade de Deus. Será mesmo esta a vontade de Deus? Onde estaria Jesus: em Gaza ou em Tel Aviv? Alguém tem dúvida?

Chora palestina, que eu chorarei contigo!

Chora Israel, pode chorar! Ainda há tempo para te arrependeres de teus pecados, ainda há tempo de tratares os outros da forma que outro judeu, Jesus, trataria.