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Um homem bom é difícil de encontrar


A avó não queria ir para a Florida. Queria visitar uns parentes no leste do Tennessee e aproveitava todas as oportunidades para induzir Bailey a mudar de ideia. Bailey, o filho com o qual ela morava, seu único filho homem, sentado a mesa na beira da cadeira, dobrava-se sobre o alaranjado da pagina de esportes do Journal. "Olhe só isso aqui, Bailey, olhe só, leia isso aqui", disse ela em pé a seu lado, com uma das mãos no quadril magro e a outra esfregando outra folha de jornal na careca do filho. "Esse tal cara que fugiu da penitenciaria federal, o Desajustado, como ele mesmo se chama, e que foi justamente em direção a Florida... leia só o que diz aqui, veja o que ele fez com as pessoas. Vale a pena você ler. Eu é que não levaria os meus filhos, fosse lá para onde fosse, com um bandido desses assim a solta na área. Não ficaria em paz com a minha consciência."

Bailey não olhou para cima, não parou de ler o que lia, e ela então deu uma volta. Foi ficar cara a cara com a mãe das crianças, mulher nova, numa calça folgada, cujo rosto era tão largo e inocente quanto um repolho, estando envolto num lenço verde de cabeça amarrado com duas pontas no alto, como as orelhas de um coelho. Ela, sentada no sofá para alimentar o bebê, dava-lhe geleia de damasco que tirava do vidro. "À Flórida as crianças já foram", disse a velha senhora. "Deveriam leva-las a algum outro lugar, para variar, para que vejam diferentes partes do mundo e possam ter perspectivas mais amplas. Ao leste do Tennessee elas nunca foram."

A mãe das crianças nem pareceu escutar, mas o garoto de oito anos, John Wesley, parrudinho e de óculos, disse: "Se a senhora não quer ir para a Flórida, por que e que não fica em casa?". Ele e a menina, June Star, estavam lendo historias em quadrinhos no chão.

"Em casa? Duvido. Por nada desse mundo ela fica", disse June Star sem levantar a cabeça.

"Ah, é? E o que fariam vocês, se esse camarada, o Desajustado, pegasse vocês?"

"Eu quebrava a cara dele", John Wesley disse.

"Nem por um milhão de dólares ela ficava em casa" June Star disse. "Tem medo de estar perdendo coisas. Tem de ir pra toda parte com a gente."

"Esta bem, mocinha", disse a avó. "Da próxima vez que me pedir para cachear seu cabelo, você vai ver uma coisa."

June Star disse que seu cabelo já era naturalmente cacheado.

Na manha seguinte a avo foi a primeira a entrar no carro, pronta para partir. Tinha posto num canto sua enorme malinha preta, que parecia uma cabeça de hipopótamo, por baixo da qual ela escondia numa cesta o gato, Pitty Sing. Não quis deixar o gato em casa sozinho, por três dias, porque ele sentiria muito a sua falta e ela tinha medo de que acidentalmente se asfixiasse ao se esfregar num bico de gás. Mas o filho dela, Bailey, não gostava de chegar a um motel com um gato.

A avó ia no banco de trás, no meio, com um neto de cada lado, John Wesley e June Star. Bailey e a mãe das crianças com o bebê iam na frente e eles saíram as oito e quarenta e cinco de Atlanta com o painel indicando 89.944 quilômetros rodados. A avó anotou o numero por achar que seria interessante saber quantos quilômetros eles teriam feito, quando voltassem para casa. Levaram vinte minutos para atingir a periferia da cidade.

A velha senhora se instalou a vontade, tirando as luvas brancas de algodão e pondo-as junto com a bolsa no espaço por trás do banco. A mãe das crianças continuava com a mesma calça folgada, e com o mesmo lenço verde amarrado na cabeça, mas a avó estava usando um chapéu de palha azul-marinho, com um buque de violetas brancas na aba, e um vestido também azul-marinho de bolinhas brancas. A gola e os punhos eram de organdi branco, com debruns de renda, e um ramalhete roxo de violetas de pano, que era um sachê, estava pendurado em seu peito. Qualquer um que a visse morta na estrada, em caso de acidente, logo saberia tratar-se de uma senhora distinta.

Disse que o dia, a seu ver, era bom para viajar, nem muito quente nem muito frio demais, e lembrou a Bailey que o limite de velocidade era de noventa quilômetros por hora, e que os guardas rodoviários, escondidos atrás de anúncios e de amontoados de árvores, logo saiam em disparada atrás, sem nem dar chance de reduzir. E apontou interessantes detalhes dos panoramas: Stone Mountain; o granito azulado que nalguns trechos aflorava de ambos os lados da rodovia; os barrancos brilhantes, de barro vermelho rajado ligeiramente de roxo; e as diversas plantações enfileiradas como rendilhados verdes na terra. As árvores estavam cheias de uma luz solar prateada, e até mesmo as mais insignificantes brilhavam. As crianças iam lendo suas historias em quadrinhos e a mãe tinha voltado a dormir.

"Vamos passar pela Geórgia bem rápido para não ter de olhar muita coisa" John Wesley disse.

"Eu, se eu fosse um menino", disse a avó, "eu não falaria assim desse jeito do meu estado natal. O Tennessee tem montanhas, a Geórgia tem suas colinas..."

"O Tennessee não passa de um lixão, é uma terra de arigós" John Wesley disse, "e a Geórgia também é uma porcaria de estado."

"E isso mesmo", disse June Star.

"No meu tempo", a avó disse, cruzando os dedos de veias finas, "as crianças tinham mais respeito pela terra natal, pelos pais e por tudo o mais. Procedia-se bem, naquela época. Oh, mas vejam só o pretinho, que graça!" disse e apontou para um menino negro, em pé na porta de um barraco. "Não daria um quadro?" perguntou, e todos se viraram, olhando o menino negro pelo vidro de trás. Ele deu adeus.

"Ele estava sem calça", disse June Star.

“Talvez nem tenha" a avó explicou. "Os negrinhos da roça não são assim como nós, não tem coisas." E acrescentou: "Ah, se eu soubesse pintar, bem que faria esse quadro!".

As crianças trocaram de revista.

A avó se ofereceu para segurar o bebê, que a mãe das crianças lhe passou por cima do banco. Tendo-o posto nos joelhos, ela agora o puxava para cima e lhe falava das coisas pelas quais estavam passando. Revirava os olhos, fazia bico com a boca, colava a cara magra e dura no rosto, lisinho e fofo, da criança, que de vez em quando lhe dava algum sorriso distante. Passaram por uma grande plantação de algodão com um cercado com cinco ou seis túmulos no meio, como uma ilhota.

"Olhem lá o cemitério!" disse a avó, apontando. "O antigo campo- santo da família. Pertencia á fazenda."

"E onde esta a fazenda?" John Wesley perguntou.

"E o vento levou..." disse a avó. "Ha, ha."

Gente boa da roça


Além da expressão neutra que ela carregava quando estava sozinha, a Senhora Freeman tinha outras duas, uma afirmativa e outra retroativa, que ela usava para todas as suas relações humanas. Sua expressão afirmativa era firme e forte como a de um caminhão pesado. Seus olhos nunca desviavam para a esquerda ou direita, mas viravam de acordo com o rumo da estória como se seguissem uma linha amarela bem no centro da estória. Ela raramente usava a outra expressão porque muitas vezes não era necessário retirar uma declaração, mas quando usava, seu rosto parava completamente, havia um movimento quase imperceptível em seus olhos negros, enquanto eles pareciam retroceder, e então o observador via que a Senhora Freeman, embora estivesse lá, tão real quanto sacos de grão jogados em cima uns dos outros, não estava mais lá em espírito. Fazê-la entender qualquer coisa quando isso acontecia era impossível, a Senhora Hopewell havia desistido. Ela poderia falar até morrer. A Senhora Freeman nunca seria convencida a admitir seu erro em qualquer aspecto. Ela permaneceria lá e, se a pudessem convencer a falar qualquer coisa, seria algo como: “Bem, eu não diria que sim ou não diria que não” ou, ao direcionar seu olhar vago para a prateleira de cima da cozinha onde havia várias garrafas empoeiradas, ela poderia mencionar: “Eu vejo que você não comeu muitos dos figos das conservas que você fez no verão passado”.

Elas cuidavam de seus assuntos mais importantes na cozinha durante o café da manhã. Todas as manhãs a Senhora Hopewell se levantava às sete e ligava seu aquecedor à gás e o de Joy. Esta era sua filha, uma moça loira e alta que tinha uma prótese na perna. A Senhora Hopewell ainda via Joy como uma criança mesmo que ela tivesse trinta e dois anos e alto nível de formação. Joy se levantava enquanto sua mãe estivesse comendo e arrastava-se para o banheiro, batendo a porta, e logo a Senhora Freeman chegava à porta dos fundos. Joy ouvia sua mãe dizer: “Entre”, e então as senhoras conversavam por um tempo em voz baixa, inaudível no banheiro. No momento em que Joy entrava, elas já haviam terminado o relatório da previsão do tempo e estavam falando sobre uma das filhas da Senhora Freeman, Glynese ou Carramae. Joy as chamava de Glicerina e Caramelo. Glynese, uma moça ruiva, tinha dezoito anos e muitos admiradores; Carramae, uma moça loira, tinha apenas quinze, mas já estava casada e grávida. Ela não conseguia manter qualquer coisa em seu estômago. Todas as manhãs a Senhora Freeman contava à Senhora Hopewell quantas vezes Carramae havia vomitado desde o último relatório.

A Senhora Hopewell gostava de dizer para as pessoas que Glynese e Carramae eram duas das moças mais finas que ela conhecia, que a Senhora Freeman era uma lady e que ela nunca teria vergonha de levar a Senhora Freeman a qualquer lugar ou apresentá-la a qualquer pessoa que elas pudessem encontrar. Então ela contava como havia contratado os Freeman em primeiro lugar, como eles eram uma benção de Deus para ela e como estavam junto dela há quatro anos. A razão para mantê-los por tanto tempo era que eles não eram lixo. Eram boa gente do interior. Ela havia telefonado para o homem cujo nome havia sido dado como referência e ele contou para ela que o Senhor Freeman era um bom agricultor, mas que a Senhora Freeman era a mulher mais barulhenta a caminhar pela terra. “Ela tem que estar em tudo”, disse o homem. “Se ela não chegar lá antes que a poeira assente, pode apostar que ela está morta, só isso. “Ela vai querer saber de toda a sua vida. Eu o considero muito”, ele disse, “mas nem eu nem minha esposa conseguiríamos aguentar aquela mulher mais um minuto”. Isso desencorajou a Senhora Hopewell por alguns dias.

Por fim ela os contratou porque não houve outros candidatos, mas decidiu de antemão como lidaria com a mulher. Já que a Senhora Freeman era do tipo de se meter em tudo, a Senhora Hopewell decidiu que ela não apenas seria incluída em tudo, mas providenciaria para que ela estivesse em tudo, ela seria a pessoa encarregada. A Senhora Hopewell não tinha defeitos, mas tinha a habilidade de usar os defeitos de outras pessoas de maneira tão construtiva que ela já tinha os Freeman há quatro anos.

Nada é perfeito. Este era um dos ditados favoritos da Senhora Hopewell. O outro era: é a vida! E ainda mais um, o mais importante, era: bem, outras pessoas têm suas opiniões também. Ela diria essas expressões geralmente à mesa, em tom de insistência gentil, como se ninguém soubesse deles além dela, e a grande desajeitada Joy, cujo ultraje constante havia apagado qualquer expressão em seu rosto, apenas direcionaria um pouco seu olhar para o lado, seus frios olhos azuis, com o jeito de alguém que havia ficado cego por vontade própria e se manteve assim.

Quando a Senhora Hopewell dizia à Senhora Freeman que a vida era assim, esta dizia: “Eu sempre digo isso”. Nada acontecia sem que a Senhora Freeman soubesse primeiro. Ela era mais rápida que o Senhor Freeman. Quando a Senhora Hopewell disse a ela, após certo tempo da chegada deles: “Sabe, você é a comandante deste navio” e deu uma piscadela, a Senhora Freeman respondeu: “Eu sei. Sempre fui rápida. Há sempre aqueles que são mais rápidos que os outros”.

“Todos são diferentes”, disse a Senhora Hopewell.

“Sim, a maioria é”, respondeu a Senhora Freeman.

“É preciso gente de todos os tipos para formar o mundo”.

“Eu sempre disse isso”.

A menina estava acostumada com esse tipo de diálogo no café da manhã e também no jantar; de vez em quando elas conversavam no lanche também. Quando não tinham visitas, elas comiam na cozinha porque era mais fácil. A Senhora Freeman se esforçava para chegar durante a refeição e assisti-las terminar. Ela ficava na porta se fosse verão, mas no inverno ela apoiava um cotovelo em cima da geladeira e olhava para elas de cima, ou ficava ao lado do aquecedor a gás, levantando um pouco a parte de trás da saia. Ocasionalmente ela se apoiava na parede e rolava a cabeça de um lado para o outro. Ela nunca tinha pressa de ir embora. Tudo isso era muito penoso para a Senhora Hopewell, mas esta era uma mulher de grande paciência. Ela havia percebido que nada é perfeito, que os Freeman eram boa gente do interior e que, se em tempos presentes há boa gente no interior, era melhor segurá-la.

Ela teve muita experiência com lixo. Antes dos Freeman, ela tivera em média uma família de caseiros por ano. As mulheres desses agricultores não eram do tipo que você gostaria por perto por muito tempo. A Senhora Hopewell, que havia se divorciado do marido há anos, precisava de alguém que tocasse a plantação para ela; e quando Joy tinha de ser mandada a fazer esses serviços, as coisas que ela fazia eram geralmente tão malfeitas e sua expressão tão carrancuda que a Senhora Hopewell dizia: “Se você não faz de boa vontade, eu não quero”, ao que a moça, firme, com os ombros rígidos e o pescoço um pouco jogado para a frente, respondia: “Se você me quer, aqui estou – COMO SOU”.

A resposta de Flannery O'Connor a Max Stirner


Em 1844, sob o pseudônimo de Max Stirner, Johan Caspar Schmidt publicou O Único e a sua Propriedade, livro radical e incendiário que veio se juntar a tantos outros publicados na mesma década, como O Que é a Propriedade? e Filosofia da Miséria, de Pierre-Joseph Proudhon, e A Questão Judaica, de Karl Marx. Embora sejam todos contestadores e radicais, creio não estar em erro ao afirmar que nenhum chegou ao extremo d’O Único.

Stirner fez parte do que se convencionou chamar de «jovens hegelianos» ou «hegelianos de esquerda». Segundo José Bragança de Miranda, no ensaio Stirner, o Passageiro Clandestino da História, O Único teria sido censurado em outubro de 1844 com base no seguinte parecer: «Dado que, em passagens concretas desse escrito, não apenas Deus, Cristo, a Igreja e a religião em geral são objeto da blasfêmia mais despropositada, mas também porque toda a ordem social, o Estado e o governo são definidos como algo que não deveria existir, ao mesmo tempo que se justifica a mentira, o perjúrio, o assassinato e o suicídio, e nega o direito de propriedade». Contudo, alguns dias depois, o mesmo livro tinha sua publicação autorizada, sendo considerado «demasiado absurdo para ser perigoso». Foi publicado por Otto Wigand, responsável pelas mais importantes publicações radicais da época, como os projetos de Ruge e Feuerbach. O Único, livro único de Stirner, permaneceu ignorado até ser «redescoberto» pelo poeta anarquista John Henry Mackay, no fim do século XIX. Segundo Miranda, à redescoberta de Mackay se somou, depois, um novo retorno a Stirner, dessa vez pelos dadaístas, no século XX.

Com a possível exceção do suicídio, a censura certamente acertou em todo o resto. Com efeito, a radicalidade da postura de Stirner só encontra paralelo na obra de Friedrich Nietzsche e sua guerra ao cristianismo. Entre os poucos a reivindicar de alguma forma seu pensamento, estão, curiosamente, os anarquistas, por enxergarem nele a defesa de uma liberdade radical e um antiautoritoritarismo levado às últimas conseqüências[1]. É um fato curioso na medida em que o próprio Stirner não se dizia anarquista, pelo contrário: O Único escarnece de Proudhon e dos comunistas, considerando-os a continuação e conseqüência do amor cristão e do sacrifício por um princípio universal e estranho.

É justamente a recusa a qualquer princípio superior a chave para a radicalidade de Stirner. Ele não reconhece nada acima do único, nenhuma espécie de idéia transcendental deve oprimi-lo, seja a idéia de Deus, a moral ou os princípios humanistas. Diz ele:
Um homem não está ‘destinado’ a nada, não tem nenhuma missão particular, nenhuma ‘destinação’, tão pouco como uma planta ou um animal a têm. A flor não obedece à missão de se aperfeiçoar, mas emprega todas as suas forças para gozar e consumir o mundo o melhor que pode, ou seja, absorve tanta seiva da terra, tanto ar da atmosfera, tanta luz do sol quanto pode receber e guardar. O pássaro não vive para obedecer a uma vocação, mas usa as suas forças até onde pode: caça insetos e canta a plenos pulmões. Mas as forças da flor ou do pássaro são mínimas, quando comparadas as do homem. É muito mais poderosa a intervenção do homem no mundo, do que a da flor ou do animal. Também ele não tem nenhuma missão a cumprir, mas tem forças que se manifestam onde quer que estejam, porque o seu ser consiste apenas na sua manifestação e elas não podem permanecer inativas, tal como acontece com a vida, que, se ‘parasse’ por um segundo que fosse, deixaria de ser vida. (…). Cada um usa a sua força sem que veja nisso uma missão sua: cada um usa em cada momento toda força que possui.
O trecho acima dá pouca margem à dúvida. Ao não reconhecer nada acima do homem e assumi-lo como um animal, do qual se diferencia apenas por ter maior poder, Stirner toma como lastro e fundamento de todas as relações a força. Nesta perspectiva, força é manifestação de força, sendo qualquer limitação da própria força uma fraqueza – ausência de força –, pois que se houvesse força ela se manifestaria[2]. Sua radicalidade, incrivelmente semelhante à de Nietzsche – ainda que tenha escrito seu livro no ano de nascimento do autor d’O Anticristo, bem antes dele, portanto –, condena a religião e sua moral a uma expressão de fraqueza.

Se, diz Stirner, «não há ovelha, não há cão que se preocupem em ser ‘uma ovelha ou um cão como devem ser’», pois, para o animal, sua essência não é um conceito a se realizar – ele se realiza vivendo –, o mesmo deveria valer para o homem. «A vossa natureza é humana», diz ele, «vós sois naturezas humanas, ou seja, homens. Mas precisamente porque já o sois, não precisais de vos transformar nisso».

Nem bons nem maus, apenas fortes e fracos, essa é a ótica desesperadora para a qual nos inclina Stirner. Atribuir o valor «bom» a um homem seria, neste sentido, apenas uma questão utilitária ou um reflexo de fraqueza: digo que alguém é bom se isso me for de alguma utilidade ou se ele me for inofensivo, isto é, fraco como eu – exatamente como colocará depois Nietzsche em Genealogia da Moral. Estado, moral, religião, nada diz respeito ao único; tudo isso lhe é estranho e, mesmo, perigoso. Donde Stirner conclui: «É certo que de modo nenhum se pode viver tranqüilo entre os maus, porque nunca estamos seguros da nossa vida; mas será que a vida entre os homens morais é mais fácil? Também aí a nossa vida não está segura, a diferença é que somos enforcados ‘por via legal’.». Trata-se de uma perspectiva que não pode ser desmentida de todo.

II

Seria interessante, entretanto, contrapor a postura radical apresentada no livro de Stirner à de A Gente Boa da Roça, um dos contos que compõe a coletânea É Difícil Encontrar um Homem Bom, da escritora americana e católica Flannery O’Connor. A despeito de os dois textos serem temporal e espacialmente muito distantes – O Único foi publicado em Leipzig, no fim da segunda metade do século XIX; o conto de O’Connor escrito no sul dos Estados Unidos, em 1955 –, forçoso é reconhecer que o referido conto fornece, de alguma forma, uma boa resposta à postura stirneriana.

Mary Flannery O’Connor nasceu em 1925, em Savannah, Georgia, filha única de pais católicos e descendentes de imigrantes irlandeses. Formou-se em Sociologia e Inglês, em 1945, e depois cursou o programa de criação literária da Universidade do Estado de Iowa. Em A Gente Boa da Roça, O’Connor nos apresenta a senhora Hopewell e sua filha Felícia (Joy no original), de trinta e dois anos, loura, avantajada e dona de uma perna mecânica que usava desde seus dez anos. Enquanto a mãe, incapaz de entender grosserias gratuitas e sempre hospitaleira, repete chavões como «nada é perfeito», «assim é a vida» e «as pessoas têm cada uma seu modo de ver», a filha – cuja indignação permanente oblitera qualquer expressão facial – é atéia, dona de um Ph.D. em Filosofia e revela, nos poucos momentos que fala, um ceticismo de não pouca agressividade.

Felícia parece não sentir mais que desprezo ao ouvir a mãe enaltecendo a gente boa da roça. «A mãe», narra O’Connor, «achava que a cada ano a filha se parecia menos com os outros seres humanos e mais consigo mesma: inchada, grosseira e com olhos apertados e maldosos». Divorciada, a senhora Hopewell sente a necessidade de conversar com alguém sobre sua fazenda, mas, ao pressionar Felícia, recebe apenas observações negativas e uma fisionomia sisuda. Satisfaz-se, então, com a senhora Freeman, a caseira. Qual a senhora Hopewell e sua filha, a senhora Freeman também ajuda a compor o quadro bizarro revelado pelo conto. Tinha ela, diz o narrador, «um interesse especial por detalhes a respeito de infecções misteriosas, deformidades, crueldade com crianças etc. No que tange a doenças, preferia as que se estendiam por longos períodos e as incuráveis».

Tudo muda quando Manley Pointer, um jovem alto, magro, de terno azul brilhante e portando uma maleta preta bate à porta para lhes vender bíblias. A senhora Hopewell o atende de má vontade, pois o almoço estava quase pronto; como, porém, era incapaz de grosserias, convida-o para almoçar. «Felícia», diz O’Connor, «olhou rapidamente para ele no momento em que foram apresentados e, durante toda a refeição, não voltou a dirigir-lhe o olhar». Após o almoço, entretanto, em vez de lhe dar o mais puro desprezo, como a narrativa nos faz esperar, Felícia caminha com o jovem até o portão e os dois trocam algumas palavras, não reveladas ao leitor nem à senhora Hopewell. Descobrimos, pouco depois, que os dois haviam combinado de se encontrar no dia seguinte para um piquenique.

Felícia e Manley Pointer encontram-se no portão às dez horas; o rapaz ainda está com sua maleta preta. Eles atravessam o pasto e, ao alcançarem a orla da mata, Pointer coloca a mão na cintura de Felícia, agarra-a e beija-a. Os dois caminham até um velho celeiro onde ficava estocado o feno e sobem até o sótão.

Após mais alguns beijos, o rapaz lhe diz que a ama e pergunta se ela também o amava. «Você ainda num me disse que me ama», prossegue ele, «você tem que dizer que me ama». Felícia o olha, com um misto de pena e carinho, como se aquele pedido de amor fosse sinal patente de ingenuidade, e lhe diz, abraçando-o: «É até bom que você não entenda. Estamos todos condenados, mas alguns entre nós retiraram as vendas dos olhos e viram que não há nada para ver. Não deixa de ser um tipo de salvação».

Felícia enfim diz que o ama. Isso, porém, não satisfaz Pointer, que pede, então, que ela prove seu amor e lhe mostre onde começa sua perna de pau; tratava-se de revelar sua parte mais íntima. «Ninguém tocava na perna», narra O’Connor, «a não ser ela própria. Cuidava da perna como certas pessoas cuidam da alma, na maior privacidade, quase que com os próprios olhos virados para o lado». Felícia nega, Pointer resmunga e dá a entender que nesse caso ela não o ama de verdade.

Desenrola-se, então, o momento capital. Ao receber de Pointer um olhar profundo e penetrante e ouvir dele que a perna mecânica a tornava diferente de todo mundo, algo muda em Felícia.

«Ela o encarou, agora sentada. Nada em seu rosto ou em seus olhos azuis, redondos e gelados, indicava que tais palavras a tivessem comovido; mas ela sentiu como se o coração tivesse parado e saído de sua mente para bombear-lhe o sangue. Chegou à conclusão de que pela primeira vez na vida estava diante de verdadeira inocência. Esse rapazola, com um instinto que vinha da além-sabedoria, chegara à verdade a respeito dela. Quando, ao cabo de um minuto, ela disse com voz rouca, alto e bom som, ‘está bem’, foi como se se rendesse a ele incondicionalmente. Foi como se houvesse perdido e reencontrado a própria vida, milagrosamente na vida dele».

Malgrado o ceticismo e a profunda convicção de que é mais lúcida do que o rapaz simples e sem instrução, Felícia acaba desarmada por seu olhar sincero e profundo. É nesse momento que, pasmem, descobre estar diante não da gente boa da roça, gente por quem, ademais, não tinha senão desprezo, mas de um grande vigarista. Felícia deixara que o rapaz retirasse sua perna mecânica e, ao pedir para que ela seja recolocada, Pointer manda-a esperar, puxa sua maleta e dela retira uma Bíblia oca. De dentro dela pega uma garrafa de uísque, um baralho com figuras eróticas e um pacote de preservativos. E então, a garota atéia, lúcida e doutora em Filosofia murmura, quase sem voz: «você não é da boa gente da roça?». Pois Pointer não apenas não era, como tampouco era um cristão – nem nunca tinha sido. «Num vai você agora pensar que eu acredito nessa bosta!», indigna-se ele; «Eu vendo Bíblias, mas num sou louco nem nasci ontem e sei muito bem pra onde vou!». Por fim, Pointer rouba-lhe a perna mecânica e diz ao se despedir: «você num é tão sabida assim. Eu nunca acreditei em nada, desde que nasci!», numa alusão ao ceticismo orgulhoso dela. Desarmada, à mercê daquele homem, todo o menoscabo de Felícia pela good country people se esvai, ou melhor, perde seu sentido. Ela estava diante de alguém igualmente cético, mas que apenas tirara de seu ceticismo outras conclusões.

A partir dessa narrativa pode-se, pois, inverter a afirmação de Stirner, sem dúvida detentora de alguma verdade. Não, nossa vida não é fácil nem segura, seja entre os homens morais, seja entre a gente boa da roça – e acaso o é com algum tipo de homem? Entretanto, quando nos rendemos incondicionalmente a alguém, podemos no máximo rezar para que se trate de um homem bom, por mais difíceis de se encontrar que sejam.

Fábio Lacerda

Bibliografia
MACKAY, John Henry. “O Único e a sua Propriedade” in Verve, número 10, 2006.
MIRANDA, José A. Bragança de. “Stirner, o Passageiro Clandestino da História” in STIRNER, Max. O Único e a sua Propriedade. Tradução de João Barrento. Lisboa, Editora Antígona, 2004.
O’CONNOR, Flannery. É Difícil Encontrar um Homem Bom. Tradução de José Roberto O’Shea. São Paulo, Editora Arx, 2003.
O’CONNOR, Flannery. Sangue Sábio. Tradução de José Roberto O’Shea. São Paulo, Editora Arx, 2002.
STIRNER, Max. O Único e a sua Propriedade. Tradução de João Barrento. Lisboa, Editora Antígona, 2004.
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[1] Mesmo assim, nem todos o vêem com simpatia. Anarquistas americanos como Noam Chomsky e Murray Bookchin, por exemplo, desprezam Stirner e seu «anarco-individualismo».
[2] Ainda que seja esta a conclusão evidente do trecho citado, Stirner ressalta pouco depois: «Como as forças são sempre autonomamente ativas, a ordem de as usar seria desnecessária e absurda. Usar as suas forças não é uma missão nem uma tarefa do homem, mas uma ação sempre real e sempre presente. Força é apenas a forma simplificada de manifestação da força.»

Ler ficção para entender a realidade!


Foi por meio de duas obras de Brennan Manning (O impostor que vive em mim, tradução brasileira de Abba's child, publicada pela Mundo Cristão em 2006 e Falsos, metidos e impostores, tradução de Posers, fakers and wannabes que é uma versão juvenil do primeiro, também publicada pela Mundo Cristão:2008), uma de Philip Yancey (Rumores de outro mundo, tradução de Rumors of another world, publicada pela Vida, 2004) e uma de Eugene Peterson (Trovão Inverso, tradução de Reversed Thunder publicado por Habacuc, 2005) que eu fui apresentado “oficialmente” à Flannery O’Connor.

A frequência com que ela era citada nas obras que listei, noutras dos mesmos autores e ainda em outros tantos livros que li, de autorias as mais diversas, que eu não citei aqui, aguçou a minha curiosidade, além do mais, as citações eram sempre qualitativas e corroborativas, numa palavra, todos lhe eram simpáticos. A tríade de autores a qual me referi no inicio, além de ser composta de grandes escritores da atualidade, contribuiu bastante para a minha formação espiritual, já que li todos os livros dela que me chegaram às mãos, isto significa dizer mais de 40 títulos, e por isso, por considerar o pensamento de cada um relevante, que eu tive a curiosidade exponenciada pelas obras de Flannery, se um padre católico com forte vocação para o álcool, casado e divorciado, um tolerante episcopal, ex-batista fundamentalista, de origem racista e preconceituosa e um teólogo presbiteriano de tão larga erudição que traduziu uma versão da Bíblia para sua própria meditação, garimpavam (devo esta conotação ao saudoso Mestre Othon Dourado do Seminário Presbiteriano do Norte em Recife) os escritos dela em busca de algo que tivesse significado, eu que os lia com avidez deveria portanto fazer o mesmo, se ela alimentava as ideias deles e eles alimentavam as minhas, nada mais natural que procurasse a fonte onde bebiam.

Foi assim então que comprei Contos completos (Cosacnaify:2008, 715 páginas), a primeira vez que tive este volume em minha mãos, o contemplei com uma fleuma sacerdotal, virei-o para olhar a contracapa e só então o abri com uma devoção incomparável. Desde então li duas vezes este livro e iniciei recentemente a terceira leitura. E a cada leitura um mundo novo se descortina diante de meus olhos que já não são mais olhos de marinheiro de primeira viagem.

O mundo protestante brasileiro precisa conhecer a católica estadunidense Flannery O'Connor, não apenas por ser tão citada por expoentes literários modernos, mas, principalmente, pelo mundo de relações densas (permeado de hipocrisia e preconceito, com personagens complexos, que ela enclausurou, muito bem, num universo religioso tão sui generis quanto caricaturesco, estereotipando-os), que ela pinta nas páginas de seus contos, tal como um pintor faria em suas telas por meio de um pincel. O resultado é magnífico, a sua obra é como um grande painel daqueles que vemos em alguns museus e pinacotecas, para poder apreciá-lo devidamente, temos que nos aproximar com cuidado para entender os detalhes, mas temos também que nos afastar para contemplar o todo e poder assim encaixar cada peça em seu devido lugar. Isso ajudaria com certeza ao ethos protestante brasileiro tão diverso (e tão sem consciência do seu papel e da diversidade interna, a ponto de não podermos chamá-lo de protestantismo, mas sim de “protestantismos”), a descobrir caminhos que permitam o exercício de uma espiritualidade sadia, diversa e inclusivista, com resposta à altura dos anseios do homem moderno, sem que com isso perca de vista os marcos bíblicos.

Mary Flannery O'Connor nasceu no sul dos Estados Unidos, em Milledgeville na Geórgia (a mesma Geórgia de Ray Charles em Georgia on my mind, que se tornou o hino do estado), em 1925, era filha única de pais católicos, descendentes de imigrantes irlandeses, isso por si só já diz em que tipo de catolicismo ela foi criada. A sua formação em Sociologia e Inglês, em 1945, e o posterior programa de Mestrado em Criação Literária na Universidade do Estado de Iowa que cursou, a capacitaram a enxergar aquele universo em que habitava de uma forma muito particular e específica. A cidade em que nasceu tinha pouco mais de 10.000 habitantes, acompanhando a tendência do estado, e da região em que estava inserida, era uma cidade de maioria branca, protestante e rural, com investimentos altíssimos na agropecuária. O estado possuía mais de de 50 mil fazendas, que ocupavam aproximadamente 30% de todo o território. A economia da região agiu sobre a formação do povo e até mesmo sobre aspectos religiosos, como cultivavam o algodão, arroz e milho, necessitavam de mão-de-obra barata, e isso só podia ser equacionado com a escravidão, no período em que Flannery nasce a abolição já tinha acontecido, porém as consequências de centenas de anos de escravidão tinham impingido na sociedade marcas que outras centenas de anos seriam necessárias para que reconciliassem tantas divergências, e isto é bastante exposto e explorado na obra de Flannery, sendo um dos seus temas subjacentes.

A sua vocação literária foi se revelando aos poucos desde a sua infância, quando passou a colaborar com o jornal da escola com artigos e desenhos satíricos. Quando tinha apenas quinze anos ela perde o pai, que foi vítima do lúpus, uma doença infecciosa do sangue, de caráter hereditário. Quando ainda estudante de sociologia ela já era atuante nos veículos literários do Georgia State College for Woman, e por conta de suas talentosas publicações se tornou conhecida do escritor Robert Penn Warren e de editores de uma revista literária, que abriram-lhe caminho para suas primeiras publicações. Após a graduação passou a lecionar e em 1952 publicou seu primeiro romance Wise blood (que foi para o traduzido para o português por José Roberto O’Shea e recebeu o título de “Sangue sábio”.

É esta católica branca tentando sobreviver numa região dominada pela maioria branca protestante e democrata, uma verdadeira remanescente (o catolicismo representava menos de 8% da população) numa região em que o fundamentalismo se propagou com facilidade e onde a famigerada Ku Klux Klan plantou suas sementes de ódio, racismo e preconceito que pode exercer uma influência benéfica sobre a mente protestante brasileira.

Ela utiliza-se de forma magistral de diversos elementos, alguns de forma contraditória, do sul dos Estados Unidos e cria um mundo ficcional, mas nem tanto, onde ambienta a sua obra, utiliza ainda, habilmente, diga-se de passagem, da violência que era comum à região como instrumento para provocar no leitor respostas aos seus questionamentos sub-reptícios (ou seja, furtivos), choca com a realidade de sua ficção, porém ainda que provoque continuamento o leitor branco e protestante, ela diverte este mesmo leitor ao apresentar o lado mais grotesco possível de seus personagens caricatos.

Em 1964, quando só contava com 39 anos morreu de lúpus, a mesma doença que vitimou seu pai, foi uma das mais curtas e ricas carreiras literárias que se tem notícia, ela escreveu mais um romance, três volumes de contos e ensaios. E se tornou reconhecida como uma das maiores contistas de todos os tempos, recebendo por isso a honra de figurar entre os principais escritores contemporâneos, sendo comparada, não sem motivos, com William Faulkner, um grande nome da literatura mundial e, o maior nome da literatura do sul dos Estados Unidos.

Num evento que abordou a dificuldade de escrever literatura secular e conciliar isso com uma fé credal ela disse: “... O romancista e o crente, quando não são o mesmo homem, ainda mantêm muitos traços em comum – uma desconfiança do abstrato, um respeito pelos limites, um desejo de penetrar a superfície da realidade e de encontrar em cada coisa o espírito que o faz ser o que é e sustenta o mundo unido. Mas eu não acredito que tenhamos uma grande ficção religiosa até que tenhamos de novo a feliz combinação de um artista crente e uma sociedade crente. Até que chegue esse tempo, o romancista terá de fazer o melhor que puder no trato com o mundo que tem. No fim, ele pode constatar que, em vez de refletir a imagem no coração das coisas, ele apenas refletiu nossa condição decaída e, por meio dela, a face do mal pelo qual estamos todos possuídos. É uma realização modesta, mas talvez necessária.” Veja O romancista e o crente.

Isto nos deixa com muita coisa para pensar, muita mesmo: como ter uma visão realista do universo que nos cerca, sem perder de vista as relações que se dão em seu interior e ao mesmo tempo como criar um outro “mundo possível” apresentando uma outra realidade que não seja utópica, sendo moldada por preceitos bíblicos? Como ter fé num mundo hipócrita e cruel? Como ter fé num mundo racista e preconceituoso? Como preservar a Imago Dei num ser falível, sem deixar que as falhas humanas o tornem uma mera caricatura daquilo para o que foi criado? É um longo caminho a percorrer, fica mais fácil usando a bússola de Flannery, seja seguindo suas lições, seja não seguindo os seus personagens.

O romancista e o crente


Como sou romancista, e não filósofa ou teóloga, tenho de entrar nessa discussão num nível muito mais baixo e seguir por um caminho muito mais estreito do que o que me seria mais desejável. Para os fins deste simpósio, foi sugerido que concebêssemos a religião em sentido lato, como uma expressão da preocupação última do homem, em vez de identificá-la com o judaísmo ou o cristianismo institucional ou com “ir à igreja”.Vejo a utilidade disso. É uma tentativa de ampliar a noção do que é uma religião e de como o religioso precisa ser exprimível na arte de nosso tempo. Mas sempre há o perigo de, ao tentar ampliar as ideias dos estudantes, acabemos por evaporá-las, e acho que nada neste mundo se presta à rápida evaporação quanto as preocupações religiosas.

Como escritora, a maior parte do meu trabalho é tornar tudo, mesmo uma preocupação crucial, o mais sólido, concreto e específico possível. O escritor começa seu trabalho no ponto em que o conhecimento começa – com os sentidos; ele trabalha com as limitações da matéria e, a menos que esteja escrevendo fantasia, tem de permanecer dentro das possibilidades concretas de sua cultura. Ele está vinculado a seu passado particular e às instituições e tradições que seu passado legou a sua sociedade. No ocidente, fomos formados pela tradição judaico-cristã. Estamos ligados a ela por fios que frequentemente podem ser invisíveis, mas que, ainda assim, estão lá. Essa tradição moldou o nosso secularismo; formou inclusive o molde do ateísmo moderno. De minha parte, devo permanecer bem dentro da tradição judaico-cristã. Tenho de falar, sem apologia, da Igreja, mesmo quando a igreja está ausente; de Cristo, mesmo quando ele não é reconhecido.

Quando alguém fala como cientista, creio que seja possível desconsiderar grandes partes da personalidade e falar simplesmente como cientista; mas quando alguém fala como romancista, precisa falar da mesma maneira que escreve – com toda a personalidade. Muitos alegam que o trabalho de um romancista é nos mostrar como o homem sente, e dizem que essa é uma operação em que seus próprios compromissos não interferem de maneira alguma. O romancista, como se diz, está em busca de um símbolo para expressar um sentimento e se ele for judeu, cristão, budista ou o que quer que seja não faz diferença para a adequação do símbolo. Dor é dor, alegria é alegria, amor é amor, e essas emoções humanas são mais fortes do que qualquer simples crença religiosa; são o que são, e o romancista os mostra exatamente assim. Isso é verdade até certo ponto, mas não dá conta de um romance. A grande ficção envolve todo o espectro do discernimento humano; não se trata simplesmente da imitação de um sentimento. O bom escritor não apenas encontra um símbolo para o sentimento, ele encontra um símbolo e um modo de fixá-lo que diz ao leitor inteligente se este sentimento é adequado ou inadequado, se é moral ou imoral, se é bom ou mau. E sua teologia, mesmo em seu mais remoto alcance, terá uma influência direta sobre ele.

Faz uma grande diferença para a feição de um romance se seu autor crê que o mundo veio à existência e e se sustenta por um ato criativo de Deus, ou se ele crê que o mundo e nós mesmos somos produtos de um acidente cósmico. Faz uma grande diferença para o romance se seu autor crê que fomos criados à imagem de Deus ou se crê que fomos nós que criamos um Deus com nossas próprias mãos. Faz uma grande diferença se ele crê que nossa vontade é livre, ou determinada como a dos outros animais.

Santo Agostinho escreveu que as coisas do mundo emanam de Deus de duas maneiras: intelectualmente, na mente dos anjos, e fisicamente, no mundo das coisas. Para a pessoa que crê nisso – como o mundo ocidental sustentou até poucos séculos atrás –, este mundo físico, sensível, é bom porque provém de uma fonte divina. O artista geralmente sabe disso por instinto; seus sentidos, que são usados para penetrar o concreto, assim o dizem. Quando Conrad disse que seu objetivo como artista era prestar a mais alta justiça possível ao universo visível, ele estava falando com o mais firme instinto de romancista. O artista penetra o mundo concreto a fim de encontrar em suas profundezas a imagem de sua fonte, a imagem da realidade última. Isso de forma alguma atrapalha sua percepção do mal, mas, ao contrário, a torna mais aguda, pois somente quando o mundo natural é visto como bom o mal se torna inteligível como uma força destrutível e uma consequência necessária de nossa liberdade.

Nos últimos séculos, temos vivido em um mundo cada vez mais convencido de que os limites da realidade terminam muito próximo da superfície, que não há uma fonte divina última, que as coisas do mundo não provêm de Deus de maneira dupla, ou de qualquer maneira. Por quase dois séculos, o espírito popular de sucessivas gerações tem se inclinado mais e mais à visão de que os mistérios da vida por fim cairão diante da mente do homem. Muitos escritores modernos têm estado mais preocupados com o processo da consciência do que com o mundo objetivo fora da mente. Na ficção do século XX, cada vez mais acontece de um mundo absurdo e sem sentido colidir com a consciência sagrada do autor ou da personagem; raramente, agora, autor e personagem saem para explorar e penetrar um mundo em que o sagrado está refletido.

No entanto, o escritor sempre tem de criar um mundo, e este deve ser crível. As virtudes da arte, como as virtudes da fé, são tais que vão além das limitações do intelecto, além de qualquer mera teoria que um escritor pode nutrir. Se o romancista está fazendo aquilo que como artista está obrigado a fazer, ele inevitavelmente sugerirá aquela imagem da realidade última conforme se pode vislumbrar em algum aspecto da situação humana. Neste sentido, a arte revela, e os teólogos aprenderam a não ignorá-la. Em muitas universidades, você encontrará departamentos de teologia cortejando intensamente os departamentos de inglês. O teólogo está interessado especificamente no romance moderno porque ali ele vê refletido o homem de nosso tempo, o descrente, que está, no entanto, agarrado de uma maneira desesperada e geralmente honesta com problemas intensos do espírito.

Nós vivemos em uma era descrente, mas que é notável e desequilibradamente espiritual. Há um tipo de homem moderno que reconhece o espírito em si mesmo, mas que deixa de reconhecer um ser fora de si a quem possa adorar como Criador e Senhor; consequentemente, ele tem se tornado sua própria preocupação última. Ele diz com Swinburne “Glória ao homem nas alturas, pois ele é o mestre das coisas”, ou com Steinbeck “No fim era a palavra e a palavra estava com o homem”. Para ele, o homem tem seu natural espírito de coragem, dignidade e orgulho e deve considerá-lo um ponto de honra a ser satisfeito com isso.

Há outro tipo de homem moderno que reconhece um ser divino que não ele mesmo, mas não acredita que este pode ser conhecido anagogicamente, definido dogmaticamente ou recebido sacramentalmente. Para ele, Espírito e matéria estão separados. O homem vagueia, preso em uma confusão de culpa que não é capaz de identificar, tentando alcançar um Deus do qual não pode se aproximar, um Deus incapaz de se aproximar dele.

E há um outro tipo de homem moderno que não é capaz de crer nem de conter-se a si mesmo na descrença e que busca desesperadamente, sentindo em tudo a experiência da perda de Deus.

Na melhor das hipóteses, nossa era é uma era de buscadores e descobridores e, na pior, uma era que tem domesticado o desespero e aprendido a conviver felizmente com ele. A ficção que celebra este último estado é a que tem menos chance de transcender suas limitações, pois quando a necessidade religiosa é banida com sucesso, ela geralmente atrofia, mesmo no romancista. O senso do mistério se esvai. Um tipo de evolução reversa se dá, e toda a gama de sentimento é embotado.

Os buscadores são outro assunto. Pascal escreveu em seu caderno: “Seu eu não O tivesse conhecido, eu não O teria encontrado”. Esses buscadores descrentes têm seu efeito mesmo entre aqueles de nós que acreditam. Começamos a examinar nossas próprias noções religiosas, para ressoá-las de forma genuína, para purificá-las no calor da agonia de nossos vizinhos descrentes. Que escritor cristão poderia ser comparado a Camus? Temos de procurar em muito da ficção de nosso tempo um tipo de sub-religião que expressa sua preocupação última em imagens que ainda não quebraram para mostrar qualquer reconhecimento de um Deus que se revelou. Tão grande quanto muito dessa ficção, tanto quanto ela revela um esforço sincero para encontrar a única verdadeira preocupação crucial, tanto quanto em muitos casos ela representa valores religiosos de uma ordem elevada, eu não acredito que ela possa adequadamente representar na ficção a experiência religiosa central – aquilo que, afinal, diz respeito a uma relação com um ser supremo reconhecido pela fé. É a experiência de um encontro, de um tipo de conhecimento que afeta todas as ações dos crentes. É a experiência de Pascal depois de sua conversão, e não de antes.

O que eu digo aqui seria muito mais afim ao espírito de nossos tempos se eu pudesse falar para vocês sobre a experiência de escritores como Hemingway, Kafka, Gide e Camus, mas toda a minha própria experiência tem sido aquela do escritor que crê, de novo nas palavras de Pascal, no “Deus de Abraão, de Isaque e de Jacó e não no deus dos filósofos e eruditos”. Este é um Deus ilimitado e que se revela de maneira específica. É aquele que se tornou homem e levantou dentre os mortos. É um que confunde os sentidos e as sensibilidades, conhecido primeiramente como uma pedra de tropeço. Não há nenhuma maneira de encobrir essa especificação ou fazê-la mais aceitável para o pensamento moderno. Este Deus é o objeto da preocupação última e tem um nome.

O problema do romancista que deseja escrever sobre o encontro do homem com este Deus é como ele deve tornar a experiência – que é natural e sobrenatural ao mesmo tempo – inteligível, crível, ao leitor. Em qualquer época isso seria um problema, mas em nossa própria é quase insuportável. No público de hoje, o sentimento religioso se tornou, se não atrofiado, pelo menos nebuloso e piegas. Quando Emerson decidiu, em 1832, que não podia mais celebrar a Santa Ceia a menos que o pão e o vinho fossem removidos, deu-se um passo importante na vaporização da religião nos EUA, e o espírito daquele passo continua apressado. Quando o fato físico é separado da realidade espiritual, a dissolução da fé é, por fim, inevitável.

O romancista não escreve para expressar a si mesmo, não escreve simplesmente para apresentar a visão que ele considera verdadeira; ao contrário, ele apresenta sua visão de tal modo que ela possa ser transferida, o mais completamente possível, a seu leitor. Você pode seguramente ignorar o gosto do leitor, mas não pode ignorar sua natureza, não pode ignorar sua paciência limitada. Seu problema será cada vez mais difícil à medida que suas crenças se afastam das dele.

Quando escrevo um romance em que a ação central é um batismo, estou bastante consciente de que, para a maioria dos meus leitores, o batismo é um rito sem sentido, e assim, em meu romance, tenho de conferir se este batismo causa suficiente admiração e mistério para sacudir o leitor em algum tipo de reconhecimento emocional de seu significado. Para este fim eu tenho de direcionar o romance todo – sua linguagem, sua estrutura, sua ação. Tenho de fazer o leitor sentir em seus ossos, se em nenhum outro lugar, que algo importante está acontecendo aqui. A distorção, neste caso, é um instrumento; o exagero tem um propósito e toda a estrutura da história ou do romance foi feita de tal forma por causa da crença. Não é este o tipo de distorção que destrói; é o tipo que revela – ou deveria revelar.

Estudantes frequentemente têm a ideia de que os processos em operação aqui são dos que atrapalham a honestidade. Eles pensam que inevitavelmente o escritor, em vez de ver o que é, verá apenas o que crê. É perfeitamente possível, claro, que isso aconteça. Sempre, desde que o romance existe, o mundo foi inundado com uma má ficção pela qual o impulso religioso foi responsável.

O lamentável romance religioso surge quando o escritor supõe que, por causa de sua fé, ele está de alguma maneira dispensado da obrigação de penetrar na realidade concreta. Ele pensará que os olhos da Igreja ou da Bíblia ou de sua teologia particular já terão construído a visão para ele, e que seu trabalho é rearranjar essa visão essencial em padrões satisfatórios, sujando-se o mínimo possível no processo. Seu sentimento quanto a isso pode ser mais bem definido por uma daquelas teologias maniqueístas que vê o mundo natural como indigno de penetração. Mas o verdadeiro romancista, aquele com o instinto do que deve fazer, sabe que não pode se aproximar do infinito diretamente, que ele deve penetrar o mundo natural humano tal como ele é. Quanto mais sacramental a sua teologia, mais incentivo ele terá para fazer isso.

O sobrenatural é um embaraço hoje até para muitas igrejas. O viés naturalista saturou nossa sociedade a tal ponto que o leitor não percebe que ele tem de mudar sua visão ao ler algum tipo de ficção que trate de um encontro com Deus. Permitam-me deixar o romancista de lado por um momento e falar sobre seu leitor.

Este leitor tem, em primeiro lugar, de se livrar de um ponto de vista puramente sociológico. Nos anos trinta, passamos por um período nas letras americanas em que a crítica social e o realismo social eram considerados por muitos como os mais importantes aspectos da ficção. Ainda sofremos com uma ressaca desse período. Criei um personagem, Hazel Motes, cuja principal paixão era libertar-se da convicção de que tinha sido redimido por Jesus. A decadência do sul nunca entrou em minha cabeça, mas Hazel disse “eu viu” e “eu trazi” e ele era do leste do Tenessee; assim, a explicação de um leitor médio era que ele devia representar algum problema social peculiar àquela parte do sul não civilizado.

Dez anos, entretanto, têm feito alguma diferença em nossa atitude diante da ficção. A tendência sociológica se enfraqueceu naquela forma particular, mas sobreviveu em outra igualmente ruim. Esta é a noção de que o escritor de ficção está atrás de tipos. Eu não sei quantas cartas recebi dizendo que o sul não é, de maneira alguma, do jeito que eu o pintei; alguns me dizem que o protestantismo no sul não é como eu o retratei, que o protestante do sul nunca estaria preocupado, como Hazel Motes está, com as práticas penitenciais. É claro, como romancista, eu nunca quis caracterizar o Sul típico ou o protestantismo típico. O sul e a religião ali encontrada são extremamente fluidas e oferecem variedade suficiente para dar ao romancista a mais ampla gama de possibilidades imaginável, pois o romancista está obrigado pelas possibilidades razoáveis, não pelas probabilidades, de sua cultura.

Há um viés ainda pior que esses dois – o viés clínico, o preconceito que vê tudo o que é estranho como um caso de estudo do anormal. Freud trouxe à luz muitas verdades, mas sua psicologia não é um instrumento adequado para compreender o encontro religioso ou a ficção que o descreve. Qualquer determinação psicológica, cultural ou econômica pode ser útil até certo ponto; aliás, tais fatos não podem ser ignorados, mas o romancista estará interessado neles somente à medida que for capaz de passar por eles para dar um sentido de algo além deles. Quanto mais aprendemos sobre nós mesmos, para mais fundo no desconhecido empurramos as fronteiras da ficção.

Tenho observado que a maior parte da melhor ficção religiosa de nosso tempo é mais chocante exatamente para aqueles leitores que reclamam ter um intenso interesse em encontrar mais “propósito espiritual” – como gostam de dizer – nos romances modernos do que no momento podem detectar neles. O leitor de hoje, se crê na graça, a vê como algo que pode estar separado da natureza e servida a ele crua como um êxtase instantâneo. A palavra favorita deste leitor é compaixão. Não quero difamar a palavra. Há um sentido melhor em que ela pode ser usada, embora raramente o seja – o sentido de estar em angústia com e para a criação em sua sujeição à vaidade. Este é um sentido que implica um reconhecimento do pecado; este é um sofrer com, mas que não abranda a rigidez e não faz concessões. Quando infundida nos romances, é geralmente repugnante. Nosso tempo não vai buscá-lo.

Já falei bastante sobre o sentimento religioso de que carece o público moderno, e ao objetar-me, pode-se indicar que há um verdadeiro retorno dos intelectuais de nosso tempo a um interesse em religião e a um respeito por ela. Acredito que isso seja verdade. No futuro saberemos em que este interesse pela religião resultará. Pode, junto com o novo espírito ecumênico que vemos por toda parte ao nosso redor, proclamar uma nova era religiosa, ou pode ser simplesmente que a religião sofrerá a última degradação e se tornará, por algum tempo, um modismo. O que quer que signifique para o futuro, não creio que nossa sociedade atual seja uma em que as crenças básicas sejam religiosas, exceto no Sul. De qualquer maneira, não é possível ter uma alegoria efetiva em tempos em que as pessoas são assoladas de uma forma ou de outra por convicções passageiras, porque todos a lerão de modo diverso. Não é possível indicar valores morais quando a moralidade muda conforme o que está sendo feito, pois não há uma base comum de julgamento aceita. E não é possível mostrar a ação da graça quando a graça é extirpada da natureza ou quando toda possibilidade de graça é negada, pois ninguém terá a menor ideia do que você está falando.

O escritor sério sempre toma o vício, na natureza humana, como seu ponto de partida, geralmente o vício numa personagem em outros aspectos admirável. O drama geralmente se baseia no fundamento do pecado original, quer o escritor pense em termos teológicos, quer não. Então, também, supõe-se que qualquer personagem num romance sério detém uma carga de sentido maior do que ele mesmo. O romancista não escreve sobre pessoas no vácuo; ele escreve sobre pessoas em um mundo em que algo está flagrantemente ausente, em que há o mistério geral da incompletude e a tragédia particular de nossos tempos a ser demonstrada, e o romancista tenta transmitir, em forma de livro, uma experiência total da natureza humana de qualquer tempo. Por essa razão, os maiores dramas naturalmente envolvem a salvação ou a perda da alma. Onde não há fé na alma, há muito pouco drama. O romancista cristão se distingue de seus pares pagãos por reconhecer o pecado como pecado. Conforme a sua herança, ele não o vê como doença ou acidente do ambiente, mas como a escolha responsável da ofensa contra Deus que envolve seu futuro eterno. Ou se leva a sério a salvação ou não. E é bom perceber que a maior medida de seriedade admite a maior medida de comédia. Somente se estivermos seguros de nossas crenças poderemos ver o lado cômico do universo. Uma das razões por que boa parte de nossa ficção contemporânea é mal-humorada é que muitos desses escritores são relativistas e têm de continuamente justificar as ações de suas personagens numa escala móvel de valores.

Nossa salvação é um drama representado com o diabo, um diabo que não é simplesmente o mal generalizado, mas uma inteligência má determinada por sua própria supremacia. Eu acho que, se escritores com uma visão religiosa do mundo se sobressaem nesses dias no retrato do mal, é porque eles têm de tornar sua natureza inconfundível com a de sua audiência particular.

O romancista e o crente, quando não são o mesmo homem, ainda mantêm muitos traços em comum – uma desconfiança do abstrato, um respeito pelos limites, um desejo de penetrar a superfície da realidade e de encontrar em cada coisa o espírito que o faz ser o que é e sustenta o mundo unido. Mas eu não acredito que tenhamos uma grande ficção religiosa até que tenhamos de novo a feliz combinação de um artista crente e uma sociedade crente. Até que chegue esse tempo, o romancista terá de fazer o melhor que puder no trato com o mundo que tem. No fim, ele pode constatar que, em vez de refletir a imagem no coração das coisas, ele apenas refletiu nossa condição decaída e, por meio dela, a face do mal pelo qual estamos todos possuídos. É uma realização modesta, mas talvez necessária.

Flannery O'Connor
Tradução de William C. Cruz

Confissões de um ex-pastor(XII) 1ª Parte

Ruller é uma criação de Flannery O’Connor; é um garoto de uma cidadezinha e está desabrochando para o mundo. 

É dia. No meio da mata, Ruller corre atrás de um peru selvagem que está ferido. Ah, se eu conseguisse pegá-lo, é o que ele pensa e, caramba, ele vai pegá-lo, mesmo que tenha de correr para fora do estado.  

Ruller imagina-se entrando triunfante pela porta da frente, com a ave sobre o ombro, e toda a família exclamando admirada:  

— Olha, o Ruller está trazendo um peru! Ruller, onde foi que você conseguiu esse peru? 

— Ah, eu peguei no meio do mato. Se quiserem, qualquer dia pego outro para vocês. 

Mas pegar aquela ave ferida é muito mais difícil do que ele pensava. Então lhe ocorre outra idéia: “Acho que Deus vai me fazer correr à toa atrás desse maldito peru a tarde inteira”. Ele sabe que não devia pensar isso de Deus — mas é assim que ele está se sentindo. E quem pode culpá-lo por estar se sentindo desse jeito? 

Ruller tropeça, cai e fica ali no meio da sujeira, pensando se ele é mesmo esquisito. Mas, de repente, a caçada chega ao fim. O peru cai morto por causa do tiro que havia levado. Ruller coloca a ave sobre o ombro e começa sua marcha triunfal para casa, que fica bem no centro da cidade. Então se lembra do que pensou a respeito de Deus antes de capturar a ave. Eram pensamentos bem ruins, ele confessa. É provável que Deus esteja chamando sua atenção, detendo-o antes que fosse tarde demais. E então exclama: “Obrigado, Deus! O senhor foi extremamente generoso”.  

Ele pensa que aquele peru pode ter sido um sinal. Pode ser que Deus queira que ele se torne um pregador. Ruller quer fazer alguma coisa para Deus. Se naquele dia encontrasse um pobre na rua, iria dar-lhe sua moeda de dez centavos. É a única que ele tem, mas Ruller pensa que, por causa de Deus, ele a daria ao pobre.  

Andando agora pelo meio da cidade, as pessoas ficam admiradas com o tamanho da ave que ele carrega. Homens e mulheres ficam olhando para ele. Um grupo de crianças da roça o acompanha. Então certo homem pergunta:  

— Quanto você acha que ele pesa? 

— Pelo menos uns cinco quilos. 

— Quanto tempo você correu atrás dele? 

— Mais ou menos uma hora. 

— Que coisa impressionante! 

Mas Ruller não está com tempo para conversa fiada. Ele mal pode esperar para ouvir o que seu pessoal vai dizer quando ele chegar em casa com aquela caça. E torce para encontrar alguém mendigando. Com certeza ele lhe daria sua moeda. “Senhor, mande um mendigo. Mande um antes que eu chegue em casa.” E ele sabe que Deus vai lhe enviar um mendigo, pois é uma criança incomum. “Por favor, um mendigo agora mesmo”, é a oração de Ruller. No exato momento em que ele diz isso, uma mendiga velhinha anda em sua direção. O coração de Ruller quase salta pela boca. Ele avança na direção da mulher, gritando: “Aqui, aqui!”. Coloca a moeda na mão dela e continua a andar sem olhar para trás.  

Aos poucos seu coração desacelera e ele sente algo inusitado — como se estivesse feliz e sem graça ao mesmo tempo. Ruller está andando sobre as nuvens — ele e a ave que Deus lhe enviou.

Nesse momento ele percebe a presença das crianças que o seguiam. Todo generoso, vira-se e pergunta:  

— Vocês querem ver o peru que eu cacei? 

As crianças ficam olhando para ele. 

— Eu o persegui até ele morrer. Olhem só a marca do tiro debaixo da asa. 

— Deixe eu dar uma olhada — diz um dos meninos. Então, num gesto inesperado, o menino pega a ave, coloca-a sobre o próprio ombro e, girando o corpo, atinge o rosto de Ruller enquanto sai. E fica tudo por isso mesmo. Os meninos saem andando e levam o peru que Deus lhe havia mandado. 

Antes que Ruller conseguisse se mexer, os garotos já estavam a um quarteirão de distância. Desaparecem na escuridão, e Ruller começa a se arrastar para casa, mas logo dispara numa corrida. E Flannery O’Connor termina a impressionante história de Ruller com as seguintes palavras: “Ele corria cada vez mais e, ao chegar à estrada que dava para sua casa, estava com o coração tão acelerado quanto as pernas e com a certeza de que havia Algo Terrível atrás de si, com os braços rígidos e as mãos prontos para agarrá-lo”. Algo Terrível.

[Síntese do conto feita por Brennan Manning em Falsos, metidos e impostores da Mundo Cristão, adaptação do livro O impostor que vive em mim, do mesmo autor e mesma editora, o poder de síntese dele é inigualável. Os comentários meus a este texto, que faziam parte deste artigo, foram deslocados para a segunda parte do artigo com mesmo nome, o texto estava muito extenso, a brevidade exigiu isso].

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