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The Handmaid's Tale - Cena do Protesto (Repost)

Trotsky na Netflix


Acaba de chegar aos telespectadores brasileiros a série Trotsky, exibida pela Netflix. Ela é original da Rússia, foi produzida pela TV Pevry Kanal sob a direção-geral de Konstantin Ernst e tem a produção de Alexandre Tsekalo. No momento que soube da notícia que a Netflix iria exibir a série, como admirador da figura política e intelectual, sobretudo por que o biografado desempenhou um importante papel junto com Lênin na condução da primeira revolução operária/camponesa duradoura, fiquei entusiasmado. Mas, fui advertido por colegas e pessoas que conhecem a história do processo revolucionário e também a vida e obra do criador do Exército Vermelho.

Mesmo com as advertências, fiz questão de assisti-la e comprovar o quanto é problemática do ponto de vista histórico e político, tanto no que se refere à biografia do personagem principal, como também à ambientação na qual lhe fez ser conhecido internacionalmente: a revolução russa. Portanto, confirmei que o enredo da série não é só reacionário politicamente, como também pratica indigência teórica e histórica do co-líder da revolução russa e o processo da revolução, ou seja, nem fatos históricos a série teve a dignidade de respeitar. Acredito que os erros sucessivos que aparecem ao longo dos episódios se dão por questão de escolha, e não por falta de conhecimento da produção do seriado. Basta uma pequena olhada na produção cinematográfica para perceber que teve um alto investimento e não foi feita com baixo orçamento. Sendo assim, seria muito tranquilo a produção contratar uma consultoria de historiadores sérios que não cometessem equívocos. Mas, como se trata deliberadamente de falsificar a história da revolução russa e, com isso, produzir grosserias, eles não se preocuparam nem um pouco com os fatos históricos.

O tamanho do absurdo que aparece ao longo da série faz inveja à grande maioria das produções anticomunistas de Hollywood durante a guerra fria. O fato é que trata-se da narrativa oficial do Governo Putin e daqueles que na derrocada da URSS espoliaram os meios de produção. O objetivo é a reescritura da história recente da Rússia.

Portanto, antes de relatar e desmentir algumas passagens da série (sim, algumas, pois se eu fosse tentar desfazer todas as mentiras e falsificações que existem nela, certamente este texto seria longo e cansativo para os leitores) queria elencar alguns pontos que considerei importante que a narrativa da série tenta inculcar naqueles que a assistem.

A primeira é a maneira como é retratada a vida e a personalidade de um dos principais dirigentes da revolução de Outubro. Trotsky é mostrado como um homem egoísta, ambicioso financeiramente, machista, tirano e sanguinário.

O segundo alvo das inverdades contidas no enredo da série localiza-se sobre o movimento socialista russo, sobretudo sobre o partido bolchevique, que é tratado como uma facção criminosa que só pensa em iludir o povo em beneficio dos seus dirigentes – especialmente Lênin, que é colocado como o chefe da máfia –, mostrando os debates dentro do partido não como embates de ideias e princípios socialistas, mas como uma disputa de egos para ver quem comandaria a facção. Em suma, a intenção é desmoralizar ao máximo o partido bolchevique, que liderou a revolução de Outubro.

A terceira e, para mim, o elemento principal do enredo reacionário da série, foi mostrar que a revolução russa foi um grande erro que só gerou violência e barbárie, indo ao ponto da série demonstrar que a atitude do partido que dirigiu a revolução foi motivada por dinheiro, e não pelo princípio da emancipação humana, que foi o significado maior daquele outubro de 1917. O fato é que a revolução não foi produzida pelo partido bolchevique, e não foi financiada pelo governo alemão (como mostra a série), mas, sim, pelos operários e camponeses que viram nas Teses de Abril de Lênin um programa de sua emancipação, e que atendiam suas reivindicações mais básicas e imediatas.

A primeira cena da série mostra a famosa imagem do trem blindado no qual Trotsky foi “morador” durante os tempos difíceis da guerra civil, quando foi comissário de guerra, organizador e comandante do Exército Vermelho. Assim, era imprescindível o transporte sob trilhos para coordenar essas tarefas. Em seguida, as câmeras focam o interior do Trem, com um Trotsky conversando com uma moça charmosa, vestida de modo pomposo, e fumando no interior do vagão. Seguem-se algumas palavras, beijos e sexo. Parece uma cena inocente, retratando um caso de extra-conjugal, porém é uma cena lastimável quando olhamos com mais rigor. A primeira observação é a de que o biógrafo de Trotsky mais gabaritado, Isaac Deutscher, não apresenta em nenhum momento que ele teve algum caso com uma moça chamada Larissa Reissnerque teria nascido na Polônia em 1895, se tornando socialista na Alemanha e que finalmente vai para a Rússia em 1917 acompanhar o processo revolucionário russo ao lado dos bolcheviques. Na invasão dos exércitos estrangeiros na Rússia, ela aceitou de prontidão se alistar nas fileiras do partido para defender a revolução dos ataques estrangeiros, e foi nesta tarefa que foi convidada a acompanhar e auxiliar Leon Trotsky na coordenação do Exército Vermelho. Mas a série a retrata como uma espécie de concubina de Trotsky, cujas atenções negligenciavam as tarefas principais do conflito,enquanto o mundo soviético desabava sob a guerra civil. Ou seja, mostra o co-líder da revolução como uma pessoa sem escrúpulos.

Posteriormente, a série dá uma guinada temporal para o México, país de seu último exílio. A cena que acabamos de descrever foi construída como uma espécie de memória do comandante do Exército Vermelho. A série então se desloca temporalmente para a apresentação do então namorado de sua secretária, de pseudônimo Jacson, que na realidade se chamava Ramón Mercader. Ao conhecer Trotsky (isto é, depois do atentado à sua vida pelos agentes stalinistas), Mercader começa a fazer uma série de entrevistas na casa do líder soviético. Porém, esta informação também não consta nas biografias sobre vida e a obra do líder revolucionário. Mas o processo de falsificação não para por aí. O enredo da série começa a mostrar que Jacson era um ferrenho defensor de Stálin, colocando-o em constante conflito com Trotsky. E ainda pior: com Trotsky sempre provocando-o, dando a ideia que Ramón assassinou-o não por motivos políticos, mas por questões pessoais. Se Jacson já se apresentou como um stalinista, então por que Trostsky iria manter amizade com ele, uma vez que Stálin já tinha mandado lhe assassinar? O fato é que o afã de desmoralizar Trotsky e o partido bolchevique foi tão grande, que até elementos de ficção foram utilizados.

A propósito da ficção,  um episódio que me chamou muita atenção: os encontros que Leon Trotsky teve com Sigmund Freud, o pai da psicanálise.Mas a ficção vai além.  também uma cena em que Freud entra em debate com o co-líder da revolução russa. Aquele lhe faz um diagnóstico de um homem obcecado pela revolução comunista a ponto de passar por cima de tudo e todos para atingir este objetivo. E, diga-se, que este objetivo é um projeto pessoal de Trotsky, e não o projeto de uma emancipação dos trabalhadores russos.

Para além das mentiras do diagnóstico de Trotsky feito por Freud nas cenas mencionadas, nunca houve um tal encontro entre os dois – nenhuma biografia minimamente séria sobre a vida e a obra do revolucionário russo menciona tal encontro. O problema não é utilizar-se de ficção. Basta que se anuncie que trata-se de uma obra de tal gênero. Porém, em entrevista ao site de O Globo, o produtor diz: “É difícil ser objetivo cem anos depois, mas tentamos produzir uma série fundamentada em acontecimentos reais”.

Na segunda e última parte deste texto, mostrarei as outras deformações do enredo referente à biografia de Trotsky e à revolução russa, concatenando uma resposta para os supostos motivos por detrás das falsificações grosseiras que a série produz, tanto contra Trotsky como contra a revolução de Outubro.

Jefferson Lopesmestre em História pela UFCG.

Brasil: o grande salto para trás


Com o título “Crise brasileira e humor negro”, o jornal francês Le Monde publica um artigo sobre o documentário “Brasil: o grande salto para trás”, das francesas Frédérique Zingaro e Mathilde Bonnassieux, que será transmitido pela TV franco-alemã ARTE nessa terça-feira (18 de abril de 2017).

A correspondente do jornal Le Monde no Brasil, Claire Gatinois, escreve que em uma certa segunda-feira, no dia 17 de abril de 2016, o Brasil descobriu o rosto dos políticos que representavam a população na Câmara dos Deputados: conservadores, grandes fazendeiros, evangélicos loucos por Deus, homens apegados aos valores tradicionais e até saudosistas dos tempos da ditadura militar.

Na maioria, pessoas corrompidas.

O artigo informa que durante a sessão de votação, que entrou madrugada adentro, esses deputados selariam o destino da então presidente Dilma Rousseff, reeleita em 2014, desencadeando o impeachment.

Este é o momento histórico do documentário “Brasil: o grande salto para trás”, um momento-chave em que nosso país, numa crise vertiginosa, viu o seu futuro balançar.

“É como o fim de um parênteses encantado aberto por Lula da Silva em 2003, legando prosperidade e permitindo que milhares de brasileiros saíssem da miséria, sem falar na projeção na cena diplomática internacional, tornando-se um ator relevante dos BRICS”, escreve a jornalista, explicando que a indignação popular diante da corrupção de um Partido dos Trabalhadores desgastado pelo poder — corrupção que se alastra pelos partidos da direita e da esquerda — serviu de pano de fundo para o impeachment.

“Desse instante nascerá o confronto, muitas vezes maniqueísta, entre os pró e os contra a destituição, opondo uma esquerda progressista e uma direita agarrada aos seus privilégios”, analisa Claire Gatinois.

O documentário das cineastas francesas optou pela descrição desta fratura, centrando a narrativa em Gregório Duvivier, jovem humorista da esquerda, que fez a maioria das entrevistas, incluindo a própria ex-presidente Dilma.

Le Monde analisa que o telespectador é levado a seguir a interpretação muito pessoal do cômico, que serve de referência para se compreender a complexidade do Brasil.

O percurso é revelador do sentimento de uma parte dos brasileiros: depois do impeachment, os militantes e simpatizantes da esquerda denunciam um complô anti-PT por parte de uma justiça enviezada e das mídias mais fortes, dando à destituição de Dilma ares de “um golpe de Estado parlamentar.”

Como será o futuro agora? — indaga o documentário, colocando em foco a perspectiva de um triste destino para a esquerda nacional, a exemplo do que ocorreu em diversos países da América Latina.

Le Monde constata que a conclusão do documentário é que, sem negar os erros do PT, a atual política de Michel Temer, marcada pelo rigor e pelas reformas que seduzem os mercados financeiros, compromete, com seus cortes, as despesas destinadas à saúde, educação e ajuda aos desfavorecidos.

Fonte: https://www.viomundo.com.br/voce-escreve/brasil-o-grande-salto-para-tras-o-que-os-franceses-viram-sobre-o-impeachment-assista.html

Ouvir Bolsonaro?


Realizado o desejo de que uma chacina ocorra a cada semana, como um ex-secretário nacional da juventude confessou recentemente, então começaremos a respirar.

“Um animal não passa sem inquietação
ao lado de um animal morto de sua espécie”
(Rousseau, Discurso sobe a desigualdade, I)

Pode ter havido mais de uma razão para que outros não tenham feito o mesmo que Jean Willys, mas a verdade é que muitos inclusive que votaram pelo impeachment poderiam ter se juntado ao deputado do PSOL para mostrar seu repúdio àquele que, ao defender o ex-militar que homenageou o coronel Ustra, acenava com uma ordem que supostamente iria além do que admitiriam muitos do partido do “sim” à revogação do mandato presidencial. Deputados do PSDB, do PSB, mesmo do DEM e do PTB, além, naturalmente, dos partidos de esquerda, poderiam, todos, sem distinção, ter reagido, para além do “decoro”, cuja manutenção, nessa altura, apenas duplicava o horror – é verdade que a câmara televisiva, fixada no local da votação, não permitiu ver muito. Em todo caso, o exagero retórico aqui é necessário, pois o nome “Ustra”, pronunciado com devoção – como se devesse adquirir características táteis, tomar corpo e grudar em outros corpos, especialmente no corpo de Dilma – constituía mais propriamente uma fórmula invocatória de tudo que não deveria jamais ser trazido à lembrança, a não ser sob uma controlada e precisa ritualização, pois deve ser respeitado o temor de que certas palavras acordem os mortos. Por isso, deixar essa palavra soar livremente, como se tem feito, em debates promovidos por clubes, programas de auditório, talk-shows, como a imprensa norte-americana fez tanto com Trump, a quem, no entanto, repudia (mas não repudiava as cifras trazidas pelo seu ibope), ao longo de anos e muito antes de sua campanha eleitoral, permitindo que se tornasse familiar o mais sinistro, ouvir o que ele tem para falar, “por sórdido que seja”, como dizem alguns bem-pensantes, pois isso seria respeitar o “Estado Democrático de Direito”, reduzido por alguns a uma espécie de fórmula mágica, salva-vidas precário daqueles que já não sentem o tapete debaixo dos pés e veem se dissolver a própria identidade política – não é ouvir, na verdade, mas consentir que soe livremente o veredito arcaico de seu enunciado, ávido por destruição tanto como o gesto de “não devo nada a ninguém”, lido como ousadia por seus entusiastas – oh ele ousa dizer o que estava na ponta de nossa língua, mas não dissemos até agora porque somos covardes. Ele é que tem colhões! E assim, na vala da covardia, vão sendo jogados decoro, respeito, senso de limite, assim como a expressão formalizada de uma convicção íntima, a tal opinião. Na verdade, seria interessante imaginar o que seria a convicção do deputado se minimamente formalizada, assim como as convicções de tantos que se expressam selvagemente em portais e redes sociais. Por uma imposição interna da forma, esse conteúdo mortífero teria de perder um pouco de si. Creio que nem o partido nacional-socialista alemão ousava se expressar assim em suas campanhas iniciais e falar tão cruamente de seu projeto de morte: ao menos na fachada, prometiam vida, comunidade, espírito, e se expressavam de um modo que mal se distinguiu em princípio das propostas do partido comunista, de que tiravam impulso para sua posição, atraindo até mesmo um certo contingente de forças progressistas para a sua base, como a promessa aos trabalhadores de que se apossariam dos meios de produção – ainda que aos capitalistas dissesse o contrário: impedir a expropriação. De fato, a assombrosa pobreza de linguagem do ex-sargento de polícia deve muito ao empobrecimento geral do vocabulário da política, também à esquerda.

Na falta de requisitos como forma e senso de limite, não há a menor perspectiva de debate esclarecido. Pois se se tratasse de debate republicano, esfera pública democrática, instituições iluministas, “o que ele tem para falar” talvez nem chegasse à consciência e buscasse outras soluções, não racionais, como um sintoma, um tique nervoso, mas jamais a expressão articulada. “O que ele tem para falar” só teria lugar no divã de um analista ou em convescotes subterrâneos com seus camaradas, jamais na esfera pública que se quer democrática. O que chamam, mesmo os que o desprezam, “ouvir a opinião de Bolsonaro”, que em pesquisa recente atinge 20% de intenções de voto, é permitir que se escoe a água mole do elogio da tortura, do estupro e do extermínio, sobre cabeças não tão duras assim, é permitir a relativização de máximas universais e a consideração de mil casos particulares em que cabe o assassinato, avulso ou de massa: em vista do momento, de certos grupos, em vista disso, daquilo – no fim de tudo chamado, conforme a expressão local e grosseira de seu fascismo, de bandidos

Por que então não houve mais manifestações como as de Willys, que solitariamente reagiu ao que no entanto deveria ter feito tremer boa parte daquele coletivo? Cuspir não seria a única reação possível –o corpo poderia exprimir, espontaneamente, sua repulsa de várias formas: gritando, desmaiando, vomitando, abandonando a sala, se enrugando numa careta. Em suma, haveria muitas maneiras, e, claro, também cuspindo, não necessariamente no deputado – alguém já o fazia –, mas no chão. Por que não cuspiram todos no chão em sinal de repulsa e em defesa da humanidade? Sim, o corpo poderia exprimir, só ele, na sua inteligência própria, formada ao custo de inúmeras lutas e perigos, que antecedem a própria história humana. O corpo tem memória – sim, ele tem, ele deve ter! Em quantos braços ali a linha dos pelos se eriçou? Em quantos dos presentes o pulso cardíaco se acelerou? Se fossem gambás, teriam certamente desprendido um cheiro ruim, que isolasse o agressor. Como já disse, não é possível saber pelas imagens se soou um sinal de alerta mais geral na Câmara. Mas o fato é que se buscou mais tarde advertir e punir o único que reagiu, mediante a sentença, tão cara, mas tão cara, aliás, ao espírito do capitalismo de forma geral e, na versão última, neoliberal, reduzida à única máxima geral que entre os homens da cidade ainda faria sentido: isso não é profissional – não é assim que se age com colegas, isso fere o decoro parlamentar, eles estavam em ambiente de trabalho e outras patacoadas. Quando era de supor que a Câmara devesse pertencer a uma esfera mais alta e mais livre de negócios e interesses humanos que o mundo do trabalho… Buscou se salvar por uma particularíssima ética o que afrontava o âmbito mais amplo da moral e da dignidade humana. O “profissional” só pôde entrar no lugar do humano por uma dessensibilização pelo sofrimento para o qual qual acenava a palavra nefanda – nessa dessensibilização, ou descolamento do corpo vivo, toda razoabilidade é rematada burrice e tão cega como criaturas de um olho só.

A sensibilidade para as dores alheias o filósofo Schopenhauer chamaria de compaixão, a propensão em diminuir o sofrimento do outro, a qual, apesar de seu pessimismo, ele considerava universal. Mas a compaixão como ato moral puro se revelaria especialmente no momento em que um corpo, em movimento espontâneo, sai em auxílio de alguém que vê sofrer ou está em perigo. Trata-se de “uma participação imediata, sem nenhum pensamento de fundo, em princípio nas dores do outro e em seguida na supressão desse mal”, o que supõe por um momento “que seja destruída a diferença entre mim e o outro”. Mais inimigo da piedade era para ele não o egoísmo, que tinha por um afeto antimoral embora humano, mas o sadismo, que chamava de crueldade, o interesse e o prazer no sofrimento alheio e mesmo em sua produção – interesse que considerava “diabólico”, e não mais humano. Por isso, apesar de emprestar da moral cristã alguns termos, era uma oração de antigos hindus a que mais admirava: “Não sei de oração mais bela que aquela de que os antigos hindus se servem para fechar seus espetáculos (…). Eles dizem: ‘Possa tudo o que tem vida ser libertado do sofrimento!’. É inequívoca a base somática da virtude que elege como anterior à justiça, a qual é tanto mais verdadeira quanto mais provém daquela. Por razões semelhantes é que Eduardo Pavlovski, grande dramaturgo argentino, psicanalista de formação e nome de referência do psicodrama na América Latina, escreveu num de seus artigos na imprensa: “A cumplicidade civil é um conglomerado de corpos imóveis e aterrados. Quando falo de corpos me refiro a um regime de afecção, ao regime de conexão com outros corpos”. No centro de muitas de suas peças e reflexões está o problema, muito reichiano, aliás (sua fonte teórica mais citada a esse respeito, porém, é Deleuze), do fascismo como uma forma de relação com o mundo e com o homem, de uma atitude diante da vida, para ele plenamente endossada pelo neoliberalismo: é essa a atitude do médico de Potestad, que vistoriava, com frieza profissional e a serviço do governo ditatorial, o estado clínico de recém-torturados. Não se trata em princípio de um homem cruel, mas antes de um patético e atribulado pai de família. Um homem banal – “O mal é banal”, como se espantou Hannah Arendt na análise que fez de Eichman, que, submetido, durante o processo de seu julgamento em Jerusalém, a diversas perícias com equipes de psicólogos e psiquiatras, foi julgado “normal”. Seria preciso então, diz ela, questionar esse conceito de normalidade.

São normais afinal os que não acodem quando se grita socorro, não desmaiam, não se enrugam, não se contraem num espasmo, mas apenas assistem impassíveis, quando não filmam, o espetáculo do sofrimento do outro se desenrolando diante dos seus olhos e ao vivo, ou tranquilamente jogam futebol ao lado de um corpo desovado na praia durante a madrugada? A atonia somática, que parece aumentar à proporção do incremento de estímulos e choques da mais variada natureza, inclusive midiática, precisaria ser investigada, mas em conexão com a barbárie já própria a uma sociedade de origem escravista, que criou condições especialmente propícias para a formação de indivíduos sádicos, perfeitamente frios, ao menos quando se trata de certa “classe” de gente. Quantos olhos não se envisgaram e pararam, absortos no espetáculo oferecido diariamente pelos nossos pelourinhos? – mas a compaixão, diz Schopenhauer, não reconhece classe (nem mesmo espécie). Ela é uma capacidade natural de retratibilidade como uma acusação mimética da dor do outro, seguida de uma ação com vista a impedi-la, mesmo que se corram riscos. Mais enigmáticos ainda que os que, tomados de fúria irracional, lincham – são os que assistem ao linchamento.

Numa entrevista à TV Câmara do Rio, sob a complacente escuta do jornalista, que tinha começado a conversa com Bolsonaro avisando se tratar de um “querido amigo”, o ex-policial afirmava, depois de dizer que um colega parlamentar deveria ser submetido ao pau-de-arara: “Você sabe que defendo a tortura…”. O programa está tranquila e espantosamente disponível na internet, e não devem ter chovido críticas e mensagens furiosas – não devem ter se viralizado – o suficiente para fazer que seu diretor e a emissora o retirassem com um devido “mea culpa” e o próprio entrevistado voltasse a colocar o rabo entre as pernas, pois não seria tempo de fazê-lo passear à luz do dia. Mas este tempo, passado ou futuro, chegou, e multiplicam-se as hipóteses e versões para isso ter acontecido – o mais importante de tudo é que ele chegou, não percamos isto de vista em nenhum momento nem adiemos mais essa constatação. Aquilo que jamais deveria ter acontecido aconteceu. Quanto à emissão (de 2009), vê-la é penetrar numa zona que toda civilização que merecesse esse nome deveria tratar como santuário, acessível a poucos e apenas mediante certas provas –porque também o horrendo precisa de santuários: “Não vai falar de ditadura militar aqui. Só desapareceram 282. A maioria marginais, assaltantes de bancos, sequestradores. (…) E fazemos um trabalho que a ditadura ainda não fez: matamos uns 30.000, começando com o FHC (…). Se vão morrer alguns inocentes, tudo bem”. Talvez o mais grave de tudo seja: parte da multidão não se importa e outra parte está entusiasmada (“ele é muito querido”, como disse esta semana o diretor do Clube Hebraica do Rio de Janeiro). Enunciados de conteúdo tão grave podem ser proferidos antes mesmo que o candidato seja eleito, ou a “batalha” comece. O governo de Bolsonaro provavelmente seria muito mais… do mesmo. Como ele já avisou, terão mais pulso firme em fazer que só um lado da batalha vá para o cemitério, como se isso já não fosse o mais comum… “O que falta neste Brasil, Sr. Presidente? Falta um Presidente da República que assuma, que diga o seguinte: ‘Em combate, soldado meu vivo não senta em banco de réu’. E ponto final. Estamos em combate!”. A escala em que o horror ocorre ainda não é suficiente…

Mas deixemos o entrevistado de lado, e contemplemos mais, já que nos é tão facilmente acessível, aqueles que o olham e ouvem, impassíveis, ou quase. Essa complacência – ela talvez seja mais assombrosa. A partir de que momento ela começou a existir? A partir de que momento se começou a defender publicamente a tortura, prática no entanto jamais extinta entre nós, da senzala à periferia, presídios e morros, e irradiada para corpos de outras classes em períodos de exceção mais generalizada? A sua defesa pública e continuada, nem sempre seguida de tremores e contemporizada por muitos (oh, ele é polêmico, chega a ser engraçado!), me parece inédita no país e pertence, ao mesmo tempo, a um contexto mais amplo, em que a justificativa de sua prática começou há muito a tomar espaço. A propósito da invasão do plenário da Assembleia Nacional em novembro de 2016 por 40 pessoas exigindo a volta da ditadura militar, bem foi lembrado que não se tratava de mera opinião. É verdade, sob a capa de “opinião” e, eu acrescentaria também, liberdade de imprensa, o mais bárbaro vem à tona na dita esfera pública, se replica e viraliza, com risadinhas nervosas ou não, condescendentes ou não, de quem lhe deu toda a corda pra falar, com toda a “liberdade”. Com esta palavra, muitas vezes se amordaça aquele que diz “basta, não suporto mais, piedade, senhores, piedade! Meus ouvidos e meus olhos não suportam tanto estímulo letal! Vocês não têm o direito que imaginam ter, a liberdade de me matar um pouco a cada dia”. Dando costas quentes para o criminoso e o cúmplice na incitação ao crime, ela garante que circule a última mercadoria de um mercado exausto, que alimentou de todas as formas e imagens que pôde a fome de morte Escutar um louco com sede de tortura e acenando com um futuro em que poderia ser presidente – sentimos um frisson, a morte de raspão, talvez no vizinho – consegue ser ainda mais emocionante do que assistir ao elogio ou a franca incitação ao crime, à tortura e ao linchamento da parte de alguns jornalistas ou âncoras. Trafegando numa zona entre política, policial e midiática, ela constitui valor de uso para o telespectador, acrescido, assim, de mais-emoção – o enunciado de um provável presidenciável acalentando crimes contra a humanidade! Dêem-me o voto, e vocês verão. Por enquanto, nos excitamos, acumulamos sensações.

Uma brisa passa, o leite se enruga numa nata – muitos não se enrugam, não se retraem, não parecem afetados pela descarga de forças mortíferas a seu lado. Estamos diariamente submetidos ao nefando, olhando o que jamais deve ser olhado sem nenhuma proteção, como o rosto de Medusa, que nos deveria petrificar a um único acontecimento destes, e continuamos –mas só deus sabe de que forma é que estamos continuando. De que forma afinal estamos continuando? Isso só é possível com partes vitais queimadas.

Conforme um juízo que Bolsonaro exprimiu em 2014: “A única coisa boa do Maranhão é o presídio de Pedrinhas”. Não está em jogo apenas um pronunciamento “polêmico”, adjetivo, aliás, com que o ex-sargento é frequentemente apresentado em programas televisivos e radiofônicos, como se se tratasse de uma “diferença” a mais no mercado identitário: há os gays, os negros, as mulheres etc. e os excêntricos hostis a gays, mulheres e negros. De novo, chamá-lo de “polêmico” é nos deixar engambelar pelo uso inapropriado, embora provavelmente não ingênuo, de um vocabulário iluminista, pelo qual se trataria de apenas “uma opinião” entre outras, a ser ouvida, apesar de horrenda. Na verdade, não estamos apenas diante de um de juízo de gosto, opinião ou qualquer outro termo que se poderia retirar de um vocabulário tão decrépito como o do mundo que este secundava e estertora. No enunciado conforme o qual o melhor de um Estado – aliás, esse é dos mais pobres do país – é o lugar onde rolam cabeças dos que não tiveram lugar nele, há desejo e projeto, pois mal se oculta que o melhor que se poderia fazer ao Maranhão é transformar Pedrinhas em totem e princípio de organização de toda a sociedade, o que aliás já está em andamento. Mas o edifício de uma verdadeira nação precisará de muito mais pedrinhas… O melhor não é o que se pode apontar para a vida da sociedade, mas o que se pode propor de morte – assim como alguns pastores neopentecostais preferem falar mais em Satã que em Deus – , separando-se o vasto joio de um trigo cada vez mais restrito. Para o joio imprestável se retira a universalidade dos direitos, cuja lei que os determina já vai sendo modificada a toque de caixa e em muitas madrugadas de modo que esta não venha rigorosamente a prometer mais nada. O que está sendo pavimentado é o caminho para a política meramente como extermínio, pois, acredita-se, depois de todos os indesejáveis terem sido abolidos, depois de os violentos (e não importa se sob essa categoria se “subsumem” também inúmeros pobres ladrões de galinha) terem sido violentados até a morte pelas milícias e grupos informais semelhantes a Einsatzgruppen e tribunais de exceção e, claro, pela polícia, a vida então poderá começar. Para isso, deixe-se, aliás, que a polícia, ainda mais desumanizada pelas condições de trabalho e formação, aja a seu bel-prazer, sem precisar de ordens de cima, como em parte já ocorre, autônoma ou anárquica, “pró-ativa”, pois há muito trabalho pela frente. 

Realizado o desejo de que uma chacina como a de Amazonas ou Roraima ocorra a cada semana, como um ex-secretário nacional de juventude confessou recentemente, então começaremos a respirar.

Por Priscila Figueiredo

Meu amigo Fidel, que gostava de cosmologia e de boa conversa


Perco um grande amigo. Nosso último encontro foi a 3 de agosto, quando completou 90 anos. Recebeu-me em sua casa, em Havana, e, à tarde, fomos ao Teatro Karl Marx, onde um espetáculo musical o homenageou. Embora tivesse o organismo debilitado, caminhou sem apoio da entrada do teatro à sua poltrona.

Com Fidel, desaparece o último grande líder político do século XX, o único que logrou sobreviver mais de 50 anos à própria obra: a Revolução Cubana. Graças a ela, a pequena ilha deixou de ser o prostíbulo do Caribe, explorado pela máfia, para se tornar uma nação respeitada, soberana e solidária, que mantém profissionais da saúde e da educação em mais de cem países, inclusive o Brasil.

Conheci Fidel em 1980, em Manágua. O que primeiro chamava atenção era sua imponência. Parecia maior do que era, e a farda lhe revestia de um simbolismo que transmitia autoridade e decisão. A impressão era de que qualquer poltrona era demasiadamente estreita para o seu corpanzil. Quando ingressava num recinto era como se todo o espaço fosse ocupado por sua aura. Todos ficavam esperando que ele tomasse a iniciativa, escolhesse o tema da conversa, fizesse uma proposta ou lançasse uma ideia, enquanto ele persistia na ilusão de que sua presença era uma a mais e que o tratariam sem cerimônias e reverências. Como na canção de Cole Porter, ele devia se perguntar se não seria mais feliz sendo um simples homem do campo, sem a fama que o revestia. Certa ocasião, o escritor Gabriel García Márquez, de quem era grande amigo, perguntou se ele sentia falta de algo. Fidel respondeu: “De ficar parado, anônimo, numa esquina.”

Outro detalhe que surpreendia em Fidel era o seu timbre de voz. O tom em falsete contrastava com a corpulência. Às vezes soava tão baixo que seus interlocutores tinham de apurar os ouvidos. E quando falava, não gostava de ser interrompido. Porém, não monopolizava a palavra. Jamais conheci alguém que gostasse tanto de conversar como ele. Desde que não fossem encontros protocolares, nos quais as mentiras diplomáticas ressoam como verdades definitivas, Fidel não sabia receber uma pessoa por 10 ou 20 minutos.

A convite de Fidel e dos bispos de seu país, atuei no resgate da liberdade religiosa em Cuba, facilitado pela entrevista contida no livro “Fidel e a religião” (Fontanar), na qual o líder comunista aprecia positivamente o fenômeno religioso.

Não saberia dizer quantas conversas privadas tive com Fidel. Uma curiosidade é que este homem, capaz de entreter a multidão por três ou quatro horas, detestava, como eu, falar ao telefone. Nas poucas vezes que o vi ao aparelho sempre foi sucinto.

Minhas frequentes viagens a Havana estreitaram nossos laços de amizade. No prefácio que generosamente escreveu para a minha biografia, lançada esta semana pela Civilização Brasileira, Fidel ressalta que defendo Cuba “sem deixar de sustentar pontos discrepantes ou diferentes dos nossos”. Na década de 1980, quando expressei críticas à Revolução, o Comandante frisou: “É seu direito. E mais: o seu dever”.

Todas as vezes que eu o visitava em sua casa, depois que deixou o governo, levava-lhe chocolates amargos, seu preferido, castanhas e livros em espanhol sobre cosmologia e astrofísica. Conversávamos sobre a conjuntura política mundial, a sua admiração pelo Papa Francisco e, em especial, sobre cosmologia. Contei-lhe que ao visitar Oscar Niemeyer, pouco antes de sua morte, este me disse, animado, que toda semana reunia em seu escritório um grupo de amigos para receber aulas de cosmologia. O fato de dois eminentes comunistas se interessarem tanto pelo tema, comentei com Fidel, me fez recordar uma cena do filme “A teoria de tudo”, no qual o intérprete do físico inglês Stephen Hawking, ainda estudante, pergunta à jovem com quem iniciava o namoro: “O que você estuda?” “História”, ela responde, e devolve a curiosidade. Ele informa: “Estudo cosmologia". “O que é isso?”, indaga ela. E ele frisa: “uma religião para ateus inteligentes.”

Tenho para mim que Fidel, aluno interno de colégios religiosos ao longo de dez anos, abandonou a fé cristã ao abraçar o marxismo. De alguns anos para cá deixou-me a nítida impressão de que se tornara agnóstico. Várias vezes me pediu, ao nos despedirmos: “Ore por nós.” Tenho certeza de que Fidel transvivenciou feliz com a sua coerência de vida.

Frei Betto 

Leia mais sobre esse assunto em http://oglobo.globo.com/mundo/artigo-meu-amigo-fidel-que-gostava-de-cosmologia-de-boa-conversa-20548436#ixzz4ROGzN4bL 
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Quarenta anos da Teologia da Libertação


Teologia da Libertação celebra neste ano de 2011 40 anos de existência. Em 1971 Gustavo Gutiérrez publicava no Peru seu livro fundador “Teologia da Libertação.Perspectivas”. Eu publicava também em 1971 em forma de artigos, numa revista de religiosas – Grande Sinal – para escapar da repressão militar o meu Jesus Cristo Libertador, depois lançado em livro. Ninguém sabia um do outro. Mas estávamos no mesmo espírito. Desde então surgiram três gerações de teólogos e teólogas que se inscrevem dentro da Teologia da Libertação. Hoje ela está em todos os continentes e representa um modo diferente de fazer teologia, a partir dos condenados da Terra e da periferia do mundo.Aqui vai um pequeno balanço destes 40 anos de prática e de reflexão libertadoras.

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A Teologia da Libertação participa da profecia de Simeão a respeito do menino (Jesus): ela será motivo de queda e de elevação, será um sinal de contradição (Lc 2,34). Efetivamente a Teologia da Libertação é uma teologia incomprendida, difamada, perseguida e condenada pelos poderes deste mundo. E com razão. Os poderes da economia e do mercado a condenam porque cometeu um crime para eles intolerável: optou por aqueles que estão fora do mercado e são zeros econômicos. Os poderes eclesiásticos a condenaram por cair numa “heresia” prática ao afirmar que o pobre pode ser construtor de uma nova sociedade e também de outro modelo de Igreja. Antes de ser pobre, ele é um oprimido ao qual a Igreja deveria sempre se associar em seu processo de libertação. Isso não é politizar a fé mas praticar uma evangelilzação que inclui também o político. Consequentemente, quem toma partido pelo pobre-oprimido sofre acusações e marginalizações por parte dos poderosos seja civis, seja religiosos.

Por outro lado, a Teologia da Libertação representa uma benção e uma boa nova para os pobres. Sentem que não estão sós, encontraram aliados que assumiram sua causa e suas lutas. Lamentam que o Vaticano e boa parte dos bispos e padres construam no canteiro de seus opressores e se esquecem que Jesus foi um operário e pobre e que morreu em consequência de suas opções libertárias a partir de sua relação para com o Deus da vida que sempre escuta o grito dos oprimidos.

De qualquer forma, numa perspectiva espiritual, é para um teólogo e uma teóloga comprometidos e perseguidos uma honra participar um pouco da paixão dos maltratados deste mundo.

1. A centralidade do pobre e do oprimido
O punctum stantis et cadentis da Teologia da Libertação é o pobre concreto, suas opressões, a degradação de suas vidas e os padecimentos sem conta que sofre. Sem o pobre e o oprimido não há Teologia da Libertação. Toda opressão clama por uma libertação. Por isso, onde há opressão concreta e real que toca a pele e faz sofrer o corpo e o espírito ai tem sentido lutar pela libertação. Herdeiros de um oprimido e de um executado na cruz, Jesus, os cristãos encontram em sua fé mil razões por estarem do lado dos oprimidos e junto com eles buscar a libertação. Por isso a marca registrada da Teologia da Libertação é agora e será até o juizo final: a opção pelos pobres contra sua pobreza e a favor de sua vida e liberdade.

A questão crucial e sempre aberta é esta: como anunciar que Deus é Pai e Mãe de bondade num mundo de miseráveis? Este anúncio só ganhará credibilidade se a fé cristã ajudar na libertação da miséria e da pobreza. Então tem sentido dizer que Deus é realmente Pai e Mãe de todos mas especialmente de seus filhos e filhas flagelados.

Como tirar os pobres-oprimidos da pobreza, não na direção da riqueza, mas da justiça? Esta é uma questão prática de ordem pedagógico-política. Identificamos três estratégias.

A primeira interpreta o pobre como aquele que não tem. Então faz-se mister mobilizar aqueles que têm para aliviar a vida dos que não têm. Desta estratégia nasceu o assistencialismo e o paternalismo. Ajuda mas mantém o pobre dependente e à mercê da boa vontade dos outros. A solução tem respiração curta.

A segunda interpreta o pobre como aquele que tem: tem força de trabalho, capacidade de aprendizado e habilidades. Importa formá-lo para que possa ingressar no mercado de trabalho e ganhar sua vida. Enquandra o pobre no processo produtivo, mas sem fazer uma crítica ao sistema social que explora sua força de trabalho e devasta a natureza, criando uma sociedade de desiguais, portanto, injusta. É uma solução que ajuda favorece o pobre, mas é insuficiente porque o mantém refém do sistema, sem libertá-lo de verdade.

A terceira interpreta o pobre como aquele que tem força histórica mas força para mudar o sistema de dominação por um outro mais igualitário, participativo e justo, onde o amor não seja tão difícil. Esta estratégia é libertária. Faz do pobre sujeito de sua libertação. A Teologia da Libertação, na esteira de Paulo Freire, assumiu e ajudou a formular esta estratégia. É uma solução adequada à superação da pobreza. Esse é o sentido de pobre da Teologia da Libertação.

Só podemos falar de libertação quando seu sujeito principal é o próprio oprimido; os demais entram como aliados, importantes, sem dúvida, para alargar as bases da libertação. E a Teologia da Libertação surge do momento em que se faz uma reflexão crítica à luz da mensagem da revelação desta libertação histórico-social.

2.Teologia da Libertação e movimentos por libertação
Entretanto, só entenderemos adequadamente a Teologia de Libertação se a situarmos para além do espaço eclesial e dentro do movimento histórico maior que varreu as sociedades ocidentais no final dos anos 60 do século passado. Um clamor por liberdade e libertação tomou conta dos jovens europeus, depois norte-americanos e por fim dos latino-americanos.

Em todos os âmbitos, na cultura, na política, nos hábitos na vida cotidiana derrubaram-se esquemas tidos por opressivos. Como as igrejas estão dentro do mundo, membros numerosos delas foram tomados por este Weltgeist. Trouxeram para dentro das Igrejas tais anseios por libertação. Começaram a se perguntar: que contribuição nós cristãos e cristãs podemos dar a partir do capital específico da fé cristã, da mensagem de Jesus que se mostrou, segundo os evangelhos, libertador? Esta questão era colocada por cristãos e cristãs que já militavam politicamente nos meios populares e nos partidos que queriam a transformação da sociedade.

Acresce ainda o fato de que muitas Igrejas traduziram os apelos do Concilio Vaticano II de abertura ao mundo, para o contexto latino-americano, como abertura para o sub-mundo e uma entrada no mundo dos pobres-oprimidos. Deste impulso, surgiram figuras proféticas, nasceram as CEBs, as pastorais sociais e o engajamento direto de grupos cristãos em movimentos políticos de libertação. Para muitos destes cristãos e cristãs e mesmo para uma significativa porção de pastores não se tratava mais de buscar o desenvolvimento. Este era entenddo como desenvolvimento do subdsenvolvimento, portanto, como uma opressão. Demandava, portanto, um projeto de libertação.

Portanto, a Teologia da Libertação não caiu do céu nem foi inventada por algum teólogo inspirado. Mas emergiu do bojo desse movimento maior mundial e latino-americano, por um lado político e por outro eclesial. Ela se propôs pensar as práticas eclesiais e políticas em curso à luz da Palavra da Revelação. Ela comparecia como palavra segunda, crítica e regrada, que remetia à palavra primeira que é a prática real junto e com os oprimidos. Alguns nomes seminais merecem ser aqui destacados que, por primeiro, captaram a relevância do momento histórico e souberam encontrar-lhe a fórmula adequada, Teologia da Libertação: Gustavo Gutiérrez do Peru, Juan Luiz Segundo do Uruguai, Hugo Asmann do Brasil e Enrique Dussel e Miguez Bonino, ambos da Argentina. Esta foi a primeira geração. Seguiram-se outras.

3. Os muitos rostos dos pobres e oprimidos
A Teologia da Libertação partiu diretamente dos pobres materiais, das classes oprimidas, dos povos desprezados como os indígenas, negros marginalizados, mulheres submetidas ao machismo, das religiões difamadas e outros portadores de estigmas sociais. Mas logo se deu conta de que pobres-oprimidos possuem muitos rostos e suas opressões são, cada vez, específicas. Não se pode falar de opressão-libertação de forma generalizada. Importa qualificar cada grupo e tomar a sério o tipo de opressão sofrida e sua correspondente libertação ansiada.

Desmascarou-se o sistema que subjaz a todas estas opressões, construído sobre o submetimento dos outros e da depredação da natureza. Dai a importância do diálogo que a Teologia da Libertação conduziu com a economia políica capitalista. De grande relevância crítica foi a releitura da história da América Latina a partir das vítimas, desocultando a perversidade de um projeto de invasão coletivo no qual o colono ou o militar vinha de braço dado com o missionário. Esse casamento incestuoso produziu, segundo o historiador Oswald Spengler, o maior genocídio da história. Até hoje nem as potências outrora coloniais nem a Igreja institucional tiveram a honradez de reconhecer esse crime histórico, muito menos de fazer qualquer gesto de reparação.

Sem entrar em detalhes, surgiram várias tendências dentro da mesma e única Teologia da Libertação: a feminista, a indígena, a negra, a das religiões, a da cultura, a da história e da ecologia. Logicamente, cada tendência se deu ao trabalho de conhecer de forma crítica e científica seu objeto, para poder retamente avaliá-lo e atuar sobre ele de forma libertadora à luz da fé.

4. Como fazer uma teologia de libertação
Aqui cabe uma palavra sobre o como fazer uma teologia que seja libertadora, quer dizer, cabe abordar o método da Teologia da Libertação. O método seja talvez uma de suas contribuições mais notáveis que este modo de fazer teologia trouxe ao quefazer teológico universal. Parte-se antes de mais nada de baixo, da realidade, a mais crua e dura possível, não de doutrinas, documentos pontifícios ou de textos bíblicos. Estes possuem a função de iluminação mas não de geração de pensamento e de práticas.

Face à pobreza e à miséria, a primeira reação foi, tipicamente, jesuânica, a do miserior super turbas, de compaixão que implica transportar-se à realidade do outro e sentir sua paixão. É aqui que se dá uma verdadeira experiência espiritual de encontro com aqueles que Bartolomeu de las Casas no México e Guamán Poma de Ayala no Peru chamavam de os Cristos flagelados da história. Há um encontro de puro espírito com o Cristo crucificado que quer ser baixado da cruz. Esta experiência espiritual de compaixão só é verdadeira se der origem a um segundo sentimento o de iracúndia sagrada que se expressa: “isso não pode ser, é inaceitável e condenável; deve ser superado”.

Destes sentimentos surge imediatamente a vontade de fazer alguma coisa. É nesse momento que entra a racionalidade que nos ajuda a evitar enganos, fruto da boa vontade mas sem crítica. Sem análise corre-se o risco do assistencialismo e do mero reformismo que acabam por reforçar o sistema. O conhecimento dos mecanismos produtores da pobreza-opressão nos mostra a necesidade de uma transformação e libertação, portanto de algo novo e alternativo. Em seguida, buscam-se as mediações concretas que viabilizam a libertação, sempre tendo como protagonista principal o próprio pobre. Aqui entra a funcionar outra lógica, aquela das metas, das táticas e estratégias para alcançá-las, das alianças com outros grupos de apoio e da avaliação da correlação de forças, do juizo prudencial acerca da reação do sistema e de seus agentes e da possibilidade real de avanço. Alcançada a meta, vale a celebração e a festa que congraçam as pessoas, lhes conferem sentimento de pertença e do reconhecimento da própria força transformadora. Então constatam empiricamente que um fraco mais um fraco não são dois fracos, mas um forte, porque a união faz a força histórica transformadora.

Resumindo: estes são os passos metodológicos da Teologia a Libertação: (1) um encontro espiritual, vale dizer, uma experiência do Crucificado sofrendo nos crucificados. (2) uma indignação ética pela qual se condena e rejeita tal situação como desumana que reclama superação;(3) um ver atento que implica uma análise estrutural dos mecanismos produtores de pobreza-opressão; (4)um julgar crítico seja aos olhos da fé seja aos olhos da sã razão sobre o tipo de sociedade que temos, marcada por tantas injustiças e a urgência de transformá-la; (5) um agir eficaz que faz avançar o processo de libertação a partir dos oprimidos; (5) um celebrar que é um festejar coletivo das vitórias alcançadas.

Esse método é usado na linguagem do cotidiano seja pelos meios populares que se organizam para resistir e se libertar, seja pelos grupos intermediários dos agentes de pastoral, de padres, bispos, religiosos e religiosas e leigos e leigas cujo discurso é mais elaborado, seja pelos próprios teólogos que buscam rigor e severidade no discurso.

5. Contribuições da Teologia da Libertação para a teologia universal
A Teologia da Libertação, por causa da perspectiva dos pobres que assumiu, revelou dimensões diferentes e até novas da mensagem da revelação. Em primeiro lugar, ela propiciou a reapropriação da Palavra de Deus pelos pobres. Em suas comunidades e círculos bíblicos aprenderam comparar página da Bíblia com a página da vida e dai tirar consequências para sua prática cotidiana. Lendo os Evangelhos e se confrontando com o Jesus de Nazaré, artesão, factotum e campones mediterrâno, perceberam a contradição entre a condição pobre de Jesus e a riqueza da grande instituição Igreja. Esta está mais próxima do palácio de Herodes do que da gruta de Belém. Com respeito aprenderam a fazer suas críticas ao exercício centralizado do poder na Igreja e ao fechamento doutrinal face a questões importantes para a sociedade como é a moral familiar e sexual.

A Teologia da Libertação nos fez descobrir Deus como o Deus da vida, o Pai e Padrinho dos pobres e humildes. A partir de sua essência, como vida, se sente atraido pelos que menos vida têm. Deixa sua transcendência e se curva para dizer:”ouvi a opressão de meu povo…desci para libertá-lo”(Ex 3,7). A opção pelos pobres encontra seu fundamento na própria natureza de Deus-vida.

Revelou-nos também a Jesus como libertador. Ele é libertador, não porque assim o chamam os teólogos da libertação, mas por causa do testemunho dos Apóstolos. Ele libertou do pecado mas também da doença, da fome e da morte. Jesus não morreu. Foi assassinado porque viveu uma prática libertária que ofendia as convenções e tradições da época. Anunciou uma proposta – o Reino de Deus – que implicava uma revolução em todas as relações; não apenas entre Deus e os seres humanos, mas também na sociedade e nos cosmos. O Reino de Deus se contrapunha ao Reino de César, o que representava um ato político de lesa-majestade. O Imperador revindicava para si o título de Deus e até de “Deus de Deus”, coisa que o credo cristão mais tarde atribuirá a Cristo. A ressurreição, ao lado de outros significados, emerge como a inauguração do “novissimus Adam”(1Cor 15,45), como uma “revolução na evolução”.

Permitiu-nos identificar em Maria, não apenas aquela humilde serva do Senhor que diz fiat mas a profetiza que clama pelo Deus Go’El, o vingador dos injustiçados, aquele que derruba dos tronos os poderosos e eleva os humildes (Lc 1, 51-52). Ela clarificou também a missão da Igreja que é atualizar permanentemente, para os tempos e lugares diferentes, a gesta libertadora de Jesus e manter vivo seu sonho de um Reino de Deus que começa pelos últimos, os pobres e excluidos e que se estende até à criação inteira será finalmente resgatada, onde vige a justiça, o amor incondicional, o perdão e a paz perene.

6. A Teologia da Libertação como revolução espiritual
As reflexões que acabamos de fazer nos permitem dizer: a Teologia da Libertação produziu uma revolução teológico-espiritual. Não houve muitas revoluções espirituais no Cristianismo. Mas sempre que elas ocorrem, se resignificam os principais conteúdos da fé, como assinalamos acima, emerge uma nova vitalidade e a mensagem cristã libera dimensões insuspeitadas, gerando vida e santidade.

É a primeira teologia histórica que nasceu na periferia do cristianismo e distante dos centros metropolitanos de pensamento. Ela denota uma maturação inegável das Igrejas-filhas que conseguem articular, com sua linguagem própria, a mensagem cristã, sem romper a unidade de fé e a comunhão com as Igrejas-mães.

Nunca na história do cristianismo os pobres ganharam tanta centralidade. Eles sempre estiveram ai na Igreja e foram destinatários dos cuidados da caridade cristã. Mas aqui se trata de um pobre diferente, que não quer apenas receber mas dar de sua fé e inteligência. Trata-se do pobre que pensa, que fala, que se organiza e que ajuda a construir um novo modelo de Igreja-rede-de-comunidades. Os pastores de estilo autoritário não temem o pobre que silencia e obedece. Mas tremem diante do pobre que pensa, fala e participa na definição de novos rumos para a comunidade. São cristãos com consciência de sua cidadania eclesial.

A irradiação da Teologia da Libertação alcançou o aparelho central da Igreja Católica, o Vaticano. Influenciadas pelos setores mais conservadores da própria Igreja latinoamericana e das elites políticas conservadoras, as instâncias doutrinárias sob o então Card. Joseph Ratzinger reagiram, em 1984 e 1986, com críticas contra a Teologia da Libertação.

Mas se bem repararmos, não se fazem condenações cerradas. Tais autoridades chamam a atenção para dois perigos que acossam este tipo de teologia: a redução da fé à política e o uso não-crítico de categorias marxistas. Perigos não são erros. Evitados, eles deixam o caminho aberto e nunca invalidam a coragem do pensamento criativo. Apesar das suspeitas e manipulações que se fizeram destes dois documentos oficiais, a Teologia da Libertação pôde continuar com sua obra.

Por esta razão entendemos que o Papa João Paulo II, com mais espírito pastoral que doutrinal, tenha enviado uma Mensagem ao Episcopado do Brasil no dia 6 de abril de 1986 na qual declara que esta a Teologia da Libertação, em condições de opressão, “não é somente útil mas também necessária”.

Mas sobre a figura do então Card. Joseph Ratzinger pesa uma acusação irremissível, que seguramente passará negativamente para a história da teologia: a de ter-se revelado inimigo da inteligência dos pobres e de seus aliados e de ter condenado a primeira teologia surgida na periferia da Igreja e do mundo que conferia centralidade à dignidade dos oprimidos.

Efetivamente, proibiu que mais de cem teólogos de todo o Continente elaborassem uma coleção de 53 tomos- Teologia e Libertação – como subsídio a estudantes e a agentes de pastoral que atuavam na perspectiva dos pobres. Mais que um erro de governo, foi um delito contra a eclesialidade e um escárneo aos pobres pelos quais deverá responder diante de Deus. Também para ele vale o dito: na tarde sua vida, os pobres serão seus juízes dos quais esperamos que tenham para com o Cardeal mais misericórdia que severidade, diante de tanta ignorância e arrogância de quem se poderia esperar apoio entusiasmado e acompanhamento diligente.

Ao contrário, muitos teólogos foram postos por ele sob vigilância, advertidos, marginalizados em suas comunidades, acusados, proibidos de exercer o ministério da palavra, afastados de suas cátedras ou submetidos a processos doutrinários com “silêncio obsequioso”. Esta rigidez não dminuiu ao fazer-se Papa, mas continuou com renovado fervor. Et est videre miseriam.

A Teologia da Libertação devolveu dignidade e relevância à tarefa da Teologia. Conferiu-lhe um inegável caráter ético. Os teólogos desta corrente, sem renunciar ao estudo e à pesquisa, se associaram à vida e a causa dos condenados da Terra. No apoio a seus movimentos correram riscos. Muitos conheceram a prisão, a tortura e outros o martírio. Ousamos dizer que a Teologia da Libertação junto com a Igreja da Libertação que lhe subjaz é um dos poucos movimentos eclesiais que no século XX conheceu o martírio, curiosamente praticados por cristãos repressores, atingindo leigos e leigas, religiosas e religiosos, pastores, teólogos e teólogas não poupando mesmo bispos como Dom Angelelli da Argentina e Dom Oscar Arnulfo Romero de El Salvador. É o sinal da verdade desta opção pelos pobres.

Por fim, a Teologia da Libertação chama as demais teologias à sua responsabilidade social no sentido de colaborarem na gestação de um mundo mais justo e fraterno. Sua missão não se esgota numa diligência ad intra, ao espaço eclesial. Se ela não quiser escapar da indiferença e do cinismo deve se deixar mover pelo grito dos oprimidos que sobe das entranhas da Terra. Poucos são os que escutam esse clamor. Uma teologia que silencia diante do tragédia dos milhões de famélicos e condenados a morrer antes do tempo, não tem nada a dizer sobre Deus ao mundo.

7. A Teologia da Libertação como revolução cultural
Por fim, a Teologia não representou apenas uma revolução espiritual. Ela significou também uma revolução cultural. Contribuiu para que os pobres ganhassem visibilidade e consciência de suas opressões. Gestou cristãos que se fazeram cidadãos ativos e a partir de sua fé se empenharam em movimentos sociais, em sindicatos e em partidos no propósito de dar corpo a um sonho, que tem a ver com o sonho de Jesus, o de construir uma convivência social na qual o maior número possa participar e todos juntos possam forjar um futuro bom para a humanidade e para a natureza.

É mérito da Igreja da Libertação com sua Teologia da Libertação subjacente ter contribuído decididamente na construção do Partido dos Trabalhadores, do Movimento dos Sem Terra, do Conselho Indigenista Missionário, da Comissão da Pastoral da Terra, da Pastoral da Criança, dos Hansenianos e dos portadores do vírus HIV que foram os instrumentos para praticar a libertação e assim realizar os bens do Reino. Aqui o cristianismo mostrou e mostra a primazia da ortopraxia sobre a ortodoxia e a importância maior das práticas sobre as prédicas.

Nascida na América Latina, esta teologia se expandiu por todo o terceiro mundo, na Africa, na Asia, especialmente naquelas Igrejas particulares que penetraram no universo dos pobres e oprimidos e em movimentos dos países centrais ligados à solidariedade internacional e ao apoio às lutas dos oprimidos, na Europa e nos Estados Unidos. De forma natural, ela se associou ao Fórum Social Mundial e encontrou lá visibilidade e espaço de contribuição às grandes causas vinculadas ao um outro mundo possível e necessário, articulando o discurso social com o discurso da fé.

Em todas as questões abordadas, a preocupação é sempre essa: como vai a caminhada dos pobres e dos oprimidos no mundo? Como avança o Reino com seus bens e que obstáculos encontra pela frente, vindos da própria instituição eclesial, não raro tardia em tomar posições e insensível aos problemas do homem da rua e aqueles derivados principalmente das estratégias dos poderosos, decididos em manter invisíveis e silenciados os oprimidos para continuarem sua perversa obra de acumulação e dominação.

8. O futuro da Teologia da Libertação
Que futuro tem e terá a Teologia da Libertação? Muitos pensam e lhe interessa pensar assim que ela é coisa dos anos 70 do século passado e que já perdeu atualidade e relevância. Só mentalidades cínicas podem alimentar tais desejos, totalmente alienadas com o que passa com o planeta Terra e com o destino dos pobres no mundo. O desafio central para o pensamento humanitário e para a Teologia da Libertação é exatamente o crescente aumento do número de pobres e o acelerado aquecimento global e a opressão dos pobres. Lamentavelmente, cada vez menos pessoas, grupos e igrejas estão dispostos a ouvir seu clamor canino que se dirige ao céu. Uma Igreja e uma teologia que se mostram insensíveis a esta paixão se colocam a quilômetros luz da herança de Jesus e da libertação que ele anunciou e antecipou.

A Teologia da Libertação não morreu. Ela é atualmente mais urgente do que quando surgiu no final dos anos 60 do século XX. Apenas ficou mais invisível pois saiu do foco das polêmicas que interessam a opinião pública. Enquanto existirem neste mundo pobres e oprimidos haverá pessoas, cristãos e Igrejas que farão suas as dores que afligem a pele dos pobres, suas as angústias que lhes entristecem a alma e seus os golpes que lhes atingem o coração. Estes atualizarão os sentimentos que Jesus teve para com a humanidade sofredora.

No contexto atual de degradação da Mãe Terra e da devastação continuada do sistema-vida, a Teologia da Libertação entendeu que dentro da opção pelos pobres deve incluir maximamente a opção pelo grande pobre que é o Planeta Terra.

Ele é vítima da mesma lógica que explora as pessoas, subjuga as classes, domina as nações e devasta a natureza. Ou nos libertamos desta lógica perversa ou ela nos poderá levar a uma catástrofe social e ecológica de dimensões apocalípticas, não excluída a possibilidade até da extinção da espécie humana. A inclusão desta problemática, quiça, a mais desafiante de nosso tempo, fez nascer uma vigorosa Ecoteologia da Libertação. Ela se soma a todas as demais iniciativas que se empenham por um outro paradigma de relação para com a natureza, com outro tipo de produção e com formas mais sóbrias e solidárias de consumo.

Que futuro tem a Teologia da Libertação? Ela tem o futuro que está reservado aos pobres e oprimidos. Enquanto estes persistirem há mil razões para que haja um pensamento rebelde, indignado e compassivo que se recusa aceitar tal crueldade e impiedade e se empenhará pela libertação integral.

Ela não terá lugar dentro do atual sistema capitalista, máquina produtora de pobreza e de opressão. Ela só poderá existir na forma de resistência, sob perseguições, difamações e martírios. Mesmo assim, porque nenhum sistema é absolutamente fechado, ela poderá colocar cunhas por onde o pobre e o oprimido construirão espaços de liberdade. Por isso, a Teologia da Libertação possui uma clara dimensão política: ela quer a mudança da sociedade para que nela se possam realizar os bens do Reino e os seres humanos possam conviver como cidadãos livre e participantes.

Que futuro tem a Teologia da Libertação dentro do tipo de Igreja-instituição que possuímos? Mantido o atual sistema, cujo eixo estruturador é a sacra potestas, o poder sagrado, centralizado somente na hierarquia, ela só poderá ser uma teologia no cativeiro e relegada à marginalidade. Ela é disfuncional ao pensamento oficial e ao modo como a Igreja se organiza hierarquicamente: de um lado o corpo clerical que detém o poder sagrado, a palavra e a direção, e do outro, o corpo laical, sem poder, obrigado a ouvir e a obedecer. Na esteira do Concílio Vaticano II, a Teologia da Libertação se baseia num conceito de Igreja comunhão, rede de comunidades Povo de Deus e poder sagrado como serviço.

Esta visão de Igreja foi nos últimos decênios praticamente anulada por uma política curial de volta à grande disciplina e pelo reforço à estrutura hierárquica de organização eclesial.

Assim se fecharam as portas à conciliação tentada pelo Concílio Vaticano II entre Igreja Povo de Deus e Igreja Hierárquica, entre Igreja-poder e Igreja-comunhão. O difícil equilíbrio alcançado foi logo rompido ao se entender a comunhão como comunhão hierárquica, o que anula o conteúdo inovador deste conceito que supõe a participação equânime de todos e a hierarquia funcional de serviços e não a hiierarquia ontológica de poderes. A burocracia vaticana e os Papas Wojtyla e Ratzinger interpretaram o Vaticano II à luz do Vaticano I centralizando novamente a Igreja ao redor do poder do Papa e esvaziando os poucos órgãos de colegialidade e participação.

Não devemos ocultar o fato de que ao optar pelo poder a Igreja instituição optou pelos que também têm poder, numa palavra, os ricos. Os pobres perderam centralidade. A eles está reservada a assistência e a caridade que nunca faltaram. Mas quem opta pelo poder fecha as portas e as janelas ao amor e à misericórdia. Lamentavelmente ocorreu com o atual modelo de Igreja, burocrático, frio e nas questões concernentes à sexualidade, a homoafetividade, à AIDS e ao divórcio, sem misericórdia e humanidade.

Nestas condições, não há como fazer uma Teologia da Libertação como um bem da Igreja local e universal que toma a sério a questão dos pobres e da justiça social. Ela subverte a ordem estabelecida das coisas. Seu destino será a deslegitimação e a perseguição. Não será exagero dizer que ela vive e viveu o seu mistério pascal: sempre rejeitada, sempre sepultada e também sempre de novo ressuscitada porque o clamor dos pobres não permite que ela morra.

Mas na Igreja instituição, apesar de suas graves limitações, sempre há pessoas, homens e mulheres, padres, religiosos e religiosas e bispos que se deixam tocar pelos crucificados da história e se abrem ao chamado do Cristo libertador. Não apenas socorrem os pobres mas se colocam do lado deles e com eles caminham buscando formas alternativas de viver e de expressar a fé.

Qual o futuro da Teologia da Libertação? Ecumênica desde seus inícios, ela vicejará naquelas Igrejas que se remetem ao Jesus dos evangelhos, àquele que proclamou benaventurados os pobres e que se encheu de compaixão pelo povo faminto e que, num gesto de libertação, multiplicou os pães e os peixes. Estas Igrejas ou porções delas, ousadamente mantem a opção pelos pobres contra a sua pobreza. Entenderão esta opção como um imperativo evangélico e a forma, talvez a mais convincente, de preservar o legado de Jesus e de atualizá-lo para os nossos tempos.

9.Onde encontrar hoje a Teologia da Libertação
Qual será o futuro da Teologia da Libertação? Está em seu presente. Ela continua viva e cresce, com caráter ecumênico, na leitura popular da Bíblia, nos círculos bíblicos, nas comunidades eclesiais de base, nas pastorais sociais, no movimento fé e política e nos trabalhos pastorais nas periferias das cidades e nos interiores do paises. Neste nível e por sua natureza ecumênica e popular esta teologia, de certa forma, escapa da vigilância das autoridades doutrinárias.

Ela é a teologia adequada àquelas práticas que visam a transformação social e a gestação de um outro modo de habitar a Terra. Se alguém quiser encontrar a Teologia a Libertação não vá às faculdades e institutos de teologia. Ai encontrará fragmentos e poucos representantes. Mas vá às bases populares. Ai é seu lugar natural e ai viceja vigorosamente. Ela está reforçando o surgimento de um outro modelo de Igreja mais comunitário, evangélico, participativo, simples, dialogante, espiritual e encarnado nas culturas locais que lhe conferem um rosto da cor da população, em nosso caso, indio-negro-latino-americano.

Alçando a vista numa perspectiva universal, tenho uma como que visão. Vejo a multidão de pobres, de mutilados, aqueles que o Apocalipse chama “de sobreviventes da grande tribulação” (7,14) cujas lágrimas são enxugadas pelo Cordeiro, organizados em pequenos grupos erguendo a bandeira do Evangelho eterno, da vida e da libertação. Seguidores do Servo sofredor e do Profeta perseguido e ressuscitado a eles está confiado o futuro do Cristianismo, disseminado no mundo globalizado em redes de comunidades, enraizado nas distintas culturas locais e com os rostos dos seres humanos concretos. Deixando para trás a pretensão de excepcionalidade que tantas separações trouxe, se associarão a outras igrejas, religiões e caminhos espirituais no esforço de manter viva a chama sagrada da espiritualidade presente em cada pessoa humana.

Dentro deste tipo comunional e de mútua aceitação das diferentes igrejas, a Teologia da Libertação terá um lugar natural. Ela recolherá reflexivamente os esforços dos cristãos pelo resgate da dignidade dos pobres e da dignidade e dos direitos da Terra e animará a caminhada da humanidade rumo a um mundo que ainda não conhecemos mas que cremos estar alinhado àquele que Jesus sonhou.

Então, Teologia da Libertação terá cumprido a sua missão. Comprenderá que no binômio Teologia da Libertação, o decisivo não é a Teologia mas a Libertação real e histórica, porque esta e não aquela é um dos bens do Reino de Deus.

Leonardo Boff
Leonardo Boff, 1938, doutorado em teologia e filosofia, foi durante mais de 20 anos professor de teologia sistemática no Instituto Teológico Franciscano de Petrópolis e depois professor de ética, filosofia da religião e de ecologia filosófica na Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Foi professor visitante em várias universidades estrangeiras e galardoado com vários dr.h.c. Escreveu mais de 80 livros nas várias áreas teológicas e humanísticas e sempre se entendeu no âmbito da Teologia da Libertação.

Fonte: https://leonardoboff.wordpress.com/2011/08/09/quarenta-anos-da-teologia-da-libertacao/