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[Escuta Resenha] Os contos de Clarice Lispector


Já não era sem tempo. Eis que finalmente foi publicado no Brasil, no mês passado pela editora Rocco, um livro reunindo todos os contos de Clarice Lispector. Trata-se da obra Clarice Lispector. Todos os Contos, que vem à luz depois de uma trajetória pouco convencional, tendo sido publicada originalmente nos Estados Unidos, em 2015 – quando foi selecionada pelo The New York Times como um dos melhores livros do ano passado – para finalmente chegar agora às mãos do leitor brasileiro. É verdade que muitos dos contos já eram conhecidos pelo grande público, sobretudo aqueles divulgados em livros de maior repercussão como Laços de Família, Legião Estrangeira e Felicidade Clandestina – que contêm pérolas como “A galinha”, “A menor mulher do mundo” e “Felicidade clandestina” –, porém, parte significativa das histórias aqui reunidas ainda permanecia desconhecida para a grande maioria, exceto para aqueles aficionados por Clarice.

A obra Clarice Lispector. Todos os Contos é organizada pelo norte-americano Benjamin Moser, autor da bela biografia Clarice, publicada em 2009 pela editora Cosac Naify. Nesta biografia minuciosamente construída, Moser recupera os percursos de Clarice – desde o seu nascimento na Ucrânia em 1920, sua vinda ainda nova para o Brasil, sua passagem por Maceió e Recife, o casamento com o diplomata Maury Gurgel Valente e sua longeva vida no exterior, seu divórcio, o retorno para o Rio de Janeiro, seu trabalho como escritora, suas relações familiares, especialmente com os dois filhos, seu círculo de amizades, sua morte e sua posterior transformação em uma espécie de mito da literatura brasileira –, entremeando com reflexões sobre os livros escritos pela autora, como Perto de Coração Selvagem – romance lançado em 1943 que a projetou nacionalmente –, A Paixão segundo G.H. e A Hora da Estrela. As alegrias, sofrimentos, dores e angústias de Clarice são contadas de forma cuidadosa por Moser, cuja obra tem como diferencial ancorar as raízes da autora no misticismo judaico, destacando o impulso espiritual e o caráter sagrado que impulsionou e atravessou a sua obra.

Clarice Lispector. Todos os Contos é composto por oitenta e cinco textos, publicados desde 1929, quando a autora tinha 19 anos, até a sua morte, em 1977. A organização dos contos em forma cronológica permite ao leitor acompanhar os escritos de Clarice durante toda a sua vida adulta, abrindo possibilidades para associar seus escritos a fases específicas de sua trajetória. Milhares de personagens desfilam nas páginas desta obra: poucos homens; a grande maioria, mulheres. Cristina, Luísa, Flora, Idalina, Gertrudes, Catarina, Sofia, Margarida, Ofélia, Frozina, Sra. Jorge B. Xavier, Ruth, Carmen, Beatriz, Aurélia, Cândida… Mulheres novas, de meia idade, idosas; mulheres de diferentes tipos, trejeitos, profissões, sonhos, desejos, inquietações, questionamentos. Nas várias mulheres narradas nos diferentes contos que compõem a obra, Clarice, é claro, se faz presente. Na maior parte das vezes de forma implícita; em outras, de forma explícita, sobretudo em seus últimos contos, nos quais sua personalidade aparece mais destacada, especialmente quando a dimensão reflexiva – e também melancólica – passa a ganhar um espaço importante no direcionamento de sua escrita.

Como sugere o próprio Moser na introdução à obra, o registro da condição de mulher de Clarice não deve ser tomado como mero detalhe sem importância. Os escritos de Clarice, em sua maioria, abordam temas que foram tradicionalmente associados ao universo feminino, e é uma escrita feminina situada social e historicamente: uma mulher, artista, de classe média, mãe, casada e posteriormente divorciada, em uma época na qual o divórcio era visto como heresia. Porém, e isto que importa perceber, esta inscrição no mundo feminino, esta escrita de uma mulher sobre mulheres, não a circunscreve a qualquer nicho específico e não reduz em absolutamente nada a universalidade das experiências ali narradas. A literatura de Clarice é uma literatura universal e o reconhecimento tardio que o mundo anglo-saxão lhe devota se deve mais à sua condição de escritora de um país periférico, que tem como idioma o português, muito mais restrito em termos de circulação no mundo editorial quando comparado, por exemplo, com o espanhol, do que propriamente com algo associado à qualidade da sua obra.

Não se lê Clarice; se sorve Clarice. Suas palavras parecem escolhidas a dedo, com precisão, esmero, requinte. Em alguns contos, ela adquire uma verve mais seca, refreada, contida; em outros, a leveza, a delicadeza e a suavidade se impõem. A prosa elegante faz com que o leitor flutue na leitura, embora se veja, constantemente, surpreendido, não apenas com a trama desenvolvida, mas, especialmente, com os recursos formais mobilizados pela autora. Dessa perspectiva, flutua-se sim na leitura de Clarice, mas se flutua com cuidado, com apuro, com parcimônia, como se se andasse em uma loja de cristais, permanecendo atento a cada passo dado. Por estar repleta de obstáculos – que não impossibilitam o percurso, mas o tornam mais complexo –, a escrita de Clarice atrai e afasta, seduz e repele, em um jogo intrigante, que desafia o tempo todo o leitor atento que busca saborear em cada sentença o gosto da frase bem escrita.

O fato de Clarice ter se tornado postumamente pop, sugada pelo mundo da indústria cultural, com frases autorais que lhe são atribuídas, citadas fora do contexto nas redes sociais, pode dar a impressão de que Clarice é uma escritora fácil, cuja leitura se dá sem maiores esforços. É um engano. Estamos a falar de uma autora complexa, densa, em certo sentido, difícil. Seria, então, Clarice necessariamente uma escritora hermética? Em sua última entrevista, em 1977, concedida à TV Cultura, Clarice responde negativamente à acusação de hermetismo. Admite, porém, que certos contos são, inclusive para ela mesma, ainda incompreensíveis, a exemplo do perturbador “O ovo e a galinha”. Não ser hermético, contudo, não é sinônimo de ser fácil. Para ser bem sorvida, como merece ser, sua leitura demanda atenção, concentração. Lê-la de forma acelerada é um erro que pode levar à perda de detalhes primorosos de sua escrita. A pressa, a rapidez e a agitação do mundo moderno não se coadunam com a prosa moderna de Clarice; esta exige calma, respiro, silêncio.

A literatura de Clarice pode ser associada àquilo que Leyla Perrone-Moisés, em ótimo ensaio sobre autores brasileiros contemporâneos como Nuno Ramos, André Queiroz e Julian Fuks, publicado em 2012 na “Ilustríssima”, da Folha de São Paulo, chamou de “literatura exigente”, o que a colocaria, caso se aceite esta classificação, ao lado de nomes como Joyce, Kafka, Borges e Beckett. No caso de Clarisse, esta literatura exigente se mostra de forma clara em seu experimentalismo formal, ancorado em uma orientação vanguardista, que também está presente em outros autores de sua geração, como Guimarães Rosa, especialmente em Grande Sertão: Veredas. Não à toa, há aqueles que apontam para as linguagens de Clarice e Guimarães – assim como para aquela desenvolvida por artistas visuais a exemplo de Lygia Clark – como aprofundamentos tardios do modernismo dos anos 1920, embora suas literaturas inovem para outros caminhos, apostando em novas perspectivas.

Esse experimentalismo já estava presente em alguns contos de sua juventude, a exemplo de “Mais dois bêbados”, contido em Primeiras Histórias, que se encerra de forma abrupta e repentina: “De repente, ele tirou o palito da boca, os olhos piscando, os lábios trêmulos como se fosse chorar, disse:”. Contudo, ele se exacerba em contos posteriores, indo às suas últimas consequências, como no já mencionado “O ovo e a galinha”, “Discurso para a inauguração”, de Fundos de Gaveta, de Legião Estrangeira, “Perdoando Deus”, “Tempestade das almas” e “Vida ao natural”, de Felicidade Clandestina, e, especialmente, em “O relatório e a coisa”, contido no livro Onde estivestes de Noite. Como destacado por Moser no “Apêndice”, este texto foi originalmente publicado com o título “Objeto: anticonto”. Na ocasião de sua publicação, Clarice, que o chamou de “anticonto geométrico”, incluiu o seguinte prefácio: “Acho que queria fazer um anticonto, uma antiliteratura. Como se assim eu desmistificasse a ficção. Foi uma experiência valiosa para mim. Não importa que eu tenha falhado. Chama-se OBJETO” (p.652-3). Alguns contos de Clarice, a exemplo de “Perfil de seres eleitos” e “Seco estudos de cavalo”, causam espanto e inquietação: precisam ser decifrados, desemaranhados. O leitor deve se comportar como um caçador, deslocando as vírgulas, empurrando as palavras, adentrando pelo interior do papel para buscar, em meio àquela suposta estranheza, a riqueza que se extrai de variadas passagens.

Sergio Buarque de Holanda, no artigo “Tema e Técnica”, publicado originalmente no Diário Carioca, em 1950, já chamava a atenção para o fato de Clarice, ao lado de Oswald de Andrade, ter sido uma das escritoras brasileiras que mais levaram a fundo a dimensão poética e a problematização das questões formais em suas escritas, deixando em segundo plano a preocupação temática. Na introdução de Clarice Lispector. Todos os Contos, Moser avança em uma hipótese interessante para explicar esta ousadia formal e a “estranha gramática” da autora, destacando para além da influência do misticismo judaico herdado do pai, a ausência, em uma perspectiva mais ampla, de uma tradição na qual pudesse se ancorar, o que lhe assegurava um grau maior de liberdade para apostar no novo, sem que isso significasse uma inovação pela simples inovação. Clarice, segundo Moser, “vinha de uma tradição de fracasso, de uma tradição, como escritora brasileira, como escritora, como mulher, mas talvez principalmente em consequência de suas origens” (p.17). Clarice, em certo sentido, inventa uma tradição, a partir de “uma incessante busca linguística, uma mutabilidade gramatical” (p.21).

Essas reflexões sobre as inovações formais de Clarice e sobre sua “literatura exigente” não devem, contudo, afastar o leitor de Clarice Lispector. Todos os Contos. Pelo contrário. Deve-se ler e sorver Clarice, pois uma vez que se adentra em seu universo mergulha-se em uma torrente viciante de sofisticação. Não que todos os contos sejam primorosos. Clarice tropeça, se apressa em algumas histórias, simplifica enredos ou se estende demasiadamente em algumas narrativas. Seus últimos contos, especialmente aqueles publicados em A Via Crucis do Corpo, não alcançam a mesma potência de outros trabalhos, e não apenas pelo fato de abordarem o erótico no contexto conservador da ditadura que então vigia no país, como parece sugerir a introdução de Moser, mas pela razão mais prosaica de que eles não têm a mesma elegância e precisão dos livros anteriores. Mas, de modo geral, o que impera é uma capacidade imensa e assombrosa de construir uma literatura repleta de requintes, paradoxalmente contida e visceral. Seus personagens, na maior parte das vezes, expõem subjetividades atordoadas, marcadas por aquilo que podemos chamar de um equilíbrio frágil, como se algo estivesse permanentemente na iminência de se romper. É uma literatura do limiar, da beira, do limite, da expectativa.

Espera-se que Clarice Lispector. Todos os Contos possa contribuir para uma maior difusão de Clarice Lispector, tão citada, mas ainda tão pouco efetivamente lida no Brasil. Em um país que gosta de seguir os modismos que nos chegam de fora, resta torcer para que a consagradora recepção deste livro no mundo anglo-saxão influencie os daqui a conhecerem melhor uma autora que, sem qualquer arrombo nacionalista ou patriotesco, está no panteão daquilo que a literatura universal produziu de mais sofisticado.

* Fernando Perlatto é um dos Editores da Revista Escuta.** Crédito da imagem: Fraco e Moura. Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Clarice_Lispector>. Acesso em: 14 jun. 2016.

Tanta mansidão


Pois a hora escura, talvez a mais escura, em pleno dia, precedeu essa noite, e essa coisa que não quero ainda definir é uma luz tranquila dentro de mim, e a ela chamaria alegria, alegria mansa.

Estou um pouco desnorteada como se um coração me tivesse sido tirado, e em lugar dele estivesse a súbita ausência, uma ausência quase palpável de que era antes um órgão banhado da escuridão da dor. Não estou sentindo nada. Mas é o contrário de um torpor. É um modo mais leve e silencioso de existir.

Mas estou também inquieta. Eu estava organizada pra me consolar da angústia da dor. Mas como é que me arrumo com essa simples e tranquila alegria. É que não estou habituada a não precisar de meu próprio consolo. A palavra consolo aconteceu sem eu sentir, e eu não notei, e quando fui procurá-la, ela já se havia transformado em carne e espírito, já não existia mais como pensamento.

Vou então à janela, está chovendo muito. Por hábito estou procurando na chuva o que em outro momento me serviria de consolo. Mas não tenho dor a consolar.

Ah, eu sei. Estou agora procurando na chuva uma alegria tão grande que se torne aguda, e que me ponha em contato com uma agudez que se pareça a agudez da dor. Mas é inútil a procura. Estou à janela e só acontece isto: vejo com olhos benéficos a chuva, e a chuva me vê de acordo comigo. Estamos ocupadas ambas em fluir. Quanto durará esse meu estado? Percebe que, com esta pergunta, estou apalpando meu pulso para sentir onde estará o latejar dolorido de antes. E vejo que não há o latejar da dor.

Apenas isso: chove e estou vendo a chuva. Que simplicidade. Nunca pensei que o mundo e eu chegássemos a esse ponto de trigo. A chuva cai não porque está precisando de mim, e eu olho a chuva não porque preciso dela. Mas nós estamos tão juntas como a água da chuva está ligada à chuva. E eu não estou agradecendo nada. Não tivesse eu, logo depois de nascer, tomado involuntária e forçadamente o caminho que tomei - e teria sido sempre o que realmente estou sendo: uma camponesa que está num campo onde chove. Nem sequer agradecendo ao Deus ou à natureza. A chuva também não agradece nada. Não sou uma coisa que agradece ter ser transformado em outra. Sou uma mulher, sou uma pessoa, sou uma atenção, sou um corpo olhando pela janela. Assim como a chuva não é grata por não ser uma pedra. Ela é a chuva. Talvez seja isso que se poderia chamar de estar vivo. Não mais que isto, mas isto: vivo. E apenas vivo de uma alegria mansa.

Clarice Lispector - Tanta Mansidão
In: “Onde estivestes de Noite”(Contos, 1974).

Pertencer


Um amigo meu, médico, assegurou-me que desde o berço a criança sente o ambiente, a criança quer: nela o ser humano, no berço mesmo, já começou.

Tenho certeza de que no berço a minha primeira vontade foi a de pertencer. Por motivos que aqui não importam, eu de algum modo devia estar sentindo que não pertencia a nada e a ninguém. Nasci de graça.

Se no berço experimentei esta fome humana, ela continua a me acompanhar pela vida afora, como se fosse um destino. A ponto de meu coração se contrair de inveja e desejo quando vejo uma freira: ela pertence a Deus.

Exatamente porque é tão forte em mim a fome de me dar a algo ou a alguém, é que me tornei bastante arisca: tenho medo de revelar de quanto preciso e de como sou pobre. Sou, sim. Muito pobre. Só tenho um corpo e uma alma. E preciso de mais do que isso.

Com o tempo, sobretudo os últimos anos, perdi o jeito de ser gente. Não sei mais como se é. E uma espécie toda nova de "solidão de não pertencer" começou a me invadir como heras num muro.

Se meu desejo mais antigo é o de pertencer, por que então nunca fiz parte de clubes ou de associações? Porque não é isso que eu chamo de pertencer. O que eu queria, e não posso, é por exemplo que tudo o que me viesse de bom de dentro de mim eu pudesse dar àquilo que eu pertenço. Mesmo minhas alegrias, como são solitárias às vezes. E uma alegria solitária pode se tornar patética. É como ficar com um presente todo embrulhado em papel enfeitado de presente nas mãos - e não ter a quem dizer: tome, é seu, abra-o! Não querendo me ver em situações patéticas e, por uma espécie de contenção, evitando o tom de tragédia, raramente embrulho com papel de presente os meus sentimentos.

Pertencer não vem apenas de ser fraca e precisar unir-se a algo ou a alguém mais forte. Muitas vezes a vontade intensa de pertencer vem em mim de minha própria força - eu quero pertencer para que minha força não seja inútil e fortifique uma pessoa ou uma coisa.

Quase consigo me visualizar no berço, quase consigo reproduzir em mim a vaga e no entanto premente sensação de precisar pertencer. Por motivos que nem minha mãe nem meu pai podiam controlar, eu nasci e fiquei apenas: nascida.

No entanto fui preparada para ser dada à luz de um modo tão bonito. Minha mãe já estava doente, e, por uma superstição bastante espalhada, acreditava-se que ter um filho curava uma mulher de uma doença. Então fui deliberadamente criada: com amor e esperança. Só que não curei minha mãe. E sinto até hoje essa carga de culpa: fizeram-me para uma missão determinada e eu falhei. Como se contassem comigo nas trincheiras de uma guerra e eu tivesse desertado. Sei que meus pais me perdoaram por eu ter nascido em vão e tê-los traído na grande esperança.

Mas eu, eu não me perdôo. Quereria que simplesmente se tivesse feito um milagre: eu nascer e curar minha mãe. Então, sim: eu teria pertencido a meu pai e a minha mãe. Eu nem podia confiar a alguém essa espécie de solidão de não pertencer porque, como desertor, eu tinha o segredo da fuga que por vergonha não podia ser conhecido.

A vida me fez de vez em quando pertencer, como se fosse para me dar a medida do que eu perco não pertencendo. E então eu soube: pertencer é viver. Experimentei-o com a sede de quem está no deserto e bebe sôfrego os últimos goles de água de um cantil. E depois a sede volta e é no deserto mesmo que caminho!

Tentação


Ela estava com soluço. E como se não bastasse a claridade das duas horas, ela era ruiva.

Na rua vazia as pedras vibravam de calor - a cabeça da menina flamejava. Sentada nos degraus de sua casa, ela suportava. Ninguém na rua, só uma pessoa esperando inutilmente no ponto do bonde. E como se não bastasse seu olhar submisso e paciente, o soluço a interrompia de momento a momento, abalando o queixo que se apoiava conformado na mão. Que fazer de uma menina ruiva com soluço? Olhamo-nos sem palavras, desalento contra desalento. Na rua deserta nenhum sinal de bonde. Numa terra de morenos, ser ruivo era uma revolta involuntária. Que importava se num dia futuro sua marca ia fazê-la erguer insolente uma cabeça de mulher? Por enquanto ela estava sentada num degrau faiscante da porta, às duas horas. O que a salvava era uma bolsa velha de senhora, com alça partida. Segurava-a com um amor conjugal já habituado, apertando-a contra os joelhos.

Foi quando se aproximou a sua outra metade neste mundo, um irmão em Grajaú. A possibilidade de comunicação surgiu no ângulo quente da esquina, acompanhando uma senhora, e encarnada na figura de um cão. Era um basset lindo e miserável, doce sob a sua fatalidade. Era um basset ruivo.

Lá vinha ele trotando, à frente de sua dona, arrastando seu comprimento. Desprevenido, acostumado, cachorro. 

A menina abriu os olhos pasmada. Suavemente avisado, o cachorro estacou diante dela. Sua língua vibrava. Ambos se olhavam. 

Entre tantos seres que estão prontos para se tornarem donos de outro ser, lá estava a menina que viera ao mundo para ter aquele cachorro. Ele fremia suavemente, sem latir. Ela olhava-o sob os cabelos, fascinada, séria. Quanto tempo se passava? Um grande soluço sacudiu-a desafinado. Ele nem sequer tremeu. Também ela passou por cima do soluço e continuou a fitá-lo.

Os pelos de ambos eram curtos, vermelhos.

Que foi que se disseram? Não se sabe. Sabe-se apenas que se comunicaram rapidamente, pois não havia tempo. Sabe-se também que sem falar eles se pediam. Pediam-se com urgência, com encabulamento, surpreendidos.

No meio de tanta vaga impossibilidade e de tanto sol, ali estava a solução para a criança vermelha. E no meio de tantas ruas a serem trotadas, de tantos cães maiores, de tantos esgotos secos - lá estava uma menina, como se fora carne de sua ruiva carne. Eles se fitavam profundos, entregues, ausentes de Grajaú. Mais um instante e o suspenso sonho se quebraria, cedendo talvez à gravidade com que se pediam.

Mas ambos eram comprometidos. 

Ela com sua infância impossível, o centro da inocência que só se abriria quando ela fosse uma mulher. Ele, com sua natureza aprisionada. 

A dona esperava impaciente sob o guarda-sol. O basset ruivo afinal despregou-se da menina e saiu sonâmbulo. Ela ficou espantada, com o acontecimento nas mãos, numa mudez que nem pai nem mãe compreenderiam. Acompanhou-o com olhos pretos que mal acreditavam, debruçada sobre a bolsa e os joelhos, até vê-la dobrar a outra esquina. 

Mas ele foi mais forte que ela. Nem uma só vez olhou para trás

Clarice Lispector
Conto extraído de LISPECTOR, Clarice. A legião estrangeira. Rio de Janeiro: Rocco, 1999.
Fonte: http://www.tirodeletra.com.br/conto_canino/Tentacao-ClariceLispector.htm                                       
             

Cem anos de perdão


Quem nunca roubou não vai me entender. E quem nunca roubou rosas, então é que jamais poderá me entender. Eu, em pequena, roubava rosas.

Havia em Recife inúmeras ruas, as ruas dos ricos, ladeadas por palacetes que ficavam no centro de grandes jardins. Eu e uma amiguinha brincávamos muito de decidir a quem pertenciam os palacetes. "Aquele branco é meu." "Não, eu já disse que os brancos são meus." Parávamos às vezes longo tempo, a cara imprensada nas grades, olhando.

Começou assim. Numa dessas brincadeiras de "essa casa é minha", paramos diante de uma que parecia um pequeno castelo. No fundo via-se o imenso pomar. E, à frente, em canteiros bem ajardinados, estavam plantadas as flores.

Bem, mas isolada no seu canteiro estava uma rosa apenas entreaberta cor-de-rosa-vivo. Fiquei feito boba, olhando com admiração aquela rosa altaneira que nem mulher feita ainda não era. E então aconteceu: do fundo de meu coração, eu queria aquela rosa para mim. Eu queria, ah como eu queria. E não havia jeito de obtê-la. Se o jardineiro estivesse por ali, pediria a rosa, mesmo sabendo que ele nos expulsaria como se expulsam moleques. Não havia jardineiro à vista, ninguém. E as janelas, por causa do sol, estavam de venezianas fechadas. Era uma rua onde não passavam bondes e raro era o carro que aparecia. No meio do meu silêncio e do silêncio da rosa, havia o meu desejo de possuí-la como coisa só minha. Eu queria poder pegar nela. Queria cheirá-la até sentir a vista escura de tanta tonteira de perfume.

Então não pude mais. O plano se formou em mim instantaneamente, cheio de paixão. Mas, como boa realizadora que eu era, raciocinei friamente com minha amiguinha, explicando-lhe qual seria o seu papel: vigiar as janelas da casa ou a aproximação ainda possível do jardineiro, vigiar os transeuntes raros na rua. Enquanto isso, entreabri lentamente o portão de grades um pouco enferrujadas, contando já com o leve rangido. Entreabri somente o bastante para que meu esguio corpo de menina pudesse passar. E, pé ante pé, mas veloz, andava pelos pedregulhos que rodeavam os canteiros. Até chegar à rosa foi um século de coração batendo.

Eis-me afinal diante dela. Para um instante, perigosamente, porque de perto ela é ainda mais linda. Finalmente começo a lhe quebrar o talo, arranhando-me com os espinhos, e chupando o sangue dos dedos.

E, de repente - ei-la toda na minha mão. A corrida de volta ao portão tinha também de ser sem barulho. Pelo portão que deixara entreaberto, passei segurando a rosa. E então nós duas pálidas, eu e a rosa, corremos literalmente para longe da casa.

O que é que fazia eu com a rosa? Fazia isso: ela era minha.

Levei-a para casa, coloquei-a num copo d'água, onde ficou soberana, de pétalas grossas e aveludadas, com vários entretons de rosa-chá. No centro dela a cor se concentrava mais e seu coração quase parecia vermelho.

Foi tão bom.

Foi tão bom que simplesmente passei a roubar rosas. O processo era sempre o mesmo: a menina vigiando, eu entrando, eu quebrando o talo e fugindo com a rosa na mão. Sempre com o coração batendo e sempre com aquela glória que ninguém me tirava.

Também roubava pitangas. Havia uma igreja presbiteriana perto de casa, rodeada por uma sebe verde, alta e tão densa que impossibilitava a visão da igreja. Nunca cheguei a vê-la, além de uma ponta de telhado. A sebe era de pitangueira. Mas pitangas são frutas que se escondem: eu não via nenhuma. Então, olhando antes para os lados para ver se ninguém vinha, eu metia a mão por entre as grades, mergulhava-a dentro da sebe e começava a apalpar até meus dedos sentirem o úmido da frutinha. Muitas vezes na minha pressa, eu esmagava uma pitanga madura demais com os dedos que ficavam como ensangüentados. Colhia várias que ia comendo ali mesmo, umas até verdes demais, que eu jogava fora.

Nunca ninguém soube. Não me arrependo: ladrão de rosas e de pitangas tem 100 anos de perdão. As pitangas, por exemplo, são elas mesmas que pedem para ser colhidas, em vez de amadurecer e morrer no galho, virgens.

Das vantagens de ser bobo


O bobo, por não se ocupar com ambições, tem tempo para ver, ouvir e tocar o mundo. O bobo é capaz de ficar sentado quase sem se mexer por duas horas. Se perguntado por que não faz alguma coisa, responde: "Estou fazendo. Estou pensando."

Ser bobo às vezes oferece um mundo de saída porque os espertos só se lembram de sair por meio da esperteza, e o bobo tem originalidade, espontaneamente lhe vem a ideia.

O bobo tem oportunidade de ver coisas que os espertos não vêem. Os espertos estão sempre tão atentos às espertezas alheias que se descontraem diante dos bobos, e estes os vêem como simples pessoas humanas. O bobo ganha utilidade e sabedoria para viver. O bobo nunca parece ter tido vez. No entanto, muitas vezes, o bobo é um Dostoiévski.

Há desvantagem, obviamente. Uma boba, por exemplo, confiou na palavra de um desconhecido para a compra de um ar refrigerado de segunda mão: ele disse que o aparelho era novo, praticamente sem uso porque se mudara para a Gávea onde é fresco. Vai a boba e compra o aparelho sem vê-lo sequer. Resultado: não funciona. Chamado um técnico, a opinião deste era de que o aparelho estava tão estragado que o conserto seria caríssimo: mais valia comprar outro. Mas, em contrapartida, a vantagem de ser bobo é ter boa-fé, não desconfiar, e portanto estar tranqüilo. Enquanto o esperto não dorme à noite com medo de ser ludibriado. O esperto vence com úlcera no estômago. O bobo não percebe que venceu.

Aviso: não confundir bobos com burros. Desvantagem: pode receber uma punhalada de quem menos espera. É uma das tristezas que o bobo não prevê. César terminou dizendo a célebre frase: "Até tu, Brutus?"

Bobo não reclama. Em compensação, como exclama!

Os bobos, com todas as suas palhaçadas, devem estar todos no céu. Se Cristo tivesse sido esperto não teria morrido na cruz.

O bobo é sempre tão simpático que há espertos que se fazem passar por bobos. Ser bobo é uma criatividade e, como toda criação, é difícil. Por isso é que os espertos não conseguem passar por bobos. Os espertos ganham dos outros. Em compensação os bobos ganham a vida. Bem-aventurados os bobos porque sabem sem que ninguém desconfie. Aliás não se importam que saibam que eles sabem.

Há lugares que facilitam mais as pessoas serem bobas (não confundir bobo com burro, com tolo, com fútil). Minas Gerais, por exemplo, facilita ser bobo. Ah, quantos perdem por não nascer em Minas!

Bobo é Chagall, que põe vaca no espaço, voando por cima das casas. É quase impossível evitar excesso de amor que o bobo provoca. É que só o bobo é capaz de excesso de amor. E só o amor faz o bobo.