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O pentecostalismo sionista “made in USA”

O pentecostalismo sionista “made in USA” e o apoio às ilegalidades de Israel
"Derrotar o imperialismo em todas as suas formas é uma exigência da humanidade pelo respeito ao direito internacional e a pertença inalienável dos povos originários ao seu território ancestral", escreve Bruno Beaklini (Bruno Lima Rocha Beaklini), editor dos canais do Estratégia & Análise e militante socialista libertário de origem árabe-brasileiro, em artigo originalmente publicado por Monitor do Oriente Médio, 23-11-2020.

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Existe uma conta de chegada na política doméstica dos EUA que se dá na vitória ou derrota em alguns colégios eleitorais, a partir do chamado “cinturão bíblico”. Quase sempre a pregação moral, a mesma que alinha votos à direita do sistema político da Superpotência, aponta para a chamada “direita cristã”. Como cientista político de formação, considero mais preciso denominar “direita pentecostal” e, no tema desse artigo, mais especificamente “sionismo pentecostal”.

Não é apropriado associar diretamente um sistema de crenças de tipo religioso com um determinado posicionamento político. Isso seria algo próximo da apostasia e como tal é crime, combato esse tipo de afirmação com toda a veemência. Tampouco é correto relacionar toda a pregação protestante nos Estados Unidos com posições mais reacionárias. Durante os anos da grande industrialização, do início do sindicalismo massivo na década de 1880 até a consolidação do New Deal na segunda metade dos anos 1930, não foram poucos os pastores, ministros e ministras que se alinharam junto à classe trabalhadora e lutaram ombro a ombro por melhores condições de vida e direitos sociais. Talvez o exemplo mais evidente seja a luta dos mineiros do carvão e suas famílias, combinando um sindicalismo classista de resistência e a congregação religiosa como abrigo e guarida para uma vida, ou mesmo uma sobrevivência mais coletiva, e muito solidária.

O exemplo ganha contornos épicos com a Congregação das Igrejas Batistas do Sul e o papel de destaque das lideranças religiosas afro-americanas, a começar pelo próprio Dr. Martin Luther King Jr, à frente da Conferência de Lideranças Cristãs do Sul (SCLC). Ele, junto ao islamizado Malcolm X, são as maiores referências de intelectuais e pregadores afro-americanos dos EUA no século XX. Infelizmente, os supremacistas brancos profanam a cruz do profeta Issa (Jesus Cristo, portanto, o crucificado) e se utilizam de simbologia “cristã” para pregar justamente o oposto do realizado pelo Messias, quando enfrentou o imperialismo de seu tempo e de peito aberto. O mau exemplo é abundante.

Fundado no ano de 2015, o museu dos “cristãos sionistas” – Friends of Zion foi fruto de uma aliança entre o republicano Mike David Evans e a elite dirigente do Estado de Israel, incluindo Menahem Begin (o próprio), o terrorista da Irgun que virou primeiro ministro do Estado Colonial. Evans foi um dos proeminentes “assessores pentecostais” do derrotado Donald Trump. Mas não para por aí.


A poderosa rede International Fellowship of Christians and Jews envia um volume considerável de recursos para Israel, assim como promove imigração de famílias judaicas, sempre contrapondo o permanente desequilíbrio demográfico. Nas partes mais importantes do portal, não se observa nada da tradição humanista da esquerda judaica (não sionista), tampouco abordam o problema da extrema direita que sempre flerta com o nazi-fascismo. Outra “curiosa” coincidência.

Segundo o canal Vice, o alinhamento das congregações do chamado “cinturão bíblico” com Israel é de hegemonia absoluta, o que inclui um volume importante de recursos destinados aos assentamentos na Cisjordânia. Ou seja, em nome de algum tipo de leitura fundamentalista do Velho Testamento, empresas cujo negócio é arrecadar recursos em espécie de pessoas necessitadas, destinam parte desta verba para construções que são ilegais, perante o direito internacional, e vão de encontro a várias resoluções da ONU, a começar pela Resolução 242 que, em “tese”, obrigaria Tel Aviv a devolver os Territórios Ocupados na Naksa, em 1967. Alguém viu uma “expedição de capacetes azuis” desembarcando no litoral da Palestina Ocupada em 1948? Alguém foi informado de um “bloqueio econômico” de vulto ou uma “ação conjunta” sequer parecida com as condenações da África do Sul no período do Apartheid? Suponho que não, pois isso jamais existiu.


E tem mais. John Hagee é um pastor que coordena excursões para Israel e apoia os assentamentos ilegais na Cisjordânia. Também é líder da congregação protestante de teleevangelistas e ganhador de uma medalha dos “Friends of Zion” - inclusive afirma, na seção de “sistema de crenças”, um compromisso com Israel. A razão alegada é milenarista, como afirmado abaixo através de ampla pesquisa. Hagee diz que: “Cremos na promessa de Gênesis 12: 3 a respeito do povo judeu e da nação de Israel. Acreditamos que os cristãos devem abençoar e confortar Israel e o povo judeu. Os crentes têm um mandato bíblico para combater o anti-semitismo e falar em defesa de Israel e dos escolhidos.”


Suponho que para tais cidadãos estadunidenses, essa interpretação do Velho Testamento tenha mais “validade” do que as 850 mil pessoas que foram deportadas, expulsas de suas terras onde residem a tanto ou mais tempo do que a frase no Gênesis. Além da Nakba, como se fosse pouco, os cerca de 13% de árabes-palestinos de fé cristã, resultando em distintas comunidades simplesmente seriam simplesmente “irrelevantes”.

Curioso que um pouco mais abaixo do mesmo texto, afirma-se em Genesis 12:6: “E passou Abrão por aquela terra até ao lugar de Siquém, até ao carvalho de Moré; e estavam então os cananeus na terra.” Não entro no mérito dos sistemas de crenças e valores religiosos, mas tomando em conta o fenômeno histórico, o povo palestino sempre esteve lá e combateu o mesmo imperialismo. Enfim, nada justifica, a não ser que a propaganda milenarista ultrapasse o direito internacional. Daí para uma teoria “globalista” ou outras extravagâncias ao estilo de Steve Bannon e Alexander Dugin não falta nada.


É importante observar esta interpretação do historiador Walker Robins:
“Os Batistas do Sul viam amplamente a Palestina com olhos orientalistas, associando o movimento sionista à civilização ocidental, modernidade e progresso contra os árabes da Palestina, que eles viam como incivilizados, pré-modernos e atrasados. Essa visão era compartilhada por viajantes batistas, por missionários, por pré-milenaristas e por seus oponentes.”
Infelizmente, nada disso é “novidade” e é uma evidência na relação para-estatal de diplomacia pública, que realiza uma aliança direta através de enlaces do Ministério de Assuntos Estratégicos de Israel e as maiores congregações do cinturão bíblico. O jornal israelense Haaretz fez uma boa investigação a respeito, assim como a Al Jazeera, em inglês, corretamente afirma que:
“Como resultado de tais crenças, os sionistas cristãos apoiam o empreendimento de colonatos ilegais de Israel na Cisjordânia e, de facto, qualquer outra política - israelense, americana ou outra - que assegure a soberania judaica israelense sobre a terra desde o Mar Mediterrâneo até ao rio Jordão e mesmo mais além, até à margem oriental da Jordânia”. E termina reiterando que “Os sionistas cristãos geralmente ignoram as violações dos direitos palestinos por Israel, mesmo dos palestinos cristãos, ou as veem como um meio necessário para um fim.” (no mesmo link acima).
Considerando que 80% dos chamados evangélicos dos EUA (de um total de 70 milhões), com especial ênfase os pentecostais teleevangelistas, apoiam incondicionalmente o Estado de Israel, ignoram o Apartheid Colonial e a invasão de territórios soberanos dos países vizinhos, para além do lobby do AIPAC, existe uma demanda doméstica bem à direita, com crenças milenaristas e motivações imperiais para seu aliado estratégico.


Não me espanta. As Treze Colônias, quando unificadas, formadas por convencionais escravagistas, autoproclamaram o Destino Manifesto. Assim, romperam seguidos acordos e tratados com nações indígenas, forçaram duas guerras contra o México e terminaram por roubar metade do território do país vizinho. Era de se supor que a hegemonia da direita milenarista defenda quem faça no Oriente Médio o que os Estados Unidos fizeram no continente americano: expansionismo territorial, genocídio indígena, apartheid ou segregação e conquistas imperialistas como em Porto Rico, Filipinas e Havaí.

Derrotar o imperialismo em todas as suas formas é uma exigência da humanidade pelo respeito ao direito internacional e a pertença inalienável dos povos originários ao seu território ancestral.


Antissionismo não é antissemitismo

 

José Welmowicki e Soraya Misleh

Uma confusão sempre à espreita e que ganha corpo nos últimos dias é que antissionismo seria uma forma de antissemitismo. Nada mais falso. Entendemos que há três tipos de confusões em relação a isso: a primeira é deliberada e, portanto, criminosa, como faz o Estado racista de Israel e suas organizações; a segunda é por desonestidade ou oportunismo, e geralmente está atrelada à primeira; e a terceira é por equívoco ou desconhecimento, fruto das ideologias que permeiam frequentemente os meios de comunicação de massa e estão na boca dos políticos e outras personalidades. A proposta deste artigo é explicar a diferença entre antissionismo e antissemitismo, que é grande.

Antissemitismo esteve presente nas falas do apresentador Bruno Aiub (Monark), durante a edição do Flow Podcast no último dia 7 de fevereiro, e do deputado federal Kim Kataguiri (DEM-SP) no mesmo programa, o que é absolutamente condenável. Nosso repúdio veemente à ideia absurda que propagaram de que o nazismo não deveria ser tratado como crime e que, como afirmou Aiub, “tudo bem ser antijudeu”. Não está nada bem defender o racismo e discriminação e a opressão. Não está, portanto, nada bem ser antissemita. Isso significa naturalizar o ódio a determinadas etnias ou raças.

O nazismo, com sua abominável ficha de atrocidades cometidas durante o Holocausto contra judeus (6 milhões de mortos), e também contra ciganos, comunistas e anarquistas, LGBTs e deficientes físicos, todos os que não seriam parte da “raça ariana”, durante o século XX, foi um crime contra a humanidade. Defender a legalização de um partido nazista é inaceitável. Infelizmente Aiub e Kataguiri não são os únicos. O vereador paulistano capitão-do-mato Fernando Holiday (Novo), que disse antes que racismo contra negros no Brasil não existe, é outro que, do alto de sua idiotia sem tamanho, defendeu a “descriminalização do nazismo”, sob a lógica distorcida de “liberdade de expressão”.

O direito democrático à liberdade de expressão não significa direito a incitar racismo, sob quaisquer formas. Não pode ser usado como muleta para se propagar livremente crimes contra a humanidade e discursos de ódio. As consequências, e isso não é de hoje, são amplamente conhecidas.

Ao mesmo tempo, no seu ridículo pedido de desculpas, tentando justificar o injustificável, Kim Kataguiri trouxe a máxima, em vídeo nas suas redes sociais, que não poderia ser antissemita porque “não tem ninguém mais pró-Israel dentro do Parlamento do que eu”, para emendar dizendo que considera “até engraçado pessoas anti-Israel me chamando agora de antissemita, de nazista”.

Essa ideologia não é à toa. Atende à confusão deliberada feita pelo Estado racista de Israel, que coloca um sinal de igual no que não tem absolutamente nada a ver, uma chantagem que merece também repúdio veemente, para silenciar os críticos do projeto colonial sionista. E que não é de hoje.

Mas o que é antissemitismo e quais suas origens?
O racismo contra os judeus, o antissemitismo, teve origem na Idade Média europeia. Os reis, nobres e sacerdotes, exploravam os servos em seus feudos na Europa medieval; na sociedade feudal, as transações comerciais e financeiras e atividades como a usura eram vistas como pecaminosas, proibidas aos cristãos. Um não cristão tinha que fazê-las. Na verdade, fazê-las a serviço da nobreza e do clero, que eram a classe dominante. Os judeus cumpriram esse papel de comerciantes, artesãos, ourives etc. e também de agiotas, tarefa que estava vetada aos cristãos. Faziam isso sob o controle dos reis do clero e dos nobres, e quando surgiam as catástrofes como a fome, as pestes, a cada período desse sistema feudal, as classes dominantes viam como necessário um bode expiatório. Por seu papel na sociedade, o de mercadores que comerciam as mercadorias e de emprestadores de dinheiro e que cobram juros, os judeus eram um alvo fácil, daí as lendas divulgadas pela Igreja cristã, como o mito de que “os judeus mataram Cristo”, eram utilizadas pelos nobres para jogar a culpa de todos os infortúnios da população nos judeus.

A revolução francesa, com seus três lemas – liberdade, igualdade e fraternidade – colocou a questão de considerar os seres humanos iguais perante a lei. Mas, como sabemos hoje, a nova sociedade capitalista foi incapaz de dar verdadeira igualdade às mulheres e às etnias e raças perseguidas. Foi a revolução russa de 1917 que trouxe a libertação dos povos de todo o antigo Império russo, o fim da discriminação a todas as etnias, incluindo os judeus de seu território.

E em sua fase imperialista, o capitalismo acirrou a exploração e as guerras de colonização de povos: e a perseguição racial tomou uma forma ainda mais assassina. Foi nessa fase imperialista que surgiram o fascismo e o nazismo; uma ideologia que justificava o genocídio e a eliminação de raças como única forma de avanço para o povo alemão. O antissemitismo foi transformado em uma política industrial de genocídio, de eliminação dos judeus.

Surgimento do sionismo
O sionismo, surgido no fim do século XIX, com Theodor Herzl, defendeu que o problema da discriminação dos judeus só seria resolvido se os judeus tivessem um estado exclusivo deles. O sionismo aceitava, assim, um pressuposto que os racistas antissemitas vinham pregando – era impossível a convivência sem discriminação entre diferentes raças e etnias, entre judeus e não judeus. Sua própria constituição racial impediria isso. E Herzl e a Organização Sionista mundial (OSM) trataram de procurar os dirigentes das potências imperialistas e ministros do império czarista da Rússia para negociar seu apoio a esse projeto, entre outros argumentos, lembrando-os que poderiam livrar-se dos judeus de seu território. Durante a Primeira Guerra Mundial (1914-1918), através de Chaim Weizmann, liderança sionista, a OSM obteve uma declaração do governo imperialista inglês, a Declaração Balfour de 1917, comprometendo-se a permitir a instalação de um Lar Nacional Judeu no território da Palestina. Ou seja, era um compromisso da autoridade colonial inglesa em permitir que a Palestina, agora colonizada por eles, fosse utilizada pelos sionistas para instalar novos colonos judeus lá. Mas isso só seria possível expulsando a população palestina existente.

O dirigente sionista “revisionista” Jabotinsky (do qual derivaram as organizações de ultradireita Irgun e Likud de Begin e de Netanyahu, primeiro-ministro por mais de uma década de Israel), levariam essa visão às últimas consequências, pregando uma “muralha de ferro” entre judeus e os árabes habitantes da Palestina, e nenhuma “mistura de sangue” entre eles, ou seja, Israel deveria ser um estado abertamente racista, exclusivamente dos judeus. Esse foi o projeto implantado e que deu origem ao Estado de Israel, às custas da expulsão da população palestina. Como revela o historiador israelense Avi Shlaim em seu livro “A muralha de ferro – Israel e o mundo árabe” (Editora Fissus, 2004), esse era também o pressuposto não declarado do denominado sionismo trabalhista – e sua liderança David Ben-Gurion – que, de fato, levou a cabo a limpeza étnica em 1948.

A limpeza étnica da Palestina

 

Comentário sobre o livro de Ilan Pappé

Há livros difíceis de serem lidos. Às vezes empacamos diante de conceitos ou de formulações rebuscadas. Há, também, outros tipos de dificuldades. Paramos a leitura para tomar ar, para dar ao pensamento tempo para se conectar com a narrativa de experiências históricas terríveis, devastadoras. Somos postos diante do precipício daquilo que chamamos “humanidade”.

Os crimes contra a humanidade nos arrancam do nosso lugar confortável e nos fazem pensar sobre os próprios sentidos que os criminosos dão ao “humano”. Foi a conta-gotas que li A limpeza Étnica da Palestina, do historiador israelense Ilan Pappé. A cada página o autor nos apresenta aos horrores cometidos pelos sionistas para expulsar os/as palestinos/as de suas terras para que pudessem fundar um Estado judeu.

Nas duas viagens que fiz à Palestina vi fragmentos. Conheci parte considerável dos 700 quilômetros de muro, serpentes de concreto; as barreiras militares. Escutei tiros que executaram um jovem na Cidade Velha de Jerusalém, ritual de morte que acontece quase todos os dias nas barreiras militares. Acompanhei e chorei com os moradores de Silwan (bairro palestino em Jerusalém Oriental) que tiveram suas casas demolidas. Conversei com crianças que tinham sido presas pelo Estado de Israel. Visitei alguns campos de refugiados.

Faltava, contudo, ligar os vários pontos dos múltiplos atos de terror cometidos pelo Estado de Israel contra o povo palestino. Tão logo voltei ao Brasil, em janeiro de 2017, o livro de Ilan Pappé foi lançado. Este livro me deu um quadro histórico mais coerente e completo, que seria impossível de alcançar apenas pela dimensão da experiência. O que eu tinha assistido era, de fato, a continuidade da política iniciada em 1947 pelo futuro Estado de Israel: eu vi a continuidade da limpeza étnica da Palestina.

Um dos principais mitos que tenta justificar a existência de Israel se fundamenta no lema “Uma terra sem povo para um povo sem terra”. A narrativa sionista é mais ou menos assim: “judeus miseráveis, perseguidos pelos antissemitas na Europa, finalmente, voltam para suas terras ancestrais. Encontraram terras desocupadas e, com seu trabalho, fizeram da terra seca brotar a abundância. Cercado de inimigos por todos os lados, os/as heroicos/as soldados/as judeus/judias resistiram, lutaram e fundaram o glorioso Estado de Israel!”. Após a pesquisa de Ilan Pappé, este mito foi definitivamente destruído.

A tese da limpeza étnica não é nova. Walid Khalidi, por exemplo, nos seus escritos, já seguia este caminho. Em sua obra-prima, Una Historia de los Palestinos a traves de la fotografia 1876-1948, Khalidi nos apresenta uma Palestina pulsante, com uma vida urbana conectada com grandes centros culturais e econômicos do mundo. O autor combina vários elementos narrativos em seu livro: fotografias, mapas, dados censitários e textos analíticos. A própria palavra síntese, usada pelos/as palestinos/as para se referir ao que lhes aconteceu, principalmente a partir de novembro de 1947, Nakba (catástrofe), nos revela que a tese de limpeza étnica não é nova.

Qual seria, então, a singularidade da obra de Ilan Pappé e por que sua leitura deve ser obrigatória para todos/as que estão conectados/as com a luta do povo palestino e/ou interessados/as em entender os mecanismos de dominação do neocolonialismo materializados nas políticas do Estado de Israel? Pela primeira vez, um pesquisador entra na alma do projeto sionista: vale-se dos arquivos da Haganá, das FDI (Forças de Defesa de Israel), arquivos centrais sionistas, registro das reuniões da Consultoria, diário e os arquivos pessoais de Ben-Gurion.

Com rigor científico cirúrgico, o autor nos apresenta também cartas, documentos da ONU, repercussão em jornais de alguns dos massacres cometidos contra o povo palestino, arquivos da Cruz Vermelha. Além da descrição e análise histórica dos fatos, o livro ainda mostra fotos, cronologia dos fatos principais, mapas e um apartado com centenas de notas explicativas das fontes consultadas. São estas notas que garantem o rigor científico e o compromisso com a verdade. São centenas, iguais à Nota 5 (Capítulo 6): “Isso estava nas ‘Ordens operacionais para as brigadas de acordo com o Plano Dalet’, Arquivos das FDI, 22/79/1.303” (p. 313).

No primeiro capítulo, o historiador irá apresentar o conceito de “limpeza étnica” aceita por todos os organismos internacionais como “um esforço para deixar homogêneo um país de etnias mistas, expulsando e transformando em refugiados um determinado grupo de pessoas” (p. 23). Logo depois, nos conduzirá aos antecedentes históricos do projeto sionista de construção de um Estado para os judeus (por exemplo, a Declaração Balfour, de 1917) e nos apresentará aos “intelectuais orgânicos” da limpeza étnica, destacando-se o grande arquiteto Ben-Gurion.

Em carta ao filho, em 1937, Ben-Gurion antecipará o que iria acontecer: “Os árabes terão de ir, mas para fazê-lo acontecer, é necessário um momento oportuno, como uma guerra” (p. 43). Dez anos depois, em 1947, Yigael Yadin (outro importante quadro político-militar que planejou e executou a limpeza) afirmará: “os árabes palestinos não têm ninguém para organizá-los devidamente” (p. 42). Ou seja, a suposta guerra que Ben-Gurion já desejava em 1937 não aconteceu. Guerra só existe quando há um mínimo de equilíbrio na correlação de forças bélicas entre os inimigos. O que mostra a falsidade da retórica acionada sem timidez por Ben-Gurion de que os judeus na Palestina corriam risco de serem vítimas de um segundo Holocausto. Ao descrever os palestinos como nazistas, “a estratégia era uma manobra deliberada de relações públicas para garantir que, três anos depois do Holocausto, o ímpeto dos soldados judeus não vacilasse quando eram ordenados a limpar, matar e destruir outros seres humanos” (p. 93).

Foram três planos, ao todo, para realizar a limpeza étnica (Plano A, 1937; Plano B, 1946 e que passou a integrar o Plano C, de 1948). No entanto, o mais minucioso e melhor estruturado foi o Plano Dalet (“D” em hebraico). Assim, “alguns dias depois de escrito, o Plano D foi distribuído entre os comandantes das 12 brigadas incorporadas agora à Haganá. Junto à lista recebida vinha uma descrição detalhada dos vilarejos no seu raio de ação e de seu destino imanente: ocupação, destruição e expulsão. Os documentos israelenses liberados pelo arquivo das Forças de Defesa de Israel, no fim dos anos 1990, mostram claramente que, ao contrário das alegações feitas por historiadores como Benny Morris [historiador israelense], o Plano Dalet foi entregue aos comandantes de brigadas não como diretrizes gerais, mas como categóricas ordens para a ação” (p. 103).

Valsa com Bashir


Título Nacional: Valsa com Bashir
Título Original: Vals im Bashir 
Idioma: Hebraico 
Diretor: Ari Folman 
Gênero: Filme/Documentário/Biográfico 

O conflito no oriente médio não é de agora. Há décadas, países lutam por questões territoriais e religiosas, resultando em grandes destruições e aumentando ainda mais o ódio étnico e a intolerância multicultural vizinha. A migração de refugiados de guerra também é uma questão para se analisar com bastante cautela. 

O filme-documentário-biográfico "Valsa com Bashir" (em hebraico Vals im Bashir) aborda essa última questão. O ex-combatente israelense e diretor do filme, Ari Folman, retrata um dos períodos mais conturbados na história, marcados por intensos conflitos durante a ocupação das forças Israelenses no Líbano até a chegada à capital Beirute, em 1982, no intúito de derrubar as forças palestinas. 

O assassinato do presidente cristão Bashir Gemayel colaborou no massacre de dois mil civis nas cidades de Sabra e Chatila, cidades em destaque no filme. 

Diferente da linha comercial cinematográfica, Ari Folman relata a sua angústia e intensa busca às lembranças dos acontecimentos em formato de animação. Alías, "Valsa com Bashir" foi o primeiro documentário animado a ser veiculado e indicado a cinco Oscars de melhor filme estrangeiro.

Ser antissionista é ser antissemita?

 

O lobby israelense e seus ferrenhos apoiadores não lutam contra o antissemitismo que alegam existir, eles lutam contra a crítica à Israel. 

Em geral, quando se inicia um debate crítico a respeito da política do Estado de Israel, suas ações militares e de intervenção em território da Palestina ou mesmo em outras regiões do Oriente Médio, surgem diversos comentários de seus apoiadores em sua defesa, para explicar e justificar as barbáries cometidas pela “única democracia do Oriente médio”. Dentre esses comentários, surgem diversas acusações, sendo a mais grave acusar de antissemita todos os que se opõem ao Estado e a política de Estado de Israel.

Toda crítica política ao sionismo é tomada como sinônimo de antissemitismo, segundo intelectuais sionistas e apoiadores. De fato, dentre algumas críticas ao Estado de Israel, existem manifestações antissemitas de organizações neonazistas e, entre outras, de organizações que se declaram islâmicas. O ponto central é contextualizar ao leitor como cada conceito se encaixa nessa discussão, para não serem mal interpretados ou tirados de contexto como comumente tem ocorrido.

De acordo com Santos (2018, p. 12) “Sionismo é um movimento político com aspirações nacionalistas, que afirma o direito à existência de um Estado Judaico” e que historicamente propõe a erradicação da diáspora judaica, tendo como seu principal teórico o judeu Theodor Hetz (1860-1904). Dentro do movimento sionista, três locais foram pensados para construção do Estado: Argentina por ter uma das maiores comunidades judaicas do mundo, Uganda por estar sob mandato britânico na época de negociações com o movimento sionista e a Palestina por também estar sob mandato britânico e ser uma região historicamente importante para os judeus.

Hetz teorizou e concentrou essas ideias em sua principal obra O Estado Judeu (1896). Essa ideia ganha força frente aos violentos atentados e perseguições contra judeus no ocidente sobretudo na Inglaterra, Alemanha, França e Rússia que se intensificaram durante os séculos XVIII e XIX. Essas perseguições a judeus ficaram conhecidas como pogroms.[i]

Antissionismo é um termo utilizado por ativistas sociais dos Direitos Humanos, movimentos que se opõem à ideia de criação de um Estado nacional judaico na Palestina histórica e sobretudo que se opõem à política do Estado de Israel. Antissemitismo é o preconceito e discurso de ódio contra semitas, englobando principalmente o ódio contra judeus. Os Semitas englobam várias etnias como judeus, árabes hebreus, arameus, fenícios e assírios.

Durante o século XX a máquina de propaganda israelense se apropriou do termo “antissemita” como preconceito cometido apenas contra judeus excluindo os outros povos semitas. Em protesto a isso alguns autores preferem utilizar o termo “judeofobia”. Um judeu étnico, por lógica, nunca poderá ser antissemita, mas pode manifestar oposição política e religiosa ao sionismo. Muitos judeus étnicos e religiosos ortodoxos rejeitam veemente o Estado judeu ou como preferem chamar o Estado sionista. A comunidade judaica no pós-Segunda Guerra Mundial passou por uma de suas maiores rupturas da história quando se tratou de apoiar a criação do Estado de Israel e consequentemente a política de imigração para a Palestina onde se tornaram colonos.

A ideia de que durante 2000 anos os judeus anseiam retornar à Terra Santa é falso e desmentido pela comunidade judaica tradicional. Rabinos fiéis a interpretação da Torá afirmam constantemente em seus protestos contra o sionismo que o retorno à Terra Santa, segundo o livro sagrado, só poderia ocorrer por ocasião do advento do Messias.

“Os judeus piedosos que criticam publicamente o sionismo creem que devem agir assim por causa de obrigações impostas pela Torá. A primeira é impedir a profanação do nome de Deus. Como o Estado de Israel pretende atuar em nome de todos os judeus do mundo, inclusive em nome do judaísmo, esses judeus sentem-se obrigados a explicar publicamente, principalmente aos não judeus, o que consideram uma interpretação fraudulenta. A segunda obrigação deriva do preceito de preservar a vida humana. Ao ressaltar a rejeição judaica ao sionismo, eles esperam afastar os judeus da animosidade que, em sua opinião, o Estado de Israel provoca entre as nações. Desejam evitar que os judeus de todo o mundo se transformem em reféns das políticas israelenses e de suas consequências. Afirmam que o Estado de Israel deve ser conhecido como o “Estado sionista” e não como “o Estado judeu” ou “Estado hebreu”.[ii]

Essa tentativa de assimilar antissionismo a antissemitismo é uma grande ferramenta por parte do Estado de Israel e seus aliados para silenciar qualquer crítica direcionada aos mesmos como se fossem críticas ao judaísmo e aos judeus. Isso não passa de uma forma discursiva genial para silenciar os críticos do sionismo israelense. Interessante observarmos que esse tipo de silenciamento tem se tornando uma política por parte do Estado sionista e seus apoiadores.

Podemos utilizar como exemplo de silenciamento o professor Steven Salaita[iii] que em 2014 teve sua oferta de emprego rescindida pela universidade de Illinois após uma série de tweets que direcionaram críticas ao Estado de Israel. Após muito lobby por parte do movimento sionista americano o professor não foi aceito em qualquer outra universidade, tempos depois o professor entrou na justiça e conseguiu reverter a situação entrando em acordo com a universidade e recebendo cerca de US $ 600.000.

A associação dos judeus com o Estado de Israel é quase que automática quando mencionada em mídias ou meios acadêmicos. Quando quaisquer opositores ferrenhos do sionismo gritam pelo fim do Estado de Israel e pedem a autodeterminação do Estado Palestino pluri étnico e laico logo são associados como inimigos do povo judeu espalhados pelo mundo. Os sionistas fizeram algo muito bem além de expulsar os palestinos de suas terras e serem responsáveis pela diáspora do povo descendente dos filisteus, souberam criar e reforçar a ligação da comunidade judaica mundial com o Estado de Israel se apresentando como a vanguarda dos judeus. A escola de pensamento e propagação das ideias sionistas não deve de modo algum representar o judaísmo, assim como a Al-Qaeda e o ISIS-Estado Islâmico não representam o Islã.

A filósofa judia Judith Butler vê nessas associações consequências extremamente negativas para o movimento judeu: “Nos Estados Unidos, fiquei alarmado com o número de judeus que, desanimados com a política israelense, incluindo a ocupação, as práticas de detenção por tempo indeterminado, o bombardeio de populações civis em Gaza, buscam negar sua condição de judeu. Eles cometem o erro de pensar que o Estado de Israel representa o judaísmo para nossos tempos, e que, se alguém se identifica como judeu, apoia Israel e suas ações. E, no entanto, sempre houve tradições judaicas que se opõem à violência estatal, que afirma a coabitação multicultural e defendem princípios de igualdade, e essa tradição ética vital é esquecida ou marginalizada quando qualquer um de nós aceita Israel como base da identificação judaica”.[iv]

Antissionismo não é de modo algum antissemitismo, pelo mesmo fato de ser antinazista não significa ser contra o povo alemão. Ser contra o sionismo israelense e sua política de apartheid, segregação, violação dos direitos humanos, limpeza étnica contra os palestinos, não pode ser considerado um ato “antissemita”. O lobby israelense e seus ferrenhos apoiadores não lutam contra o antissemitismo que alegam existir, eles lutam contra a crítica à Israel.

Gustavo Alves Lima é graduado em história pela Universidade Federal da Integração Latino-americana (UNILA).

Notas
[i] Pogroms (em russo “destruição”): Eram massacres organizados para o aniquilamento de qualquer grupo ou classe, especialmente com a conivência do governo russo contra os judeus. O termo foi usado pela primeira vez fora da Rússia ao tempo dos levantes antijudaicos organizados pelas Centúrias Negras na Rússia no ano de 1905, mas é frequentemente aplicado às insurreições russas anteriores, a partir de 1881 (ROTH, 1966, p. 976).
[ii] Rabkin, Yakov M. Judeus contra Judeus – a História da Oposição Judaica ao Sionismo. Cotia, SP: Acatu, 2009. p.17
[iii] professor e intelectual palestino-americano que ficou conhecido por ganhar um processo contra a universidade de Illinois. https://www.thenation.com/article/archive/why-unhiring-steven-salaita-threat-academic-freedom/
[iv] Judith Butler responds to attack: ‘I affirm a Judaism that is not associated with state violence’ – Judith Butler on August 27, 2012 – Mondoweiss, Disponível: <http://mondoweiss.net/2012/08/judith-butler-responds-to-attack-i-affirm-a-judaism-that-is-not-associated-with-state-violence/>

Sobre sionismos, antissionismos e antissemitismos

Falta uma imaginação política capaz de propor e acreditar em futuros de coexistência e solidariedade para palestinos e judeus naquela região. 

Vivemos um momento terrivelmente trágico na história global. Uma guerra no leste europeu entre Rússia e Ucrânia, a guerra civil síria que já vitimou 300 mil civis, uma guerra civil no Iêmen que já causou outras 150 mil mortes e, agora, uma nova etapa do conflito Israel-Palestina que já levou a milhares de mortos, especialmente de civis palestinos.

Palestinos e israelenses estão sofrendo e nenhuma dor deve ser diminuída. Palestinos e israelenses devem ter direito ao luto e a nossa solidariedade deve alcançá-los todos. Sem “mas”. Sem “porém”. Não são números, são vidas, histórias e famílias. Que o alcance irrestrito do luto, como refletiu Judith Butler, nos sirva para imaginarmos um futuro para o Oriente Médio de substancial igualdade, em que nenhuma vida mais seja perdida da forma como estamos assistindo.

Dito isso, precisamos achar, nesse doloroso momento, uma oportunidade para revisitarmos debates importantes do campo progressista que permanecem intocáveis e que, ao longo das décadas, se transformaram tickets ideológicos indispensáveis para que se receba a carteirinha de “esquerda de verdade”. A maioria desses dogmas, como é de se imaginar, são espantalhos mal compreendidos: sionismos, antissionismos e antissemitismos.

A dificuldade de escrever sobre uma temática tão delicada em um momento tão polarizado é que dificilmente um leitor radicalizado manterá uma postura intelectualmente aberta à posição do outro. Aprendi com os meus mais velhos: “ouvir não é escutar”. Ler para refutar é ler procurando o que há de errado na posição do outro. É ler procurando o viés de confirmação da própria posição. Ler para estabelecer pontes de diálogo, no entanto, é ler com disposição para a alteridade. Somente com esta última posição é possível fazer uma política de fato democrática.

MUDANÇA OU EXTINÇÃO
Criou-se um mito muito difundido de que judeus rejeitam quaisquer críticas ao Estado de Israel, pois estas seriam antissemitismo. Isso não é verdade, e quem compartilha dessa posição está equivocado.

Criticar Israel, seus governos e políticos, não é necessariamente antissemitismo. É possível, sim, condenar a ocupação de territórios palestinos, assim como é também possível criticar a lei básica do Estado-nação, que, aprovada em 2018, afirma que Israel é pátria “exclusiva do povo judeu”. Esse debate, na verdade, é imperativo. A comunidade judaica, em Israel e na diáspora, estava realizando-o quando foi surpreendida pelo massacre do último 07 de outubro. Antes disso, porém, semanalmente milhares de israelenses tomavam as ruas de Tel Aviv, e uma das palavras de ordem sempre presentes era: “não há democracia com ocupação!”.

Ainda hoje, após um traumático evento e em meio a uma guerra, há israelenses que levantam suas vozes sobre essa importante questão. O Standing Together é um exemplo disso. Um movimento popular árabe-judaico, com lideranças progressistas, de esquerda e socialistas, e que é, hoje, uma das maiores vozes contra a extrema-direita israelense e que luta contra ocupação dos territórios da Cisjordânia, contra o racismo e constrói propostas de solidariedade e coexistência entre os povos. No último dia 4 de novembro, a organização promoveu a Conferência de Solidariedade Árabe-Judaica que reuniu mais de 700 pessoas na cidade de Haifa. No último dia 7, o movimento também integrou uma grande manifestação em Tel Aviv contra o atual governo, por paz e pelo fim das ocupações já citadas.


Muitos militantes de esquerda, no Brasil e no mundo, fazem referência a Israel como uma Estado “artificial”. Um Estado sem sociedade civil mobilizada, sem contradições, disputas políticas, sem divergências e lutas de classes. A realidade é muito mais rica que a vulgaridade dessas análises. Israel não é uma “entidade”, um bloco monolítico, como muitos querem fazer parecer. É uma sociedade em que, assim como a nossa, também possui suas resistências. O Standing Together, o Hadash, partido árabe-judaico socialista, o Partido Comunista de Israel, e tantas outras organizações de oposição mostram um pouco disso.

Reconhecendo isso e reconhecendo, também, que a fundação do Estado de Israel, em 1948, visou oferecer para o povo judeu – um povo perseguido durante dois mil anos no Ocidente – um lar nacional no seu território ancestral, pedir a sua extinção é, também, negar a este povo o seu direito de autodeterminação. É desconsiderar que, mesmo após 97 gerações expulsas de 109 regiões do mundo, judeus nunca abandonaram sua relação com aquele território. Para dizer o mínimo, isso é uma insensibilidade histórica. Usando as palavras corretas, o nome disso é antissemitismo.

Massacre na Palestina

Apenas a criação de um Estado palestino soberano e independente pode interromper décadas de hostilidades. É preciso que os assuntos mais espinhosos sejam abordados com urgência e coragem.


Imagino Gaza como refém do horror. Quantos funerais devem estar ocorrendo todos os dias... Quantas famílias destroçadas, sem casa, sem comida, sem esperança... Quantas mães choram a morte dos filhos, quantas ficaram com a lembrança do rostinho sorrindo, talvez com um brinquedo ou uma roupa... As bombas trazem o fim e o luto, dia e noite. Mais de 1 milhão de 2,4 milhões dos moradores de Gaza estão desalojados ou deslocados internamente.

Enquanto isso, o mundo silencia. Não se justifica vingar o massacre de civis com a matança da população. É desumano, criminoso. Impor a morte aos homens sem vínculos com extremistas, às crianças, às mulheres e aos idosos, como resposta à barbárie cometida por um grupo, equivale a tratar os palestinos como escória humana. Matar bebês, meninos e meninas em bombardeios é exterminar gerações inteiras. Para muitos, trata-se de genocídio.

Defender a causa palestina não é compactuar com as atrocidades cometidas pelo Hamas. Não consigo dimensionar o terror experimentado pelos moradores do sul de Israel em 7 de outubro. Assisti ao filme de 43 minutos com gravações feitas pelas câmeras corporais dos próprios extremistas do Hamas, com imagens captadas pelas Forças de Defesa de Israel ou pelo circuito interno de segurança nas casas dos kibbutzim. Estive no sul de Israel, em março passado; visitei um kibbutz, um ambiente pacato, onde a paz predominava boa parte do tempo. Eu me solidarizo com a população do sul de Israel.

Mas, também, estendo meus pensamentos aos palestinos de bem, a imensa maioria, vítimas de bombardeios massivos que, como o embaixador Ibrahim Alzeben me disse, são vítimas de uma "política da terra arrasada". Todos os dias recebo imagens e vídeos de Gaza. Um menino de uns dois ou três anos treme compulsivamente; um homem abraça a filha, uma garota de uns seis anos, e ambos choram compulsivamente; um palestino em prantos embala os restos mortais da mãe, envoltos em um cobertor. O mundo precisa chorar por Gaza e deter essa atrocidade, que somente alimenta o ódio e o desejo de vingança. Os palestinos de Gaza estão condenados à desesperança.

Apenas a criação de um Estado palestino soberano e independente pode interromper décadas de hostilidades. É preciso que os assuntos mais espinhosos sejam colocados à mesa e abordados com urgência e coragem: a partilha de Jerusalém, o retorno dos refugiados, o fim dos assentamentos judaicos e da ocupação israelense, a autodeterminação dos palestinos. Chega de mortes, de luto, de crimes abomináveis. Os dois povos podem e devem conviver em paz. Concordo com Avi Issacharoff, jornalista israelense criador da premiada série Fauda. Uma solução baseada em dois Estados seria capaz de ferir de morte o Hamas. Levaria progresso e esperança a Gaza e aos demais palestinos.

Rodrigo Craveiro
Fonte: https://www.correiobraziliense.com.br/opiniao/2023/11/6651989-artigo-massacre-na-palestina.html

A persistência do mito

Depois de se consolidar nas publicações de obras de ficção do Oriente Médio, a editora Tabla dá mais um ousado passo adiante estreando na não ficção com o provocativo Dez mitos sobre Israel, de Ilan Pappe. Reconhecido como um dos “novos historiadores” israelenses, grupo de acadêmicos que realiza uma crítica contundente à criação do Estado de Israel e ao sionismo, Pappe dispensa apresentações óbvias e tietagens, ainda mais depois da publicação de A limpeza étnica da Palestina pela Sundermann em 2016. Ao associar o termo limpeza étnica, cunhada pelo sociólogo Michael Mann para descrever os acontecimentos da Guerra da Bósnia (1992-95), com a criação do Estado de Israel e a Nakba de 1948, Pappe sofreu duras perseguições e ameaças, o que o levou, em 2007, a trocar Israel pela Grã-Bretanha e a Universidade de Haifa pela Universidade de Exeter, onde leciona ciência política e dirige o Centro Europeu de Estudos sobre a Palestina.


Dez mitos sobre Israel foi publicado em 2017, nos cinquenta anos da Guerra de Junho de 1967 ou a “guerra sem escolha”, um desses dez mitos que Pappe se propõe a desconstruir. Em pouco mais de 250 páginas, a obra está composta de dois prefácios, um da edição de 2017 e outro para a edição brasileira, e divide-se em três partes: “As falácias do passado”, que trata de seis mitos (A Palestina era uma terra vazia, Os judeus eram um povo sem terra, Sionismo é judaísmo, Os palestinos deixaram sua pátria voluntariamente em 1948, A guerra de Junho de 1967 foi uma “guerra sem escolha”); “As falácias do presente”, que trata de três mitos (Israel é a única democracia do Oriente Médio; As mitologias de Oslo; As mitologias de Gaza); e “Olhando para o futuro” que trata do décimo mito (A solução de dois Estados é o único caminho a seguir), além de uma Conclusão (O Estado israelense de colonização de povoamento no século 21) e uma linha do tempo que tem a intenção de ajudar o leitor a identificar os acontecimentos narrados nos dez mitos.

Nessa obra, que é também uma denúncia, Pappe não se furta ao trabalho do historiador: apresenta suas fontes (cartas, documentos, atas de reuniões, relatórios, currículos escolares, artigos de jornais), confronta os dados, dialoga com a historiografia, debate as posições consolidadas, refuta as certezas e desconstrói os mitos sobre os quais o Estado de Israel foi edificado e tem se sustentado no passado e no presente e na sua projeção para o futuro.

Apoio interno e externo
O autor defende que a persistência do mito, sua solidez e a dificuldade de sua desconstrução residem no fato de estar consolidado não apenas em sua narrativa em Israel, para justificar e camuflar sua existência usurpadora, mas porque sempre teve e continua tendo respaldo e apoio interno e externo. De um lado o apoio de países como Grã-Bretanha e sua Declaração Balfour de 1917, e os Estados Unidos e seu protestantismo milenarista; de outro, a ajuda da mídia, da propaganda oficial, dos currículos escolares, dos textos didáticos, dos estudos bíblicos e da arqueologia bíblica que contribuíram para perpetuar uma definição do que era a Palestina mas não a quem ela pertencia, assim como para justificar a expropriação e a ocupação da terra e a desumanização do palestino, visto como usurpador e inimigo eterno.

Para Ilan Pappe há vários autores responsáveis pela criação dos mitos: claramente, Theodor Herzl e o movimento sionista, baseado na fundação de um Estado judeu na Palestina como uma resposta ao antissemitismo europeu; os primeiros colonos do Leste Europeu a ocuparem a “terra vazia”; os judeus comunistas e socialistas que igualaram sionismo ao comunismo; as nações colonialistas que atuaram em interesse próprio; os acadêmicos de grande projeção pública nas mídias e, sobretudo, a sociedade judaica de Israel que se calou, se omitiu e deu carta branca para que suas lideranças continuassem adotando uma política destrutiva sobre o povo palestino. Foi na construção desses mitos e na manutenção de sua narrativa que Israel tem legitimado suas ações e angariado apoio para consolidar sua presença na Palestina, e o direito ao retorno ao mesmo tempo em que nega aos palestinos esse mesmo direito. Assim, os palestinos são os estranhos, estrangeiros, usurpadores; os judeus são os povos originários, autênticos, nativos. A doença e a cura.

Ao analisar esses dez mitos, Pappe apresenta um novo vocabulário para definir a militância judaica na Palestina: Israel é um Estado de apartheid, uma etnocracia racista e judeificada que tem baseado suas ações no terror militar, nas atrocidades cotidianas, nas prisões, na guetificação, nos boicotes, nos bloqueios, na intolerância, no assédio, no abuso, na matança, na desumanização dos palestinos; a Nakba é limpeza étnica — e, não custa lembrar, um crime contra a humanidade —; sionismo é colonialismo e, portanto, ocupação é colonização. Para o autor, são mais de cem anos de violação de direitos humanos na Palestina sob a falsa bandeira da “única democracia do Oriente Médio” — democracia que, Pappe não cansa de reafirmar enfaticamente, se comporta como uma “ditadura da pior espécie” e “um dos regimes mais cruéis de nosso tempo”.

O autor não se contrapõe à ideia de que os povos têm direito de se inventarem — aliás, os mitos estão na origem de povos, nações e Estados ao longo da história da humanidade. Também não há limites numéricos para esses mitos, um ou dez, como os enumerados e dissecados por Pappe em relação a Israel. A questão é quando esses mitos, construídos para legitimar um povo ou um Estado, carregam consigo opressão, racismo, limpeza étnica e genocídio sobre outro povo e sobre um lado da história. Quando esses mitos legitimam narrativas criminosas e permitem que os crimes continuem a ser cometidos impunemente. Como afirma Edward Said em seu artigo “Permission to Narrate” (Permissão para narrar, 1984), que trata dos massacres de Sabra e Chatila e da responsabilidade de Israel na perpetração desse crime, deve-se levar em conta que quem tem a permissão de narrar tem legimitidade para narrar fatos, acontecimentos, mitos e memórias.

Pappe também denuncia a responsabilidade acadêmica dos intelectuais em transformar mitos em verdades, de colaborar com uma narrativa legitimadora de um lado da história ou, por que não dizer, falsificadora da história. Pappe intima o intelectual a se posicionar, o desafia a comprovar com pesquisas a narrativa que corrobora, a dizer o que deve ser dito, a não se omitir para não ser conivente. Ele está ciente de que é preciso coragem para “questionar os mitos fundadores de seu próprio Estado e sociedade”, pois como Said enfatiza em Representações do intelectual (2005), o intelectual deve ser comprometido com o que faz e com o que diz, deve ter ousadia e coragem para se expor, deve causar embaraço, deve ter compromisso e assumir riscos.

Ao ler Dez mitos sobre Israel podemos perceber que Pappe é um intelectual comprometido com seu papel na sociedade, ou melhor, na humanidade, pois não lhe falta coragem para apontar, questionar, destrinchar, desconstruir e denunciar os dez mitos sobre Israel. Em tempo de guerra de narrativas, história oficial, pós-verdades, mitos e contramitos, talvez um título opcional e muito apropriado para essa obra fosse: Dez fake news de Israel sobre a Palestina e os palestinos. É preciso ter coragem. A coragem da verdade, como nos lembra Michel Foucault.


Dois modelos de homem, dois modelos de Igreja


Acabei de assistir o filme do consagrado cineasta brasileiro Fernando Meirelles: Dois Papas.

Considero o filme técnica e esteticamente bem elaborado, feito nos próprios espaços grandiosos do Vaticano. Sua base é fundada em fatos históricos, evidentemente, com a criatividade que este tipo de arte permite, particularmente na construção dos diálogos. Mas neles se entrevê suas respectivas teologias e afirmações conhecidas.

O que digo é opinião estritamente pessoal. Tive o privilégio de conhecer a ambos os Papas pessoalmente e com os quais entretive e entretenho relações de certa proximidade e até amizade.

O Papa Ratzinger: finíssimo e rigoroso
Com o Prof. Joseph Ratzinger tenho uma dívida de gratidão por ter apreciado minha tese doutoral sobre “A Igreja como Sacramento Fundamental no Mundo secularizado”, volumosa, mais de 500 páginas impressas. Ajudou-me financeiramente com uma soma considerável de marcos e encontrou um editora para sua publicação, pois ninguém queria assumir o risco de lançar um livro desta proporção. A acolhida na comunidade teológica internacional foi grande, considerada uma obra fundamental, especialmente pelo renomado especialista em Igreja Jean Yves Congar, dominicano francês.O Prof. Ratzinger é uma pessoa finíssima no trato, extremamente inteligente e nunca o vi alçando a voz; mas é muito tímido e reservado.

Ao saber de sua eleição a Papa, logo pensei: “É um Papa que vai sofrer muito, pois talvez jamais tenha abraçado pessoas, mesmo uma mulher e se exposto às multidões”.

Nossa amizade se fortaleceu porque durante cinco anos, a partir de 1974, toda semana de Pentecostes (por volta de maio) cerca de 25 teólogos e teólogas progressistas, renomados do mundo inteiro, nos encontrávamos em Nimega na Holanda ou em outra cidade europeia. Durante uma semana discutíamos ecumenicamente, acompanhados por um pequeno grupo de cientistas, inclusive de Paulo Freire, sobre temas relevantes do mundo e da Igreja. Editávamos uma revista Concilium que se publicava em 7 línguas que ainda continua a ser publicada (no Brasil pela Editora Vozes). Ai colaboraram as melhores cabeças mundiais, nas várias áreas do conhecimento que vai da sexualidade, da Teologia da Libertação, à moderna cosmologia.

O Prof. Ratzinger sentava-se quase sempre ao meu lado. Depois do almoço enquanto quase todos tiravam uma sesta eu e ele passeávamos pelo jardim, discutindo temas de teologia, nossos preferidos, Santo Agostinho e São Boaventura dos quais li praticamente toda obra.

Cada um com seu papel sem perder a relação
Feito Cardeal e Presidente da Congregação para a Doutrina da Fé, teve a ingrata missão de me interrogar sobre o livro Igreja: carisma e poder em 1984. Ele cumpria institucionalmente sua função de interrogador e eu de defensor de minhas opiniões. Foi um diálogo firme, mas sempre elegante da parte dele, mesmo quando, após o interrogatório, tivemos um encontro já mais duro com ele e os Cardeais brasileiros Dom Paulo Evaristo Arns e Dom Aloysio Lorscheider que me acompanharam em Roma e testemunharam a meu favor. Éramos três contra um. Devo reconhecer que ele se sentia constrangido.

Depois de um ano, recebi a solução do processo doutrinário com a deposição da cátedra de teologia, de minhas funções na Editora Vozes e a imposição de um “silêncio obsequioso” que me impedia de falar, de ensinar, de dar entrevistas e de publicar qualquer coisa. A decisão final após o interrogatório foi feita por 13 cardeais (13 para desempatar). Soube mais tarde, através de um emissário de seu secretário particular que ele, Card. Ratzinger, votou a meu favor mas foi voto vencido. Cabe dizer que sempre que jornalistas perguntavam a ele sobre mim, respondia, com certo humor, que sou “ein frommer Theologe”(um teólogo piedoso) que um dia vai aprofundar seu verdadeiro caminho teológico.

O filme não retrata a figura fina e elegante que o caracteriza. Em certa cena, levanta a voz e quase grita, o que, me parece, totalmente inverosímel e contra seu caráter.

Apesar de estarmos agora em situações diferentes, ele Papa e eu um um teólogo promovido a leigo, nunca perdemos a amizade. Por seus 90 anos, ao ser organizada uma Festschrift (um livro de homenagem), na qual muitos notáveis escreveram, a pedido dele solicitaram-me que escrevesse meu testemunho a seu respeito, o que fiz, prazerosamente. A amizade é mais forte que qualquer doutrina sempre humana.

O Papa Francisco: terno, fraterno e inovador
Com referência ao Jorge Mario Bergoglio, agora Papa Francisco, diria o seguinte: Conhecemo-nos em 1972 no Colégio Máximo de San Miguel em Buenos Aires, cada um discorrendo sobre a singularidade do caminho espiritual de Santo Inácio de Loyola (ele) e o caminho espiritual de São Francisco (eu). Ai discutimos a vertente da teologia da libertação de tipo argentino (do povo silenciado e da cultura oprimida) e a nossa brasileira e peruana (sobre a injustiça social e a opressão histórica sobre os pobres e afrodescendentes). Deste encontro há uma foto que ele, desde Roma, teve a gentileza de me mandar, onde aparecemos, todo um grupo de teólogos e teólogas, a maioria não mais entre nós, alguns perseguidos e torturados pela repressão bárbara dos militares argentinos ou chilenos. Depois nos perdemos de vista.

O Papa Francisco: teólogo da libertação integral
Soube pelo seu professor de teologia, recentemente falecido, Juan Carlos Scannone, o representante maior da teologia da libertação argentina. que Bergoglio entrou para a Ordem Jesuítica como vocação adulta (era químico antes, como aparece no filme). Entusiasmou-se logo com a teologia da libertação e aí mesmo fez um voto que cumpriu sempre, mesmo como cardeal de Buenos Aires: toda semana passar uma tarde ou mesmo um dia numa favela (villa miseria), sempre sozinho, entrando nas casas e conversando com todo mundo.

Foi Superior Maior da Província dos Jesuitas da região de Buenos Aires. Era muito rigoroso. Aqui teve que enfrentar uma situação gravíssima que carregou no coração até os dias de hoje: dois jesuítas, o padre Jalish e o padre Yorio (que conheci pessoalmente em Quilmes) viviam numa favela, apoiando os pobres e marginalizados. Quem trabalhava com o povo, como no Brasil de 1964 (e talvez também hoje sob o novo governo) seriam considerados marxistas e subversivos. Eram vigiados pelos órgãos de segurança dos militares. Bergoglio soube que seriam sequestrados com as torturas que se seguiam. Tentou salvá-los até apelando ao voto de obediência, típico de sua Ordem, no sentido de abandonaram a favela para não serem vítimas da repressão.

Eles argumentaram de forma evangélica: “um pastor não abandona seu rebanho, seu povo; participa de seu destino; vale mais obedecer ao Deus dos pobres do que obedecer a um superior religioso”.

Efetivamente foram sequestrados e duramente torturados. Jalish se reconciliou com Bergoglio e vive na Alemanha, enquanto Yorio se sentiu abandonado e distanciou-se dele (morreu no Uruguai, anos atrás). Pude sentir sua amargura pessoal, ao mesmo tempo que procurava entender o impasse que uma autoridade religiosa, com responsabilidade, enfrenta em situações-limite. Mesmo assim, Bergoglio escondeu a muitos no Seminário Maior de San Miguel ou os levou até a fronteira de outro país para fugirem da morte certa.

O Papa Francisco: o cuidado da Casa Comum
Ao ser eleito Papa, voltamos a nos comunicar. Sabendo que havia me ocupado intensivamente com o tema da ecologia integral, envolvendo a Casa Comum, a Mãe Terra, solicitou-me subsídios, coisa que fiz com assiduidade. Mas logo me advertiu:”não mande os textos para o Vaticano, pois, não me serão entregues (o famoso sottosedere da Cúria: sentar em cima e esquecer) mas envie-os diretamente ao embaixador argentino junto à Santa Sé, especialmente aquele que todos os dias, bem cedo, toma o chimarrão (el mate), comigo”. Assim fiz sempre, mesmo com textos sobre o Sínodo Panamazônico de 2019. Respondeu várias vezes agradecendo.

Ao escolher o nome de Francisco sob inspiração de seu amigo brasileiro, o Card. Dom Cláudio Hummes que lhe sussurrou logo fazer uma opção clara pelos pobres, ele se transformou. O rigor jesuítico se uniu com a ternura franciscana. Com os problemas internos da Cúria, a pedofilia, a corrupção financeira dentro do Banco do Vaticano é extremamente rigoroso. Contrariamente, com o povo é visivelmente terno e fraterno.

Nenhum Papa anterior castigou tão duramente o sistema que perdeu a sensibilidade, a solidariedade com os milhões de pobres e famintos, a capacidade de chorar e que são adoradores do ídolo do dinheiro. Depredam a natureza e são anti-vida e anti-Mãe Terra. Não precisamos declarar a que sistema se refere. Sua opção pelos pobres é altissonante. Tornou-se por suas posturas corajosas face à emergência ecológica da Terra, ao aquecimento global e à desumanização das relações humanas, um líder religioso e político. Sua voz é ouvida e respeitada pelo mundo afora.

Dois modelos de homem e dois modelos de Igreja
O propósito do filme é mostrar dois modelos de personagens religiosas e dois modelos de Igreja.

Primeiramente mostra como ambos, Ratzinger e Bergoglio. são humanos, profundamente humanos. Nesse sentido: ambos possuem seu lado luminoso e também seu lado sombrio. O Papa Bento XVI sua leniência com os pedófilos. Não devemos esquecer que escreveu a todos os bispos, sob sigilo pontifício que jamais deve ser quebrado, de não entregar os padres e os bispos pedófilos aos tribunais civis. Isso desmoralizaria a instituição Igreja. Deviam, sim, confessar-se do pecado e ser transferidos para outro lugar. O Papa não se deu conta suficientemente de que não tinha a ver apenas com um pecado perdoável pela confissão. Tratava-se de um crime contra inocentes que a justiça comum deve investigar e punir. Não se pensou nas vítimas, apenas na salvaguarda da imagem da instituição-Igreja.

O Papa Bento XVI colocou-se na esteira do João Paulo II que era moral e doutrinariamente conservador. Procurou relativizar arggiornamento do Concílio Vaticano II (1962-1965). Via a Igreja como uma fortaleza sitiada por todos os lados por inimigos, vale dizer, pelos erros e desvios da modernidade. A solução que se propunha era a de voltar à grande disciplina anterior, vinda do Concílio de Trento (século XVI) e do Concílio Vaticano I (1870). A centralidade era a ortodoxia e a sã doutrina, como se fossem as prédicas que salvassem e não as práticas. Nesta linha o Card. Joseph Ratzinger foi rigoroso: mais de 110 teólogos ou teólogas foram condenados, depostos de suas cátedras, silenciados (no Brasil Yvone Gebara e eu pessoalmente) ou de alguma forma punidos. Um deles, excelente teólogo, foi condenado sem receber nenhuma explicação. Ficou tão deprimido que pensou em suicidar-se. Só se curou quando foi à América Central trabalhar com as comunidades eclesiais de base.Viveu-se um inverno eclesial severo.Toda uma geração de padres foi formada nesse estilo doutrinário e com os olhos voltados ao passado, usando os símbolos do poder clerical.  Igualmente, toda uma plêiade de bispos foram sagrados, mais autoridades eclesiásticas ortodoxas que pastores no meio de seu povo.

Outro modelo de personalidade religiosa é o Papa Francisco. Ele vem do fim do mundo, de fora da velha e quase agônica cristandade europeia. Ele trouxe uma primavera para a Igreja e para o mundo secularizado.

Primeiramente inovou os hábitos. Ao negar-se de vestir a “mozzeta” o pequeno manto branco, cheio de brocados que os papas carregam aos ombros, símbolo do absoluto poder dos imperadores romanos pagãos, diz o filme claramente : “acabou-se o carnaval”. Não aceita a cruz dourada, continua com sua cruz de ferro; rejeita o sapato vermelho (Prada) e continua com o seu velho sapato preto. Não se anuncia como Papa da Igreja, mas como bispo de Roma e somente a partir daí, Papa da Igreja universal. Animará a Igreja não com o direito canônico, mas com o amor e com a colegialidade (consultando a comunidade dos bispos). Em sua primeira fala pública diz “como gostaria uma Igreja pobre para os pobres”. Não mora no palácio papal, o que seria uma ofensa ao poverello de Assis, mas numa casa de hóspedes. Come na fila como os outros e comenta, com humor:”assim é mais difícil que me envenenem”.

Dispensa um carro especial e um corpo de proteção pessoal. Mistura-se no meio do povo, dá as mãos a quem as estende e beija as crianças. É pai e avô querido das multidões.

Seu modelo de Igreja é o de “um hospital de campanha” que atende a todos, sem perguntar de onde vem e qual é sua situação moral. É uma “Igreja em saída” para as periferias humanas e existenciais. Respeita os dogmas e doutrinas mas diz claramente que prefere colocar-se vivamente diante do Jesus histórico, opta pelo encontro direto com as pessoas e a pastoral da ternura. Insiste que Jesus veio para nos ensinar a viver o amor incondicional, a solidariedade e o perdão. Central para ele é a misericórdia infinita de Deus. Vai mais longe ao dizer :”Deus não conhece uma condenação eterna pois perderia para o mal. E Deus não pode perder. Sua misericórdia não conhece limites”. Por isso chama a todos, uma vez purificados de suas maldades, para a casa que o Pai e Mãe de bondade preparou para todos desde toda a eternidade. Morrer é sentir-se chamado por Deus e vai-se alegre para o Grande Encontro.

Eis outro tipo de pontificado, outro modelo de ser humano que reconhece que perdeu a paciência quando uma mulher o puxou e apertou longa e duramente sua mão. Irritado, bateu-lhe a mão por duas ou três vezes. Mas no dia seguinte pediu publicamente perdão.

Dois Papas: diferentes e complementares
O Papa Francisco abriu sua inteira humanidade, dando-se o direito à alegria de viver, de torcer pelo seu time de estimação o San Lorenzo, de apreciar a música dos beatles até conquistar o Papa Bento XVI a dançar um tango, impensável a um severo acadêmico alemão. Aqui aparece não o Papa mas o homem Bergoglio que desentranha humanidade recolhida do homem Ratzinger. Ambos são diferentes mas se integram na dança de um tango de pessoas anciãs.

O filme é uma bela metáfora da condição humana, de dois modos diferentes de realizar a humanidade, que não se opõem mas se compõem e se completam, uma com a ternura e a outra com o rigor. Vale ver o filme, pois nos faz pensar e nos oferece lições de mútua escuta, de verdades ditas sem rebuços e de uma amizade que vai crescendo na medida em que a relação se descontrai  de encontro a encontro. O perdão que um dá ao outro e o abraço final, longo e carinhoso, engrandece o humano e o espiritual presentes em cada  um de nós.

Leonardo Boff é teólogo,filósofo e membro da Comissão Internacional da Carta da Terra
Fonte

Os Testamentos

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"O Hológrafo de Árdua Hall

Apenas os mortos têm permissão para ter estátuas, mas eu ganhei uma ainda em vida. Eu já estou petrificada.

Aquela estátua era um pequeno sinal de agradecimento por minhas várias contribuições, dizia o discurso, que foi lido pela Tia Vidala. Ela fora incumbida dessa tarefa pelos nossos superiores e estava longe de transmitir entusiasmo. Agradeci-lhe com o máximo de modéstia que pude e puxei a corda que desatava o manto que me encobria; ele flutuou morosamente ao chão, e lá estava eu. Aqui em Ardua Hall não se ovaciona ninguém, mas ouviu-se uma discreta salva de palmas. Inclinei minha cabeça em agradecimento.

A minha estátua é algo descomunal, como tende a ser toda estátua, e me retrata mais jovem, mais magra e em melhor forma do que tenho estado há tempos. Estou ereta, ombros para trás, meus lábios curvos num sorriso firme, mas benevolente. Meus olhos se fixam em algum ponto de referência cósmico que se presume representar meu idealismo, meu compromisso inabalável com o dever, minha determinação em seguir em frente a despeito de qualquer obstáculo. Não que qualquer parte do céu esteja à vista da minha estátua, plantada onde está, naquele melancólico aglomerado de árvores e arbustos ao lado da trilha de pedestres que passa em frente do Ardua Hall. Nós, as Tias, não podemos ter grandes pretensões, mesmo em forma de pedra.

Agarrada à minha mão esquerda há uma menina de sete ou oito anos, mirando-me cheia de confiança. Minha mão direita está apoiada na cabeça de uma mulher agachada a meu lado, de cabelos cobertos, seus olhos voltados para cima em uma expressão que poderia ser lida tanto como amedrontada quanto como grata – uma de nossas Aias –, e atrás de mim há uma de minhas Pérolas, pronta para partir em seu trabalho missionário. Pendendo do cinto que contorna minha cintura está minha arma de choque. Esta arma me lembra de minhas limitações: se eu tivesse sido mais eficiente, não teria necessitado desse acessório. A persuasão da minha voz teria sido suficiente.

Como grupo estatuário, não somos um grande sucesso: há elementos demais. Eu preferiria uma maior ênfase na minha pessoa. Mas pelo menos eu pareço estar em meu perfeito juízo. Poderia ter sido bem outro o caso, dado que a escultora idosa – uma crente fervorosa que veio a falecer – tendia a esbugalhar os olhos das modelos para sinalizar devoção. O busto que ela fez da Tia Helena tem ares de hidrofobia, o de Tia Vidala está com hipertireoidismo, e o de Tia Elizabeth parece prestes a explodir.

Na inauguração, a escultora estava nervosa. Será que havia me adulado o suficiente com sua escultura? Eu a aprovava? As pessoas iam entender que aprovei? Cogitei franzir a testa assim que o manto caísse, mas achei melhor não: não sou totalmente destituída de compaixão.

– Ficou muito realista – falei.

Isso foi há nove anos. Desde esse dia minha estátua vem se deteriorando: pombos me adornaram, musgo brotou nas minhas dobras mais úmidas. Devotos adquiriram o hábito de deixar oferendas a meus pés: ovos pela fertilidade, laranjas para sugerir a corpulência da gravidez, croissants em referência à lua. Ignoro os artigos de padaria – geralmente eles pegaram chuva –, mas embolso as laranjas. Laranjas são muito refrescantes.

Escrevo essas palavras no meu gabinete particular dentro da biblioteca do Ardua Hall – uma das poucas bibliotecas restantes após as animadas fogueiras de livros que têm ocorrido em nossa terra. As digitais pútridas e ensanguentadas do passado precisam ser expurgadas para deixar uma tábula rasa para a geração moralmente pura que com certeza vai nos suceder. Em teoria, pelo menos, é isso.

Mas entre estas digitais sangrentas estão as que nós mesmos deixamos, e estas não são tão fáceis de apagar. Com o passar dos anos enterrei muitos ossos; agora minha vontade é de exumá-los – nem que seja só para te edificar, meu leitor desconhecido. Se você estiver lendo isso, pelo menos este manuscrito terá sobrevivido. Embora talvez eu esteja fantasiando: talvez eu nunca venha a ter um leitor. Talvez eu só esteja falando com as paredes, ou muros, em todos os sentidos.

Chega de escrevinhar por hoje. Minha mão está doendo, minhas costas ardendo, e meu copo noturno de leite morno me aguarda. Vou guardar essa arenga no seu devido esconderijo, evitando as câmeras de vigilância – que sei bem onde estão, já que eu mesma as instalei. Apesar dessas precauções, estou ciente do risco que corro: escrever pode ser perigoso. Que traições, e então que acusações, podem estar à minha espera? Há muita gente em Ardua Hall que adoraria se apoderar dessas páginas.

Aguardem, aconselho-os silenciosamente: pois vai ficar pior."
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'Os Testamentos', continuação de 'O Conto da Aia', escrita por Margaret Atwood

The Handmaid's Tale - Cena do Protesto (Repost)

Alívio após uma doença


Jair acordou a meio da noite. Mandara colocar uma cama dentro do closet e era ali que dormia. Durante o dia tirava a cama, instalava uma secretária e recebia os filhos, os ministros e os assessores militares mais próximos.

Alguns estranhavam. Entravam tensos e desconfiados no armário, esforçando-se para que os seus gestos não traíssem nenhum nervosismo. Interrogado a respeito pela Folha de São Paulo, o deputado Major Olímpio, que chegou a ser muito próximo de Jair, tentou brincar: “Não estou sabendo, mas não vou entrar em armário nenhum. Isso não é hétero.” Michelle, que também se recusava a entrar no armário, fosse de dia ou de noite, optou por dormir num outro quarto do Palácio da Alvorada.

Aliás, o edifício já não se chamava mais Palácio da Alvorada. Jair oficializara a mudança de nome: “Alvorada é coisa de comunista!” — Esbravejara: “Certamente foi ideia desse Niemeyer, um esquerdopata sem vergonha.”

O edifício passara então a chamar-se Palácio do Crepúsculo. O Presidente tinha certa dificuldade em pronunciar a palavra, umas vezes saía-lhe grupúsculo, outras prepúcio, mas achava-a sólida, máscula, marcial. Ninguém se opôs.

Naquela noite, pois, Jair Messias Bolsonaro despertou dentro de um closet, no Palácio do Crepúsculo, com uma gargalhada escura rompendo das sombras. Sentou-se na cama e com as mãos trêmulas procurou a glock 19, que sempre deixava sob o travesseiro.

— Largue a pistola, não vale a pena!

A voz era rouca, trocista, com um leve sotaque baiano. Jair segurou a glock com ambas as mãos, apontando-a para o intenso abismo à sua frente:

— Quem está aí?

Viu então surgir um imenso veado albino, com uma armação incandescente e uns largos olhos vermelhos, que se fixaram nos dele como uma condenação. Jair fechou os olhos. Malditos pesadelos.

Vinha tendo pesadelos há meses, embora fosse a primeira vez que lhe aparecia um veado com os cornos em brasa. Voltou a abrir os olhos. O veado desaparecera. Agora estava um índio velho à sua frente, com os mesmos olhos vermelhos e acusadores:

— Porra! Quem é você?

— Tenho muitos nomes. — Disse o velho. — Mas pode me chamar Anhangá.

— Você não é real!

— Não?

— Não! É a porra de um sonho! Um sonho mau!

O índio sorriu. Era um sorriso bonito, porém nada tranquilizador. Havia tristeza nele. Mas também ira. Uma luz escura escapava-lhe pelas comissuras dos lábios:

— Em todo o caso, sou seu sonho mau. Vim para levar você.

— Levar para onde, ô paraíba? Não saio daqui, não vou para lugar nenhum.

— Vou levar você para a floresta.

— Já entendi. Michelle me explicou esse negócio dos pesadelos. Você é meu inconsciente querendo me sacanear. Quer saber mesmo o que acho da Amazônia?! Quero que aquela merda arda toda! Aquilo é só árvore inútil, não tem serventia. Mas no subsolo há muito nióbio. Você sabe o que é nióbio? Não sabe porque você é índio, e índio é burro, é preguiçoso. O pessoal faz cordãozinho de nióbio. As vantagens em relação ao ouro são as cores, e não tem reação alérgica. Nióbio é muito mais valioso que o ouro.

O índio sacudiu a cabeça, e agora já não era um índio, não era um veado — era uma onça enfurecida, lançando-se contra o presidente:

— Acabou!

Anhangá colocou um laço no pescoço de Jair, e no instante seguinte estavam ambos sobre uma pedra larga, cercados pelo alto clamor da floresta em chamas. Jair ergueu-se, aterrorizado, os piscos olhos incrédulos, enquanto o incêndio avançava sobre a pedra:

— Você não pode me deixar aqui. Sou o presidente do Brasil!

— Era. — Rugiu Anhangá, e foi-se embora.

Na manhã seguinte, o ajudante de ordens entrou no closet e não encontrou o presidente. Não havia sinais dele. “Cheira a onça”, assegurou um capitão, que nascera e crescera numa fazenda do Pantanal. Ninguém o levou a sério.

Ao saber do misterioso desaparecimento do marido, Michelle soltou um fundo suspiro de alívio.

Os generais soltaram um fundo suspiro de alívio. Os políticos (quase todos) soltaram um fundo suspiro de alívio.

Os artistas e escritores soltaram um fundo suspiro de alívio. Os gramáticos e outros zeladores do idioma, na solidão dos respetivos escritórios, soltaram um fundo suspiro de alívio.

Os cientistas soltaram um fundo suspiro de alívio. Os grandes fazendeiros soltaram um fundo suspiro de alívio.

Os pobres, nos morros do Rio de Janeiro, nas ruas cruéis de São Paulo, nas palafitas do Recife, soltaram um fundo suspiro de alívio.

As mães de santo, nos terreiros, soltaram um fundo suspiro de alívio.

Os gays, em toda a parte, soltaram um fundo suspiro de alívio.

Os índios, nas florestas, soltaram um fundo suspiro de alívio.

As aves, nas matas, e os peixes, nos rios e no mar, soltaram um fundo suspiro de alívio.

O Brasil, enfim, soltou um fundo suspiro de alívio — e a vida recomeçou, como se nunca, à superfície do planeta Terra, tivesse existido uma doença chamada Jair Messias Bolsonaro.

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Publicado originalmente na revista “Visão” de Portugal. Reproduzido no blog do Juca Kfouri.
Por José Eduardo Agualusa

Fonte: https://www.brasil247.com/cultura/escritor-angolano-descreve-o-triste-fim-de-jair-messias-bolsonaro?fbclid=IwAR3SKBlHl6s4WL5xjFvLRxpGvrN7u8GoLC_ZKDmUX3E3JchB5kZX5gMX1js