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Para aqueles que não lerão este artigo

Em nossa cultura intelectual e jornalística surge uma nova forma retórica. Trata-se da arte de escrever para idiotas que, entre nós, tem feito muito sucesso. Pensávamos ter atingido o fundo do poço em termos de produção de idiotices para idiotas, mas proliferam subformas, subgêneros e subautores que sugerem a criação de um nova ciência. 

Por Marcia Tiburi e Rubens Casara, da Revista Cult

Estamos fazendo piada, mas quando se trata de pensar na forma assumida atualmente pela “voz da razão” temos que parar de rir e começar a pensar.

Artigos ruins e reacionários fazem parte de jornais e revistas desde sempre, mas a arte de escrever para idiotas vem se especializando ao longo do tempo e seus artistas passam da posição de retóricos de baixa categoria para príncipes dos meios de comunicação de massa. Atualmente, idiotas de direita tem mais espaço do que idiotas de esquerda na grande mídia. Mas isso não afeta em nada a forma com que se pode escrever para idiotas.

Diga-se, antes de mais nada, que o termo idiota aqui empregado guarda algo de seu velho uso psiquiátrico. Etimologicamente, “idiota” tem relação com aquele que vive fechado em si mesmo. Na psiquiatria, a idiotia era uma patologia gravíssima e que, em termos sociais, podemos dizer que continua sendo.

Uma tipologia psicossocial entra em jogo na história, baseada em dois tipos ideais de idiotas: oidiota de raiz, dentre os quais se destaca a subcategoria do idiota representante do conhecimento paranoico, e o neo-idiota, com destaque para o “idiota” mercenário que lucra com a arte de escrever para idiotas.

Vejamos quem são:
1- O Idiota de raiz é fruto de um determinismo: ele não pode deixar de ser idiota. Seja em razão da tradição em que está inserido ou de um déficit cognitivo, trata-se de um idiota autêntico.

O Idiota de raiz divide-se em três subtipos:
1. 1 – Ignorante orgulhoso: não se abre à experiência do conhecimento. Repete clichês introduzidos no cotidiano pelos meios de informação que ele conhece, a televisão e os jornais de grande circulação, em que a informação é controlada. Sua formação é “midiatizada”, mas ele não sabe disso e se orgulha do que lhe permitem conhecer. No limite, o ignorante orgulhoso diz “sou fascista”, sem conhecer a experiência do fascismo clássico da década de 30 e o significado atual da palavra, assim como é capaz de defender sem razoabilidade alguma ideias sobre as quais ele nada sabe. Um exemplo muito atual: apesar da violência não ter diminuído nos países que reduziram a maioridade penal, a ignorância da qual se orgulha o idiota, o faz defender essa medida como solução para os mais variados problemas sociais. Ele se aproxima do “burro mesmo” enquanto imita o representante do conhecimento paranoico, apresentados a seguir.

1.2 – “Burro mesmo”: não há muito o que dizer. Mesmo com informação por todos os lados, ele não consegue juntar os pontinhos. Por exemplo: o “burro mesmo” faz uma manifestação “democrática” para defender a volta da ditadura. Para bom entendedor, meia palavra…

1.3 – Representante do conhecimento paranoico: tendo estudado ou sendo autodidata, o representante do conhecimento paranoico pode ser, sob certo aspecto, genial. Freud comparava, em sua forma, a paranoia a uma espécie de sistema filosófico. O paranoico tem certezas, a falta de dúvida é o que o torna idiota. Se duvidasse, ele poderia ser um filósofo. O conhecimento paranoico cria monstros que ele mesmo acredita combater a partir de suas certezas. O comunismo, o feminismo, a política de cotas ou qualquer política que possa produzir um deslocamento de sentido e colocar em dúvida suas certezas, ocupa o lugar de monstro para alguns paranoicos midiaticamente importantes.

Curioso é que o representante do conhecimento paranoico pode parecer alguém inteligente, mas seu afeto paranoico o impede de experimentar outras formas de ver o mundo, abortando a potência de inteligência, que nele é, a todo momento, mortificada. Isso o aproxima do “ignorante orgulhoso” e do “burro mesmo”.

Em termos vulgares e compreensíveis por todos: ele é a brochada da inteligência.
2 – O neo-idiota: o neo-idiota poderia não ser um idiota, mas sua escolha, sua adesão à tendência dominante, o coloca nesse lugar. Não se pode esquecer que, além de cognitiva, a inteligência é uma categoria moral. O neo-idiota não é apenas um idiota, mas também um canalha em potencial.

Há dois subtipos de neo-idiota:

2.1 – O “idiota” mercenário quer ganhar dinheiro. Ele serve aos interesses dominantes, mas é um idiota como outro qualquer, porque não ganha tanto dinheiro assim quando vende a alma.

Nessa categoria, prevalece o mercenário sobre o idiota. Por isso, podemos falar de um idiota entre aspas. Ganha dinheiro falando idiotices para os idiotas que o lerão. Seu leitor padrão divide-se entre o “burro mesmo” e o “idiota cool”. Ele escreve aquilo que faz o “burro mesmo” pensar que é inteligente. O idiota cool, por sua vez, se sente legitimado pelo que lê. O que revela a responsabilidade do idiota mercenário no crescimento do pensamento autoritário na sociedade brasileira. Apresentar Homer Simpson ou qualquer outro exemplo de “burro mesmo” como modelo ideal de telespectador ou leitor é paradigmático nesse contexto.

2.2 – O “idiota cool” lê o que escreve o idiota mercenário. Repete suas ideias na esperança de ser aceito socialmente. De ter um destaque como sujeito de ideias (prontas). Ele gosta de exibir sua leitura do jornal ou do blog e usa as ideias do articulista (do representante do conhecimento paranoico ou do idiota mercenário) para tornar-se cool. Ele segue a tendência dominante. Ao contrário do “burro mesmo”, nele sobressai o esforço para estar na moda. Como, diferentemente dos seus ídolos, ele não escreve em jornais ou blogs famosos, ele transforma o Facebook e outras redes sociais no seu palco.

Diante disso, temos os textos produzidos a partir da altamente falaciosa arte de escrever para idiotas. O sucesso que alcançam tais textos se deve a um conjunto de regras básicas. Identificamos dez, mas a capacidade para escrever idiotices tem se revelado engenhosa e não deve ser menosprezada:

1- Tratar como idiota todo mundo que não concorda com as idiotices defendidas. O texto é construído a partir do narcisismo infantil do articulista. O autor sobressai no texto, em detrimento do argumento. Assim ele reafirma sua própria imagem desqualificando a diferença e a inteligência para vender-se como inteligente.

2- Não deixar jamais que seu leitor se sinta um idiota. Sustentar idiotices com as quais o leitor (o burro mesmo, o ignorante orgulhoso e o idiota cool) se identifique, o que faz com que o mesmo se sinta inteligente.

3- Abordar de forma sensacionalista qualquer tema. Qualquer assunto, seja socialmente relevante ou não, acaba sendo tratado de maneira espetacularizada.

4- Transformar temas desimportantes em instrumentos de ataque e desqualificação da diferença. Por exemplo, a “depilação feminina” já foi um assunto apresentado de modo enervante, excitante, demonizante e estigmatizante. Nesse caso, o preconceito de gênero escondeu a falta de assunto do articulista.

5- Distorcer fatos históricos adequando-os às hipóteses do escritor. Em uma espécie de perversão inquisitorial, o acontecimento acaba substituído pela versão distorcida que atende à intenção do autor do texto para idiotas.

6- Atacar alguém. Este é um dos aspectos mais importantes da arte de escrever para idiotas. A limitação argumentativa esconde-se em ataques pessoais. Cria-se um inimigo a ser combatido. O inimigo é o mais variado, mas sempre alguém que representa, na fantasia do escritor, o ideal contrário ao dos seus leitores (os idiotas: o burro mesmo, o ignorante orgulhoso e o idiota cool).

7- Reduzir tudo a uma visão maniqueísta. Toda complexidade desaparece nos textos escritos para idiotas. O mundo é apresentado como uma luta entre o bem e o mal, o certo e o errado, o comunismo e o capitalismo ou Deus e o Diabo.

8- Desconsiderar distinções conceituais. Nos textos escritos para idiotas, conservadores são apresentados como liberais, comunistas são confundidos com anarquistas, etc.

9- Investir em clichês e ideias fixas. Clichês são pensamentos prontos e de fácil acesso. Sem o esforço de reflexão crítica, os clichês dão a sensação imediata de inteligência. Da mesma maneira, o recurso às ideias fixas é uma estratégia para garantir a atenção do leitor idiota (o burro mesmo, o ignorante orgulhoso e o idiota cool) e reforçar as “certezas” em torno das hipóteses do escritor (nesse particular, Goebbels, o chefe da propaganda de Hitler, foi bem entendido).

10-Escrever mal. A pobreza vernacular e as limitações gramaticais são essências na arte de escrever para idiotas. O leitor idiota não pode ser surpreendido, pois pode se sentir ofendido com algo mais inteligente do que ele. Ele deve ser capaz de entender o texto ao ler algo que ele mesmo pensa ou que pode compreender. Deve ser adulado pela idiotice que já conhece ou que o escritor quer que ele conheça.

(Para além do que foi identificado acima, fica a questão para quem deseja escrever para idiotas: como atingir a pobreza essencial na forma e no conteúdo que concerne a essa arte?)

A arte de escrever para idiotas constitui parte importante da retórica atual do poder. Saber é poder, falar/escrever é poder, e o idiota que fala e é ouvido, que escreve e é lido, tem poder. O empobrecimento do debate público se deve a essas “cabeças de papelão”, fato que é identificado tanto por pensadores conservadores quanto por progressistas.

O grande desafio, portanto, maior do que o confronto reducionista entre direita e esquerda, desenvolvimentistas e ecologistas, governistas e oposicionistas, entre machistas e feministas, parece ser o que envolve os que pensam e os que não pensam. Sem pensamento não há diálogo possível, nem emancipação em nível algum.

Se não houver limites para a idiotice, ao contrário da esperança que levou a escrever esse texto, resta isolar-se e estocar alimentos.

The Handmaid's Tale - Cena do Protesto (Repost)

All Boundaries are Conventions


"I understand now that boundaries between noise and sound are conventions. All boundaries are conventions, waiting to be transcended. One may transcend any convention if only one can first conceive of doing so.” 

David Mitchell, Cloud Atlas

“Deus está morto!” – O que Nietzsche queria dizer com isso?


Deus está morto!” Em alemão, Gott ist tot! . Esta é a frase que mais do que qualquer outra está associada com Nietzsche. No entanto, há uma ironia aqui, já que Nietzsche não foi o primeiro a chegar a esta expressão. O escritor alemão Heinrich Heine (que Nietzsche admirava) disse antes, Hegel também. Mas foi Nietzsche quem fez disso a sua missão como um filósofo para responder à mudança cultural dramática que a expressão “Deus está morto” descreve.

A frase aparece pela primeira vez no início do Livro Três de A Gaia Ciência (1882). Um pouco mais tarde, é a ideia central no famoso aforismo (125) intitulado O louco, que começa assim:

“Nunca ouviram falar do louco que acendia uma lanterna em pleno dia e corria pela praça, gritando: “Eu procuro Deus! Eu procuro Deus!”. Mas aqueles que não acreditam em Deus, ficavam rindo, e diziam: “Estará perdido, tal uma criança?”, “Estará escondido? Estará com medo de nós?”, “Terá viajado?”. O louco então gritou: – Para onde foi Deus? o que vos direi! Nós o matamos! Vós e eu! Somos nós, nós todos, os assassinos! Mas como fizemos isso? Como esvaziamos o mar? Como apagamos o horizonte? Como tiramos a terra de sua órbita? Para onde vamos agora? Não estamos sempre caindo? Para frente, para trás, para os lados? Mas haverá ainda um acima, um abaixo? Não estaremos vagando através de um infinito Nada? Não sentiremos na face o sopro do vazio? O imenso frio? Não virá sempre noite após noite? Não acenderemos lâmpadas em pleno dia? Não podem ouvir o barulho dos coveiros – enterrando Deus? Ainda não sentiram o fedor da decomposição divina? Os deuses também apodrecem! E Deus morreu! Deus está morto! E nós o matamos!”

O louco continua a dizer:
Nunca houve ato maior – e quem vier depois de nós pertencerá, por causa desse ato, a uma história mais elevada que toda a história até então!” Nesse momento silenciou o homem louco, e novamente olhou para seus ouvintes: também eles ficaram em silêncio, olhando espantados para ele. “Eu venho cedo demais”, disse então, “não é ainda meu tempo. Esse acontecimento enorme está a caminho, ainda anda: não chegou ainda aos ouvidos dos homens. O corisco e o trovão precisam de tempo, a luz das estrelas precisa de tempo, os atos, mesmo depois de feitos, precisam de tempo para serem vistos e ouvidos. Esse ato ainda lhes é mais distante que a mais longínqua constelação – e no entanto eles cometeram!
O que tudo isso significa?
O primeiro ponto bastante óbvio a fazer é que a afirmação “Deus está morto” é paradoxal. Deus, por definição, é eterno e todo-poderoso. Ele não é o tipo de coisa que pode morrer. Então, o que significa dizer que Deus está “morto”? A ideia opera em vários níveis.

Como a religião perdeu o seu lugar na nossa cultura
O significado mais óbvio e importante é simplesmente este: Na civilização ocidental, a religião em geral, e o cristianismo em particular, estão em um declínio irreversível. Ele está perdendo, ou já perdeu o lugar central que tem mantido nos últimos dois mil anos. Isto é verdade em todas as esferas: na política, filosofia, ciência, literatura, arte, música, educação, vida social cotidiana, e as vidas espirituais interiores dos indivíduos.

Alguém poderia objetar: mas com certeza, ainda existem milhões de pessoas em todo o mundo, incluindo o Ocidente, que ainda são profundamente religiosas. Este é sem dúvida verdade, mas Nietzsche não vai negá-la. Ele está apontando para uma tendência em curso que, como ele indica, a maioria das pessoas ainda não compreende totalmente. Mas a tendência é inegável.

No passado, a religião era central em nossa cultura. A música de Bach era religiosa na inspiração. As maiores obras de arte do Renascimento, como A Última Ceia de Leonardo da Vinci,  normalmente tomavam temas religiosos. Cientistas como Copérnico, Descartes e Newton, eram homens profundamente religiosos. A ideia de Deus desempenhou um papel fundamental no pensamento de filósofos como Tomás de Aquino, Descartes, Berkeley e Leibniz. Sistemas de ensino inteiros foram regidos pela igreja. A grande maioria das pessoas foram batizadas, casadas e enterradas pela igreja, e frequentavam a igreja regularmente ao longo das suas vidas.

Nada disso é verdade mais. A freqüência à igreja, na maioria dos países ocidentais mergulhou em figuras individuais. Muitos preferem agora cerimônias seculares no nascimento, casamento e morte. E entre os intelectuais-cientistas, filósofos, escritores, e artistas-religiosos a crença não desempenha praticamente nenhum papel em seu trabalho.

O que causou a morte de Deus?
Portanto, este é o primeiro e mais básico sentido em que Nietzsche pensa que Deus está morto. Nossa cultura está se tornando cada vez mais secularizada. A razão não é difícil de entender. A revolução científica que começou no século 16 logo ofereceu uma maneira de compreender os fenômenos naturais que se mostrou claramente superior à tentativa de compreender a natureza por referência aos princípios religiosos ou escrituras. Esta tendência ganhou força com o Iluminismo no século 18, que consolidou a ideia de que a razão e evidência ao invés de escritura ou da tradição devem ser a base para nossas crenças. Combinado com a industrialização no século 19, o crescente poder tecnológico desencadeado pela ciência também deu às pessoas uma sensação de maior controle sobre a natureza. Sentir-se menos à mercê de forças incompreensíveis também desempenhou o seu papel na derrocada da fé religiosa.

Como Nietzsche deixa claro em outras seções de A gaia ciência , sua afirmação de que Deus está morto não é apenas uma afirmação sobre a crença religiosa. Em sua opinião, grande parte da nossa maneira padrão de pensamento carrega elementos religiosos que não estão conscientes. Por exemplo, é muito fácil falar sobre a natureza como se ele contivesse propósitos. Ou se falamos sobre o universo como uma grande máquina, esta metáfora carrega a implicação sutil que a máquina foi projetada. Talvez o mais fundamental de todos é a nossa hipótese de que não existe tal coisa como verdade objetiva. O que queremos dizer com isso é algo parecido com o modo como o mundo poderia ser descrito do “ponto de vista do olho de Deus ” – ponto de vista que não é apenas um entre muitas perspectivas, mas é a única verdadeira perspectiva. Para Nietzsche, porém, todo o conhecimento tem que ser de uma perspectiva limitada.

Implicações da morte de Deus

Por milhares de anos, a ideia de Deus (ou deuses) ancorou o nosso pensamento sobre o mundo. Foi especialmente importante como base para a moralidade. Os princípios morais que se seguem (Não mate. Não roube. Ajude aqueles em necessidade. Etc.) tinham a autoridade da religião por trás deles. E a religião forneceu um motivo para obedecer a essas regras, uma vez que nos disse que a virtude seria recompensada os vícios punidos. O que acontece quando este tapete é puxado para fora?

Nietzsche parece pensar que a primeira resposta será confusão e pânico. O aforismo O louco citado acima é cheio de perguntas terríveis. Uma descida no caos é vista como uma possibilidade. Mas Nietzsche vê a morte de Deus como um grande perigo e uma grande oportunidade. Ela nos oferece a oportunidade de construir uma nova “tabela de valores”, aquela que vai expressar um recém-descoberto amor deste mundo e por esta vida.

Uma das principais objeções de Nietzsche ao cristianismo é que no pensamento dessa vida como uma mera preparação para a vida após a morte, ele desvaloriza a própria vida. Assim, após a grande ansiedade expressa no Livro III, Livro IV de A gaia ciência é uma expressão gloriosa de uma perspectiva de afirmação da vida.

Por Emrys Westacott
Fonte: About Philosophy

A Alegoria da Caverna





Humano, Demasiado Humano III

Documentário III: Humano, Demasiado Humano – Jean-Paul Sartre: O Caminho Para a Liberdade. Neste episódio é abordada a vida e a obra do mais famoso filósofo existencialista europeu, Jean-Paul Sartre (1905-1980). O homem que passou a vida a desafiar a lógica convencional amava os paradoxos. O documentário expõe estes paradoxos da sua vida e da sua obra, ao mesmo tempo em que ambos são questionados. A pergunta central que é colocada é: Se o ser humano é livre para fazer o que quiser, como justifica Sartre, então como devemos viver as nossas vidas no dia-a-dia?



Humano, Demasiado Humano II


Documentário II: Humano, Demasiado Humano – Martin Heidegger: Projeto Para Viver. O projeto do tratado Ser e Tempo, foi publicado em 1927 no mesmo ano que Minha Luta (Adolf Hitler). Este programa examina a vida e a filosofia de Martin Heidegger, descreve a sua ascensão a proeminência intelectual, expondo os motivos do seu envolvimento no partido Nazi. Entrevistas com o seu filho, Hermann Heidegger, George Steiner autor de uma influente critica da sua filosofia, contado também com o seu biógrafo Hugo Ott; e ex-aluno de Hans-Georg Gadamer, fornecem novas ideias enquanto se faz uma reconstrução dos momentos chaves da vida de Heidegger. Vida e história de um homem cujos apologistas e os antagonistas ainda amargamente se dividem.

Humano, demasiado humano I

A série da BBC  ‘Humano, Demasiado Humano’ (Human All Too Human) inclui três programas fantásticos sobre Friedrich Nietzsche, Jean Paul Sartre e Martin Heidegger, um trio de pensadores controverso que continuam influenciando até os dias de hoje, na filosofia e na psicologia. A série aborda os personagens e suas teorias. Vale assistir cada minuto, são três programa envolventes e emocionantes sobre a filosofia e os filósofos.

Friedrich Wilhelm Nietzsche (1844 -1900) foi um filósofo alemão do século XIX e um dos maiores nomes dessa área. Martin Heidegger (1889 – 1976) foi um filósofo alemão do século XX que influenciou muitos outros, dentre os quais Jean-Paul Sartre. Jean-Paul Sartre (1905 -1980) foi um filósofo francês, conhecido como representante do existencialismo.

Os documentários são conduzidos por Alain de Botton, escritor e produtor famoso por popularizar a filosofia e divulgar seu uso na vida cotidiana. Botton iniciou um Ph.D em filosofia francesa em Harvard, mas acabou preferindo escrever ficção. Para além de escrever possui a sua própria produtora, a Seneca Productions, que transmite regularmente programas e documentários de televisão, baseados nos seus trabalhos.

Documentário I: Humano, Demasiado Humano – Friedrich Nietzsche: Além do Bem e do MalA semente do pensamento disseminado por Nietzsche no século 19 prefigurava o piloto do século 20 sobre os conceitos do existencialismo e da psicanálise. Este programa conta com entrevistas de grandes estudiosos do pensamento do Nietzsche sendo eles: Ronald Hayman e Leslie Chamberlain (biógrafos de Nietzsche), Andrea Bollinger (arquivista), Reg Hollingdale (tradutor), Will Self (escritor) e Keith Ansell Pearson (filosofa) que sonda a vida e os escritos de Nietzsche. Além de mostrar também o papel da irmã de Nietzsche na edição das suas obras para o uso como propaganda nazi. Conta também com partes de prosas aforísticas extraídas de obras como a parábola de um louco e assim falou Zaratustra.

Átomos e partículas. Estória do acelerador


Neste segundo remix da obra de Carroll (2012) (C) sobre a partícula do fim do universo (bóson de Higgs), vamos estudar dois capítulos: átomos e partículas; estória do acelerador.

I. ÁTOMOS E PARTÍCULAS
Busca-se particionar a matéria até “seus últimos constituintes, quarks e léptons” (C:39). É a ideia fixa da física: achar o fim do fim, sem nunca encontrar, talvez porque a realidade mais se assemelha a um círculo ingente, do que a uma linha reta que começa e acaba. Conta Carroll que no início dos 1800, o médico alemão Hahnemann fundou a prática da homeopatia. Desiludido pela medicina da época, desenvolveu nova abordagem com base no princípio de “igual cura igual” – doença pode ser tratada precisamente pela mesma substância que a causa, desde que seja manipulada adequadamente. A manipulação é chamada de “potencialização”, consistindo em diluir a substância repetidamente em água, agitando vigorosamente cada vez. Método típico de diluição é misturar uma parte da substância de 99 partes de água – prepara-se remédio homeopático diluindo, agitando e diluindo de novo, agitando de novo, até 200 vezes. Mais recentemente, Jago, consultor profissional de software e cético recreativo, quis demonstrar que não cria em homeopatia como abordagem válida. Decidiu aplicar o método de diluição serial a uma sustância obtida facilmente: sua própria urina. E que depois bebeu – por ser um pouco impaciente, diluiu apenas 30 vezes – não chamou de “urina”, mas de “mijo” (piss), dizendo que desenvolvia a cura por ser mijado (piss nos Estados Unidos significa também ficar com raiva; na Inglaterra, inebriar-se). Os resultados vieram num vídeo espalhafatoso no YouTube. Após a diluição em trinta vezes, ao final de urina não tinha mais nada. Tudo isso pela razão de tudo ser feito de átomos, combinados em moléculas. Estas são as menores unidades das substâncias.

Separadamente, dois átomos de hidrogênio e um de oxigênio são só átomos; combinados, viram água. Podemos diluir as coisas para sempre e manter a identidade – uma colher de urina pode conter cerca de 1024 moléculas; se diluímos uma vez misturando uma parte de urina com 99 partes de água, ficaremos com 1022 moléculas de urina. Diluindo duas vezes, ficarão 1020. Com 12 vezes, haverá em média apenas uma molécula restante. A partir daí já estaremos misturando água com água. Assim Jago, ao final, bebia água apenas. Adeptos da homeopatia, sabendo disso, creem que moléculas da água retêm uma “memória” de qualquer erva ou químico usado na diluição e que, de fato, a solução final é mais potente que a substância no início. Isto viola o que sabemos sobre física e química e experimentos clínicos classificam remédios homeopáticos como placebos. Mas sempre houve quem acredita nisso. A física toma dois fatos incisivos: i) podemos particionar a matéria em pedaços menores, na unidade menor possível;  ii) ao fundo há apenas alguns elementos que podem combinar-se, resultando na variedade do mundo observado. Num primeiro momento, o zoológico das partículas parece bagunçado, mas há apenas 12 partículas, em dois grupos de sei: quarks, que sentem a força forte nuclear, e léptons, que não. É uma estória estupefaciente, secular, desde a descoberta do elétron em 1897 até a do férmion (o neutrino tau) em 2000.

Visivelmente, Carroll acredita num ponto final na partição da matéria – sempre se prometeu isso, mas nunca deu certo. A cada momento inventa-se algo a mais, indicando que, assim como o universo parece “infinito” para cima, também parece para baixo. Tratando-se de algo material, esperamos que comece em algum lugar, mas este lugar até hoje fugiu...

II. IMAGENS DOS ÁTOMOS
As imagens mais comuns dos átomos – em revistas em quadrinhos, por exemplo – aparecem como pequenos sistemas solares, com núcleo central e elétrons orbitando-o – serve também de logo da Atomic Energy Commission americana. Mas traz equívoco de modo sutil – representa-se o modelo de Bohr, aplicando a mecânica quântica da época, oriunda de Rutherford. No modelo de Rutherford, elétrons orbitam o núcleo em qualquer distância imaginável, como planetas no sistema solar, exceto que são atraídos por eletromagnetismo, não gravidade. Bohr modificou a ideia insistindo que os elétrons podem viajar apenas em certas órbitas particulares, um grande passo em frente para entender a radiação emitida por átomos. Hoje sabemos que elétrons “não orbitam”, pois não possuem posição ou velocidade – a mecânica quântica diz que elétrons persistem em nuvens de probabilidade conhecidas como “funções de onda”, que nos dizem onde poderíamos achar a partícula se formos observar. Mas a imagem popular não é tão ruim assim. Elétrons são relativamente leves; mas de 99.9% da massa de um átomo é localizada no núcleo. Este é feito de combinação de prótons e nêutrons – um nêutron é um pouco mais pesado que um próton – um nêutron é cerca de 1.842 vezes mais pesado que um elétron, enquanto um próton é cerca de 1.836 vezes mais pesado. Prótons e nêutrons são chamados de “núcleons”, pois perfazem o núcleo. À parte o fato de que próton tem carga elétrica e nêutron é mais pesado, os dois núcleons são similares. Elétrons são atraídos para o núcleo pela força do eletromagnetismo, que é muitíssimo mais forte que a gravidade. A atração eletromagnética entre um elétron e um próton é cerca de 1039 vezes mais forte que a atração gravitacional entre eles. Enquanto gravidade é simples – tudo atrai tudo – eletromagnetismo é mais sutil. Nêutrons recebem o nome do fato de serem neutros, sem carga elétrica. A força eletromagnética entre elétron e nêutron é zero. Partículas com o mesmo tipo de carga elétrica repelem-se. Elétrons são atraídos para os prótons dentro do núcleo porque elétrons carregam carga negativa e prótons positiva. Elétrons não sentem a força forte (assim como nêutrons não sentem eletromagnetismo), mas prótons e nêutrons sim, o que permite fazer o núcleo. Mas até certo ponto. Se o núcleo engordar demais, a repulsão elétrica vira excessiva, e o núcleo se torna radioativo – pode sobrevier um pouco, mas tende a decair em núcleos menores.

A estória de elétrons, prótons e nêutrons se formou no início dos 1930. A natureza, porém, é mais contorcionada e Dirac, já nos 1920, já fizera uma equação do elétron – todo férmion está associado com um tipo oposto de partícula – antipartícula. Partículas da antimatéria têm exatamente a mesma massa, mas carga oposta elétrica. Quando se ajuntam, se aniquilam em radiação energética. Coligir antimatéria é, por isso, pelo menos em teoria, modo de estocar energia e gerou muita especulação sobre propulsão de foguetes na ficção. A teoria de Dirac virou realidade em 1932, quando Anderson descobriu o pósitron – a antipartícula do elétron. Há simetria estreita entre matéria e antimatéria; mas o universo observado está cheio de matéria e contém muito pouca antimatéria. Por que é assim, ainda é mistério. Anderson estudava raios cósmicos, partículas de alta energia do espaço que se espatifam na atmosfera terrestre, produzindo outras partículas que eventualmente nos atingem no chão. Para criar imagens do rastro das partículas carregadas, Anderson usou tecnologia incrível conhecida como “câmara da nuvem” – o princípio básico é similar às nuvens reais que vemos no céu – enche-se câmara com gás que é supersaturado com vapor da água. “Supersaturado” significa que o vapor de água está para formar gotículas de água líquida, mas não o faz sem algum empurrão externo. Em nuvem regular, este empurrão vem na forma de algum grão de impureza, como poeira ou sal. Na câmara, o empurrão vem quando partícula carregada passa por ela – a partícula esbarra nos átomos dentro, chacoalhando elétrons soltos e criando íons. Estes servem como locais de nucleação para gotículas mínimas de água. Assim, uma partícula carregada passando deixará rastro de gotículas em sua esteira, bem como o rabo deixado por um avião, deixando amostra de sua passagem. Anderson tomou sua câmara de nuvem, enrolou em magneto poderoso, até ao teto do prédio aeronáutico em California Institute of Technology (Caltech) e aguardou os raios cósmicos. Para se obter vapor apropriadamente supersaturado dentro exigiu decréscimo rápido em pressão, induzido por pistão que causaria estrondo forte a cada vez que fosse deslanchado. Funcionava só à noite por consumo massivo de energia.

Estrondos reverberariam no ar de Pasadena toda noite, como testemunho ruidoso de que segredos do universo estavam sendo descobertos. Anderson tirou fotos que mostraram número igual de partículas que se curvavam no sentido relógio e contrarrelógio. A explicação seria que havia número igual de prótons e elétrons contidos na radiação; de fato, é o que se espera. Mas Anderson tinha outro tanto de dados que podia usar: a espessura do rastro do íon deixado na câmara. Reconheceu que, dada a curvatura dos rastros, todo próton que os produzia teria de estar se movendo relativamente devagar (menos de 95% da velocidade da luz) – deixando rastros mais espessos de íons do que era observado. Parecia que partículas misteriosas passando na câmara estavam carregadas positivamente, como próton, mas relativamente leves, como elétron. Havia outra possibilidade lógica: talvez os rastros eram simplesmente elétrons movendo-se para trás. para testar isso, ele introduziu uma placa de chumbo dividindo a câmara. Uma partícula movendo-se de um lado do chumbo para outro iria mover-se mais devagar, indicando claramente a direção da trajetória. Em foto icônica da história da física de partículas, vemos partícula em cura contrarrelógio movendo pela câmara, passando pelo chumbo e voltando mais devagar – a descoberta do pósitron. Gigantes da área, como Rutherford, Pauli e Bohr se mostraram incrédulos no início, mas experimento bonito sempre se impõe à intuição. Eis a antimatéria entrando no mundo da física de partículas.

III. NEUTRINOS
Arranjamos assim mais três férmios (antipróton, antinêutron, pósitron), num total de seis. Outros problemas vieram; por exemplo, quando nêutrons decaem, viram prótons emitindo elétrons. Medidas meticulosas do processo pareciam indicar que energia não era conservada – o total de energia do próton e elétron eram sempre um pouco menos. A resposta foi sugerida em 1930 por Pauli, sacando que a energia extra podia ser carregada por partícula ínfima neutra difícil de achar; chamou de “nêutron”, antes de o nome ficar ligado à partícula pesada neutra nos núcleos. Logo após, para evitar confusão, Fermi chamou de “neutrino” – de fato, um nêutron emite o que agora reconhecemos como antineutrino, mas o princípio estava bem correto. Pauli sentiu-se incomodado por sugerir partícula difícil de detectar, mas hoje neutrinos são coisa comum. Havia ainda a questão do processo exato pelo qual nêutrons decaem; quando partículas interagem entre si, implica algum tipo de força, mas o decaimento de um nêutron seria o esperado da gravidade, eletromagnetismo ou força nuclear. Então físicos passaram a atribuir o decaimento de nêutron à “força nuclear fraca”, pois tinha algo a ver com núcleons, mas não era a força que mantém os núcleos (força nuclear forte). O neutrino estabeleceu um pouco de simetria na partículas elementares. Havia duas partículas leves, elétron e neutrino, que eventualmente se diziam “léptons” (do grego, pequeno); e havia duas partículas pesadas, próton e nêutron, chamados “hádrons” (do grego, grandes). Os hádrons sentem a força nuclear forte, enquanto os léptons não. Cada categoria continha uma partícula e uma neutra. Parece inventado!

Em 1936, chegou mais um visitante do céu – o múon; Anderson, descobridor do pósitron, e Neddermeyer estavam estudando rádios cósmicos de novo; acharam uma partícula com carga negativa como elétron, mas mais pesada, embora mais leve que antipróton seria. Chamou-se “mu meson”, vendo-se logo tratar-se de méson (bóson feito de um quark e um antiquark), formando a abreviação “múon”. Nos 1930, metade das partículas elementares conhecida  (elétron, pósitron, próton, nêutron, múon e antimúon) foram descobertas na Caltech com Anderson. Depois veio a colheita do LHC. O múon foi surpresa total – já tínhamos o elétron – por que teria primo mais pesado? Em 1962, experimentalistas Lederman, Schwartz e Steinberger mostraram que havia realmente dois tipos diferentes de neutrinos – neutrinos elétrons, que interagem com elétrons e são muitas vezes criados com ele, mas também neutrinos múons, que andam juntos com múons; quando nêutron decai, emite elétron, próton e antineutrino elétron; quando o múon decai, emite elétrons e um antineutrino elétron, mas também um neutrino múon. E o processo se repetiu. Nos 1970, a partícula tau foi descoberta, também negativamente carregada como o elétron, mas pouco mas pesada que o múon; as três acabaram vistas como primas idênticas, diferindo apenas em massa. Todas sentem as forças fracas e eletromagnéticas, mas não a forte; a tau tem seu tipo de neutrino, já antecipado, mas não detectado até 2000.

Então, seis léptons, em três “famílias” ou “gerações”: o elétron com seu neutrino; o múon com seu neutrino; e a tau com seu neutrino. É perfeitamente natural ponderar se uma quarta geração ou mais vão vir... Por enquanto, só um talvez, embora pareça haver evidência que isto seria tudo! É porque os neutrinos conhecidos têm massas bem pequenas – certamente mais leves que o elétron. Agora sabemos como buscar novas partículas leves, analisando cuidadosamente os decaimentos das mais pesadas. Podemos contar quantas partículas similares a neutrino teriam de haver para dar conta dos decaimentos, e a resposta são três. Não há certeza total, porém.

A vinda dos aceleradores de partículas levou a um boom no número de partículas elementares. Havia píons, cáons, méson seta, méson ro, híperons e mais. Lamb, em sua preleção do Nobel de 1955, saiu-se com essa: “O descobridor de nova partícula elementar costumava ser premiado com o Nobel, mas tal descoberta agora deveria ser punida com multa de $10 mil” (C:49). As novas eram hádrons – ao contrário dos léptons, interagem fortemente com nêutrons e prótons, levando à suspeita crescente de que novatos não eram propriamente “elementares”, refletindo algo mais profundo estrutural. Isto se revelou em 1964 por Gell-Mann e Zweig, que, de modo independente, propuseram que hádrons eram feitos de partículas menores chamadas “quarks”. Como os léptons, vêm em seis diferentes sabores: up, down, charm, estranho, top e inferior. Os quarks up/charm/top têm carga elétrica +2/3, enquanto down/estranho/inferior -1/3; são agrupados por vezes como “tipo up” e “tipo down”, respectivamente. Ao contrário dos léptons, cada caso de quark representa um terceto de partículas, ao invés de uma. Os três tipos de cada quark são fantasiosamente chamados por cores: vermelho, verde ou azul. Quarks são “confinados”, significando que existem apenas em combinações dentro dos hádrons, nunca isoladamente. Quando se combinam, é sempre em combinações “sem cor”. Prótons e nêutrons possuem três quarks dentro: um próton é dois ups e um down, enquanto um nêutron é dois downs e um up. Um dos quarks será vermelho, um verde e outro azul; juntos se tornam brancos, sem cor.

IV. A FORÇA QUE NÃO SE ENCAIXA
Os férmions do Standard Model são o que dão à matéria à volta tamanho e molde. Mas são as forças e partículas bósons associadas que facultam aos férmions interagir entre si. Férmions podem empurrar ou puxar uns aos outros tocando bósons para frente e para trás, ou podem perder energia e decair para outros férmions cuspindo algum tipo de bóson. Sem bósons, os férmions simplesmente se moveriam retamente sempre, não afetados por nada. A razão por que o universo é tão incrivelmente complexo e interessante é que tais forças são diferentes, empurrando/puxando em modos complementares. Físicos muitas vezes dizem haver quatro forças da natureza – não incluem o Higgs, por ser diferente dos outros bósons. Os outros se dizem “bósons calibre” (gauge boson) (mais tarde se discute isso). O gráviton é um pouco diferente dos outros; toda partícula elementar tem certo “spin” intrínseco, e fóton, glúons e bóson W/Z têm um spin igual a 1, enquanto o gráviton de 2. Não sabemos ainda reconciliar gravidade com as demandas da mecânica quântica, porém.

O Higgs, por sua vez, é totalmente diverso; é bóson “escalar”, significando que tem zero spin. Ao contrário dos bósons calibre, o Higgs emerge de simetria ou outro princípio natural. Um mundo sem o Higgs seria bem diferente, mas ainda assim consistente com a teoria física. Mesmo importantíssimo, parece deformidade na estrutura matemática do Standard Model. É bóson e por isso pode ser intercambiado para trás e para frente com outras partículas, dando azo à força da natureza. É uma vibração no campo de Higgs, dando massa a todas as partículas elementares. O Higgs interage com todas as partículas massivas em nosso zoo – os quarks, o léptons carregados e os bósons W e Z (deixemos neutrinos de lado). Quanto mais massiva é partícula, mais fortemente se acopla ao Higgs. A realidade, porém, vai noutra direção: quanto mais fortemente uma partícula se acopla com o Higgs, tanto mais massa pega movendo-se no campo ambiental de Higgs que pervade espaço vazio. O Higgs é partícula pesada, e mesmo quando a produzimos não somos capazes de vê-la diretamente; rapidamente decai em outras partículas. Esperamos haver certo ritmo de decaimento para (exemplo) bósons W, diferente do quark inferior, dos mésons tau etc. Não é algo aleatório – sabemos exatamente como ele interage, de sorte que calculamos bem exatamente a frequência esperada de tipos diferentes de decaimentos.

V. ESTÓRIA DO ACELERADOR
Discute-se a história de colidir partículas a energias cada vez mais intensas. A ideia por trás do acelerador parece simples: tomar algumas partículas, acelerar a altas velocidades e espatifar com outras, para ver no que dá. Comparou-se isso com espatifar dois relógios suíços para ver o que sobra com os pedaços... Esta analogia não vale. Quando esmagamos partículas entre si, não estamos vendo como são feitas, mas criando nova partículas. Para chegar a tais velocidades usa-se princípio básico: partículas carregadas (elétrons e prótons) podem ser empurradas à volta por campos magnéticos; usamos campos elétricos para acelerar partículas a velocidades crescentes e campos magnéticos para mover na direção correta, como em tubo circular do LHC. Afinando tais campos delicadamente, pode-se reproduzir condições especiais não vistas na terra. O desafio é então: acelerar partículas o quanto pudermos, esmagá-las entre si e ver o que se cria de novo. Todos os passos são complexos. LHC representa a culminação de décadas de trabalho duro.

Quando o Bevatron criou antipróton, não foi porque havia escondidos, mas, porque as colisões trouxeram novas partículas à existência. Na teoria quântica, ondas representam partículas originais vibrando no campo antipróton; para ocorrer, o ingrediente crucial é que tenhamos suficiente energia. O insight que torna possível a física de partículas é a equação de Einstein E = mc2 – massa é realmente forma de energia; a massa do objeto é o mínimo de energia que pode ter; quando algo está parado, o montante de energia que carrega é igual à massa vezes o quadrado da velocidade da luz. A velocidade da luz é número grande (300 mil km/h). Mas, quando o objeto de move? Discussões sobre relatividade gostam de falar como se a massa aumentasse quando uma partícula se aproxima da velocidade da luz, mas é equívoco – prefere-se ver a massa como constante – a energia cresce chegando perto da velocidade da luz. Quando um acelerador empurra prótons a energias mais altas, vão se aproximando da velocidade da luz, embora nunca se chegue propriamente lá. Podem-se fazer partículas pesadas a partir de leves.

Prótons são hádrons – partícula que interagem fortemente; quando se esmagam duas, os resultados são um tanto imprevisíveis. O que realmente ocorre é que um dos quarks ou glúons dentro do hádron esmaga-se em um dos quarks ou glúons do outro, mas não se sabe a energia precisa de cada lado. Uma máquina que faz elétrons colidir é bem diferente: construída para precisão, não força bruta. Quando elétron e pósitron colidem, sabe-se bem o que está sucedendo; os resultados são melhor apropriados para mensurações exatas das propriedades. Aceleradores foram criados em muitas versões, mas hoje o show acontece no LHC.

CONCLUSÃO
Carroll esforça-se por mostrar um quadro simétrico, simples, bonito das partículas elementares, mas, na verdade, é um chão complicado. A própria condição aparentemente anômala (uma deformidade no Standard Model) do Higgs indica que podemos ser surpreendidos por novas elaborações, que com certeza vão vir no futuro. É possível mesmo que o modelo padrão venha a ser superado com o tempo, como já se insinua na mecânica quântica, que continua sendo vista como “mecânica”, por tradição positivista, não porque se imagina como cláusula pétrea. Se aceitarmos que a física de hoje explica talvez 5% do universo, na prática não sabemos ainda “nada”. Tudo pode vir a ser virado de cabeça para baixo. Por isso, não convém assegurar um chão final da matéria, porque sempre este chão foi se afastando. É melhor não se açodar. Provavelmente, qualquer explicação da realidade é menos real do que se gostaria.

REFERÊNCIAS
CARROLL, S. 2012. The particle at the end of the universe: How the hunt for the Higgs Boson leads us to the edge of a new world. Dutton, N.Y.

Pedro Demo (2016)

Dualidade do homem: grandeza e miséria


Há tempos o homem vem procurando conhecer a totalidade das coisas, e através destas buscas surgem alguns questionamentos tais como: poderá o homem conhecer todas as coisas? Poderá o homem ser perfeitamente feliz? Não estará buscando apenas por vaidade? Por que busca o divertimento? Em que consiste a grandeza e miséria do homem? Neste artigo tentaremos responder estes questionamentos, procurando apresentar soluções para tamanho problema a partir da análise do artigo II – “Miséria do homem sem Deus” – da obra Pensamentos, de Blaise Pascal (1623-1662).

O ser humano possui um desejo demasiado pelo conhecimento. O homem é uma parte, que não pode, não consegue conhecer, “mas a parte pode ter, pelo menos, a ambição de conhecer as partes, as quais cabem dentro de suas próprias proporções” [1]. Deseja conhecer a totalidade das coisas, com intuito de ser útil a si mesmo e aos outros, sente paixão e se aproxima de paixões, ama e deseja ser amado, mas tudo isso é vaidade. “Eis a visão final do sábio rei: tudo é vaidade, tudo é afficção de espírito…” [2]. Os homens acreditam que é possível conhecer a totalidade das coisas usando apenas a razão, pois acreditam que ela é superior a todas as coisas, mas o mundo possui dimensões tão pequenas, as coisas se dividem em tantas partes que a vista, a razão do ser humano não consegue compreender e apreender, pois elas estão para além de onde se pensa ser o limite. “Todo esse mundo visível é apenas um traço imperceptível na amplidão da natureza, que sequer nos é dado conhecer de modo vago” [3].

O homem é um grande problema para si mesmo, visto que não consegue conhecer a si mesmo, sua própria realidade e nem a totalidade das coisas existentes. “Infinitamente incapaz de compreender os extremos, tanto o fim das coisas como o seu princípio permanecem ocultos num segredo impenetrável, e é impossível ver o nada de onde saiu e o infinito que o envolve” [4]. Nem um ser humano finito poderá conhecer o início e nem o fim das coisas, visto que o homem está instalado neste universo, o ser humano em relação ao nada é tudo, já em ralação ao tudo é um nada, o ser humano é uma espécie de meio termo entre o nada e o todo; e apenas o criador de tal magnitude, o criador de todas as coisas poderá conhecê-las em sua totalidade. “(…) O autor destas maravilhas conhece-as; e ninguém mais” [5]. E estando a razão inserida no homem, este que é uma pequena parte neste universo, ela se vê nas mesmas ou piores dificuldades ainda de conhecer; se ela fosse infinita e não fizesse parte deste universo, certamente ela poderia conhecer a realidade existente, a totalidade das coisas, mas não está, e consequentemente, não poderá conhecer, pois “Nossa inteligência ocupa, entre as coisas inteligíveis, o mesmo lugar que nosso corpo na magnitude da natureza” [6]. E com a grande impossibilidade de conhecer todas as coisas, o ser humano se depara com a sua própria miséria, seu limite e sua impotência. Mas ao reconhecer sua miséria, sua limitação e sua impossibilidade diante do universo do saber torna-se o ser mais grandioso de todo o universo, pois sua grandeza está, justamente, no reconhecimento de sua miséria, de sua limitação, de sua pequenez em relação ao universo. “O homem é grande porque se reconhece miserável” [7].

Ele é comparado a não mais que um “caniço”, que é frágil, é agitado pelo vento para todos os lados, quebra-se com facilidade, mas que possui um pensamento, pensamento este que possibilita o reconhecimento de sua miséria. E ao reconhecer a sua miséria, limitações e impotências, torna-se relativamente superior a todas as outras criaturas, pois estas não podem reconhecer que são miseráveis, vista que não possuem o pensamento para tal reconhecimento. “O homem não é mais que um caniço, o mais débil da natureza; mas é um caniço que pensa” [8]. E juntamente com a miséria vêm todos os tormentos, as aflições, os sofrimentos batendo a fundo no coração do ser humano, e o será necessário descansar e acalmar seu íntimo e procurar algo que o tire do tédio. “A presente miséria produz nele um tormento de nostalgia pela sua passada grandeza, e este tormento o incita o instinto de uma verdade superior, a aspiração de um bem que somente pode satisfazê-lo” [9].

Para que o tédio não se torne uma profunda solidão, é necessário que o homem procure algo para não se angustiar cada vez mais, e é aí que entra o divertimento para livrá-lo do tormento, levá-lo à felicidade, mas que acaba conduzindo-lhe a outro caminho. “A única coisa que nos consola das nossas misérias é o divertimento e, no entanto, essa é a maior das nossas misérias” [10]. O divertimento afasta o homem de si mesmo, da morte e o impede de ver suas limitações e suas misérias. “Não tendo conseguido curar a morte, a miséria, a ignorância, os homens lembraram-se, para ser felizes, de não pensar nisso tudo” [11]. Por outro lado, o divertimento livrar o ser humano de um tédio, de uma depressão, de uma angústia, de uma náusea, pois logo que começa a pensar na sua condição humana limitada e também miserável causa um profundo desgosto. “Mas tirai o divertimento e os vereis consumir-se de desgosto; sentem então o seu nada, sem conhecê-lo” [12]. Por isso, o ser humano está constantemente buscando o divertimento para fugir da sua miséria, pois deixa de pensar em suas questões latentes, tentando tornar-se demasiadamente feliz e buscar uma forma de esperar e suportar a morte.

“É mais fácil suportar a morte, quando não se pensa nela, do que pensar na morte sem perigo” [13]. O divertimento tem força suficiente de conduzir um homem de um estado de tristeza, abatimento e miséria a um estado de felicidade. Dentro da visão pascaliana, a condição humana está marcada por uma miséria ontológica. E essa é a verdadeira condição do ser humano; condição que lhe torna capaz de saber com certeza e o faz ignorar o absoluto. Embora este tenha perdido um ente querido e se encontre num estado deprimente, enquanto ele estiver no divertimento será feliz, pois “sem divertimento não há alegria, com divertimento não há tristeza” [14]. Mas ele estará vivendo uma pseudo-felicidade e não uma felicidade plena, que não carece de nada mais, pois para Pascal a felicidade plena não se dá nesta vida, mas somente em Deus, só será plenamente feliz com a morte do corpo, onde se estará definitivamente com Deus. “E Pascal bem sabia que só haveria paz quando o corpo fosse destruído”. [15]

Com base no que foi apresentado, surgem alguns questionamentos: o que é o homem na natureza? E Pascal responde que o ser humano é um “(…) nada com relação ao infinito e um tudo em relação ao nada (…)” [16]. Se o homem não se deparasse primeiro com a vaidade, e sim com o divertimento, o que aconteceria? Ele não conheceria sua miséria, não se tornaria grandioso e não saberia onde encontrar felicidade absoluta. É possível ao homem conhecer? Sim, mas o que conhece não lhe é satisfatório, sempre falta algo amais.

Testifica-se, assim, que tanto a vaidade como o divertimento tem grande importância na vida do ser humano: a vaidade por envaidecer o seu coração com a possibilidade de conhecer e conduzi-lo à miséria, que consequentemente o reconduzirá à grandeza, que é o reconhecer a sua própria miséria; o divertimento resgata-o do tédio, da angústia, da tristeza, da depressão, do sofrimento, dos tormentos e o fortalece para suportar sua morte e esperar o seu encontro definitivo com Deus, quando então será feliz.

Alessandro Ferreira de Andrade Blanck
Fonte: http://pensamentoextemporaneo.com.br/?p=1482

Por um cristianismo não religioso


Por William Felipe Zacarias

Na era pós-cristã, resta ao cristianismo limitar sua existência para fora das paredes do “túmulo de Deus”, metáfora de Nietzsche à igreja institucional. O esvaziamento da instituição pressupõe uma retomada do cristianismo original de Jesus que não fundou uma religião, mas, ao contrário, foi contra ela em suas discussões com fariseus e escribas. Por conseguinte, o que seria a vivência de um cristianismo não religioso? O cristianismo é a comunhão dos ateus.

Quando alguém me diz ser ateu, ironicamente tenho respondido, “pois é, também sou!”. O indivíduo se espanta, pois a resposta parte da boca de um teólogo. De fato, não creio na metafísica, nem no “deus comércio” da prosperidade material. Conforme o sociólogo francês também ateu Michel Maffesoli, “o mais prostituído dos seres é o ser por excelência: é Deus. Com efeito, em numerosas tradições religiosas, é Ele que se dá todo a todos.”(1)

Em grande medida, a teologia grega foi transportada para dentro da teologia judaico-cristã. A música gospel que atualmente faz tanto sucesso no mercado se identifica muito mais com o castigador imponente e vingador Zeus do que com o Deus pessoal judeu. Enquanto Zeus é a-histórico, Ihwh age concretamente na história e inclusive se encarna nela, um escândalo para os gregos, visto que a carne lhes era desprezível por aprisionar a alma. Para os gregos, Deus se fazer carne vai muito além do que se esperaria de uma divindade. O verbo (do gr. Lógos) nunca poderia se reduzir a algo tão nauseabundo. Como bem afirma o brasileiro Clóvis de Barros Filho, “o texto de João propõe que esse lógos – ainda traduzido por verbo – se fez carne e habitou entre nós. Aqui, as concepções de Deus se afastam brutalmente. É inaceitável para a concepção grega dominante da época que o divino da ordem universal tenha se convertido em carne. Na carne de um corpo específico. E essa carne, de que fala o texto, é Jesus, um homem, tido como Filho de Deus.”(2) De repente, Deus e torna em “um indivíduo. Um divino encarnado. Um Deus pessoal. Que podíamos encontrar na rua. Que podíamos bater um papo. Aparentemente, sem frescura. Afinal, dava prosa a qualquer um. E grande atenção aos carentes. Não só de riqueza, mas também de notoriedade, de capital simbólico de afeto etc. Nada a ver com os reis da época.”(3) De repente, Deus não precisa ser procurado no céu, pois está presente na terra. Ao invés do ser humano buscar a Deus, agora Deus busca o ser humano. Os gregos quase infartaram ao ler o v. 14 do primeiro capítulo do evangelho de João. Não é o ser humano que se “religa” a Deus, mas Deus que se ligou ao ser humano. Além disso, acontece uma aberração: o lógos morreu na cruz.

Jesus não fundou uma igreja ou uma religião. Ao contrário, promoveu a caridade e o amor como uma antirreligião. Ele não queria uma fé abstrata, mas concreta com ações práticas no mundo real. Assim como prometera que na casa de seu Pai há muitas moradas, da mesma forma agia cristãmente no mundo secular. Sua mensagem era para os seculares. O próprio Nietzsche o definiu como um “bom mensageiro” que “morreu tal como viveu, como ensinou – não para “redimir os homens”, mas para mostrar como se deve viver.”(4) Conforme Nietzsche, “A prática foi o que ele deixou para a humanidade. Sua atitude diante dos juízes, diante dos esbirros, diante dos acusadores e de todo tipo de calúnia e escárnio – sua atitude na cruz. Ele não resiste, não defende seu direito.”(5) Jesus não trouxe uma nova religião, mas o amor que concede dignidade aos fracos e malogrados do mundo.(6) Por isso que Nietzsche o odeia tanto e chama Jesus de “decadência” do Ocidente, pois sua mensagem fundou e é inexorável ao próprio Ocidente.

Por conseguinte, o processo de secularização da tradição cristã é que permite o próprio cristianismo a continuar existindo em sua forma secular. A secularização é uma invenção necessária do próprio cristianismo que acabou eliminando os fundamentos metafísicos desta própria tradição.

O ateu e filósofo italiano contemporâneo Gianni Vattimo é um dos principais expositores de um cristianismo não religioso adequado à pós-modernidade. Vattimo aplica a kénosis (esvaziamento, cf. Fp 2.7) como vocação fundamental da secularização do cristianismo. O que já era para ser, desde o início, um movimento antirreligioso acabou se tornando mais uma religião dentre tantas outras. Com religião se pressupõe aqui o termo latino religare que literalmente significa religar. Este era o modo pela qual o ser humano buscava, com suas forças, alcançar a transcendência e a salvação. Em Jesus Cristo, ao contrário, é Deus que vem ao ser humano na encarnação do Lógos. O Deus cristão rompeu com a religiosidade sinérgica humana, pois o próprio Deus se doou e se entregou ao ser humano, vindo de encontro a ele aqui mesmo, na terra. Assim, como vocação do cristianismo, a kénosis seria a maneira pela qual o cristianismo consegue continuamente se esvaziar da sua religiosidade e de suas estruturas religiosas, tornando-se um movimento prático que vive e atua no mundo secular, servindo a Deus por meio do próximo. Thimothy Keller afirma sobre a igreja primitiva que “os cristãos mudaram a história e a cultura ao conquistarem as elites e também ao se identificarem profundamente com os pobres.”(7) Tal como Cristo se doou, os cristãos doavam-se a servir com honestidade e alegria, cumprindo sua vocação secular no mundo. Com a institucionalização pós-Constantino, perdeu-se a dimensão secular do cristianismo e do evento de Cristo como kénosis. Na verdade, conforme Westphal, Constantino se tornou em um arquétipo de Cristo, assumindo seu lugar. Cristo passa a ser o Deus que quer conquistar os povos vizinhos para si por meio do poderio militar, a exemplo das cruzadas. O cristianismo torna-se institucionalizado, rígido, litúrgico, preso às paredes do que mais tarde Nietzsche chamaria, como já dito, de “tumulo de Deus.” O evento de Cristo foi transfigurado em religião.

Para o sociólogo Max Weber, foi Lutero quem resgatou a vocação secular do cristianismo através da Befuf (profissão) e da Berufung (vocação): “a profissão concreta do indivíduo vai sendo, com isso, interpretada cada vez mais como um dom especial de Deus, e, a posição que ele oferece na Sociedade, como preenchimento da vontade divina.”(8)

Para Vattimo, “a kénosis de Deus, que é o cerne da história da salvação, ela não deverá mais ser pensada como fenômeno de abandono da religião, e sim como atuação, ainda que paradoxal, da sua íntima vocação.”(9) Logo, para Vattimo, a kénosis neotestamentária é o pressuposto da atuação cristã no mundo secular. A lógica é a seguinte: Cristo encarnou e atuou no mundo em caridade. A igreja é o corpo de Cristo, portanto, deve se encarnar no mundo com ações cristãs, servindo a Deus por meio do próximo. Por conseguinte, vive-se o cristianismo não religioso no bom cumprimento da profissão secular, seja pedreiro, carpinteiro, médico, agricultor, alfaiate, programador, fotógrafo, gari, bombeiro, etc.

É preciso mencionar que, conforme Euler Renato Westphal, a “característica de toda a tradição protestante é a secularização, que enfatiza a racionalidade científica e técnica, a liberdade de pensamento e a autonomia para com as instituições.”(10) Não é à toa que grandes pensadores e cientistas da Modernidade eram ou tinham suas raízes no cristianismo, como, por exemplo, “Immanuel Kant, Schelling, Thomas Malthus, Friedrich Nietzsche e tantos outros.”(11) Foi o teólogo e pastor alemão pietista Friedrich Ernst Schleiermacher quem fundou a universidade moderna a partir da Universidade de Berlim.(12) Também as universidades modernas americanas surgiram a partir da Reforma, como Harvard, Princeton e Yale.(13)

A Pós-Modernidade rompeu não só com a Modernidade, mas também com a Pré-Modernidade que constituiu a Modernidade. O marco divisor entre Modernidade e Pós-Modernidade é anúncio nietzschiano da morte de Deus. Foi Nietzsche quem abriu o “mar vermelho” que separa a Modernidade da Pós-Modernidade. Para Nietzsche, a única maneira de superar a decadência ocidental é o estabelecimento de uma nova cultura a partir da era trágica dos gregos, especialmente na adoração do deus caótico e hedonista Dionísio. O Übermensch só pode sobreviver nesta nova cultura substituta da humanista e decadente. Para Nietzsche, o Deus que se fez fraco é uma vergonha, um “golpe de gênio do cristianismo” onde Deus se tornou “o único que pode redimir o homem daquilo que para o próprio homem se tornou irredimível – o credor se sacrificando por seu devedor, por amor (é de se dar crédito?), por amor a seu devedor!...”(14) Por conseguinte, o projeto trans-humanista do Übermensch pode ser executado somente na superação do mito decadente cristão-ocidental.

Entretanto, como afirma Marcus Throup, “No fim das contas, o velhinho da floresta riu por último porque Zaratustra havia se equivocado: Deus não morreu.”(15) Realizar bem a profissão é uma atitude concreta do genuíno cristianismo não religioso, servindo a Deus por meio do próximo. Mas também, como teólogo cristão, não excluo o cristianismo religioso com seus dogmas, ritos, hinologia, experiências, etc., desde que sejam legítimos e não abusem da fragilidade humana, especialmente financeira. Sou ateu deste deus da prosperidade financeira tão pregado por aí, que em sua orgia realiza transações com tudo e todos. Ao contrário, creio no lógos que se fez carne, esvaziou-se, serviu e lavou os pés de humanos simples sem cobrar nada, além de morrer em uma cruz de forma tão cruel. Elimino de minha crença a metafísica de Zeus. O Deus que se fez fraco (existindo ou não) é uma força simbólica incrível em momentos de fraqueza, pois ele me entende e até morrer ele sabe como é. O Deus que se fez fraco está no fundamento do Ocidente e confere dignidade aos pobres, fraco e malogrados da sociedade. O “Jesus constantiniano” não tem nada a ver com isso. Querido leitor, acabei de lhe dar uma chave interpretativa. Agora é com você. O objeto de sua fé deveria ser repensado.

Referências:
(1) MAFFESOLI, Michel. A Sombra de Dioniso. 2. ed. São Paulo: Zouk, 2005. p. 19.
(2) BARROS FILHO, Clóvis. A vida que vale a pena ser vivida. 12. ed. Petrópolis: Vozes, 2014. p. 100.
(3) BARROS FILHO, 2014. p. 101.
(4) NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. O Anticristo – 1888. In: NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Obras escolhidas. Porto Alegre: LPM, 2013. p. 399.
(5) NIETZSCHE, 2013. p. 399.
(6) Cf. BARROS FILHO, Clóvis. Somos Todos Canalhas. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2015. p. 114.
(7) KELLER, Thimothy. Igreja Centrada. São Paulo: Vida Nova, 2014. p. 179.
(8) WEBER, Max. A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo. São Paulo: Livraria Pioneira, 1967. p. 57.
(9) VATTIMO, Gianni. Depois da Cristandade. Rio de Janeiro: Record, 2004. p. 12. p. 35.
(10) WESTPHAL, Euler Renato. “A pós-modernidade e as verdades universais: a desconstrução dos vínculos e a descoberta da alteridade.” in: CARVALHO LAMAS, Nadja de; RAUEN, Taiza Mara (orgs.). (Pro)Posições Culturais. Joinville: Univille, 2010. p. 15.
(11) WESTPHAL, Euler Renato. Brincando no Paraíso Perdido. São Bento do Sul: União Cristã, 2006. p. 46.
(12) Cf. ZILSE, Raphaelson Steven. Base Filosófica para uma Estrutura Dogmática?. In: SCHWAMBACH, Claus (coord.). Vox Scripturae. São Bento do Sul, v. XXI, n. II, 2013. p. 144.
(13) Cf. WESTPHAL, 2006. p. 43-44.
(14) NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Genealogia da Moral. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.. p. 74-75.
(15) THROUP, Marcus. Igreja na berlinda. Curitiba: Encontro, 2011. p. 45.