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Era uma vez...

Se alguma música pudesse definir minha personalidade ou minha própria vida em toda sua totalidade, esta seria C’era una volta il West de autoria do italiano Ennio Morricone (tema do filme de faroeste Once upon a time in the West, versão brasileira: Era uma vez no Oeste), revelo isto com temor de ser linchado pelos fundamentalistas modernos, já que a música que mais me fala à alma é uma música secular e não uma música sacra, além disso ela não tem letra e fala mais que muitas músicas que só tem palavrório sem melodia e harmonia. É triste e bela, tão triste quanto bela, triste ainda que bela, bela ainda que triste. Só aqueles que associam a beleza apenas às coisas alegres, pensamento fruto da pós-modernidade vaga e de modismos efêmeros, não conseguirão entender isto que eu estou apregoando, posso até parecer um arauto louco ou bêbado em cima de um telhado, mas pelo menos tenho a coragem de gritar o que penso sem fazer coro com a massa.



O início suave, quase imperceptível da música, a leveza do trinado das cordas, o piano que parece ter vida própria e querer falar, a harmonia da orquestra, a coesão dos instrumentos, a sensação de que nada é inadequado ou que está fora do lugar, o êxtase qual onda que quebra na praia, o sentimento de paz que se instala após a passagem do turbilhão avassalador e aquele solfejo triste da solista, qual Polimnia a musa grega do canto solene, encantam minha alma, com a mesma intensidade que a entristecem, o único ato propício, como uma liturgia recomendada por meio de rubrica, para ouvir adequadamente é fechar os olhos e calar, só assim, desligando alguns periféricos é possível ouvir com a alma, os olhos abertos podem distrair, as palavras ditas, por mais belas que sejam se mostram inadequadas.

Se compararmos essa “universidade” musical com a superficialidade das músicas gospel de hoje de pouca letra e menos acordes ainda, não fica difícil entender a minha preferência por ela, as músicas contemporâneas parecem mantras, versos repetidos à exaustão, vãs repetições já dizia o evangelho. Quando a música acaba fica uma sensação de vazio que só passa quando eu volto e a ouço novamente, hoje com comodidade graças ao controle remoto, santa tecnologia! Antes tinha que fazer um esforço físico grande para mover o braço mecânico da radiola e posicionar no começo da faixa do disco de vinil. Sei que quando a ouço eu fico triste, mas a ouço exatamente para isso. Quando quero ficar reflexivo, pensativo, sondar minha própria alma, eu me sento e vou ouvi-la, não há saída, ao ouvir alimento minha alma, às vezes de uma tristeza profunda e de sentimentos inexplicáveis, sou tomado de uma sensação, que não sei definir, e não consigo fugir disso.

Já devo ter ouvido esta música pelo menos umas 5.000 vezes, ainda pretendo ouvir mais umas 10.000, mormente depois que eu me aposentar, mas a sensação é de que estou ouvindo pela primeira vez, os sentimentos se renovam ao primeiro acorde. Parece estranho este fato, principalmente para alguém que se sente inadequado quando tem que cantar o mesmo estribilho 10 ou quinze vezes só porque um ministro de louvor, que tem vontade de parecer com André Valadão, quer, tem alguns que até a flanela põe no bolso para ficarem mais caricatos, seria risível, se não fosse tão ridículo.

 Quando tinha uns 10 anos de idade eu era apaixonado por filmes de faroeste, ainda sou, mesmo hoje com 52 anos de idade, e a TV do Grande Irmão, que à época era apenas o braço direito na área de comunicação da ditadura militar, gostava de passar filmes que não permitiam a reflexão social, era para entreter, hoje é para “emburrecer” mesmo. Um dos que mais repetiu foi o citado Era uma vez no Oeste, com toda a poesia da direção do italiano criador de metáforas Sérgio Leone, a fotografia impecável, a capacidade de dar a uma cena de uma goteira uma dimensão inigualável e fazer de uma mosca uma atriz coadjuvante, o latinismo visceral, a atuação de grandes atores (como o novato Charles Bronson, o já veterano Henry Fonda e o expressivo e assustador Jason Robards) e a trilha sonora assinada pelo mestre Ennio Morricone, muito embora esta à época me passasse despercebida. Eu adorava assoviar a música de “O Bom, o Mal e o Feio”, mas não me lembro de ter sentido nenhum êxtase ao ouvir C’era una volta il West quando Cláudia Cardinale (seria Melpômene a musa grega da tragédia?) descia na estação do trem e o crescente melodioso até o âmago na chegada à fazenda e encontrar seu marido e os filhos deste todos mortos pondo um aparente fim à possibilidade de uma vida decente para uma prostituta em recuperação.

 Quando eu tinha uns dezesseis anos tentei entrar para o seminário, tinha pressa em cursar teologia o quanto antes possível para exercer o sacerdócio, quanto antes eu estivesse pronto mais rápido o mundo seria consertado, era mais ou menos o que eu pensava, não me deixaram entrar, o mundo deve ter agradecido, porém a “salvação” do mesmo foi adiada um pouco, era muito novo, como prêmio de consolação me colocaram num grupo teatral, composto em sua maioria de alunos do seminário, que tinha como missão despertar vocações nas igrejas da região.

Uma das minhas participações era como soldado comunista, eu vestia uma farda de verdade e junto com outros seminaristas (o hoje Rev. Alexandre da Igreja Episcopal Carismática e o também Rev. Marco Cosmo da Igreja Anglicana) representávamos soldados do então regime comunista que torturavam pastores, missionários e até mesmo leigos cristãos, era época da Guerra Fria e “Torturado por amor a Cristo”, “Ivan”, “Perdoa Natasha” e “Torturado por sua fé” estavam em evidência, eu já os tinha lido várias vezes e tinha uma grande vontade de ser missionário no leste europeu, porém na peça eu é que estava por trás do gatilho, recebíamos então ordens do “General” Zózomo Malta (isso mesmo, não escrevi errado o nome do sujeito é esse mesmo, Zózomo, irmão do Senador Magno Malta) para arrancar as unhas dos cristãos.

Os que representavam os missionários colocavam unhas feitas com pedaços de plástico de carretel de linha de costura, que eram presas com sabão, fingíamos então que cada unha era arrancada com alicate, o sangue de “brincadeira” escorria pelos braços e os gritos convincentes deixavam a plateia em prantos e depois atirávamos neles com revólveres de espoleta, que nem sempre davam tiros com qualidade, parecia que “a bala pinava”, os nossos missionários portavam por baixo da roupa um “saquinho” com suco de uva que ao ser apertado vazava parecendo sangue, o que dava um tom de realismo às cenas. Quantas crianças não fizemos chorar de medo, tínhamos que mostrar depois que era de brincadeira e que ninguém tinha morrido. 

A música que fazia fundo musical para a cena era essa, confesso que não associava a música ao filme, não fazia essa ilação. Um dia ao ouvir intencionalmente na casa de um parente essa música me dei conta das duas épocas de minha vida que ela tinha marcado e desde então eu passei a ouvi-la cada vez mais intensamente. 

Um dia estava fazendo terapia em grupo, não sei quanto ao grupo, mas eu num aprendi nada daquilo tudo e nem aproveitei uma linha sequer de caderno pequeno, quando a psicóloga colocou essa música eu travei, ela tinha invadido meu santuário particular, pois a música falava demais ao meu coração e o que ela falava não combinava com o momento, foi desde então que eu a “canonizei”, só a ouço em momentos especiais e que eu mesmo tenha escolhido ouvir, não gosto de intromissão. Até hoje não perdoei àquela psicóloga por tamanha heresia. 

Muito tempo depois, não sei se foi sonho ou realidade, estava deitado numa praça bastante arborizada pensando na vida, sempre que não estamos fazendo nada, dizemos que estamos pensando na vida, até parece um contrassenso ou que a vida não vale nada para nós, já estava meio sonolento e quase dormindo, quando de repente ouvi esta música tocando, no começo tocava baixo, depois foi aumentando, ainda sem acreditar me ergui sobressaltado, a sensação que tenho hoje é que senti pânico (o sentimento trazido pelo mítico Pã), e vi que era um carro de som que havia parado próximo à praça e que tocava a música, tocava e repetia sem parar, achei que estava morrendo com minha cabeça repousada no colo de uma ninfa do bosque ou de uma náiade e que os anjos do céu ou as fortes e doces valquírias nórdicas tinham vindo me buscar tocando a música de minha preferência.

Seria uma ótima forma de se despedir da vida e entrar na eternidade, provavelmente não sentiria medo, tal era o êxtase, mas justamente por conta deste que eu queria permanecer vivo, a sensação de paz era maior que eu mesmo. A melhor definição do que senti naquele momento é o que disse o Leone sobre a película: “O ritmo do filme pretendeu criar a sensação dos últimos suspiros que uma pessoa exala antes de morrer. Era uma vez no Oeste é do começo ao fim, uma dança da morte...”. Na hora de partir da vida, tendo como fundo musical esta música, nada melhor que tirar a morte para uma dança. Ela vai gostar, há muito que não se diverte, trabalha demais e a área de atuação dela é muito sombria. 

Desde este dia decidi que se eu não morrer ouvindo esta música, pelo menos que a toquem em meu velório, tenho certeza que ela, naquele momento, não me poderá deixar triste, será vez de ouvi-la e sorrir, será a vez de mudar a história, será o momento de cantar definitivamente “era uma vez...

Alívio após uma doença


Jair acordou a meio da noite. Mandara colocar uma cama dentro do closet e era ali que dormia. Durante o dia tirava a cama, instalava uma secretária e recebia os filhos, os ministros e os assessores militares mais próximos.

Alguns estranhavam. Entravam tensos e desconfiados no armário, esforçando-se para que os seus gestos não traíssem nenhum nervosismo. Interrogado a respeito pela Folha de São Paulo, o deputado Major Olímpio, que chegou a ser muito próximo de Jair, tentou brincar: “Não estou sabendo, mas não vou entrar em armário nenhum. Isso não é hétero.” Michelle, que também se recusava a entrar no armário, fosse de dia ou de noite, optou por dormir num outro quarto do Palácio da Alvorada.

Aliás, o edifício já não se chamava mais Palácio da Alvorada. Jair oficializara a mudança de nome: “Alvorada é coisa de comunista!” — Esbravejara: “Certamente foi ideia desse Niemeyer, um esquerdopata sem vergonha.”

O edifício passara então a chamar-se Palácio do Crepúsculo. O Presidente tinha certa dificuldade em pronunciar a palavra, umas vezes saía-lhe grupúsculo, outras prepúcio, mas achava-a sólida, máscula, marcial. Ninguém se opôs.

Naquela noite, pois, Jair Messias Bolsonaro despertou dentro de um closet, no Palácio do Crepúsculo, com uma gargalhada escura rompendo das sombras. Sentou-se na cama e com as mãos trêmulas procurou a glock 19, que sempre deixava sob o travesseiro.

— Largue a pistola, não vale a pena!

A voz era rouca, trocista, com um leve sotaque baiano. Jair segurou a glock com ambas as mãos, apontando-a para o intenso abismo à sua frente:

— Quem está aí?

Viu então surgir um imenso veado albino, com uma armação incandescente e uns largos olhos vermelhos, que se fixaram nos dele como uma condenação. Jair fechou os olhos. Malditos pesadelos.

Vinha tendo pesadelos há meses, embora fosse a primeira vez que lhe aparecia um veado com os cornos em brasa. Voltou a abrir os olhos. O veado desaparecera. Agora estava um índio velho à sua frente, com os mesmos olhos vermelhos e acusadores:

— Porra! Quem é você?

— Tenho muitos nomes. — Disse o velho. — Mas pode me chamar Anhangá.

— Você não é real!

— Não?

— Não! É a porra de um sonho! Um sonho mau!

O índio sorriu. Era um sorriso bonito, porém nada tranquilizador. Havia tristeza nele. Mas também ira. Uma luz escura escapava-lhe pelas comissuras dos lábios:

— Em todo o caso, sou seu sonho mau. Vim para levar você.

— Levar para onde, ô paraíba? Não saio daqui, não vou para lugar nenhum.

— Vou levar você para a floresta.

— Já entendi. Michelle me explicou esse negócio dos pesadelos. Você é meu inconsciente querendo me sacanear. Quer saber mesmo o que acho da Amazônia?! Quero que aquela merda arda toda! Aquilo é só árvore inútil, não tem serventia. Mas no subsolo há muito nióbio. Você sabe o que é nióbio? Não sabe porque você é índio, e índio é burro, é preguiçoso. O pessoal faz cordãozinho de nióbio. As vantagens em relação ao ouro são as cores, e não tem reação alérgica. Nióbio é muito mais valioso que o ouro.

O índio sacudiu a cabeça, e agora já não era um índio, não era um veado — era uma onça enfurecida, lançando-se contra o presidente:

— Acabou!

Anhangá colocou um laço no pescoço de Jair, e no instante seguinte estavam ambos sobre uma pedra larga, cercados pelo alto clamor da floresta em chamas. Jair ergueu-se, aterrorizado, os piscos olhos incrédulos, enquanto o incêndio avançava sobre a pedra:

— Você não pode me deixar aqui. Sou o presidente do Brasil!

— Era. — Rugiu Anhangá, e foi-se embora.

Na manhã seguinte, o ajudante de ordens entrou no closet e não encontrou o presidente. Não havia sinais dele. “Cheira a onça”, assegurou um capitão, que nascera e crescera numa fazenda do Pantanal. Ninguém o levou a sério.

Ao saber do misterioso desaparecimento do marido, Michelle soltou um fundo suspiro de alívio.

Os generais soltaram um fundo suspiro de alívio. Os políticos (quase todos) soltaram um fundo suspiro de alívio.

Os artistas e escritores soltaram um fundo suspiro de alívio. Os gramáticos e outros zeladores do idioma, na solidão dos respetivos escritórios, soltaram um fundo suspiro de alívio.

Os cientistas soltaram um fundo suspiro de alívio. Os grandes fazendeiros soltaram um fundo suspiro de alívio.

Os pobres, nos morros do Rio de Janeiro, nas ruas cruéis de São Paulo, nas palafitas do Recife, soltaram um fundo suspiro de alívio.

As mães de santo, nos terreiros, soltaram um fundo suspiro de alívio.

Os gays, em toda a parte, soltaram um fundo suspiro de alívio.

Os índios, nas florestas, soltaram um fundo suspiro de alívio.

As aves, nas matas, e os peixes, nos rios e no mar, soltaram um fundo suspiro de alívio.

O Brasil, enfim, soltou um fundo suspiro de alívio — e a vida recomeçou, como se nunca, à superfície do planeta Terra, tivesse existido uma doença chamada Jair Messias Bolsonaro.

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Publicado originalmente na revista “Visão” de Portugal. Reproduzido no blog do Juca Kfouri.
Por José Eduardo Agualusa

Fonte: https://www.brasil247.com/cultura/escritor-angolano-descreve-o-triste-fim-de-jair-messias-bolsonaro?fbclid=IwAR3SKBlHl6s4WL5xjFvLRxpGvrN7u8GoLC_ZKDmUX3E3JchB5kZX5gMX1js

A professora



Dois termos se confundem hoje, mas carecem de resgate da significância: pedagogo e mestre. O primeiro deriva etimologicamente do substantivo grego paidós (criança) e do verbo agô (guiar, conduzir) e era como se chamavam os escravos que acompanhavam os filhos de seus senhores quando estes iam à escola estudar com os mestres (o segundo termo, que os gregos chamavam de didáskalós) e pode ser definido como “aquele que guia”. Com a evolução diacrônica do vocábulo, os dois termos tornaram-se intercambiáveis.

O nome dela era Niedja, foi minha professora de português e inglês desde a 6ª Série Ginasial até o 2º Grau (hoje Ensino Médio). Eu não lembro o primeiro dia de aula que tive com ela, talvez não estivesse consciente do quão indelevelmente ela marcaria a minha vida, mas eu lembro a última vez que a vi, há mais de trinta anos. Envergava a farda alabastrina da Marinha, ela me saudou com um galanteio e foi embora, não sabia que era a última vez que a via.

Ela conseguia enxergar em mim alguns valores e predicados que eu sequer achava que tinha, talvez nem enxergasse, talvez apenas estivesse semeando na minha mente sem luz (alumnus: "sem luz"). Quando descobriu o meu amor pelos livros, invariavelmente me trazia livros dela para que eu lesse, lembro de ter lido Canguru de D H Lawrence, que só vim entender muitos anos depois, alguns outros títulos eu sequer tornei a encontrar depois, foi uma experiência rara. Ainda consigo rever com nitidez a cena: ela entrando na sala colocando os materiais de aula sobre a mesa e chamando meu nome, eu me levantava, ela então me entregava um livro, nem sei se eu agradecia, tal era a vergonha que ficava, e empreendia a jornada de regresso. A distância do bureaux até minha cadeira se tornava quilométrica, era fulminado por dezenas de olhos, nem sempre favoráveis e compreensivos.

Algumas vezes me fazia ir ao quadro-negro que já era verde à época, para transcrever as palavras que ela ditava (chamávamos esse tipo de atividade de “ditado”) para toda a classe, como sabia que eu dificilmente erraria, me expunha sem medo. Sabia que ela fazia isso porque acreditava em mim, eu porém tinha a letra feia e não conseguia escrever no quadro de forma simétrica, minhas linhas pareciam um eletrocardiograma, e não gostava da gozação dos meus colegas me perguntando que letra era aquela que eu tinha "hieroglifado".

Um dia eu não me dei conta de que era aula de português e me preparei para a aula de inglês, ela me pediu para ir ao quadro e soletrou: "h-e-d-i-o-n-d-o", eu não consegui escrever, minha mente se recusava a me ajudar, eu pensava que era um vocábulo novo, eu nunca tinha ouvido aquele som em inglês, depois de minutos de confusão e caos, ela me disse que a aula era de português, eu me sentei constrangido e deixei que outro aluno tomasse meu lugar.

A sensação de decepcionar àquela professora me acompanha até hoje, foi a primeira pessoa que enxergou em mim o que ninguém enxergava, nunca me perdoei por aquele deslize, talvez por isso até hoje seja tão cuidadoso com o ato de escrever e falar.

Posso dizer sem medo de errar que Niedja foi a professora de minha vida, ela era até bonita, elegante, tinha a idade da minha mãe (suponho até que fosse mais velha), porém, não havia a relação de transferência de afeto ou de estar apaixonado pela professora, havia uma transcendentalidade naquela relação, tanto que a venero até hoje, muito embora não saiba sequer se ela já partiu desta realidade.

Tive outras duas professoras que me marcaram muito: uma na segunda série primária e outra na quarta. A da segunda era carinhosa e atenciosa, a da quarta me mandava corrigir as provas de meus colegas, eles me detestavam por isso, eu só tirava dez, ela corrigia e saia da sala e me pedia para corrigir as dos demais, nunca trai a sua confiança e ela nunca alterou qualquer nota que eu tenha colocado. Me fez aprender o que era responsabilidade e profissionalismo, antes mesmo dos dez anos. Falo profissionalismo por um fato: eu tinha, obviamente, desafetos na sala, nunca deixei que as nossas diferenças interferissem no meu julgamento e eles sabiam disso. Um dos professores que nunca esqueci foi um de história na academia na Marinha que eu estudei ao término da ditadura, ele descobriu que eu conseguia ler parágrafos inteiros sem pestanejar e numa velocidade acima da média, então me pedia para que eu lesse todos os capítulos que lecionaria, eu gostava daquela atividade, tornava a aula menos entediante, pelo menos para mim, por causa disso virei motivo de chacota dos meus colegas de turma: me alcunharam de “Jornal Nacional”.

Olhando para trás eu percebo hoje que sempre fui um aluno prestigiado por meus professores de português e história, as disciplinas que eu sequer precisava estudar para ser aprovado. Raquel e Dulce foram responsáveis pelo meu amor pela história e por ter me aprofundado com tanto gosto e zelo por essa disciplina, a gratidão que tenho a estas professoras é muito grande, mormente a conjuntura atual de completa alheação da história e de seus marcos basilares. Não sabia à época o quanto o estudo da história seria imprescindível para mim, hoje olho para trás com satisfação, acredito que as duas teriam orgulho de mim se soubessem quais as escolhas ideológicas que fiz nestes quase 40 anos.

Tive professores ruins também: um de matemática que sadicamente dava aulas, detesto matemática até hoje por causa dele, atribuí a disciplina ao seu caráter irascível e ranzinza. Era um sádico que se divertia em mostrar o lado difícil da matemática, não de ensinar de fato, deve ter sido uma pessoa triste e solitária, era perceptível que ele se divertia ao reprovar os alunos, não conheci nenhum outro professor tão pequeno e mesquinho quanto ele. Outro professor que não gosto de lembrar foi um de ciências. Ele me fez abandonar a aula depois que discutimos Criacionismo X Evolucionismo, eu argumentei que Criacionismo era mais uma questão de fé do que de provas científicas, ele se irou com o fato de eu dizer que colocaria na prova os argumentos de Darwin, porém, não alteraria a minha fé em função do que havia ensinado. Como podem ver não é de hoje que eu gosto de uma polêmica. A incapacidade dele de lidar com um aluno disciplinado e estudioso que divergia de suas afirmações me marcaram bastante e me ensinaram muito, me mostraram qual o caminho que eu como professor nunca deveria trilhar.

A foto que está no início desse post é da professora Marcia Friggi, de 51 anos, que foi agredida por um aluno recententemente (outubro de 2017), vou usar como a imagem do estereótipo de docente que quero homenagear neste texto.

Mestra Niedja, onde estiver, meu muito obrigado por acreditar em mim, muito do que sou devo a você, espero que a vida lhe tenha sido generosa o quanto você foi com um adolescente desengonçado, magricela e esquisito que só vivia com um livro debaixo do braço. Todas as vezes que assumo uma cátedra, que inicio uma aula, você está ali, pois foi com você que eu aprendi a ser professor: descobri o que há de melhor em cada um dos alunos e permitir que estas qualidades aflorem. Espero que tenha orgulho de eu ter escolhido tua profissão e espero estar honrando tua memória dignamente cada vez que inicio uma aula.

Um beijo muito carinhoso de quem nunca vai deixar de ser teu aluno.

O caminho de Barrabás



Eu dava assistência pastoral a uma pequena comunidade presbiteriana na periferia do Recife. Tentava, não com muito sucesso, equacionar o ministério pastoral com uma nascente e promissora carreira acadêmica teológica. Antes mesmo de concluir o bacharelado em teologia eu já atuava como professor de diversas disciplinas nas turmas de noviços (os calouros, como chamávamos) e de segundo ano. Por conta dessa atuação numa instituição de muito prestígio na região, expandi a carreira para outras instituições de ensino teológico, ser professor então me atraía muito mais que ser pastor. Usava a pequena comunidade que assistia como laboratório de exposição bíblica, aquilo que mais me atraía na área depois das disciplinas de história da igreja e de Israel.

Um dia, resolvi fazer uma exposição dos evangelhos no que era denominado de “Culto de Doutrina”, tomando por base o evangelho de Lucas e cotejando com as passagens paralelas dos demais sinóticos (os que tinham a mesma visão que Lucas: Mateus e Marcos). Quando tangenciei o capítulo 27 de Mateus, que tratava da experiência de Pilatos com o Nazareno eu, que buscava a interação com o grupo, perguntei: - Quem era Barrabás e qual o crime que ele cometeu? A irmã Diana, lépida como sempre, levanta a mão e brada: “- Ele estuprou uma moça!”. Eu fiquei pasmo, extático. Já havia lido a bíblia toda diversas vezes e, obviamente nunca me deparara com tal afirmação. Olhei para a irmã Diana e perguntei: - Onde você leu isso? Ao que ela me respondeu em meio ao espanto geral dos que estavam na igreja naquela noite: “- Na bíblia, olhe aqui em Lucas, 23:17, e Barrabás havia sido preso por sedição na cidade e por ter cometido um crime” (suponho hoje que a versão que ela usava era alguma antiga de Figueiredo ou Almeida, versão corrigida). O resto do culto eu tive que explicar a diferença entre sedição e “sedução” (ela havia confundido os termos e tirado conclusões a partir dessa interpretação), e foi, talvez, a exegese laica mais inusitada que me deparei na vida sacerdotal.

Nas tradições armênia e siríaca há manuscritos dos evangelhos que dão testemunho que o nome do preso que Pilatos apresentou como alternativa para ser solto por ocasião da prisão de Jesus, era Jesus, o Barrabás (Filho do pai em aramaico, ou talvez, segundo alguns estudiosos: “filho de um rabino”), que teria sido suprimido pelos escribas em respeito ao Jesus, o Nazareno. Já que a história que estava sendo contada era a de Jesus, o chamado Cristo, não fazia sentido que outro lhe ofuscasse (Jesus era um nome muito comum naquela época). Barrabás é mais um título do que nome próprio, e é correto afirmar que Jesus, o Nazareno, também podia ser chamado de Barrabás, já que ele se posicionava como “Filho do Pai”. Então fica fácil entender essa supressão pelos copistas dos manuscritos.

Quem era então esse prisioneiro, segundo o fraseado da Bíblia de Jerusalém, acusado de motim e homicídio? O texto já nos deixa saber de antemão que ele era bastante conhecido e gozava de boa fama com o povo. Qual o motivo desta fama e qual parte da população (a sociedade judaica da época era bastante fragmentada) lhe tinha apreço? Em Marcos 15:7 somos informados que ele era um dos “amotinadores que, numa revolta, haviam cometido um homicídio”, em outras palavras, um assassino e revolucionário. É bastante razoável pensar que ele fosse o líder de um motim contra os romanos liderados por Pilatos (quando este tentou usar os fundos financeiros do Templo em proveito próprio), tinha cometido o mesmo crime que os judeus atribuíram falsamente ao Nazareno. Alguns estudiosos pensam, não sem embasamento, que ele fosse um sicário (em latim: sicarius - “homem da adaga”; grupo que promovia atentados contra os romanos e a elite judaica que colaborava com o regime intervencionista, usavam as adagas escondidas no manto, praticavam atentados contra os alvos inimigos no meio da multidão e depois sumiam sem deixar vestígios). Tal grupo tinha aceitação entre o populacho que era espoliado, tanto pelos ricos judeus colaboracionistas quanto pelos romanos, logo não causa surpresa alguma sua escolha por aqueles que o tinham como herói.

Houve uma combinação de forças da aristocracia com a massa pobre e manipulável (boa parte era de áreas rurais e estava em Jerusalém apenas para as festividades pascais) na escolha de Barrabás. O que precisa ser percebido é que, quando os judeus gritaram o nome de Barrabás, eles escolheram simultaneamente, intrinsecamente, o caminho da violência, do arbítrio, da Lei do Talião [da retaliação], do sangue, da vingança, da Lei inclemente e excludente mosaica, da força das armas. Era o regime do olho por olho, dente por dente, bastante atrativo para um povo que havia perdido a liberdade há bastante tempo e se acostumara com a opressão. Esse discurso encontrou guarida nos corações do piedoso, porém oprimido povo de Israel. É possível acreditar que a revolta de Barrabás contra o saque que Pilatos fizera nos fundos do templo, lhe angariou também a simpatia dos sacerdotes que viam com desgosto e desconfiança a ingerência romana no seu espaço sagrado. Eu denominaria este viés escolhido por uma turba ensandecida como o Caminho de Barrabás, em contraposição ao Caminho do Nazareno.

Nasci na tradição calvinista puritana, no melhor sentido que este termo possui. Cresci ouvindo Dona Guiomar ler um “jogral” todo ano por ocasião do 31 de outubro (na Igreja Presbiteriana do Brasil em Monteiro, Paraíba), Dia da Reforma Protestante, dia em que Lutero fixou suas 95 Teses na porta da Capela de Wittenberg, teses estas que eram uma declaração escrita para abrir um debate sobre a venda de indulgências pela Igreja Católica. Eu sabia de cor sua história, tinha apreço pela história de Savonarola, John Wycliffe, Ulrich Zwínglio, Jan Huss e o mais notável de todos para mim: João Calvino. Eu tinha pouco mais de cinco anos de idade. Fico surpreso até hoje quando vejo muitas pessoas se denominarem “calvinistas”, pois sei que muitos sequer leram o mínimo de Calvino, eu li As Institutas em espanhol e posteriormente no português rebuscado e incompreensível de Waldir Carvalho Luz, além de vários comentários bíblicos, e não julgo que tenha conseguido compreender com propriedade o pensamento teológico dele.

Até os 12 anos permanecemos nesta tradição, quando urgências familiares nos conduziram a uma igreja presbiteriana que havia abraçado o pentecostalismo da década de 1970, éramos então presbiterianos “renovados” como se chamava à época. Foi um momento difícil para mim, tive que passar por um processo de desconstrução doutrinária, até que resolvi cursar teologia depois que abandonei a carreira militar na Marinha, entrei numa instituição também presbiteriana de cunho anti-pentecostal (da linha de Carl McIntire do ICCC – Concílio Internacional de Igrejas Cristãs, que morreu execrado por seus pares, quando se descobriu que era um agente da CIA), que me fez retornar à tradição da infância. Pude assim ter acesso a lados opostos do que chamaria de “protestantismos”, já que considero impróprio falar de protestantismo brasileiro, tal é o caráter multifacetado deste (fui presbiteriano moderado, pentecostal, fundamentalista e da Igreja Presbiteriana Unida, de orientação da Teologia da Libertação, tudo isso numa vida só).

Com a aproximação com Robinson Cavalcanti (ícone da minha infância a quem tinha acesso através da revista Ultimato), bispo anglicano de Recife, eu me senti aceito naquela tradição de caráter tão heterogêneo e ecumênico, eu podia ser calvinista, esquerdista, não ter uma visão literalista da bíblia e ainda assim ser aceito. Porém, ser aceito incondicionalmente implicava em aceitar o outro incondicionalmente, o que nem sempre é verdade e a história da Diocese Anglicana do Recife serve como amostra de que é fácil falar de tolerância e inclusividade, desde que estas “diferenças” sejam apenas litúrgicas, ou seja, puramente cosméticas.

Hoje, primavera de 2018 (outubro, 26), a grande maioria dos líderes eclesiásticos brasileiros induziu seus rebanhos (segundo alguns votos de cajado, segundo minha visão, voto de cabresto mesmo) a escolher o mesmo caminho que a aristocracia judaica e o movimento sacerdotal induziram o povo judeu a escolher naquele fatídico dia: o Caminho de Barrabás! Mesmo sabendo quais foram as consequências da escolha feita pelo populacho judeu no primeiro século da Era Comum.

Não tenho como ficar indiferente às escolhas que foram feitas, no aço que fui temperado não há incoerência, seja política, social, intelectual ou religiosa, também não conheço a categoria da indiferença. Em virtude dessa escolha em massa, venho por meio deste manifestar publicamente algo que já fiz na prática há alguns anos, desde 2013 para ser preciso: corto todo e qualquer laço de ligação, seja histórico, seja cúltico, seja de herança, com o protestantismo brasileiro. Aos muitos amigos dessa tradição, por favor, não me considerem mais vosso irmão, posso ser e vou continuar sendo vosso amigo, mas não irmão.

Não posso ser irmão de quem escolheu o Caminho de Barrabás, mesmo sabendo que é um caminho de violência, um caminho do mal, um caminho de derramamento de sangue inocente. Não posso ser irmão de quem apoia um regime que será homofóbico e estimulará a violência contra aqueles que pensam sua sexualidade “supostamente” de forma distinta da maioria. Não posso ser irmão de quem propiciou que um regime racista e fascista chegasse ao poder por meio do voto. Não posso ser irmão de quem contribuiu para que a misoginia seja legalizada e regulamentada no país. Não posso ser irmão de quem votou num candidato que fez do discurso de liberação das armas a única proposta real e concreta de sua plataforma de governo. Não posso chamar de irmão quem deixou o ódio dominar o coração a ponto de ficar cego às verdades que eram postas todos os dias, aos apelos e clamores das minorias e daqueles que sabiam que seriam perseguidos no futuro. Não posso ser irmão de quem colaborou para colocar no poder um regime que pode me prender, me exilar ou me matar, pelo simples fato de que eu seja contrário ao que ele prega e defende e por eu ser também intransigentemente defensor da vida e dos direitos básicos do ser humano.

A leitura que aprendi a fazer do evangelho do Nazareno choca-se frontalmente com tudo o que vocês defendem, não posso sequer dizer uma boa parte de vocês, me desespero pensar que mais de 95% do evangelicalismo brasileiro adotou o Caminho de Barrabás. Acredito que o termo que melhor define a experiência evangélica brasileira é um trecho de uma música gospel: “Gadara é assim, ninguém se importa com os outros. Cada um vive pra si, alimentando os seus porcos. São indiferentes, vivem para seus interesses. Só querem ter! Querem ter! Só querem ter”. Não quero fazer parte sociedade de Gadara, vou apagar da minha história teu nome, não quero lembrar que um dia tive orgulho de ser cidadão de ti e a muitos convidei para que se tornassem cidadãos também, hoje sou peregrino em terras ermas, mas não beberei de tuas águas fétidas e nem dormirei em tuas camas de espinho. Parafraseando um antigo hino que eu sempre amei: Adeus Gadara, há Deus!

Eu vou continuar no Caminho do Nazareno, caminho difícil, cheio de pedras e espinhos, mas, neste caminho, quando parar para descansar e colocar a minha cabeça numa pedra, não terei nenhuma contradição ou incoerência para afastar meu sono, da mesma forma, quando diante do espelho não terei do que me envergonhar. Os que estão neste Caminho, estes sim, são meus irmãos (alguns são protestantes, outros católicos, alguns espíritas, outros de religiões de matriz africana, alguns ateus, alguns judeus, alguns sem religião, alguns gays, alguns indígenas, alguns negros, etc.), são poucos, porém são persistentes e determinados, não são movidos pela busca desenfreada por prosperidade ou poder, são movidos por três coisas apenas: a fé, a esperança e o amor, porém o maior destes é o amor.

Primeira carta: livros e leituras



Jaboatão dos Guararapes, primavera de 2018.

Prezado e estimado Nilton,

Primeiramente sente-se em algum lugar sossegado, pode ser aquele banco de pedra no quintal ou nos degraus da escada, leia esta carta devagar, calmamente. Eu sei que você está assustado em recebê-la, na verdade é a primeira carta que você receberá na vida e ela foi enviada por alguém que tem o mesmo nome que o teu e está com a data de um futuro tão longe (vou logo te adiantar: o mundo não vai se acabar no ano 2.000, aquela teoria do pastor Oliveira que o mundo terminará ao fim desse milênio é um erro de interpretação da parte dele, não adianta você dizer-lhe isso, vai te perguntar como você sabe, se disser que alguém do futuro te contou, vão dizer que você ficou louco, mais ainda!), mas, não se assuste. O nome que está no envelope é o seu mesmo, não há engano algum, espero que tenha recebido essa carta das mãos do Assis, o carteiro, não se admire com o que vou dizer: um dia você será colega dele de profissão e sentirá saudades da época em que ele passava na frente de tua casa e gritava: - Corrêêêêêiô! Mas a farda que você vai usar será uma outra, não é essa toda amarela, não cairia muito bem você, creio que nisso nós dois concordamos.

Você também precisa se acostumar com o tipo de linguagem com a qual esta carta foi escrita. Ela é uma carta do futuro, foi escrita quase 45 anos depois desse momento em que você está vivendo, não se espante com essa questão temporal e nem com as outras cartas que chegarão depois, algumas em ocasiões banais e outras nem tão banais assim, depois você entenderá e até esperará ansioso para que cheguem. No tempo certo todas que foram escritas chegarão as tuas mãos, apenas leia, somente isso: leia!

Você está com quase seis anos, essa carta foi escrita para chegar no momento em que aprendeu a ler, antes não faria sentido e elas não são para serem lidas pelos outros, mas sim apenas por você, foram escritas por você e para você.

Você ainda pensa em como foi perceber que sabia ler, foi uma experiência e tanto, de repente abrir um Almanaque do Tio Patinhas e entender todas as narrativas e diálogos, você nunca esquecerá, absolutamente nunca, repetirá sempre extasiado esse momento tão marcante. Mesmo aos 50 anos ainda lembrará daquele dia, logo, não precisa ficar acordado a noite toda com medo de dormir e acordar e descobrir que foi um sonho, não é um sonho, você sabe ler.

No futuro você não lerá com tanta frequência gibis, portanto aproveite e leia os que puder, desde os de Tio Patinhas, Donald, Zagor, Ken Parker, Tex Willer, Universo Marvel, Super Homem, Aquaman, Vingadores, Luluzinha, Bolinha, Homem-Aranha, Batman, Homem de Ferro e todos os outros que tiver acesso. Seja generoso com as leituras, em algum momento você vai se lembrar de cada um deles quando estiver no cinema assistindo filmes com sua filha. Sim, você terá uma filha, mas não é momento de falar disso agora.

Você vai roubar livros da biblioteca da escola para poder ler mais, já que só poderá pegar um livro de cada vez e isso será pouco para você. Não cultive sentimento de culpas, no futuro vão fazer um filme de sucesso sobre uma menina que também gostava de livros e como não podia pagar por eles, roubava-os sem constrangimento. O filme será um sucesso e ninguém chama a menina de ladra, ela é bem mais bonita que você (sinto dizer isso), mas ninguém vai te condenar quando disser um dia que roubava livros. Roubar livros é mais perdoável até do que roubar comida, pode apostar nisso, quem rouba livros para ler, rouba para alimentar a alma. Não há como julgar alguém que faz isso. Não se preocupe, você não continuará roubando livros, vai ganhar muitos e vai comprar mais ainda, até mesmo mais do que a capacidade de lê-los (você terá um emprego de “consultor” numa livraria no qual você ganhará uns 50 livros todo mês, alguns ficarão no plástico durante anos, até você conseguir ler). Em média você comprará 70 ou 80 livros por ano e lerá sempre uma média de 100 ou 120, não se preocupe, você terá onde guardá-los, você terá uma biblioteca na sua casa, algumas vezes você se trancará no quarto e ficará olhando para cada livro, resgatando a emoção que sentiu ao ler o livro pela primeira vez.

Sim, você lerá alguns livros mais de uma vez, alguns serão lidos até 06 vezes, esse será um hábito que você alimentará e terá o costume de ler 10 ou 15 livros ao mesmo tempo, se acostumará com isso e não conseguirá ler apenas um. Portanto leia todos os clássicos antes dos 15 anos, a quantidade de livros que terá que ler depois dos 30 não permite que você pense em ler os 03 mosqueteiros ou 20.000 légua submarinas com quase 40 anos, leia todos, leia com sofreguidão, você não sabe o que é isso ainda: leia como se a sua vida dependesse disso. Leia Júlio Verne, Victor Hugo, C.S. Lewis, Tolkien, Charles Dickens, Alexandre Dumas, Machado de Assis (eu sei que você vai achar chato, te garanto que no futuro vai considerá-lo o maior escritor brasileiro), Cecília Meireles, Raquel de Queiroz, José Lins do Rego e tantos outros. Se você pegar algum livro de Clarice Lispector, grave bem esse nome, não leia, você não vai entender tão fácil, mesmo aos 50 você não julga que a entende tão bem. A mesma coisa para Nietzsche, Søren Kierkegaard, Kafka e Gabriel Garcia Márquez. No futuro você vai amar Tolstoi, Dostoiévski, Mia Couto, José Saramago e Amós Oz, todos chegarão até você no devido tempo, não se preocupe em decorar esses nomes, você lembrará dessa nossa conversa quando estiver com algum exemplar deles em mãos.

Acostume-se a ser olhado de forma esquisita, mesmo aos 50 anos você ainda lerá andando. Isso mesmo, você estará tão acostumado a ler que não escolherá lugar para fazer isso: fila de banco (um dia eu te explicarei o que é um banco e porque deverá ficar na fila), ônibus (eu sei que você vomita quando anda de ônibus), no futuro você andará de ônibus para poder ler, mesmo tendo carro e sabendo dirigir (sim, você terá carro e deixará na garagem para poder andar de ônibus e metrô – com o devido tempo eu explicarei o que é isso – e ler alguns livros). Não se incomode quando for desprezado por teus colegas de escola ou vizinhos, você não tem culpa por ter duas pernas esquerdas e não possuir coordenação motora suficiente para jogar futebol com desenvoltura (no futuro você saberá o que cada palavra dessa significa, as que não souber, anote e procure no dicionário Aurélio da biblioteca da escola, você não vai acreditar quando eu te falar de um negócio chamado “Google”, mas esquece, você não compreenderá tão fácil assim!), teus amigos e colegas não são maus, eles são apenas crianças sendo crianças, não são culpados por você ter a cabeça no mundo da fantasia e da ficção, tenha paciência com eles, você vai precisar se acostumar com pessoas que não têm as mesmas prioridades que você. Para não ser tão esquisito, aprenda a contar piadas, procure ser engraçado, decore todas que puder e conte-as como se tivessem acontecido com você, as pessoas te acharão um cara legal e nem notarão que você não costuma sorrir.

Você vai cair numa ladeira por causa desse costume de ler andando, não se preocupe antecipadamente, alguns arranhões nos joelhos não causam tanto estrago assim. Terá um transtorno maior quando cair da bicicleta com o Rui, ele vai balançar a bicicleta sentado no bagageiro, ele acha que ela estará sem freios, não adianta você dizer que sabe o que está fazendo, o pânico vai dominá-lo e ele vai provocar a queda de vocês. Você precisa perdoar esta fraqueza dele, num futuro razoavelmente distante, algumas dores não curadas dentro dele vão levá-lo a cometer alguns equívocos e por causa desses equívocos ele vai encerrar a jornada aqui nesta dimensão. Você sequer lembrará dessa queda quando souber que ele foi embora, por isso, valorize o que é de fato importante e ele será o teu primeiro amigo de verdade e por muito tempo, teu único amigo. A queda vai te deixar de cama, porém uma coisa boa acontecerá: você terá tempo de sobra para ler mais livros. Outra coisa: devolva os livros de faroeste de Tio Chico, você lerá uns 500 ou 600 (vai desistir de contar depois de passar de 300), cuidado para não perdê-los, ele certamente nem perceberá se você perder, mas ele troca os que já leu por livros novos, por isso cuidado, do contrário não vai ter mais o que ler.

O costume que você vai adquirir de ler à noite pela réstia de luz da lua que entra no teu quarto através da telha de vidro vai te deixar míope, você não conseguirá ler na cozinha e nem no banheiro, tua mãe não deixará, não se pergunte porque alguém impediria um garoto de ler tanto, aos 50 anos você ainda não entenderá, logo, gaste seus neurônios (uns negócios que você tem no cérebro que está dentro da cabeça, vai descobrir depois para que serve, te ajuda a pensar, nem sempre você vai dar atenção devida ao que eles dizem, mas eles estão aí para isso), não se preocupe com a miopia, você vai usar óculos com lentes grossas para poder ler, mas não sentirá desconforto, eles te ajudarão a ser proteger das pessoas, verá que não é tão ruim assim quanto parece.

Cada carta que receberá abordará um tema, por isso não vamos tratar de outro assunto desta vez, não fique ansioso para receber a próxima carta, ela vai chegar no momento exato. Você só saberá que é o momento exato quando ele acontecer, confie em mim, eu sei quando será esse momento.

Por ora era só isso, aproveite a infância, deixe tua imaginação fluir, nunca tenha vergonha de ser um sonhador, você conhecerá pessoas e visitará lugares antes dos 10 anos que a maioria das pessoas não visitará a vida toda, portanto, você já sabe que ler não dá sono, ler dá sonhos, leia muito, leia tudo, leia a vida.

Até breve garoto, cuide bem de minha mente, cuide bem de meus olhos, cuide bem de minha alma.

Eu,

Qual o sentido de um cristão apoiar a tortura?


A gente sempre acha que não dá mais para se surpreender, mas se surpreende. E até se assusta. Estou assustado com a maneira avassaladora como a “igreja brasileira” – usando um termo bastante impreciso para me referir a esse grande fenômeno de massa que ocupa enormes espaços na mídia, arrebanha multidões, e que tem um projeto claro de aparelhamento dos espaços de decisão, inclusive com representações nas câmaras, parlamentos e outros espaços da política nacional, como o Judiciário – vem dando mostras escancaradas de engajamento não apenas político, mas partidário.

Pois essa “igreja brasileira” – formada por uma salada infinita, que vai do fundamentalismo protestante e seus derivados, até as novíssimas igrejas pentecostais-neo-pós-tudo, e que se somam a um grande contingente de católicos (no plural mesmo, pois longe da uniformidade pensada, o Catolicismo se constitui de numerosíssimos movimentos que guardam entre si uma relação muito mais simbólica, posto que no campo das ideias e práticas são absurdamente diferentes, divergentes e contraditórios) – está se superando a cada dia que passa em seus malabarismos bíblico-teológicos para escancarar o seu apoio a um candidato que apoia abertamente a tortura e a eliminação de grupos divergentes. 

Qual o sentido de um cristão apoiar um candidato que se dizendo cristão, faz apologia à TORTURA??? 

Não há sentido bíblico, ao menos não à luz da pessoa e das obras do Jesus de Nazaré. Como combinar “Bandido bom é bandido morto” com o “Ouvistes o que foi dito: ‘Amarás o teu próximo e odiarás o teu inimigo’. Eu, porém, vos digo: Amai os vossos inimigos e orai pelos que vos perseguem” (Mt. 5:43-44)? Simplesmente não dá para “esticar” o texto para desdizer o óbvio ululante. Ou você apoia o candidato-torturador e abre mão de ser discípulo do nazareno, ou vice-versa. 

Não há, certamente, um sentido lógico. Minimamente uma reflexão lógica há de nos fazer refletir que, por exemplo, dois erros não fazem um acerto. Não é possível achar que por termos uma situação de violência vamos aumentar a violência para diminuir a violência. Não faz sentido.

Não há sentido ético. Se pensamos ética como uma busca pela realização humana, como é possível combiná-la com ideais de eliminação da diferença, imposição de uma moral estrita, e falta de respeito às diferenças? 

Resta o sentido histórico... Sim, talvez seja isso. Pois se lembrarmos que grandes porções dos “cristãos” ao longo da história apoiaram as Cruzadas, apoiaram a Inquisição, participaram das Guerras de Religião, da Caça às Bruxas, estiveram do lado de Hitler e de Mussolini, participaram e participam da “guerra contra o mal” empreendida pelo “gigante protestante” que são os EUA, matando com bombas e disfarçando com bíblias...

Sim, sim... Há um sentido histórico naqueles que cantam louvores ao Jesus, preso, torturado e morto como um bandido entre bandidos, mas que apoiam os torturadores e seus apoiadores de plantão. Talvez retorne aqui a frase de Nietzsche, que dizia lavar as mãos depois de apertar as mãos de um cristão. No caso atual, talvez seja por que essas mãos estão cobertas de sangue.

Joel Zeferino é pastor na Igreja Batista Nazareth

A religião como fonte de utopias salvadoras


Hoje predomina o convencimento de que o fator religioso é um dado do fundo utópico do ser humano. Depois que a maré crítica da religião feita por Marx, Nietzsche, Freud Popper e Dawkins retrocedeu, podemos dizer que os críticos não foram suficientemente críticos.

No fundo, todos eles laboraram num equívoco: quiseram colocar a religião dentro da razão, o que fez surgir todo tipo de incompreensões. Estes críticos não se deram conta de que o lugar da religião não está na razão, embora possua uma dimensão racional, mas na inteligência cordial, no sentimento oceânico, naquela esfera do humano onde emergem as utopias.

Bem dizia Blaise Pascal, matemático e filósofo no famoso fragmento 277 de seus “Pensées: ”É o coração que sente Deus, não a razão”. Crer em Deus não é pensar Deus mas sentir Deus a partir da totalidade de nosso ser. A religião é a voz de um consciência que se recusa a aceitar o mundo tal qual é, sim-bólico e dia-bólico, sombrio e luminoso. Ela se propõe transcendê-lo, projetando visões de um novo céu e uma nova Terra e de utopias que rasgam horizontes ainda não vislumbrados.

A antropologia em geral e especialmente a escola psicanalítica de C. G. Jung veem a experiência religiosa, emergindo das camadas mais profundas da psiqué. Hoje sabemos que a estrutura em grau zero do ser humano não é razão (logos, ratio) mas é a emoção e o mundo dos afetos (pathos, eros e ethos).

A pesquisa empírica de David Golemann com sua Inteligência emocional (1984) veio confirmar uma larga tradição filosófica que culmina em M. Meffessoli, Adela Cortina, Muniz Sodré e em mim mesmo (Direitos do coração, Paulus 2016). Afirmamos ser a inteligência saturada de emoções e de afetos. É nas emoções e nos afetos que se elabora o universo dos valores, da ética, das utopias e da religião.

É deste transfundo que emerge a experiência religiosa que subjaz a toda religião institucionalizada. Segundo L. Wittgenstein, o fator místico e religioso nasce da capacidade de extasiar-se do ser humano. “Extasiar-se não pode ser expresso por uma pergunta. Por isso não existe também nenhuma resposta”(Schriften 3, 1969,68). O fato de que o mundo exista, é totalmente inexprimível. Para este fato “não há linguagem; mas esse inexprimível se mostra; é o místico”(Tractatus logico-philosophicus, 1962, 6, 52). E continua Wittgenstein:”o místico não reside no como o mundo é mas no fato de que o mundo é”(Tractatus, 6,44). “Mesmo que tenhamos respondido a todas as possíveis questões científicas, nos damos conta de que nossos problemas vitais nem sequer foram tocados” (Tractatus, 5,52).

“Crer em Deus”, prossegue Wittgenstein, “é comprender a questão do sentido da vida. Crer em Deus é afirmar que a vida tem sentido. Sobre Deus que está para alem deste mundo, não podemos falar. E sobre o que não podemos falar, devemos calar”(Tractatus,7).

A limitação do espírito científico é não ter nada sobre o que calar. As religiões quando falam é sempre de forma simbólica, evocativa e auto-implicativa. No fim terminam no nobre silêncio de Buda ou então no uso da linguagem da arte, da música, da dança e do rito.

Hoje, cansados pelo excesso de racionalidade, de materialismo e consumismo, estamos assistindo a volta do religioso e do místico. Pois nele se esconde o invisível que é parte do visível e que pode conferir uma nova esperança aos seres humanos.

Cabe recordar uma frase do grande sociólogo e pensador, no termo de sua monumental obra “Formas elementares da vida religiosa”(em português 1996): “Há algo de eterno na religião, destinado a sobreviver a todos os símbolos particulares” Porque sobrevive aos tempos, vale a afirmação de Ernst Bloch em seus famosos três volumes “O princípio esperança”: ”onde há religião, aí há esperança”.

O essencial do Cristianismo não reside em afirmar a encarnação de Deus. Outras religiões também o fizeram. Mas é afirmar que a utopia (aquilo que não tem lugar) virou eutopia (um lugar bom). Em alguém, não apenas a morte foi vencida, o que seria muito, mas ocorreu algo maior: todas virtualidades escondidas no ser humano, pela ressurreição, explodiram e implodiram numa surpreendente realização. Jesus de Nazaré é o “Adão novissimo” na expressão de São Paulo (1Cor 15,45), o homem abscôndito agora revelado.

Mas ele é apenas o primeiro dentre muitos irmãos e irmãs; também a humanidade, a Terra e o próprio universo serão transfigurados para serem o corpo de Deus.

Portanto, o nosso futuro é a transfiguração do universo e tudo o que ele contem, especialmente a vida humana e não o pó cósmico. Talvez essa seja a nossa grande esperança, o nosso futuro absoluto.

Leonardo Boff e articulista do JB on line e escreveu A nossa ressurreição na morte, Vozes 2002.

Ouvir Bolsonaro?


Realizado o desejo de que uma chacina ocorra a cada semana, como um ex-secretário nacional da juventude confessou recentemente, então começaremos a respirar.

“Um animal não passa sem inquietação
ao lado de um animal morto de sua espécie”
(Rousseau, Discurso sobe a desigualdade, I)

Pode ter havido mais de uma razão para que outros não tenham feito o mesmo que Jean Willys, mas a verdade é que muitos inclusive que votaram pelo impeachment poderiam ter se juntado ao deputado do PSOL para mostrar seu repúdio àquele que, ao defender o ex-militar que homenageou o coronel Ustra, acenava com uma ordem que supostamente iria além do que admitiriam muitos do partido do “sim” à revogação do mandato presidencial. Deputados do PSDB, do PSB, mesmo do DEM e do PTB, além, naturalmente, dos partidos de esquerda, poderiam, todos, sem distinção, ter reagido, para além do “decoro”, cuja manutenção, nessa altura, apenas duplicava o horror – é verdade que a câmara televisiva, fixada no local da votação, não permitiu ver muito. Em todo caso, o exagero retórico aqui é necessário, pois o nome “Ustra”, pronunciado com devoção – como se devesse adquirir características táteis, tomar corpo e grudar em outros corpos, especialmente no corpo de Dilma – constituía mais propriamente uma fórmula invocatória de tudo que não deveria jamais ser trazido à lembrança, a não ser sob uma controlada e precisa ritualização, pois deve ser respeitado o temor de que certas palavras acordem os mortos. Por isso, deixar essa palavra soar livremente, como se tem feito, em debates promovidos por clubes, programas de auditório, talk-shows, como a imprensa norte-americana fez tanto com Trump, a quem, no entanto, repudia (mas não repudiava as cifras trazidas pelo seu ibope), ao longo de anos e muito antes de sua campanha eleitoral, permitindo que se tornasse familiar o mais sinistro, ouvir o que ele tem para falar, “por sórdido que seja”, como dizem alguns bem-pensantes, pois isso seria respeitar o “Estado Democrático de Direito”, reduzido por alguns a uma espécie de fórmula mágica, salva-vidas precário daqueles que já não sentem o tapete debaixo dos pés e veem se dissolver a própria identidade política – não é ouvir, na verdade, mas consentir que soe livremente o veredito arcaico de seu enunciado, ávido por destruição tanto como o gesto de “não devo nada a ninguém”, lido como ousadia por seus entusiastas – oh ele ousa dizer o que estava na ponta de nossa língua, mas não dissemos até agora porque somos covardes. Ele é que tem colhões! E assim, na vala da covardia, vão sendo jogados decoro, respeito, senso de limite, assim como a expressão formalizada de uma convicção íntima, a tal opinião. Na verdade, seria interessante imaginar o que seria a convicção do deputado se minimamente formalizada, assim como as convicções de tantos que se expressam selvagemente em portais e redes sociais. Por uma imposição interna da forma, esse conteúdo mortífero teria de perder um pouco de si. Creio que nem o partido nacional-socialista alemão ousava se expressar assim em suas campanhas iniciais e falar tão cruamente de seu projeto de morte: ao menos na fachada, prometiam vida, comunidade, espírito, e se expressavam de um modo que mal se distinguiu em princípio das propostas do partido comunista, de que tiravam impulso para sua posição, atraindo até mesmo um certo contingente de forças progressistas para a sua base, como a promessa aos trabalhadores de que se apossariam dos meios de produção – ainda que aos capitalistas dissesse o contrário: impedir a expropriação. De fato, a assombrosa pobreza de linguagem do ex-sargento de polícia deve muito ao empobrecimento geral do vocabulário da política, também à esquerda.

Na falta de requisitos como forma e senso de limite, não há a menor perspectiva de debate esclarecido. Pois se se tratasse de debate republicano, esfera pública democrática, instituições iluministas, “o que ele tem para falar” talvez nem chegasse à consciência e buscasse outras soluções, não racionais, como um sintoma, um tique nervoso, mas jamais a expressão articulada. “O que ele tem para falar” só teria lugar no divã de um analista ou em convescotes subterrâneos com seus camaradas, jamais na esfera pública que se quer democrática. O que chamam, mesmo os que o desprezam, “ouvir a opinião de Bolsonaro”, que em pesquisa recente atinge 20% de intenções de voto, é permitir que se escoe a água mole do elogio da tortura, do estupro e do extermínio, sobre cabeças não tão duras assim, é permitir a relativização de máximas universais e a consideração de mil casos particulares em que cabe o assassinato, avulso ou de massa: em vista do momento, de certos grupos, em vista disso, daquilo – no fim de tudo chamado, conforme a expressão local e grosseira de seu fascismo, de bandidos

Por que então não houve mais manifestações como as de Willys, que solitariamente reagiu ao que no entanto deveria ter feito tremer boa parte daquele coletivo? Cuspir não seria a única reação possível –o corpo poderia exprimir, espontaneamente, sua repulsa de várias formas: gritando, desmaiando, vomitando, abandonando a sala, se enrugando numa careta. Em suma, haveria muitas maneiras, e, claro, também cuspindo, não necessariamente no deputado – alguém já o fazia –, mas no chão. Por que não cuspiram todos no chão em sinal de repulsa e em defesa da humanidade? Sim, o corpo poderia exprimir, só ele, na sua inteligência própria, formada ao custo de inúmeras lutas e perigos, que antecedem a própria história humana. O corpo tem memória – sim, ele tem, ele deve ter! Em quantos braços ali a linha dos pelos se eriçou? Em quantos dos presentes o pulso cardíaco se acelerou? Se fossem gambás, teriam certamente desprendido um cheiro ruim, que isolasse o agressor. Como já disse, não é possível saber pelas imagens se soou um sinal de alerta mais geral na Câmara. Mas o fato é que se buscou mais tarde advertir e punir o único que reagiu, mediante a sentença, tão cara, mas tão cara, aliás, ao espírito do capitalismo de forma geral e, na versão última, neoliberal, reduzida à única máxima geral que entre os homens da cidade ainda faria sentido: isso não é profissional – não é assim que se age com colegas, isso fere o decoro parlamentar, eles estavam em ambiente de trabalho e outras patacoadas. Quando era de supor que a Câmara devesse pertencer a uma esfera mais alta e mais livre de negócios e interesses humanos que o mundo do trabalho… Buscou se salvar por uma particularíssima ética o que afrontava o âmbito mais amplo da moral e da dignidade humana. O “profissional” só pôde entrar no lugar do humano por uma dessensibilização pelo sofrimento para o qual qual acenava a palavra nefanda – nessa dessensibilização, ou descolamento do corpo vivo, toda razoabilidade é rematada burrice e tão cega como criaturas de um olho só.

A sensibilidade para as dores alheias o filósofo Schopenhauer chamaria de compaixão, a propensão em diminuir o sofrimento do outro, a qual, apesar de seu pessimismo, ele considerava universal. Mas a compaixão como ato moral puro se revelaria especialmente no momento em que um corpo, em movimento espontâneo, sai em auxílio de alguém que vê sofrer ou está em perigo. Trata-se de “uma participação imediata, sem nenhum pensamento de fundo, em princípio nas dores do outro e em seguida na supressão desse mal”, o que supõe por um momento “que seja destruída a diferença entre mim e o outro”. Mais inimigo da piedade era para ele não o egoísmo, que tinha por um afeto antimoral embora humano, mas o sadismo, que chamava de crueldade, o interesse e o prazer no sofrimento alheio e mesmo em sua produção – interesse que considerava “diabólico”, e não mais humano. Por isso, apesar de emprestar da moral cristã alguns termos, era uma oração de antigos hindus a que mais admirava: “Não sei de oração mais bela que aquela de que os antigos hindus se servem para fechar seus espetáculos (…). Eles dizem: ‘Possa tudo o que tem vida ser libertado do sofrimento!’. É inequívoca a base somática da virtude que elege como anterior à justiça, a qual é tanto mais verdadeira quanto mais provém daquela. Por razões semelhantes é que Eduardo Pavlovski, grande dramaturgo argentino, psicanalista de formação e nome de referência do psicodrama na América Latina, escreveu num de seus artigos na imprensa: “A cumplicidade civil é um conglomerado de corpos imóveis e aterrados. Quando falo de corpos me refiro a um regime de afecção, ao regime de conexão com outros corpos”. No centro de muitas de suas peças e reflexões está o problema, muito reichiano, aliás (sua fonte teórica mais citada a esse respeito, porém, é Deleuze), do fascismo como uma forma de relação com o mundo e com o homem, de uma atitude diante da vida, para ele plenamente endossada pelo neoliberalismo: é essa a atitude do médico de Potestad, que vistoriava, com frieza profissional e a serviço do governo ditatorial, o estado clínico de recém-torturados. Não se trata em princípio de um homem cruel, mas antes de um patético e atribulado pai de família. Um homem banal – “O mal é banal”, como se espantou Hannah Arendt na análise que fez de Eichman, que, submetido, durante o processo de seu julgamento em Jerusalém, a diversas perícias com equipes de psicólogos e psiquiatras, foi julgado “normal”. Seria preciso então, diz ela, questionar esse conceito de normalidade.

São normais afinal os que não acodem quando se grita socorro, não desmaiam, não se enrugam, não se contraem num espasmo, mas apenas assistem impassíveis, quando não filmam, o espetáculo do sofrimento do outro se desenrolando diante dos seus olhos e ao vivo, ou tranquilamente jogam futebol ao lado de um corpo desovado na praia durante a madrugada? A atonia somática, que parece aumentar à proporção do incremento de estímulos e choques da mais variada natureza, inclusive midiática, precisaria ser investigada, mas em conexão com a barbárie já própria a uma sociedade de origem escravista, que criou condições especialmente propícias para a formação de indivíduos sádicos, perfeitamente frios, ao menos quando se trata de certa “classe” de gente. Quantos olhos não se envisgaram e pararam, absortos no espetáculo oferecido diariamente pelos nossos pelourinhos? – mas a compaixão, diz Schopenhauer, não reconhece classe (nem mesmo espécie). Ela é uma capacidade natural de retratibilidade como uma acusação mimética da dor do outro, seguida de uma ação com vista a impedi-la, mesmo que se corram riscos. Mais enigmáticos ainda que os que, tomados de fúria irracional, lincham – são os que assistem ao linchamento.

Numa entrevista à TV Câmara do Rio, sob a complacente escuta do jornalista, que tinha começado a conversa com Bolsonaro avisando se tratar de um “querido amigo”, o ex-policial afirmava, depois de dizer que um colega parlamentar deveria ser submetido ao pau-de-arara: “Você sabe que defendo a tortura…”. O programa está tranquila e espantosamente disponível na internet, e não devem ter chovido críticas e mensagens furiosas – não devem ter se viralizado – o suficiente para fazer que seu diretor e a emissora o retirassem com um devido “mea culpa” e o próprio entrevistado voltasse a colocar o rabo entre as pernas, pois não seria tempo de fazê-lo passear à luz do dia. Mas este tempo, passado ou futuro, chegou, e multiplicam-se as hipóteses e versões para isso ter acontecido – o mais importante de tudo é que ele chegou, não percamos isto de vista em nenhum momento nem adiemos mais essa constatação. Aquilo que jamais deveria ter acontecido aconteceu. Quanto à emissão (de 2009), vê-la é penetrar numa zona que toda civilização que merecesse esse nome deveria tratar como santuário, acessível a poucos e apenas mediante certas provas –porque também o horrendo precisa de santuários: “Não vai falar de ditadura militar aqui. Só desapareceram 282. A maioria marginais, assaltantes de bancos, sequestradores. (…) E fazemos um trabalho que a ditadura ainda não fez: matamos uns 30.000, começando com o FHC (…). Se vão morrer alguns inocentes, tudo bem”. Talvez o mais grave de tudo seja: parte da multidão não se importa e outra parte está entusiasmada (“ele é muito querido”, como disse esta semana o diretor do Clube Hebraica do Rio de Janeiro). Enunciados de conteúdo tão grave podem ser proferidos antes mesmo que o candidato seja eleito, ou a “batalha” comece. O governo de Bolsonaro provavelmente seria muito mais… do mesmo. Como ele já avisou, terão mais pulso firme em fazer que só um lado da batalha vá para o cemitério, como se isso já não fosse o mais comum… “O que falta neste Brasil, Sr. Presidente? Falta um Presidente da República que assuma, que diga o seguinte: ‘Em combate, soldado meu vivo não senta em banco de réu’. E ponto final. Estamos em combate!”. A escala em que o horror ocorre ainda não é suficiente…

Mas deixemos o entrevistado de lado, e contemplemos mais, já que nos é tão facilmente acessível, aqueles que o olham e ouvem, impassíveis, ou quase. Essa complacência – ela talvez seja mais assombrosa. A partir de que momento ela começou a existir? A partir de que momento se começou a defender publicamente a tortura, prática no entanto jamais extinta entre nós, da senzala à periferia, presídios e morros, e irradiada para corpos de outras classes em períodos de exceção mais generalizada? A sua defesa pública e continuada, nem sempre seguida de tremores e contemporizada por muitos (oh, ele é polêmico, chega a ser engraçado!), me parece inédita no país e pertence, ao mesmo tempo, a um contexto mais amplo, em que a justificativa de sua prática começou há muito a tomar espaço. A propósito da invasão do plenário da Assembleia Nacional em novembro de 2016 por 40 pessoas exigindo a volta da ditadura militar, bem foi lembrado que não se tratava de mera opinião. É verdade, sob a capa de “opinião” e, eu acrescentaria também, liberdade de imprensa, o mais bárbaro vem à tona na dita esfera pública, se replica e viraliza, com risadinhas nervosas ou não, condescendentes ou não, de quem lhe deu toda a corda pra falar, com toda a “liberdade”. Com esta palavra, muitas vezes se amordaça aquele que diz “basta, não suporto mais, piedade, senhores, piedade! Meus ouvidos e meus olhos não suportam tanto estímulo letal! Vocês não têm o direito que imaginam ter, a liberdade de me matar um pouco a cada dia”. Dando costas quentes para o criminoso e o cúmplice na incitação ao crime, ela garante que circule a última mercadoria de um mercado exausto, que alimentou de todas as formas e imagens que pôde a fome de morte Escutar um louco com sede de tortura e acenando com um futuro em que poderia ser presidente – sentimos um frisson, a morte de raspão, talvez no vizinho – consegue ser ainda mais emocionante do que assistir ao elogio ou a franca incitação ao crime, à tortura e ao linchamento da parte de alguns jornalistas ou âncoras. Trafegando numa zona entre política, policial e midiática, ela constitui valor de uso para o telespectador, acrescido, assim, de mais-emoção – o enunciado de um provável presidenciável acalentando crimes contra a humanidade! Dêem-me o voto, e vocês verão. Por enquanto, nos excitamos, acumulamos sensações.

Uma brisa passa, o leite se enruga numa nata – muitos não se enrugam, não se retraem, não parecem afetados pela descarga de forças mortíferas a seu lado. Estamos diariamente submetidos ao nefando, olhando o que jamais deve ser olhado sem nenhuma proteção, como o rosto de Medusa, que nos deveria petrificar a um único acontecimento destes, e continuamos –mas só deus sabe de que forma é que estamos continuando. De que forma afinal estamos continuando? Isso só é possível com partes vitais queimadas.

Conforme um juízo que Bolsonaro exprimiu em 2014: “A única coisa boa do Maranhão é o presídio de Pedrinhas”. Não está em jogo apenas um pronunciamento “polêmico”, adjetivo, aliás, com que o ex-sargento é frequentemente apresentado em programas televisivos e radiofônicos, como se se tratasse de uma “diferença” a mais no mercado identitário: há os gays, os negros, as mulheres etc. e os excêntricos hostis a gays, mulheres e negros. De novo, chamá-lo de “polêmico” é nos deixar engambelar pelo uso inapropriado, embora provavelmente não ingênuo, de um vocabulário iluminista, pelo qual se trataria de apenas “uma opinião” entre outras, a ser ouvida, apesar de horrenda. Na verdade, não estamos apenas diante de um de juízo de gosto, opinião ou qualquer outro termo que se poderia retirar de um vocabulário tão decrépito como o do mundo que este secundava e estertora. No enunciado conforme o qual o melhor de um Estado – aliás, esse é dos mais pobres do país – é o lugar onde rolam cabeças dos que não tiveram lugar nele, há desejo e projeto, pois mal se oculta que o melhor que se poderia fazer ao Maranhão é transformar Pedrinhas em totem e princípio de organização de toda a sociedade, o que aliás já está em andamento. Mas o edifício de uma verdadeira nação precisará de muito mais pedrinhas… O melhor não é o que se pode apontar para a vida da sociedade, mas o que se pode propor de morte – assim como alguns pastores neopentecostais preferem falar mais em Satã que em Deus – , separando-se o vasto joio de um trigo cada vez mais restrito. Para o joio imprestável se retira a universalidade dos direitos, cuja lei que os determina já vai sendo modificada a toque de caixa e em muitas madrugadas de modo que esta não venha rigorosamente a prometer mais nada. O que está sendo pavimentado é o caminho para a política meramente como extermínio, pois, acredita-se, depois de todos os indesejáveis terem sido abolidos, depois de os violentos (e não importa se sob essa categoria se “subsumem” também inúmeros pobres ladrões de galinha) terem sido violentados até a morte pelas milícias e grupos informais semelhantes a Einsatzgruppen e tribunais de exceção e, claro, pela polícia, a vida então poderá começar. Para isso, deixe-se, aliás, que a polícia, ainda mais desumanizada pelas condições de trabalho e formação, aja a seu bel-prazer, sem precisar de ordens de cima, como em parte já ocorre, autônoma ou anárquica, “pró-ativa”, pois há muito trabalho pela frente. 

Realizado o desejo de que uma chacina como a de Amazonas ou Roraima ocorra a cada semana, como um ex-secretário nacional de juventude confessou recentemente, então começaremos a respirar.

Por Priscila Figueiredo

A arcaica lavoura de Nassar


Uma impressão similar à que tive ao ler Um copo de cólera tive também ao ler Lavoura arcaica: a narrativa de Nassar a todo o tempo parecia me remeter à prosa rascante de Franz Kafka. Essa percepção, sobre a qual já falei na resenha que escrevi sobre o primeiro livro, foi redimensionada no segundo livro, pois a história ali contada é de tal maneira límpida e solene, que a catarse, a tragédia, aparece como um golpe desferido após uma longa gestação de prazeres sinestésicos. Não à toa é tão fulminante e desconcertante, é “um machado para quebrar o ar de gelo que há dentro de nós.”

Mas, antes de me fiar em recursos investigativos dos quais já me utilizei outrora ou de querer fruir a obra de um autor através de obras de outros autores, ao invés de partir da sua singularidade, deixem-me discorrer um pouco sobre o enredo, a estrutura e os personagens de Lavoura arcaicaO romance foi publicado em 1975 e conta a história de André, filho de uma família camponesa, que deixou a casa paterna após constatar que não conseguiria continuar sob a égide da mentalidade tradicionalista e conservadora que imperava sobre o sítio em que habitavam. Entre outras razões. A sequência que abre o livro é justamente aquela em que Pedro, irmão de André, chega ao quarto de pensão do irmão, e busca convencê-lo a voltar para casa.

As feições psicológicas dos personagens vão se desenhando com riqueza apesar de Nassar ser preciso e econômico em sua escritura. Pedro é um tipo mais calmo, de espírito mais brando, que busca reconciliar as pontas soltas da família e reconstituir o tecido existencial dos tempos de outrora, nos quais imperava a harmonia. André é o espírito flamejante, sedento de liberdade e constantemente propenso a entregar-se com ardor as suas paixões e arroubos. O pai representa a típica vontade férrea e o pulso firme daqueles cujas rédeas da família e do sítio repousam à mão, decidido, direto, bruto e sistemático. A mãe vive em constante estado de tensão, esticada sobre os dilemas familiares entre dois pólos de atitude: a obediência ao rígido patriarca e a candura maternal para com os filhos. Ana é a filha, a mulher a florescer, confusa, ardorosa, sensível e propensa a assumir posturas extremas diante das invectivas dos pais. Lula é o caçula, o caçula que parece ter aprendido com os irmãos a atitude gauche daqueles que não se conformam com as normatizações cotidianas de uma vida sob um estigma.

A trama do livro decorre em torno do amor proibido que André sente por Ana, assim como sua reciprocidade. O contraste entre essa polêmica relação e o pano de fundo de tradições conservadoras clássicas do campo dá o tom com o qual a trama se move. Nassar consegue delinear traços típicos da mentalidade e da visão de mundo da “lavoura arcaica” através de pinceladas apuradas, traduzindo nos atos e palavras do pai, por exemplo, todo um constructo de valores e elementos históricos, assim como na postura da mãe, a partir da qual o tecido existencial da questão da posição da mulher no mundo da lavoura arcaica é trazido a lume.

O romance incestuoso que põe em questão o suposto arcaísmo da lavoura não passa despercebido como algo chocante aos olhos do autor. Ele não quer nos levar a relativizar de maneira absoluta o fato de que se trata de um tabu profundamente arraigado, mas conduzir nosso olhar para uma perspectiva perturbadoramente interessante: o de como a transgressão amorosa de André e Ana se encontra incrustada dentro de um cosmos particular, o modo de vida rural.

Para que esse conflito tenha profundidade e seja cotejado em sua complexidade, Nassar faz o movimento de urdir a tessitura sentimental e moral do cosmos da lavoura arcaica. Para tal ele busca nos personagens e nas situações recursos através dos quais essa ambiência (ambiência no sentido de extrapolar o espaço e transformá-lo em arranjo e experiência humanos) venha à tona. A postura rígida do pai, por exemplo, é um dos elementos que compõem a vida nos domínios da lavoura arcaica, assim como ela é, também, um dos elementos que indispõem André a esse mundo. A moralidade estrita, o trabalho duro e estafante, a aridez existencial que esse mundo costuma cobrar de seus habitantes são outros dos elementos que ajudam a compor o panorama espiritual e humano da vida na lavoura.

É assim que o leitor, ciente da textura humana desse modo vida, consegue enxergar as várias dimensões do ato de André bem como a beleza rústica dessa experiência existencial. Nassar não quer nos conduzir a julgamentos fechados, mas chamar nossa atenção para a complexidade da questão, apesar da moralidade polarizante nela imbricada. Não moralismo, moralidade.

Creio que seja por conta dessa intencionalidade velada que ele faz sua narrativa ter algo de parábola bíblica. O retorno de André ao sítio tem em torno de si uma aura estarrecedoramente similar à bíblica volta do filho pródigo. A dança profana de Ana, celebrando de forma ousada a volta do irmão amado, tem algo que lembra as descrições da mulheres pecaminosas que perambulam pelas páginas da Bíblia, entre elas a famosa – e controversa – Maria Madalena. A atitude extremada do pai tem algo daquele ranger de dentes que não raro espoca em algumas das histórias bíblicas. O próprio patriarcado parece ser um outro ponto de semelhança entre uma e outra narrativa.

Com poucos elementos e personagens, Raduan Nassar cria uma bela história. A riqueza psicológica dos personagens dá conta de expressar o espírito e a essência dos conflitos da lavoura arcaica e de suas dinâmicas humanas. Os objetos e os eventos são revestidos de tal poder simbólicos que prescindem da existência de mais deles: o sono fingido de Lula como a cumplicidade confusa de dois deslocados naquele mundo; os acessórios de Ana como a coroação ritualística da dança catalisadora da catarse; o arroubo do pai como a tragédia do homem que quer preservar sua rigidez patriarcal a todo o custo.

Costurando sentimentos, personagens e situações, a prosa poética de Nassar consegue dar conta de explorar algumas das várias dimensões que, entretecidas na trama da vida e da existência humana, formam a “geometria barroca do destino”. Com uma expressividade muito bem trabalhada e alocada, Lavoura arcaica consegue ir além de suas imediações históricas e suas circunscrições específicas, sendo um clássico no sentido universal, isto é, que lida com dramas que pertencem ao domínio da assim chamada natureza humana, e não somente daqueles personagens ou dos sujeitos que os inspiraram.