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Liderança em tempos de crise


GOODWIN, Doris, K. Liderança em tempos de crise; Tradução de Alessandra Bonrruquer. 1ª edição Rio de Janeiro: Editora Record. 2020. 560 pgs.

Liderança em tempos de crise é um estudo detalhado sobre liderança, escrito por Doris Kearns Goodwin, renomada historiadora e autora, conhecida por seus estudos sobre líderes presidenciais dos Estados Unidos, que habilmente nos transporta para os bastidores da Casa Branca, onde testemunhamos como quatro dos presidentes mais emblemáticos enfrentaram desafios monumentais e moldaram o destino de uma nação: Abraham Lincoln, Theodore Roosevelt, Franklin D. Roosevelt e Lyndon B. Johnson.

Para isso, ela examina as habilidades e traços de liderança dos quatro presidentes durante momentos considerados cruciais da história do país: para explorar como esses líderes enfrentaram e superaram crises durante seus mandatos.

Goodwin mergulha minunciosamente nas vidas e carreiras dos quatro líderes, fornecendo insights valiosos e detalhados sobre suas personalidades, estilos e qualidades de liderança ímpares, como enfrentaram desafios únicos, lidaram com momentos extraordinários e lideraram o país através de crises e durante períodos críticos, que testaram suas habilidades e resiliência.

O livro é uma exploração profunda de como a liderança eficaz pode moldar o curso da história e inspirar uma nação em tempos de turbulência.

Abraham Lincoln: Goodwin analisa como Lincoln liderou o país durante a Guerra Civil, enfrentando divisões profundas e tomando decisões difíceis para preservar a União e abolir a escravidão;

Theodore Roosevelt: Ela explora como Roosevelt liderou durante a Era Progressista, lutando contra a corrupção e promovendo reformas sociais e econômicas para lidar com os desafios da industrialização e urbanização;

Franklin D. Roosevelt: Goodwin examina o papel de Roosevelt na liderança dos Estados Unidos durante a Grande Depressão e a Segunda Guerra Mundial, destacando sua habilidade em mobilizar o país e inspirar confiança durante tempos de crise;

Lyndon B. Johnson: Por fim, ela investiga como Johnson enfrentou desafios como a luta pelos direitos civis e a Guerra do Vietnã, analisando suas habilidades políticas e seu estilo de liderança.

Liderança em Tempos de Crise é uma leitura obrigatória para qualquer pessoa interessada em história, liderança ou política. Com uma combinação ímpar de narrativa cativante, pesquisa detalhada e insights perspicazes, o livro oferece uma visão inspiradora e edificante sobre como os líderes podem enfrentar desafios e crises com coragem, sabedoria e liderança eficaz.

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O Menino, a Toupeira, a Raposa e o Cavalo

Liderança baseada em princípios

Depois de ler Os 7 hábitos das pessoas altamente eficazes: lições poderosas para a transformação pessoal, O 8º hábito: da eficácia à grandeza e A 3ª alternativa: resolvendo os problemas mais difíceis da vida, li de “uma sentada” [lá vem digressão: na verdade de duas sentadas, pois li em 2008 e reli em 2009 e estou relendo agora em 2024] Liderança baseada em princípios de Stephen R. Covey (falecido em 16 de julho de 2012, em decorrência de uma hemorragia cerebral que sofreu após um acidente de bicicleta).


Este livro é uma obra fundamental que oferece uma abordagem transformadora para liderança pessoal e organizacional. Covey apresenta um modelo de liderança baseado em valores fundamentais e princípios éticos que promovam a eficácia, a confiança e o crescimento sustentável, este modelo se propõe a ser um guia inspirador para líderes em todos os níveis de uma organização.

A liderança é uma arte complexa (não confundir com confuso ou de difícil compreensão), que exige não apenas habilidades técnicas, mas também uma compreensão profunda dos valores e princípios que guiam as ações de um líder.

Covey argumenta que a liderança eficaz começa com uma base sólida de caráter e princípios, e faz uma anamnese de "Os sete hábitos das pessoas altamente eficazes", que foram concebidos para ajudar os líderes a desenvolverem essa base tão necessária, ao mesmo tempo que servem como um guia prático para alcançar o sucesso pessoal e profissional.

Cada hábito aborda uma área diferente do crescimento pessoal e da liderança, como autodisciplina, planejamento estratégico, priorização, empatia, comunicação eficaz, trabalho em equipe e autoaperfeiçoamento:
1. Ser proativo;
2. Começar com um fim em mente;
3. Colocar primeiro o primeiro;
4. Pensar ganha-ganha;
5. Procurar primeiro entender, depois ser entendido;
6. Criar sinergia;
7. Afiar o machado;

Covey oferece, ao longo do livro, insights profundos e exemplos práticos de como os líderes podem aplicar esses hábitos em suas vidas e organizações para alcançar resultados excepcionais. Ele destaca a importância de cultivar relacionamentos baseados em confiança, comunicação eficaz e colaboração, enfatizando que o verdadeiro sucesso não é apenas medido por resultados financeiros, mas também pela qualidade dos relacionamentos e pelo impacto positivo na comunidade.

A ênfase na liderança servidora é um ponto-chave do livro, por meio dela os líderes colocam as necessidades dos outros em primeiro lugar e trabalham para capacitar suas equipes a alcançarem seu pleno potencial. Covey argumenta que os líderes eficazes são aqueles que se dedicam ao crescimento e ao bem-estar de seus colaboradores, criando um ambiente de trabalho inspirador e motivador.

Além disso, "Liderança Baseada em Princípios" destaca a importância de se viver e liderar com integridade, ética e valores sólidos. Covey ressalta que a liderança eficaz não é apenas sobre alcançar metas e objetivos, mas também sobre fazer a coisa certa, mesmo quando é difícil.

"Liderança Baseada em Princípios" é uma leitura essencial para líderes em todos os níveis de uma organização, pois oferece uma abordagem holística e transformadora para liderança. Com sua combinação de princípios sólidos, insights práticos e exemplos inspiradores, Stephen R. Covey fornece aos líderes as ferramentas necessárias para liderar com integridade (o sentido mais estrito do termo: “inteiro”), compaixão e eficácia em um mundo cada vez mais complexo e desafiador. Este livro não é apenas um guia para alcançar o sucesso, mas também uma chamada para uma liderança que prioriza o bem-estar das pessoas (como alguns chavões corporativos: “gente que cuida de gente”). Com sua abordagem prática e inspiradora, Stephen R. Covey oferece um guia valioso para liderança autêntica, compassiva e baseada em valores, que pode transformar vidas e organizações para melhor.

A coragem para liderar


BROWN, Brené.
A coragem para liderar: trabalho duro, conversas difíceis, corações plenos; tradução Carolina Leocádio. BestSeller, Rio de Janeiro, 2020. 8ª Ed.

Não é um livro tão simples, quanto parece à primeira vista. Na verdade, é simples sim, apenas que na simplicidade da exposição e escrita que reside toda a força e importância desse livro, simplicidade aliada à franqueza e honestidade, honestidade, principalmente, consigo mesma.

A verdade é que até para andar com esse livro nas mãos, à mostra, é preciso coragem. Muita gente “experiente” pega nesse livro nas livrarias, dá uma olhada para os lados, só depois que abre e folheia.

Eu comprei esse livro em 2019 para dar de presente para minha filha, não foi para mim, que isso fique bem claro [esse comportamento por si só já é vulnerabilidade, e a Brené Brown fala disso como ninguém].

Coragem para liderar é, mesmo correndo risco de usar chavão, uma obra inspiradora que mergulha nas águas profundas e complexas da liderança autêntica e compassiva. Brené é uma pesquisadora renomada nas áreas que envolvem vulnerabilidade, coragem e resiliência, sua perspicácia acadêmica e expertise é explorar como os líderes podem cultivar conexões significativas, promover a confiança e estimular a inovação em seus ambientes de atuação.

O livro procura ir além das teorias de liderança convencionais, desafiando os leitores a olharem para dentro de si mesmos, explorar sua própria autenticidade e vulnerabilidade como pré-requisitos essenciais para a liderança eficaz. Ao longo do livro é destacada a importância de os líderes desenvolverem aquilo que Carol Dweck (Mindset: a nova psicologia do sucesso) chama de mentalidade de crescimento, aliada à filosofia de lifelong learning (aprendizagem contínua) e a melhoria pessoal como elementos-chave para o sucesso.

A contribuição mais marcante do livro talvez seja a abordagem compassiva [do latim compassionis, que significa junção de sentimentos] em relação aos desafios e fracassos que os líderes enfrentam. A autora encoraja os líderes a abraçarem a imperfeição e a praticarem a autocompaixão, reconhecendo que todos estão sujeitos a cometer erros e que o verdadeiro crescimento vem da capacidade de se levantar após as quedas (resiliência). Importante aqui é fazer um diálogo dessa habilidade com o conceito de antifrágil de Nassim Taleb.

Além disso, o livro também apresentar insights práticos sobre como os líderes podem construir culturas organizacionais inclusivas, promovendo a diversidade e a equidade em todos os níveis da hierarquia. Destaca a importância de criar espaços seguros onde todos os membros da equipe se sintam valorizados e capacitados a contribuir plenamente com seus talentos e perspectivas únicas.

Brown compartilha, ao longo do livro, uma série de histórias envolventes e inspiradoras de líderes que incorporaram os princípios da coragem e da vulnerabilidade em suas práticas diárias de liderança. Essas narrativas adicionam uma dimensão humana à discussão, ilustrando como os conceitos abstratos podem ser aplicados de maneira tangível em diversos contextos profissionais e pessoais.

Podemos resumir que Coragem para Liderar é uma leitura obrigatória para todos os líderes (sejam neófitos no ofício ou calejados pela experiência) que buscam aprimorar suas habilidades e criar ambientes de trabalho mais positivos e produtivos. Com uma abordagem empática e perspicácia acadêmica, Brené Brown oferece um guia valioso para liderar com coragem, compaixão e autenticidade em um mundo cada vez mais complexo e desafiador.

Io Sì - Laura Pausini

Quando você fica sem palavras

Estou aqui
Estou aqui
Talvez te sirvam apenas duas
Estou aqui
Estou aqui
Quando você aprende a sobreviver
E aceita o impossível
Ninguém acredita
Eu sim

 

Eu não sei
Qual é o seu destino
Mas se quiser
Se me quiser
Estou aqui
Ninguém te escuta
Mas eu sim

Quando você não sabe mais onde ir
Estou aqui
Estou aqui
Você foge ou ergue as barreiras
Estou aqui
Estou aqui

Quando ser invisível
É pior do que não viver
Ninguém te vê
Eu sim

Eu não sei
Qual é o seu destino
Mas se quiser
Se me quiser
Estou aqui
Ninguém te vê
Mas eu sim

Quem se ama sabe
Serve encanto e realidade
Às vezes basta aquilo que há
A vida à sua frente

Eu não sei
Qual é o seu destino
Mas se quiser
Se me quiser
Estou aqui
Ninguém te vê
Eu sim
Ninguém acredita
Mas eu sim

Um homem bom é difícil de encontrar


A avó não queria ir para a Florida. Queria visitar uns parentes no leste do Tennessee e aproveitava todas as oportunidades para induzir Bailey a mudar de ideia. Bailey, o filho com o qual ela morava, seu único filho homem, sentado a mesa na beira da cadeira, dobrava-se sobre o alaranjado da pagina de esportes do Journal. "Olhe só isso aqui, Bailey, olhe só, leia isso aqui", disse ela em pé a seu lado, com uma das mãos no quadril magro e a outra esfregando outra folha de jornal na careca do filho. "Esse tal cara que fugiu da penitenciaria federal, o Desajustado, como ele mesmo se chama, e que foi justamente em direção a Florida... leia só o que diz aqui, veja o que ele fez com as pessoas. Vale a pena você ler. Eu é que não levaria os meus filhos, fosse lá para onde fosse, com um bandido desses assim a solta na área. Não ficaria em paz com a minha consciência."

Bailey não olhou para cima, não parou de ler o que lia, e ela então deu uma volta. Foi ficar cara a cara com a mãe das crianças, mulher nova, numa calça folgada, cujo rosto era tão largo e inocente quanto um repolho, estando envolto num lenço verde de cabeça amarrado com duas pontas no alto, como as orelhas de um coelho. Ela, sentada no sofá para alimentar o bebê, dava-lhe geleia de damasco que tirava do vidro. "À Flórida as crianças já foram", disse a velha senhora. "Deveriam leva-las a algum outro lugar, para variar, para que vejam diferentes partes do mundo e possam ter perspectivas mais amplas. Ao leste do Tennessee elas nunca foram."

A mãe das crianças nem pareceu escutar, mas o garoto de oito anos, John Wesley, parrudinho e de óculos, disse: "Se a senhora não quer ir para a Flórida, por que e que não fica em casa?". Ele e a menina, June Star, estavam lendo historias em quadrinhos no chão.

"Em casa? Duvido. Por nada desse mundo ela fica", disse June Star sem levantar a cabeça.

"Ah, é? E o que fariam vocês, se esse camarada, o Desajustado, pegasse vocês?"

"Eu quebrava a cara dele", John Wesley disse.

"Nem por um milhão de dólares ela ficava em casa" June Star disse. "Tem medo de estar perdendo coisas. Tem de ir pra toda parte com a gente."

"Esta bem, mocinha", disse a avó. "Da próxima vez que me pedir para cachear seu cabelo, você vai ver uma coisa."

June Star disse que seu cabelo já era naturalmente cacheado.

Na manha seguinte a avo foi a primeira a entrar no carro, pronta para partir. Tinha posto num canto sua enorme malinha preta, que parecia uma cabeça de hipopótamo, por baixo da qual ela escondia numa cesta o gato, Pitty Sing. Não quis deixar o gato em casa sozinho, por três dias, porque ele sentiria muito a sua falta e ela tinha medo de que acidentalmente se asfixiasse ao se esfregar num bico de gás. Mas o filho dela, Bailey, não gostava de chegar a um motel com um gato.

A avó ia no banco de trás, no meio, com um neto de cada lado, John Wesley e June Star. Bailey e a mãe das crianças com o bebê iam na frente e eles saíram as oito e quarenta e cinco de Atlanta com o painel indicando 89.944 quilômetros rodados. A avó anotou o numero por achar que seria interessante saber quantos quilômetros eles teriam feito, quando voltassem para casa. Levaram vinte minutos para atingir a periferia da cidade.

A velha senhora se instalou a vontade, tirando as luvas brancas de algodão e pondo-as junto com a bolsa no espaço por trás do banco. A mãe das crianças continuava com a mesma calça folgada, e com o mesmo lenço verde amarrado na cabeça, mas a avó estava usando um chapéu de palha azul-marinho, com um buque de violetas brancas na aba, e um vestido também azul-marinho de bolinhas brancas. A gola e os punhos eram de organdi branco, com debruns de renda, e um ramalhete roxo de violetas de pano, que era um sachê, estava pendurado em seu peito. Qualquer um que a visse morta na estrada, em caso de acidente, logo saberia tratar-se de uma senhora distinta.

Disse que o dia, a seu ver, era bom para viajar, nem muito quente nem muito frio demais, e lembrou a Bailey que o limite de velocidade era de noventa quilômetros por hora, e que os guardas rodoviários, escondidos atrás de anúncios e de amontoados de árvores, logo saiam em disparada atrás, sem nem dar chance de reduzir. E apontou interessantes detalhes dos panoramas: Stone Mountain; o granito azulado que nalguns trechos aflorava de ambos os lados da rodovia; os barrancos brilhantes, de barro vermelho rajado ligeiramente de roxo; e as diversas plantações enfileiradas como rendilhados verdes na terra. As árvores estavam cheias de uma luz solar prateada, e até mesmo as mais insignificantes brilhavam. As crianças iam lendo suas historias em quadrinhos e a mãe tinha voltado a dormir.

"Vamos passar pela Geórgia bem rápido para não ter de olhar muita coisa" John Wesley disse.

"Eu, se eu fosse um menino", disse a avó, "eu não falaria assim desse jeito do meu estado natal. O Tennessee tem montanhas, a Geórgia tem suas colinas..."

"O Tennessee não passa de um lixão, é uma terra de arigós" John Wesley disse, "e a Geórgia também é uma porcaria de estado."

"E isso mesmo", disse June Star.

"No meu tempo", a avó disse, cruzando os dedos de veias finas, "as crianças tinham mais respeito pela terra natal, pelos pais e por tudo o mais. Procedia-se bem, naquela época. Oh, mas vejam só o pretinho, que graça!" disse e apontou para um menino negro, em pé na porta de um barraco. "Não daria um quadro?" perguntou, e todos se viraram, olhando o menino negro pelo vidro de trás. Ele deu adeus.

"Ele estava sem calça", disse June Star.

“Talvez nem tenha" a avó explicou. "Os negrinhos da roça não são assim como nós, não tem coisas." E acrescentou: "Ah, se eu soubesse pintar, bem que faria esse quadro!".

As crianças trocaram de revista.

A avó se ofereceu para segurar o bebê, que a mãe das crianças lhe passou por cima do banco. Tendo-o posto nos joelhos, ela agora o puxava para cima e lhe falava das coisas pelas quais estavam passando. Revirava os olhos, fazia bico com a boca, colava a cara magra e dura no rosto, lisinho e fofo, da criança, que de vez em quando lhe dava algum sorriso distante. Passaram por uma grande plantação de algodão com um cercado com cinco ou seis túmulos no meio, como uma ilhota.

"Olhem lá o cemitério!" disse a avó, apontando. "O antigo campo- santo da família. Pertencia á fazenda."

"E onde esta a fazenda?" John Wesley perguntou.

"E o vento levou..." disse a avó. "Ha, ha."

Os Testamentos

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"O Hológrafo de Árdua Hall

Apenas os mortos têm permissão para ter estátuas, mas eu ganhei uma ainda em vida. Eu já estou petrificada.

Aquela estátua era um pequeno sinal de agradecimento por minhas várias contribuições, dizia o discurso, que foi lido pela Tia Vidala. Ela fora incumbida dessa tarefa pelos nossos superiores e estava longe de transmitir entusiasmo. Agradeci-lhe com o máximo de modéstia que pude e puxei a corda que desatava o manto que me encobria; ele flutuou morosamente ao chão, e lá estava eu. Aqui em Ardua Hall não se ovaciona ninguém, mas ouviu-se uma discreta salva de palmas. Inclinei minha cabeça em agradecimento.

A minha estátua é algo descomunal, como tende a ser toda estátua, e me retrata mais jovem, mais magra e em melhor forma do que tenho estado há tempos. Estou ereta, ombros para trás, meus lábios curvos num sorriso firme, mas benevolente. Meus olhos se fixam em algum ponto de referência cósmico que se presume representar meu idealismo, meu compromisso inabalável com o dever, minha determinação em seguir em frente a despeito de qualquer obstáculo. Não que qualquer parte do céu esteja à vista da minha estátua, plantada onde está, naquele melancólico aglomerado de árvores e arbustos ao lado da trilha de pedestres que passa em frente do Ardua Hall. Nós, as Tias, não podemos ter grandes pretensões, mesmo em forma de pedra.

Agarrada à minha mão esquerda há uma menina de sete ou oito anos, mirando-me cheia de confiança. Minha mão direita está apoiada na cabeça de uma mulher agachada a meu lado, de cabelos cobertos, seus olhos voltados para cima em uma expressão que poderia ser lida tanto como amedrontada quanto como grata – uma de nossas Aias –, e atrás de mim há uma de minhas Pérolas, pronta para partir em seu trabalho missionário. Pendendo do cinto que contorna minha cintura está minha arma de choque. Esta arma me lembra de minhas limitações: se eu tivesse sido mais eficiente, não teria necessitado desse acessório. A persuasão da minha voz teria sido suficiente.

Como grupo estatuário, não somos um grande sucesso: há elementos demais. Eu preferiria uma maior ênfase na minha pessoa. Mas pelo menos eu pareço estar em meu perfeito juízo. Poderia ter sido bem outro o caso, dado que a escultora idosa – uma crente fervorosa que veio a falecer – tendia a esbugalhar os olhos das modelos para sinalizar devoção. O busto que ela fez da Tia Helena tem ares de hidrofobia, o de Tia Vidala está com hipertireoidismo, e o de Tia Elizabeth parece prestes a explodir.

Na inauguração, a escultora estava nervosa. Será que havia me adulado o suficiente com sua escultura? Eu a aprovava? As pessoas iam entender que aprovei? Cogitei franzir a testa assim que o manto caísse, mas achei melhor não: não sou totalmente destituída de compaixão.

– Ficou muito realista – falei.

Isso foi há nove anos. Desde esse dia minha estátua vem se deteriorando: pombos me adornaram, musgo brotou nas minhas dobras mais úmidas. Devotos adquiriram o hábito de deixar oferendas a meus pés: ovos pela fertilidade, laranjas para sugerir a corpulência da gravidez, croissants em referência à lua. Ignoro os artigos de padaria – geralmente eles pegaram chuva –, mas embolso as laranjas. Laranjas são muito refrescantes.

Escrevo essas palavras no meu gabinete particular dentro da biblioteca do Ardua Hall – uma das poucas bibliotecas restantes após as animadas fogueiras de livros que têm ocorrido em nossa terra. As digitais pútridas e ensanguentadas do passado precisam ser expurgadas para deixar uma tábula rasa para a geração moralmente pura que com certeza vai nos suceder. Em teoria, pelo menos, é isso.

Mas entre estas digitais sangrentas estão as que nós mesmos deixamos, e estas não são tão fáceis de apagar. Com o passar dos anos enterrei muitos ossos; agora minha vontade é de exumá-los – nem que seja só para te edificar, meu leitor desconhecido. Se você estiver lendo isso, pelo menos este manuscrito terá sobrevivido. Embora talvez eu esteja fantasiando: talvez eu nunca venha a ter um leitor. Talvez eu só esteja falando com as paredes, ou muros, em todos os sentidos.

Chega de escrevinhar por hoje. Minha mão está doendo, minhas costas ardendo, e meu copo noturno de leite morno me aguarda. Vou guardar essa arenga no seu devido esconderijo, evitando as câmeras de vigilância – que sei bem onde estão, já que eu mesma as instalei. Apesar dessas precauções, estou ciente do risco que corro: escrever pode ser perigoso. Que traições, e então que acusações, podem estar à minha espera? Há muita gente em Ardua Hall que adoraria se apoderar dessas páginas.

Aguardem, aconselho-os silenciosamente: pois vai ficar pior."
____________________________
'Os Testamentos', continuação de 'O Conto da Aia', escrita por Margaret Atwood

The Handmaid's Tale - Cena do Protesto (Repost)

O Conto da Aia de Margaret Atwood (Repost)


A canadense Margaret Atwood, autora de O Conto da Aia, sempre gostou de afirmar que sua obra não é exatamente ficção científica, mas sim ficção especulativa, asseverando que, enquanto a primeira lida com elementos que a Humanidade ainda não pode fazer ou alcançar, de uma forma ou de outra, a segunda transporta o que a Humanidade já faz ou tem a capacidade de fazer para um cenário hipotético. Apesar de a ficção científica ser uma espécie do gênero ficção especulativa, essa diferenciação é sim importante para a compreensão do que a autora pretendeu aqui.

Lançada em 1985, a história se passa em um futuro distópico em que os Estados Unidos tornaram-se uma ditadura militar teocrática comandada por homens que anularam completamente a mulher, que não passam de seres categorizados como esposas, oficialmente as mulheres dos homens de posse, Martas, o que hoje são as empregadas domésticas e as aias, que têm a função de gerar filhos. Há outros tipos ainda, como as “econo-esposas”, mas que não são exploradas a fundo na obra. O fato é que, nesse “futuro” a mulher foi reduzida a funções pré-determinadas sem que possam fugir delas.

Com essa breve descrição, já é perfeitamente possível entender o que Atwood procurou fazer. Religiões fundamentalistas – e, aqui, o exemplo mais atual é a muçulmana, sem dúvida – já de certa forma categorizam suas mulheres, com muitos países proibindo que elas estudem, que elas cresçam independente de uma figura masculina ou mesmo que mostrem seu rosto e seus cabelos livremente (e não me venham dizer que proibir a mulher de mostrar o cabelo é alguma coisa diferente de deixar clara sua submissão ao homem). Se olharmos para o passado – e Atwood também bebe daí, já que o Puritanismo é uma de suas fontes mais claras para os trajes das aias – veremos a repetição disso em outras religiões, em um ciclo vicioso assustador.

E o que ela faz é transplantar o que ela vê ao seu redor em diversas regiões do mundo hoje (ou quando ela redigiu a obra, só para ser mais exato) para os Estados Unidos, ou, aqui, República de Gilead, imaginando uma situação em que um conflito de bases religiosas instaurou-se, tornando o país uma ditadura nos moldes acima e em que, por questões explicadas apenas muito brevemente, a taxa de natalidade caiu alarmantemente, tornando as aias tão importantes nesse cenário apocalíptico. Tenho sido propositalmente críptico na função de uma aia no romance, pois Atwood constrói essa revelação muito vagarosamente em seu texto, não porque é um plot twist ou uma revelação que muda os rumos narrativos, mas sim porque ela trabalha do pressuposto de que a narradora – uma aia – já sabe de sua função e não “corre” para nos contar, mas é impossível fazer uma crítica sem abordar esse elemento, que é da essência da obra.

Nesse futuro distópico, a aia, que usa uma vestimenta vermelha inspirada nos figurinos femininos da época da colonização americana, inclusive com um chapéu que cobre seus cabelos completamente e também sua visão periférica – têm a única função de ser fecundada, engravidar e parir uma criança. O “fecundador” é, via de regra, o marido de uma das “esposas” – normalmente mulheres que já não podem mais ter filhos em razão da idade ou outro fator – e a aia não tem escolha alguma. Na verdade, tem: ela pode se recusar e ser mandada para as “colônias”, o que é sinônimo de alguma forma de extermínio protraído no tempo.

Em outras palavras, apesar de serem aparentemente bem cuidadas por seus “senhores”, as aias são ritualisticamente estupradas pelos Comandantes (assim são chamados os maridos das esposas) e, quando engravidam e têm filhos, eles são cuidados exclusivamente pelas esposas. É a institucionalização do estupro debaixo de uma interpretação perversa do texto do Velho Testamento e sob a rubrica de “segurança da mulher” causada por uma alegada liberação sexual que teria gerado a cultura de contraceptivos, promiscuidade e violência. E, quando menciono “ritualisticamente”, é porque há mesmo um ritual que antecede o coito – com direito à leitura da Bíblia – que ocorre diante da “esposa” e em que o prazer de qualquer parte é veementemente proibido.

Para contar essa terrível história, Atwood usa única e exclusivamente a narrativa em primeira pessoa de uma aia que permanece sem nome, como todas as aias. Aliás, sem nome não. Ela se chama Offred (inclusive na tradução em português, por razões que não consigo entender) que é algo mais tenebroso do que meramente um nome. Offred significa Of Fred ou, em português, “De Fred”, transformando a aia em uma propriedade de um homem em um mundo em que a mulher realmente não é muito diferente do que um objeto ornamental ou, no máximo, com muita boa vontade, um animal de estimação.

Mas, ao usar esse recurso da primeira pessoa, Atwood brinca com as expectativas e mantém o leitor constantemente engajado. Offred, uma aia de primeira geração, ou seja, que se lembra do mundo pré-Gilead, conta sua história de seu próprio jeito e, como toda a memória, parte de lembranças imperfeitas de seu passado, além de capítulos não necessariamente cronológicos. Com isso, aprendemos vagarosamente quem ela é e como ela foi parar ali, como foi seu “treinamento” (o correto seria lavagem cerebral) para aceitar toda essa submissão e aos poucos vamos então vendo esse mundo além das abas do chapéu branco da aia narradora. E é um mundo simplesmente aterrador, daqueles que por diversas vezes dá vontade ao mesmo tempo de fechar o livro e continuar lendo vorazmente, em uma daquelas contradições que só fazem sentido realmente mergulhando na história.

E a perseverança é muito bem retribuída por Atwood, que consegue, de maneira simples, mas muito eficaz, não só estabelecer o cenário completo e crível que  levou a essa mundo distópico como, também, usar artifícios narrativos que manobram nossa percepção de Offred. Sem entrar em muitos detalhes, basta dizer que a autora é capaz de nos oferecer visões de “segunda” mão de situações que Offred apenas ouviu falar, costurando-as muito bem dentro da estrutura em primeira pessoa. Além disso, por muitas vezes somos convidados a duvidar de algumas situações que ela descreve, quase tornando-a uma narradora não confiável em determinados momentos, o que instiga o leitor a continuar em sua jornada de leitura.

Além disso, Atwood não é maniqueísta e não torna as conclusões fáceis para o leitor. Quando ela trata da condição da mulher nessa sociedade (não tão)futurista, ela encaixa elementos da atualidade como pontos usados pelo poder estabelecido para justificar o porquê de tudo. De certa forma, é possível ver críticas da autora até mesmo ao feminismo radical e do politicamente correto excessivo. Basta, para isso, que o leitor saia do dizem que ele deve esperar do livro e comece a perceber as entrelinhas do que ela escreve. E não, de forma alguma quero afirmar que o livro não é um alerta a algo que pode vir a acontecer se não estivermos alertas – e não falo só de EUA aqui -, mas sim que Atwood é mais inteligente do que alguém que só escreve o que se quer ler. Ela vai além e toca profundamente em vaidades, em consumismo, em egocentrismo, em preconceitos e diversas outras questões que, por intermédio de sua Offred, ela vai abordando sem nunca se valer de didatismo e de forma alguma subestimando o leitor.

O Conto da Aia é leitura obrigatória. Mas fica um aviso: o cenário hipotético criado por Margaret Atwood está mesmo ali na esquina, pelo que a obra é uma leitura que machuca a cada virada de página, mas a dor, aqui, é necessária e, mais do que isso, instrutiva.

O Conto da Aia (The Handmaid’s Tale, Canadá)
Autora: Margaret Atwood
Editora original: McClelland and Stewart
Data original de publicação: 1985
Editoras no Brasil: Editora Marco Zero, Editora Rocco
Datas de publicação no Brasil: 1987 (Marco Zero), 2006 e 2017 (Rocco)
Tradução: Ana Deiró (edição da Rocco)
Páginas: 368 (edição da Rocco)


Ritter Fan
Fonte: http://www.planocritico.com/critica-o-conto-da-aia-the-handmaids-tale-de-margaret-atwood/

Primeira carta: livros e leituras



Jaboatão dos Guararapes, primavera de 2018.

Prezado e estimado Nilton,

Primeiramente sente-se em algum lugar sossegado, pode ser aquele banco de pedra no quintal ou nos degraus da escada, leia esta carta devagar, calmamente. Eu sei que você está assustado em recebê-la, na verdade é a primeira carta que você receberá na vida e ela foi enviada por alguém que tem o mesmo nome que o teu e está com a data de um futuro tão longe (vou logo te adiantar: o mundo não vai se acabar no ano 2.000, aquela teoria do pastor Oliveira que o mundo terminará ao fim desse milênio é um erro de interpretação da parte dele, não adianta você dizer-lhe isso, vai te perguntar como você sabe, se disser que alguém do futuro te contou, vão dizer que você ficou louco, mais ainda!), mas, não se assuste. O nome que está no envelope é o seu mesmo, não há engano algum, espero que tenha recebido essa carta das mãos do Assis, o carteiro, não se admire com o que vou dizer: um dia você será colega dele de profissão e sentirá saudades da época em que ele passava na frente de tua casa e gritava: - Corrêêêêêiô! Mas a farda que você vai usar será uma outra, não é essa toda amarela, não cairia muito bem você, creio que nisso nós dois concordamos.

Você também precisa se acostumar com o tipo de linguagem com a qual esta carta foi escrita. Ela é uma carta do futuro, foi escrita quase 45 anos depois desse momento em que você está vivendo, não se espante com essa questão temporal e nem com as outras cartas que chegarão depois, algumas em ocasiões banais e outras nem tão banais assim, depois você entenderá e até esperará ansioso para que cheguem. No tempo certo todas que foram escritas chegarão as tuas mãos, apenas leia, somente isso: leia!

Você está com quase seis anos, essa carta foi escrita para chegar no momento em que aprendeu a ler, antes não faria sentido e elas não são para serem lidas pelos outros, mas sim apenas por você, foram escritas por você e para você.

Você ainda pensa em como foi perceber que sabia ler, foi uma experiência e tanto, de repente abrir um Almanaque do Tio Patinhas e entender todas as narrativas e diálogos, você nunca esquecerá, absolutamente nunca, repetirá sempre extasiado esse momento tão marcante. Mesmo aos 50 anos ainda lembrará daquele dia, logo, não precisa ficar acordado a noite toda com medo de dormir e acordar e descobrir que foi um sonho, não é um sonho, você sabe ler.

No futuro você não lerá com tanta frequência gibis, portanto aproveite e leia os que puder, desde os de Tio Patinhas, Donald, Zagor, Ken Parker, Tex Willer, Universo Marvel, Super Homem, Aquaman, Vingadores, Luluzinha, Bolinha, Homem-Aranha, Batman, Homem de Ferro e todos os outros que tiver acesso. Seja generoso com as leituras, em algum momento você vai se lembrar de cada um deles quando estiver no cinema assistindo filmes com sua filha. Sim, você terá uma filha, mas não é momento de falar disso agora.

Você vai roubar livros da biblioteca da escola para poder ler mais, já que só poderá pegar um livro de cada vez e isso será pouco para você. Não cultive sentimento de culpas, no futuro vão fazer um filme de sucesso sobre uma menina que também gostava de livros e como não podia pagar por eles, roubava-os sem constrangimento. O filme será um sucesso e ninguém chama a menina de ladra, ela é bem mais bonita que você (sinto dizer isso), mas ninguém vai te condenar quando disser um dia que roubava livros. Roubar livros é mais perdoável até do que roubar comida, pode apostar nisso, quem rouba livros para ler, rouba para alimentar a alma. Não há como julgar alguém que faz isso. Não se preocupe, você não continuará roubando livros, vai ganhar muitos e vai comprar mais ainda, até mesmo mais do que a capacidade de lê-los (você terá um emprego de “consultor” numa livraria no qual você ganhará uns 50 livros todo mês, alguns ficarão no plástico durante anos, até você conseguir ler). Em média você comprará 70 ou 80 livros por ano e lerá sempre uma média de 100 ou 120, não se preocupe, você terá onde guardá-los, você terá uma biblioteca na sua casa, algumas vezes você se trancará no quarto e ficará olhando para cada livro, resgatando a emoção que sentiu ao ler o livro pela primeira vez.

Sim, você lerá alguns livros mais de uma vez, alguns serão lidos até 06 vezes, esse será um hábito que você alimentará e terá o costume de ler 10 ou 15 livros ao mesmo tempo, se acostumará com isso e não conseguirá ler apenas um. Portanto leia todos os clássicos antes dos 15 anos, a quantidade de livros que terá que ler depois dos 30 não permite que você pense em ler os 03 mosqueteiros ou 20.000 légua submarinas com quase 40 anos, leia todos, leia com sofreguidão, você não sabe o que é isso ainda: leia como se a sua vida dependesse disso. Leia Júlio Verne, Victor Hugo, C.S. Lewis, Tolkien, Charles Dickens, Alexandre Dumas, Machado de Assis (eu sei que você vai achar chato, te garanto que no futuro vai considerá-lo o maior escritor brasileiro), Cecília Meireles, Raquel de Queiroz, José Lins do Rego e tantos outros. Se você pegar algum livro de Clarice Lispector, grave bem esse nome, não leia, você não vai entender tão fácil, mesmo aos 50 você não julga que a entende tão bem. A mesma coisa para Nietzsche, Søren Kierkegaard, Kafka e Gabriel Garcia Márquez. No futuro você vai amar Tolstoi, Dostoiévski, Mia Couto, José Saramago e Amós Oz, todos chegarão até você no devido tempo, não se preocupe em decorar esses nomes, você lembrará dessa nossa conversa quando estiver com algum exemplar deles em mãos.

Acostume-se a ser olhado de forma esquisita, mesmo aos 50 anos você ainda lerá andando. Isso mesmo, você estará tão acostumado a ler que não escolherá lugar para fazer isso: fila de banco (um dia eu te explicarei o que é um banco e porque deverá ficar na fila), ônibus (eu sei que você vomita quando anda de ônibus), no futuro você andará de ônibus para poder ler, mesmo tendo carro e sabendo dirigir (sim, você terá carro e deixará na garagem para poder andar de ônibus e metrô – com o devido tempo eu explicarei o que é isso – e ler alguns livros). Não se incomode quando for desprezado por teus colegas de escola ou vizinhos, você não tem culpa por ter duas pernas esquerdas e não possuir coordenação motora suficiente para jogar futebol com desenvoltura (no futuro você saberá o que cada palavra dessa significa, as que não souber, anote e procure no dicionário Aurélio da biblioteca da escola, você não vai acreditar quando eu te falar de um negócio chamado “Google”, mas esquece, você não compreenderá tão fácil assim!), teus amigos e colegas não são maus, eles são apenas crianças sendo crianças, não são culpados por você ter a cabeça no mundo da fantasia e da ficção, tenha paciência com eles, você vai precisar se acostumar com pessoas que não têm as mesmas prioridades que você. Para não ser tão esquisito, aprenda a contar piadas, procure ser engraçado, decore todas que puder e conte-as como se tivessem acontecido com você, as pessoas te acharão um cara legal e nem notarão que você não costuma sorrir.

Você vai cair numa ladeira por causa desse costume de ler andando, não se preocupe antecipadamente, alguns arranhões nos joelhos não causam tanto estrago assim. Terá um transtorno maior quando cair da bicicleta com o Rui, ele vai balançar a bicicleta sentado no bagageiro, ele acha que ela estará sem freios, não adianta você dizer que sabe o que está fazendo, o pânico vai dominá-lo e ele vai provocar a queda de vocês. Você precisa perdoar esta fraqueza dele, num futuro razoavelmente distante, algumas dores não curadas dentro dele vão levá-lo a cometer alguns equívocos e por causa desses equívocos ele vai encerrar a jornada aqui nesta dimensão. Você sequer lembrará dessa queda quando souber que ele foi embora, por isso, valorize o que é de fato importante e ele será o teu primeiro amigo de verdade e por muito tempo, teu único amigo. A queda vai te deixar de cama, porém uma coisa boa acontecerá: você terá tempo de sobra para ler mais livros. Outra coisa: devolva os livros de faroeste de Tio Chico, você lerá uns 500 ou 600 (vai desistir de contar depois de passar de 300), cuidado para não perdê-los, ele certamente nem perceberá se você perder, mas ele troca os que já leu por livros novos, por isso cuidado, do contrário não vai ter mais o que ler.

O costume que você vai adquirir de ler à noite pela réstia de luz da lua que entra no teu quarto através da telha de vidro vai te deixar míope, você não conseguirá ler na cozinha e nem no banheiro, tua mãe não deixará, não se pergunte porque alguém impediria um garoto de ler tanto, aos 50 anos você ainda não entenderá, logo, gaste seus neurônios (uns negócios que você tem no cérebro que está dentro da cabeça, vai descobrir depois para que serve, te ajuda a pensar, nem sempre você vai dar atenção devida ao que eles dizem, mas eles estão aí para isso), não se preocupe com a miopia, você vai usar óculos com lentes grossas para poder ler, mas não sentirá desconforto, eles te ajudarão a ser proteger das pessoas, verá que não é tão ruim assim quanto parece.

Cada carta que receberá abordará um tema, por isso não vamos tratar de outro assunto desta vez, não fique ansioso para receber a próxima carta, ela vai chegar no momento exato. Você só saberá que é o momento exato quando ele acontecer, confie em mim, eu sei quando será esse momento.

Por ora era só isso, aproveite a infância, deixe tua imaginação fluir, nunca tenha vergonha de ser um sonhador, você conhecerá pessoas e visitará lugares antes dos 10 anos que a maioria das pessoas não visitará a vida toda, portanto, você já sabe que ler não dá sono, ler dá sonhos, leia muito, leia tudo, leia a vida.

Até breve garoto, cuide bem de minha mente, cuide bem de meus olhos, cuide bem de minha alma.

Eu,

Gente boa da roça


Além da expressão neutra que ela carregava quando estava sozinha, a Senhora Freeman tinha outras duas, uma afirmativa e outra retroativa, que ela usava para todas as suas relações humanas. Sua expressão afirmativa era firme e forte como a de um caminhão pesado. Seus olhos nunca desviavam para a esquerda ou direita, mas viravam de acordo com o rumo da estória como se seguissem uma linha amarela bem no centro da estória. Ela raramente usava a outra expressão porque muitas vezes não era necessário retirar uma declaração, mas quando usava, seu rosto parava completamente, havia um movimento quase imperceptível em seus olhos negros, enquanto eles pareciam retroceder, e então o observador via que a Senhora Freeman, embora estivesse lá, tão real quanto sacos de grão jogados em cima uns dos outros, não estava mais lá em espírito. Fazê-la entender qualquer coisa quando isso acontecia era impossível, a Senhora Hopewell havia desistido. Ela poderia falar até morrer. A Senhora Freeman nunca seria convencida a admitir seu erro em qualquer aspecto. Ela permaneceria lá e, se a pudessem convencer a falar qualquer coisa, seria algo como: “Bem, eu não diria que sim ou não diria que não” ou, ao direcionar seu olhar vago para a prateleira de cima da cozinha onde havia várias garrafas empoeiradas, ela poderia mencionar: “Eu vejo que você não comeu muitos dos figos das conservas que você fez no verão passado”.

Elas cuidavam de seus assuntos mais importantes na cozinha durante o café da manhã. Todas as manhãs a Senhora Hopewell se levantava às sete e ligava seu aquecedor à gás e o de Joy. Esta era sua filha, uma moça loira e alta que tinha uma prótese na perna. A Senhora Hopewell ainda via Joy como uma criança mesmo que ela tivesse trinta e dois anos e alto nível de formação. Joy se levantava enquanto sua mãe estivesse comendo e arrastava-se para o banheiro, batendo a porta, e logo a Senhora Freeman chegava à porta dos fundos. Joy ouvia sua mãe dizer: “Entre”, e então as senhoras conversavam por um tempo em voz baixa, inaudível no banheiro. No momento em que Joy entrava, elas já haviam terminado o relatório da previsão do tempo e estavam falando sobre uma das filhas da Senhora Freeman, Glynese ou Carramae. Joy as chamava de Glicerina e Caramelo. Glynese, uma moça ruiva, tinha dezoito anos e muitos admiradores; Carramae, uma moça loira, tinha apenas quinze, mas já estava casada e grávida. Ela não conseguia manter qualquer coisa em seu estômago. Todas as manhãs a Senhora Freeman contava à Senhora Hopewell quantas vezes Carramae havia vomitado desde o último relatório.

A Senhora Hopewell gostava de dizer para as pessoas que Glynese e Carramae eram duas das moças mais finas que ela conhecia, que a Senhora Freeman era uma lady e que ela nunca teria vergonha de levar a Senhora Freeman a qualquer lugar ou apresentá-la a qualquer pessoa que elas pudessem encontrar. Então ela contava como havia contratado os Freeman em primeiro lugar, como eles eram uma benção de Deus para ela e como estavam junto dela há quatro anos. A razão para mantê-los por tanto tempo era que eles não eram lixo. Eram boa gente do interior. Ela havia telefonado para o homem cujo nome havia sido dado como referência e ele contou para ela que o Senhor Freeman era um bom agricultor, mas que a Senhora Freeman era a mulher mais barulhenta a caminhar pela terra. “Ela tem que estar em tudo”, disse o homem. “Se ela não chegar lá antes que a poeira assente, pode apostar que ela está morta, só isso. “Ela vai querer saber de toda a sua vida. Eu o considero muito”, ele disse, “mas nem eu nem minha esposa conseguiríamos aguentar aquela mulher mais um minuto”. Isso desencorajou a Senhora Hopewell por alguns dias.

Por fim ela os contratou porque não houve outros candidatos, mas decidiu de antemão como lidaria com a mulher. Já que a Senhora Freeman era do tipo de se meter em tudo, a Senhora Hopewell decidiu que ela não apenas seria incluída em tudo, mas providenciaria para que ela estivesse em tudo, ela seria a pessoa encarregada. A Senhora Hopewell não tinha defeitos, mas tinha a habilidade de usar os defeitos de outras pessoas de maneira tão construtiva que ela já tinha os Freeman há quatro anos.

Nada é perfeito. Este era um dos ditados favoritos da Senhora Hopewell. O outro era: é a vida! E ainda mais um, o mais importante, era: bem, outras pessoas têm suas opiniões também. Ela diria essas expressões geralmente à mesa, em tom de insistência gentil, como se ninguém soubesse deles além dela, e a grande desajeitada Joy, cujo ultraje constante havia apagado qualquer expressão em seu rosto, apenas direcionaria um pouco seu olhar para o lado, seus frios olhos azuis, com o jeito de alguém que havia ficado cego por vontade própria e se manteve assim.

Quando a Senhora Hopewell dizia à Senhora Freeman que a vida era assim, esta dizia: “Eu sempre digo isso”. Nada acontecia sem que a Senhora Freeman soubesse primeiro. Ela era mais rápida que o Senhor Freeman. Quando a Senhora Hopewell disse a ela, após certo tempo da chegada deles: “Sabe, você é a comandante deste navio” e deu uma piscadela, a Senhora Freeman respondeu: “Eu sei. Sempre fui rápida. Há sempre aqueles que são mais rápidos que os outros”.

“Todos são diferentes”, disse a Senhora Hopewell.

“Sim, a maioria é”, respondeu a Senhora Freeman.

“É preciso gente de todos os tipos para formar o mundo”.

“Eu sempre disse isso”.

A menina estava acostumada com esse tipo de diálogo no café da manhã e também no jantar; de vez em quando elas conversavam no lanche também. Quando não tinham visitas, elas comiam na cozinha porque era mais fácil. A Senhora Freeman se esforçava para chegar durante a refeição e assisti-las terminar. Ela ficava na porta se fosse verão, mas no inverno ela apoiava um cotovelo em cima da geladeira e olhava para elas de cima, ou ficava ao lado do aquecedor a gás, levantando um pouco a parte de trás da saia. Ocasionalmente ela se apoiava na parede e rolava a cabeça de um lado para o outro. Ela nunca tinha pressa de ir embora. Tudo isso era muito penoso para a Senhora Hopewell, mas esta era uma mulher de grande paciência. Ela havia percebido que nada é perfeito, que os Freeman eram boa gente do interior e que, se em tempos presentes há boa gente no interior, era melhor segurá-la.

Ela teve muita experiência com lixo. Antes dos Freeman, ela tivera em média uma família de caseiros por ano. As mulheres desses agricultores não eram do tipo que você gostaria por perto por muito tempo. A Senhora Hopewell, que havia se divorciado do marido há anos, precisava de alguém que tocasse a plantação para ela; e quando Joy tinha de ser mandada a fazer esses serviços, as coisas que ela fazia eram geralmente tão malfeitas e sua expressão tão carrancuda que a Senhora Hopewell dizia: “Se você não faz de boa vontade, eu não quero”, ao que a moça, firme, com os ombros rígidos e o pescoço um pouco jogado para a frente, respondia: “Se você me quer, aqui estou – COMO SOU”.

Violência e banalidade do mal

Jerome Kohn, assistente de ensino e intérprete de Hannah Arendt, escreveu que o problema do mal é o principal eixo argumentativo a atravessar toda a reflexão político-filosófica arendtiana. A base da reflexão da pensadora é a experiência totalitária. Ao ligar essa experiência ao mal, Hannah Arendt apontou o paroxismo da violência perpetrada pelos governos totalitários e mostrou a insuficiência das teorias e categorias científicas, econômicas e políticas tradicionais para captar e explicar a novidade do que estava acontecendo. O domínio total é mais opressor que a escravidão e a tirania, é mais destruidor que a miséria econômica e o expansionismo territorial. O controle total pretende atingir e capturar os humanos; adota, como critério de legitimidade governamental, a redução dos homens a seres naturais. O recurso à categoria do mal é uma forma de tentar compreender o inexplicável e visa aproximar-se reflexivamente da primeira tentativa de constituição de uma forma de governo, no Ocidente, baseada na purificação e no extermínio dos seres humanos. Trata-se, assim, de pensar o mal nas sociedades secularizadas sem apelar ao teor teológico-religioso.


O tema do mal, em Arendt, não tem como pano de fundo a malignidade, a perversão ou o pecado humano. A novidade da sua reflexão reside justamente em evidenciar que os seres humanos podem realizar ações inimagináveis, do ponto de vista da destruição e da morte, sem qualquer motivação maligna. O pano de fundo do exame da questão, em Arendt, é o processo de naturalização da sociedade e de artificialização da natureza ocorrido com a massificação, a industrialização e a tecnificação das decisões e das organizações humanas na contemporaneidade. O mal é abordado, desse modo, na perspectiva ético-política e não na visão moral ou religiosa.

Faz-se necessário esclarecer, antes de avançarmos, que Hannah Arendt nunca sistematizou suas reflexões sobre o assunto. Colhemos os elementos do seu ponto de vista nas seguintes obras: Origens do totalitarismo (1951), Eichmann em Jerusalém (1963), A vida do espírito (1971) e em outros textos publicados postumamente. Essa bibliografia está muito bem articulada no livro de Nádia Souki intitulado Hannah Arendt e a banalidade do mal (Ed. UFMG).

Contingência do mal
Em Origens, o tema aparece no cotejamento e prolongamento da reflexão kantiana sobre o mal radical. Kant percebeu que o mal pode ter origem não nos instintos ou na natureza pecaminosa do homem e, sim, nas faculdades racionais que o fazem livre. Dessa forma, o mal não possui dimensão ontológica, mas contingencial. Ele acontece a partir da interação e da reação das faculdades espirituais humanas às suas circunstâncias. O mal radical, em Kant, é uma espécie de rejeição consciente ao bem e está atrelado, ainda, ao uso dos homens como meios, instrumentos, e não fim em si mesmo. Arendt retém esse aspecto da reflexão kantiana, acrescentando-lhe a dimensão histórico-política do seu próprio tempo. Nela, o radicalismo vai relacionar-se à novidade e ao assombro diante das informações chegadas às suas mãos nos Estados Unidos, em 1943, sobre Auschwitz. Ela associou o mal radical aos campos de concentração, base de sustentação da nova forma de governo em gestação. Isso faz o assunto ultrapassar a questão judaica, embora seja incompreensível sem ela. Holocausto é pouco para captar o que surgiu, pois não se trata apenas da execução de judeus. Esse algo a mais faz sua obra dizer coisas relevantes para todos nós. O mal radical está associado ao totalitarismo, organização governamental e sistemática da vida dos homens prescindindo do discurso e da ação, considerando-os meros animais, controláveis e descartáveis. É uma forma de governar sustentada, explicitamente, no pressuposto do extermínio de setores da população e não apenas na sua opressão ou instrumentalização. Isso não diz respeito apenas à exclusão sócio-política do criminoso, nem à eliminação do opositor ou inimigo, mas a atualização da lógica da descartabilidade humana inerente àquelas formas de governo.

Ao considerar a população apenas do ponto de vista biológico, laborante, o governo total tratou de eliminar qualquer instituição ou vínculo humano que pudesse dar abrigo à solidariedade, à ação e à diferenciação entre os indivíduos. Destruindo o mundo comum (partidos, família, arte, religiões, sindicatos, justiça e outras formas de organização), no qual as pessoas poderiam ser amparadas e respeitadas, os governos totalitários constituíram-se baseados na propaganda, na espetacularização, na atomização, na solidão, na padronização, na coletivização das massas e na redução do homem a animal, ocupado exclusivamente com a sua reprodução biológica. Os regimes totais conceberam os homens apenas como seres vivos e prolongaram esse critério na escolha dos merecedores da vida. O grande temor, presente nos textos da pensadora, é que o extermínio, a nova terapia contra os humanos considerados impuros e indignos, inerente aos governos totalitários, viesse a constituir-se em elemento imanente aos governos e sociedades contemporâneas. Isso levou Arendt a afirmar: “talvez os verdadeiros transes do nosso tempo somente venham a assumir a sua forma autêntica – embora não necessariamente a mais cruel – quando o totalitarismo pertencer ao passado”.

Cumprir o seu dever
A questão do mal retorna, em Arendt, quando ela aceita o convite de uma revista americana para fazer a cobertura do julgamento de Eichmann ocorrido em Jerusalém, em 1962. As questões jurídicas e filosóficas envolvidas nesse caso foram muito bem debatidas no livro Justiça em tempos sombrios de Christina Ribas (Ed. UEPG). Se, ao mal radical, Arendt associa o surgimento e a prática da violência extremada e sistemática contra setores da população por parte de uma nova forma de governo, ao mal banal, ela vai relacionar a prática dos agentes encarregados de executar as ordens governamentais. Quem foi Eichmann? Trata-se do principal responsável pelo envio dos judeus aos campos de concentração. Em todos os relatos de Arendt, verificamos uma profunda perplexidade com a forma de Eichmann falar das suas atividades como carrasco nazista. Ele usava clichês, palavras de ordens e a moral da obrigação do bom funcionário para justificar o seu comportamento. Para ele, em nenhum momento, podia ser enquadrado como criminoso, pois apenas cumpria a sua obrigação, o seu dever. Eichmann era um ser humano normal, bom pai de família, não possuía nenhum ódio ao povo judeu e não era motivado por uma vontade de transgredir ou por qualquer outro tipo de maldade. No entanto, viabilizou o assassinato de milhões de pessoas. Foi justamente isso que levou Arendt a usar o termo banalidade do mal. Estamos diante de um tipo de mal sem relação com a maldade, uma patologia ou uma convicção ideológica. Trata-se do mal como causa do mal, pois não tem outro fundamento. O praticante do mal banal não conhece a culpa. Ele age semelhante a uma engrenagem maquínica do mal. O mal banal parece ser um fungo, cresce e se espalha como causa de si mesmo, sem raiz alguma e atinge contingentes enormes das populações humanas em diversos lugares da terra.

A pergunta de Arendt, ao se deparar com os depoimentos de Eichmann, foi: “o que faz um ser humano normal realizar os crimes mais atrozes como se não estivesse fazendo nada demais?” A resposta está no mal banal. Trata-se de uma prática do mal promissora nas sociedades massificadas, possuidoras de organizações econômicas, políticas e sociais potentes, nas quais os seres humanos tendem a se sentir sem poder, solitários, submissos e quase condicionados. Vivendo apenas como animal laborante, os homens tecnificam e burocratizam as suas obrigações e se tornam, desse modo, incapazes de pensar as conseqüências das ordens dadas pelos seus superiores ou grupos. Eichmann, segundo Arendt, agiu igual ao cão de Pavlov, que foi condicionado a salivar mesmo sem ter fome. Ele não praticou o mal motivado pela ambição, ódio ou doença psíquica. Nada disso foi encontrado em Eichmann. A única coisa que chamou atenção de Arendt foi a sua incapacidade de pensar. Ao renunciar ao pensamento, Eichmann destituiu-se da condição de ser dotado de espírito que lhe possibilitaria o descondicionamento e, assim, dizer: não, isso eu não posso.

O mal como renúncia à capacidade de julgar
O mal banal caracteriza-se pela ausência do pensamento. Essa ausência provoca a privação de responsabilidade. O praticante do mal banal submete-se de tal forma a uma lógica externa que não enxerga a sua responsabilidade nos atos que pratica. Age como mera engrenagem. Não se interroga sobre o sentido da sua ação ou dos acontecimentos ao seu redor. Buscar o sentido não é apenas se informar, não é algo da ordem do conhecimento nem da aferição da eficácia. Trata-se de medir e buscar a estatura do que está acontecendo a partir do crivo da dignificação dos envolvidos. Quem pensa resiste à pratica do mal. A busca da significação encontra muita dificuldade quando a pressa, os mecanismos e procedimentos técnicos, burocráticos e os processos econômicos auto-propelidos engolfam tudo. O praticante do mal banal renuncia à capacidade pertencente aos humanos de mudar o curso das ações rotineiras através do exercício da vontade própria. Repete heteronomamente o seu comportamento. Não se reconhece dotado de vontade, capaz de iniciar, fundar e começar. Ele também não exercita a habilidade, peculiar aos homens, de falar e comunicar o que está vendo e sentindo. Vive sem compartilhar o mundo com os outros. Renuncia, desse modo, à faculdade do julgamento. Em suma, recusa-se a viver com os dons provenientes das suas faculdades espirituais: pensar, querer e julgar.

Ao relacionar o mal ao vazio reflexivo, Arendt aponta para uma possível compreensão da violência nas sociedades contemporâneas. Nessas sociedades, o mal realiza-se na banalidade, na injustiça e nas radicais práticas de violência contra apátridas, imigrantes, mulheres, desempregados, índios, negros, crianças, idosos e a natureza.

A partir dessas teses, vemos emergir, na autora, formas de contraposição ao mal radical e ao mal banal. Na primeira, a autora propõe a recuperação da política, do mundo comum, principalmente, em A condição humana (1958); na segunda, aponta a retomada da dimensão ética em A vida do espírito (1971). Pensar, julgar e querer desembocam no cuidado com o mundo comum, no amor mundi, para usar a terminologia de Arendt, no respeito aos espaços onde os homens podem circular e se sentirem amparados pela presença dos iguais e dos diferentes. Nesse mundo comum os homens mostram que nasceram para começar e não para morrer. 

Odílio Alves Aguiar é professor de filosofia da UFC e autor de Filosofia política no pensamento de Hannah Arendt (UFC)

Dostoiévski: condenação e exílio



“Nunca houve uma [revolução] que tivesse se espalhado tão rápida e amplamente, se alastrando como fogo na palha por sobre fronteiras, países e mesmo oceanos.” Assim o historiador Hobsbawm vê as Revoluções de 1848 que estouraram em toda a Europa. Surgidas como resposta à sociedade industrial, crises econômicas e más condições de trabalho, tendo como alvos a nobreza e os grandes industriais, pequenos burgueses uniram-se para quebrar máquinas e reivindicar direitos junto ao povo e ao rebento da industrialização: o proletariado. Muito baseadas no socialismo utópico de Fourier e acontecendo no mesmo ano da publicação do "Manifesto Comunista" de Marx e Engels, as revoluções tiveram conquistas avassaladoras com suas barricadas, varrendo diversas monarquias do mapa.

O duro czar Nicolau I da Rússia, isolado em seu enorme, porém distante país, observava tudo com cautela e temor. Há muito havia naquela nação grupos de intelectuais revolucionários e anticzaristas que se reuniam secretamente para falar de política. Nicolau sabia disso e aumentou a repressão contra os grupos enviando infiltrados para descobrir quem eram os revoltosos.

Em 1849, o Círculo Petrashevski – pois os intelectuais se reuniam na casa do progressista Mikhail Petrashevski – de São Petersburgo foi descoberto, preso e condenado. Entre os que lá estavam, encontrava-se o já famoso romancista russo Fiódor Dostoiévski, aclamado pelo seu livro de lançamento "Gente Pobre" (1846). Condenado à morte aos 28 anos, o desesperado Dostoiévski e seus companheiros são postos de frente ao pelotão de fuzilamento. Segundos antes do disparo que os tiraria a vida, uma carta chegou assinada pelo czar com o perdão aos condenados. Na verdade, tudo não passou de encenação, mas eles não sabiam.

No mesmo dia, já absolvido, Dostoiévski escreve ao seu irmão mais velho, Mikhail:

“Meu tão querido irmão!
Tudo está resolvido! Fui sentenciado a quatro anos de trabalhos forçados em uma fortaleza [...] e depois, alistamento como soldado raso. Hoje, 22 de dezembro, fomos todos levados à Praça Semionovski. Lá, a sentença de morte foi lida para nós, deram-nos a cruz para que beijássemos [...] e foram feitos nossos trajes mortuários (camisas brancas). Então, três de nós fomos colocamos diante do pelotão de fuzilamento para a execução da sentença de morte. Eu era o sexto da fila; fomos chamados em grupos de três, logo eu estava no segundo grupo e tinha não mais que um minuto de vida. Pensei em você, meu irmão, em todos vocês; naquele último instante, apenas você estava em meu pensamento – foi quando percebi o quanto eu amo você, meu adorado irmão! Tive tempo de abraçar Plechtchéiev e Durov, que estava ao meu lado, e despedir-me deles. No último instante, veio a ordem para suspender a execução, os soldados do pelotão de fuzilamento recuaram, e foi lida a sentença final.”

Ele foi enviado para o exílio na gelada e inóspita Sibéria, em Omsk, para cumprir trabalhos forçados e depois servir como soldado raso. Chegando na prisão após longa e difícil jornada, se impressionou com o que viu. Em carta ao irmão datada de 1854, ele escreve que seus companheiros de prisão eram “homens rudes, raivosos, amargurados. Seu ódio pela nobreza não tem limites; eles olham para todos nós, que pertencemos às classes mais abastadas, com hostilidade e rancor. Teriam nos devorado se tivessem a oportunidade. Julgue, então, o perigo que corremos, tendo que coabitar com essas pessoas por alguns anos, comer com eles, dormir ao seu lado, e sem qualquer possibilidade de reclamar das afrontas que eram constantemente direcionadas a anos.” E continua: “Passei quatro anos inteiros sob as paredes da prisão, e de lá saía apenas quando era escalado para o trabalho forçado. O trabalho era duro, mas nem sempre; algumas vezes, com mau tempo, sob a chuva, ou no inverno, durante as eternas nevascas, minhas forças faltavam-me. Certa vez, tive que fazer quatro horas de trabalho extra sob um frio que congelou até mesmo o mercúrio dos termômetros; creio que estava uns quarenta graus abaixo de zero. [...] Some-se a todos esses desconfortos o fato de que era quase impossível conseguir um livro, e quando consegui um, tive que ler às escondidas: tudo ao meu redor era uma incessante maldade, turbulência e discórdia. Vivíamos sob constante vigilância, e na impossibilidade de se estar sozinho, fosse por um minuto sequer – e sem qualquer variação desse quadro por quatro longos anos: você entenderá quando eu disser que eu não era feliz. Agora imagine, além de tudo isso, a ameaça constante de sofrer uma punição, os ferros, a opressão extrema de espírito – e terás um retrato fiel do que era minha vida.”

Livre em 1860 após dez longos anos em exílio, Dostoiévski relata suas memórias de prisão na novela Recordações da Casa dos Mortos (1862). Por suas experiências, uma nova fase surge em sua obra com seus grandes clássicos pós-siberianos: Crime e Castigo (1866), O idiota (1869), Os demônios (1871) e Os irmãos Karamázov (1880). Sua produção literária foi lida atentamente por Friedrich Nietzsche, Sigmund Freud e vários outros importantes nomes do século XIX e XX. Não à toa ele é um dos pensadores mais gloriosos e importantes da História!

DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Correspondências: 1838-1880. Porto Alegre: 8Inverso, 2009.HOBSBAWM, Eric J. A era do Capital: 1848-1875. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2009.

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Sapiens: Breve História da humanidade (II) A Árvore do Conhecimento


Neste segundo remix da obra de Harari (2015) (H) sobre Sapiens (Breve história da humanidade), vamos estudar o segundo capítulo da primeira parte (A árvore do conhecimento). Há 150 mil anos, Sapiens ocupava a África oriental, mas passou a colonizar o planeta e exterminar outras espécies humanas há 70 mil anos; nos milênios pelo meio, mesmo que parecesse conosco (os cérebros eram grandes como os nossos), não desfrutavam de vantagens marcantes, não tinham ferramentas propriamente superiores, nem outros feitos notáveis.

I. CONVIVÊNCIAS
Consta que no primeiro encontro entre Sapiens e Neandertals, estes venceram. Há 100 mil anos, alguns grupos Sapiens migraram para o norte, rumo ao Levante, que era território dos Neandertals, mas não se firmaram, talvez devido a nativos agressivos, clima inclemente e parasitas não familiares locais. Sapiens eventualmente recuou. Este desempenho decepcionante levou pesquisadores a especular que a estrutura interna dos cérebros desses Sapiens era provavelmente diferente da nossa; pareciam-se conosco, mas as habilidades cognitivas – aprender, lembrar, comunicar-se – eram limitadas. “Ensinar a tais Sapiens antigos inglês, persuadi-lo da verdade do dogma cristão ou conseguir que entendesse a teoria da evolução seria provavelmente inciativa sem viabilidade” (H:20). Vale o reverso também: difícil para nós entender sua linguagem e entendimento. Mas, desde 70 mil anos, Sapiens passou a fazer coisas bem especiais. Deixou a África pela segunda vez, e agora varreram os Neandertals e outras espécies da face da terra. Em período curto, alcançou a Europa e Ásia oriental; há 45 mil anos, chegaram à Austrália (continente até então intocado por humanos) – este período (70 mil a 30 mil anos atrás) testemunhou a invenção de barcos, lâmpadas a óleo, arcos e flechas, além de agulhas (para fazer roupas quentes). Os primeiros objetos podem chamados arte dessa era; aparecem os primeiros vestígios de religião, comércio e estratificação social. A maioria dos pesquisadores crê que tais feitos sem precedentes foram produto de revolução nas habilidades cognitivas. Mantém que gente que levou Neandertals à extinção, colonizou a Austrália e esculpiu o homem-leão (da caverna em Stadel, Alemanha, cerca de 32 mil anos atrás) eram tão inteligentes quanto nós, criativos e sensíveis – poderíamos nos comunicar com eles plenamente, também em questões de cognição sofisticada. O aparecimento de novos modos de pensar e comunicar-se, entre 70 mil e 30 mil anos atrás, constitui a Revolução Cognitiva (H:21). O que causou isso é incerto (ainda) – a teoria mais comum sugeres que mutações genéticas acidentais mudaram a formatação interna do cérebro, capacitando pensar de modos sem precedentes e comunicar-se usando novo tipo de linguagem – podemos chamar de mutação da Árvore do Conhecimento. Por que teria ocorrido no DNA do Sapiens, não no Neandertal? Teria sido acaso puro, parece. Será mais importante trabalhar as consequências desta mutação da Árvore do Conhecimento do que suas causas. O que foi tão especial nesta linguagem que facultou conquistar o mundo?

Não foi a primeira linguagem. Todo animal tem um tipo de linguagem, até mesmo insetos: comunicam-se de modo sofisticado, informa-se entre si sobre alimento ao redor; nem foi a primeira linguagem vocal; muitos animais, também espécies de macacos, possuem isso; por exemplo, macacos verdes usam chamados de vários tipos para se comunicarem; zoólogos identificaram um chamado que significa “cuidado, águia!”; chamado um pouco diferente diz “cuidado, um leão!”. Quando pesquisadores tocaram uma gravação do primeiro chamado para um grupo de macacos, eles pararam o que estavam fazendo, olhando para cima com medo. Ouvindo a segunda gravação, logo subiram em árvores. Sapiens faz muito mais que isso; no entanto, baleias e elefantes possuem habilidades impressionantes; um papagaio imita sons notavelmente. O que seria especial em nossa linguagem? Resposta comum é que nossa linguagem é flexível – podemos conectar número limitado de sons e sinais para produzir número infinito de sentenças, cada uma com significado próprio. Podemos, então, ingerir, estocar e comunicar montante prodigioso de informação sobre o mundo à volta. Humanos podem criar uma narrativa sobre os leões, indicando local exato, observações feitas, expectativas etc. Com esta informação, os membros do bando podem reunir-se e discutir como abordar o problema, talvez caçar o leão.

Uma segunda teoria concorda que nossa linguagem única evoluiu como meio de partilhar informação sobre o mundo. Mas a informação mais importante que se transmitia era sobre humanos, não leões. A linguagem evoluiu como modo de fofocar, por sermos animais sociais, cooperativos e reprodutivos. Não basta saber o que há por aí, pois é bem mais importante conversar sobre si mesmos, suas desavenças e amizades, como se dorme, como se cria criança, quem engana a quem... O montante de informação que precisamos obter e estocar para dar conta das relações sempre mutantes de algumas dúzias de indivíduos já é enorme (Num bando de 50 indivíduos, há 1.225 relações um-a-um e infinitas combinações sociais mais complexas) (H:23). Todos os macacos mostram interesse afiado em tal informação social, mas não fofocam propriamente, embora seja essencial para a convivência em bandos maiores (Dunbar, 1998). A teoria da fofoca parece gozação, mas muita pesquisa a suporta. Até hoje, grande parte da comunicação humana, também na forma de emails, chamadas telefônicas e colunas de jornais, é fofoca. É tão natural que parece ter a linguagem evoluído para este propósito.

Harari brinca então com cientistas que, num seminário mortalmente sério, quando se encontram para comer ou pausar, não falam sobre quarks, mas provavelmente sobre o colega traído pela esposa ou sobre a briga com o diretor do departamento. Em geral fofoca é sobre malfeitos. Rumores são especialidade do quarto poder, dos jornalistas... Provavelmente ambas as teorias – da fofoca e da informação sobre o leão por perto – têm seu lugar. No entanto, a marca única da linguagem não é a habilidade de transmitir informação sobre homens e leões; mas de transmitir informação sobre coisas que não existem. Só humanos falam sem parar sobre o que nunca viram, tocaram ou cheiraram. Lendas, mitos, deuses e religiões apareceram primeiro com a Revolução Cognitiva – por exemplo, dizer que o leão é o espírito vigilante da tribo. Não será viável convencer a um macaco que nos dê sua banana, com a promessa de que vai ter muitas outras após a morte. E isto se fez coletivamente – em mitos comuns como na estória da criação bíblica, nos mitos nacionalistas. Isto deu a habilidade sem precedentes de cooperar flexivelmente em sociedades maiores – podemos cooperar de modos bem mais flexíveis.

II. LENDA DA PEUGEOT
Os primos chimpanzés em geral vivem em grupos pequenos (algumas dúzias) – fazem amizades, caçam e lutam juntos; sua estrutura social tende a ser hierárquica; o membro dominante, quase sempre um macho, chama-se “macho alfa” e os outros machos e fêmeas mostram sua submissão curvando-se para ele, enquanto fazem grunhidos, não muito diferente dos humanos. O alfa procura manter harmonia social na tropa; quando dois brigam, intervém; de modo menos benevolente, pode monopolizar comida e impedir que indivíduos inferiores copulem com as fêmeas. Quando dois contestam o alfa, foram coalizões extensivas de asseclas, machos e fêmeas, do grupo; laços entre membros da coalizão se baseiam em contato diário íntimo – abraço, toque, beijo, coçar e favores mútuos. Assim como políticos humanos em campanhas eleitorais andam à volta apertando mãos e beijando bebês, assim aspirantes ao poder gastam tempo abraçando, dando palmadinhas e beijando bebês. O alfa em geral ganha a posição não por ser mais forte fisicamente, mas porque lidera coalizão maior e mais estável. Esta é estratégica não para disputas, mas também para atividades cotidianas – os membros passam mais tempo juntos, partilham comida e se ajudam em apertos. Há limites claros de tamanho dos grupos que podem ser formados e mantidos – todos precisam conhecer-se intimamente; dois chimpanzés que nunca se haviam encontrado, lutado ou se coçado juntos, não sabem se podem confiar-se, se vale a pena ajudar-se, e quem está acima. Em condições naturais, uma tropa típica tem 25 indivíduos; ao aumentar, a ordem social se desestabiliza, levando a eventuais rupturas e formação de nova tropa. Raramente houve casos de grupos com mais de 100 em estudos zoológicos; grupos separados quase não cooperam, tendem a competir por território e comida. Pesquisadores documentaram guerra prolongada entre grupos e mesmo um caso de atividade de genocídio na qual uma tropa sistematicamente matou a maioria dos membros do outro bando (Waal, 2000; 2005. Wilson; Wrangham, 2003. Symington, 1990:49. Chapman; Chapman, 2000:26).

Possivelmente, tais padrões comportamentais dominaram as vidas sociais de humanos primitivos, incluindo Sapiens arcaico. Como macacos, humanos têm instintos sociais que possibilitavam a nossos ancestrais a formar amizades e hierarquias e a caçar ou lugar juntos. Mas isto valia para grupos pequenos íntimos; com maiores, a ordem social se esfacela e o bando cinde. Mesmo que um vale fértil pudesse alimentar 500 Sapiens, não havia como viverem juntos – como se estabeleceria liderança, quem iria caçar e onde, e quem se acasala com quem? Na esteira da Revolução Cognitiva, fofoca ajudava o Sapiens a formar bandos maiores e mais estáveis; mas mesmo isto tem limite. Pesquisa sociológica mostrou que o tamanho natural máximo de um grupo unido por fofoca está em 150. A maioria não pode conhecer intimamente, nem fofocar efetivamente com mais. Mesmo hoje, limiar crítico nas organizações humanas está em torno desse número mágico. Abaixo disso, comunidades, empresas, redes sociais e unidades militares podem manter-se com base maior em relações íntimas e fofoca. Não se precisa de rankings formais, títulos e leis para manter a ordem (Dunbar, 1998. Aiello; Dunbar, 1993:189. McCarty et alii, 2001:32. Hill; Dunbar, 2003:65).

Então, como humanos chegaram a formar cidades enormes? O segredo esteve provavelmente no aparecimento da ficção. Estranhos em grande número pode cooperar acreditando em mitos comuns. Igrejas se baseiam em mitos religiosos comuns; dois católicos que nunca se encontraram podem lutar juntos ou construir hospital, porque ambos têm a mesma crença. Nada disso existe fora das estórias inventadas e contadas. Não há deuses no universo, nem nações, nem dinheiro, nem direitos humanos, nem leis, nem justiça, fora da imaginação comum humana. Primitivos mantinham a ordem crendo em espíritos e fantasmas, e dançando na noite de lua cheia em torno do fogo. Mas não percebemos que ainda funcionamos assim. Veja-se exemplo das empresas – empresários e advogados são, de fato, feiticeiros incisivos – a diferença principal entre eles e xamãs tribais é que advogados modernos conta estórias bem mais estranhas. A lenda da Peugeot é boa referência. Um ícone que se assemelha ao leão-homem está nos carros, caminhões e motos em todo o mundo, em geral no capô. Peugeot começou como empresa familiar em Valentigney, a 320 km da Caverna Stadel – hoje emprega 200 mil pessoas no mundo, a maioria estranha entre si, mas cooperam tão efetivamente que em 2008 Peugeot produziu mais de 1.5 milhão de carros, com ingressos de $55 bilhões de euros. O cerne da empresa é sua marca imaginária, distinta das bases físicas e das pessoas envolvidas. Se um juiz decretasse falência, desapareceria a marca, mas os prédios e carros continuam. Advogados chamam a isso de “ficção legal” – existe como entidade legal. Está ligada a leis dos países onde opera; podem abrir contas bancarias e ter propriedade; paga impostos e pode ser processada, também em separado dos donos. Pertence ao gênero particular de ficções legais chamado “empresas de responsabilidade limitada” – a ideia por trás é uma das invenções mais engenhosas. Sapiens viveu milhões de anos sem isso. Durante a maior parte da história registrada, propriedade podia ser possuída por gente de carne e osso. Na França do século XIII, quem tinha um negócio, era ele mesmo o tocador, era o negócio. Se o produto fosse ruim, seria processado em pessoa. Se tomasse mil moedas de ouro emprestadas para montar seu negócio e este falisse, teria como pagar, vendendo a propriedade – sua casa, vaca, terra. Talvez viesse mesmo a vender seus filhos em servidão. Se não cobrisse a dívida, poderia ficar na cadeia ou ser escravizado pelos credores. Era responsável plenamente. Era mesmo difícil ser empresário. E por isso passou-se a imaginar empresas de responsabilidade limitada – legalmente independentes das pessoas que as organizam ou onde investem dinheiro ou as gerem.

Nos séculos recentes, tais empresas viraram atores principais da arena econômica e somos tão acostumados com elas que esquecemos ser imaginárias. Nos Estados Unidos, o termo técnico usado é “corporação”, que é irônico, pois o termo deriva de “corpus” (corpo em latim) – o que precisamente tais corporações não têm. Mesmo não tendo corpos reais, o sistema legal trata como pessoas legais, também o sistema legam francês desde 1896, quando Armand Peugeot, que havia herdado dos pais uma loja de metais que produzia molas, serras e bicicletas, decidiu entrar na produção de veículos. Foi uma companhia de responsabilidade limitada, com seu nome, mas era independente. Se um dos carros quebrasse, o comprador pode processar a Peugeot, mas não o Sr. Peugeot. Este morreu em 1915, mas não a empresa. Criou a empresa de modo similar a sacerdotes e feiticeiros ao criarem deuses e demônios, ou como padres franceses criam o corpo de Cristo na missa dominical. Contam-se estórias e as pessoas se convencem delas. Harari parodia a missa católica, um pouco inclementemente. No caso de Peugeot a estória crucial era o código legal, constitucional. Seguindo liturgia e ritos, e com devidas vestimentas e ornamentos, mais juramentos aqui e ali, surge empresa. Quando em 1896, Peugeot quis criar sua empresa, pagou a um advogado para vencer todos os rituais e procedimentos exigidos; milhões de franceses creram que a empresa existia mesmo.

Mas, contar boa estória não é fácil (H:30). Contar até é fácil, difícil é persuadir a crer em deuses, nações ou empresas. Isto, porém, dá ao Sapiens imenso poder, porque arrasta milhões de cooperadores. Não seria viável criar estados, igrejas ou sistemas legais, se falássemos apenas de coisas que existem de fato, como rios, árvores ou leões. As pessoas se engalfinharam em torno de estórias do arco da velha; em tais redes, ficções como Peugeot não só existem, como acumulam poder imenso. São “construtos sociais” ou “realidades imaginadas”, para a academia. Não é mentira – mentira é quando digo que um leão está perto do rio e não há nenhum leão aí. Nada de especial com mentiras – macacos mentem também. Um macaco verde foi visto dizendo “Cuidado! Um leão!”, quando não havia. O alarme atemorizou o companheiro que fugiu deixando a banana para o malandro. Ao contrário de mentira, realidade imaginada é algo em que todos creem, e persistindo isso, exerce força no mundo. O escultor da caverna Stadel pode ter sinceramente crido na existência do espírito guardião do leão-homem; alguns feiticeiros são charlatães, mas a maioria é sincera; a maioria dos milionários sinceramente creem na existência de dinheiro e empresas de responsabilidade limitada. “A maioria dos ativistas dos direitos humanos acreditam na existência dos direitos humanos. Ninguém mentia quando, em 2011, a ONU pediu que o governo líbio respeitasse direitos humanos dos cidadãos, mesmo que ONU, Líbia e direitos humanos sejam fingimentos de imaginações férteis. Desde a Revolução Cognitiva, Sapiens passou a viver em realidade dual. Num lado, a realidade objetiva dos rios, árvores e leões; noutro, a imaginada dos deuses, nações e empresas. Com o tempo a realidade imaginada se tornou tanto mais poderosa, a ponto de rios, árvores e leões dependerem das entidades imaginadas como Estados Unidos e Google.

Harari faz uma “gozação” bem humorada para desvelar que a realidade por trás da imaginada é feita de teias de poder invisível, mas não menos efetivo. Mas seria o caso lembrar que a Revolução Cognitiva tem como um de seus esteios o poder de abstração e modelagem da mente humana – a ciência também é “construto social”, em suas teorias que só existem na mente dos cientistas. Não há teoria andando por aí, morando lá, vestindo isso ou aquilo. Mas, com sua instrumentação chegamos à Lua – são extremamente efetivas, como religiões são. O abstrato é parte do concreto, não sendo talvez bem o caso falar de realidade dual – é a mesma realidade de fundo, mas abstraída de modos diferenciados. Não dá para viver no mundo físico dos físicos, nem eles podem; vivemos em realidades concretas bem diferentes. São duas realidades? Certamente, não, ainda que até hoje não tenhamos deslindado tais mistérios da mente.

III. ULTRAPASSANDO O GENOMA
Estando cooperação humana de larga escala fundada em mitos, o modo de cooperar pode ser alterado mudando os mitos – inventando outras estórias. Em circunstâncias adequadas, mitos podem mudar rapidamente. Em 1789, a população francesa mudou da noite para o dia de crer no mito do direito divino dos reis para crer no mito da soberania popular. Desde a Revolução Cognitiva, Sapiens é capaz de revisar sem comportamento rapidamente de acordo com as necessidades. Isto abriu uma avenida da evolução cultural, ultrapassando barreiras de tráfego da evolução genética e com isso avançou muitíssimo além de outras espécies na habilidade de cooperar. O comportamento de outros animais sociais é determinado em grande medida pelos genes. “DNA não é autocrata” (H:32). Comportamento animal é influenciado também por fatores ambientais e encrencas individuais. Contudo, em dado ambiente, animais da mesma espécie tenderão a comportar-se de modo similar. Mudanças significativas em comportamento social não podem ocorrer, em geral, sem mutações genéticas. Por exemplo, chimpanzés comuns possuem a tendência genética de viver em grupos hierárquicos puxados por um macho alfa. Bonobos são mais igualitários, em geral dominados por alianças femininas, mas não fazem assembleias e escrevem uma constituição. Para tamanha mudança, há que haver também mudança genética. Humanos arcaicos não aprontaram nenhuma revolução; mudanças no padrão social, a invenção de novas tecnologias e a colonização de habitats estranhos resultaram de mutações genéticas e pressões ambientais mais do que de iniciativas culturais.

Eis a razão da demora para isto florescer; dois milhões de anos atrás, houve mutações genéticas que eclodiram no aparecimento de nova espécie humana chamada Homo erectus – esta emergência foi acompanhada pelo desenvolvimento de nova tecnologia da pedra, agora reconhecida como traço definitório desta espécie. Sem novas mutações genéticas, sua tecnologia estagnou por quase dois milhões de anos! Ao contrário, desde a Revolução Cognitiva, Sapiens foi capaz de mudar seu comportamento rapidamente, transmitindo novos comportamentos a gerações futuras sem necessidade de mudança genética ou ambiental. Harari dá como exemplo o aparecimento de elites sem filhos, como sacerdotes católicos, budistas, burocracias chinesas de eunucos. Vai contra princípios fundamentais da seleção natural abandonar a procriação, via abstinência sexual. Isto só pode ser curtido sobre mitos poderosos e crenças. Harari dá a entender, nas entrelinhas, que é difícil entender tais comportamentos, mesmo mantidos por milênios e em culturas tão diferentes, mas talvez emerja aí certa dose excessiva de “crença” no método científico, onde fés não cabem. Mas humanos sempre curtiram fés como fundamentos de suas existências, com lados positivos e negativos, certamente. Tem razão em alegar o quanto parece estranho que alguém decida viver em celibato – mas não é enfermidade; é fé. Muitos dirão que fé é alienação, excrescência evolucionária, mas sendo tão comum em humanos, talvez seja o caso achar normal.

Constrói um exemplo: um residente em Berlim de 1900 e chegando aos 100 anos; passou a infância no Império dos Hohenzollern de Guilherme II; a idade adulta na República de Weimar, no Terceiro Reich Nazista e na comunista Alemanha oriental; morreu cidadã de uma Alemanha democrática e reunificada; fez parte de cinco sistemas sociopolíticos bem diversos, mas o DNA foi o mesmo. Eis a chave do sucesso do Sapiens – na luta corpo a corpo, o Neandertal teria batido o Sapiens. Mas em conflito com centenas, não. Neandertals podiam colher informação sobre leões á volta, mas não faziam disso narrativa, incluindo espíritos. Sem ficção, não há cooperação! Tinham cognição limitada, a julgar por seus restos arqueológicos em sites no centro europeu – ocasionalmente acharam conchas marinhas do Mediterrâneo e Atlântico – parece que tais conchas foram para o interior continental via comércio entre bandos de Sapiens. Sítios de Neandertals não têm vestígios de comércio, cada grupo manufaturava suas ferramentas e materiais locais (Taborin, 1993).  

Outro exemplo do Pacífico sul. Bandos de Sapiens que viviam na ilha de Nova Irlanda, ao norte da Nova Guiné, usavam vidro vulcânico chamado obsidiana para manufaturar ferramentas particularmente fortes e afiadas. Mas aí não há depósito de obsidiana; testes de laboratórios revelaram que a obsidiana usada foi trazida de depósitos na Nova Guiné, uma ilha a 402 km de distância (Summerhayes, 1998). Comércio foi atividade bem pragmática, sem base ficcional, mas é fato que nenhum outro animal, a não ser o Sapiens, se envolveu nisso com base em ficções. Comércio não existe sem confiança, e é bem difícil confiar em estranhos. A rede global de comércio de hoje baseia-se na confiança em tais entidades fictícias como dólar, Banco Central americano, marcas totêmicas de empresas. Quando dois estranhos se encontram em sociedade tribal e querem comerciar, muitas vezes apelam para confiança via deus comum, ancestral mítico ou totem animal. Se podiam comerciar bens, permutavam também informação, cirando rede mais densa de ampla de conhecimento. Técnicas de caça são outro argumento das diferenças. Neandertals costumavam caçar sozinhos ou em grupos pequenos; Sapiens, por sua vez, desenvolveu técnicas que repousavam em cooperação entre muitas dezenas de indivíduos e talvez mesmo entre bandos diferentes. Método bem eficaz era cercar um bando inteiro de animais, como cavalos selvagens, e então caçar à distância pequena, sendo possível matar em massa, conforme planejamento prévio. Arqueólogos descobriram sítios onde bandos inteiros foram mortos anualmente assim. Há mesmo sítios onde cercas e obstáculos foram erigidos para fazer arapucas artificiais. Havendo violência entre Neandertals e Sapiens, os primeiros não eram muito melhores que cavalos selvagens; mesmo que Sapiens perdesse o primeiro round, podiam se reprogramar em novos estratagemas na próxima.

Assim, cultura passou a força evolucionária, rivalizando com o DNA, cuja proporção é sempre objeto de muita querela científica. Isto poderia também dar outra luz sobre religiões, não como esquisitice aos olhos científicos, mas como tecnologias do espírito para dar sentido à vida, organizar razões de ser, morais, apegos e felicidades. Religiões são também armas de guerra, mas não menos ciência.

IV. REVOLUÇÃO COGNITIVA

Nova habilidade
Consequências mais amplas
Habilidade de transmitir quantidades mais amplas de informação sobre o mundo à volta do Homo sapiens Planejar e executar ações complexas, como evitar leões e caçar bisão
Habilidade de transmitir quantidades maiores de informação sobre relações sociais do SapiensGrupos maiores e mais coesivos chegando a 150 indivíduos
Habilidade de transmitir informação sobre coisas que não existem realmente, tais como espíritos tribais, nações, empresas de responsabilidade limitada e direitos humanosa) Cooperação entre grandes números de estranhos;
b) inovação rápida de comportamento social (H:37).

Surge parceria entre história e biologia (H:37). A diversidade imensa de realidades imaginadas inventadas pelo Sapiens e resultante pletora comportamental são peças centrais do que chamamos “culturas”. Tendo aparecido, nunca cessaram de mudar, desenvolver-se e alterações imparáveis é o que chamamos de “história”. É o ponto em que história se livra da biologia; até então, os feitos humanos pertenciam ao reino da biologia, ou à pré-história). Depois, narrativas históricas substituíram teorias biológicas como meios primordiais de explicar o desenvolvimento do Sapiens. Para entender o surgimento da Cristandade ou a Revolução Francesa, não basta compreender a interação de genes, hormônios e organismos; é mister tomar em conta a interação de ideias, imagens e fantasias também. Não significa que biologia sumiu, já que continuamos animais, sendo que habilidades físicas, emocionais e cognitivas são moldadas pelo DNA ainda. Nossas sociedades são constituídas dos mesmos blocos de construção dos Neandertals e chimpanzés, e quanto mais examinamos – sensações, emoções e laços familiares – tanto menos diferença achamos. Mas é erro olhar as diferenças ao nível do indivíduo ou família. Uma a um, ou dez a dez, somos “embaraçosamente” (Ib.) similares a chimpanzés. Diferenças significativas começam a aparecer quando ultrapassamos limiar de 150, chegando a mil ou dois mil, tornando-se estupefacientes. Reunindo milhares de chimpanzés, só vai dar confusão; mas Sapiens se reúnem aos milhões, bilhões. Juntos criam padrões como redes de comércio, celebrações e instituições políticas...

A diferença real entre nós e chimpanzés é a cola mítica que nos une em números bastos de indivíduos, famílias e grupos. Isto nos fez mestres da criação (H:38). Precisamos de outras habilidades, como de fazer ferramentas, mas isto será de pouca consequência sem vínculo com a habilidade de cooperar em multidões. Como foi que agora temos mísseis intercontinentais com ogivas nucleares, enquanto há 30 mil anos tínhamos apenas lanças primitivas? Fisicamente não houve melhoria significativa na capacidade de fazer ferramentas nos últimos 30 mil anos. Mas nossa capacidade de cooperar com grandes números de estranhos melhorou demais. Uma lança se faz rápido, com ajuda de parceiros, mas um míssil com ogiva atômica pede cooperações de milhões de estranhos...

Em suma, a relação entre biologia e história ficou assim na Revolução Cognitiva: i) biologia põe parâmetros básicos para comportamento e capacidades do Homo sapiens; a história toda ocorre dentro dos limites desta arena biológica; ii) contudo, esta arena é extraordinariamente ampla, permitindo ao Sapiens jogar variedade estonteante de jogos; graças à habilidade de inventar ficção, Sapiens cria jogos mais e mais complexos, que cada nova geração elabora e desenvolve ainda mais; iii) consequentemente, para entender como Sapiens se comportam, precisamos descrever a evolução histórica de suas ações; referir-se apenas às constrições biológicas seria como um locutor de rádio esportivo, assistindo à Copa do Mundo, dar apenas uma descrição do campo, ao invés do que os jogadores fazem (H:38).

CONCLUSÃO
Harari se apega ao lado fictício mental da produção imaginária, também porque isso lhe dá chance de fazer uma paródia ferina interessante. Mas poderia ter sublinhado a capacidade de abstração modelar, base da cognição dita científica, em especial no uso da matemática (algo tipicamente abstrato), para enfrentar um dos desafios maiores epistemológicos: para entender o concreto é preciso abstrair dele! A realidade não é o que parece. No mundo da ficção, porém, é o caso fazer distinções importantes como é a ficção religiosa e científica – possivelmente ambas são essenciais evolucionariamente, mas hoje apreciamos bem mais a segunda (como faz Harari com picardia). O mundo científico pode ser visto como ficção – Einstein gostava de partir de experimentos mentais – mas é uma ficção matematizada, bem diferente de um conto de fadas. Precisamos deste também, porém.


REFERÊNCIAS
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