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O Menino, a Toupeira, a Raposa e o Cavalo

No prato




Fonte: https://incrivel.club/criatividade-arte/lembre-se-destes-quadrinhos-antes-de-julgar-alguem-17955/#image277955


A História de Dechen



Esta animação nos conta a história de Dechen, um monge budista tibetano em processo de treinamento que tem uma grande paixão pela jardinagem. No vídeo podemos ver como ele planta uma flor, a observa e cuida da mesma com muito carinho e total dedicação. No entanto, a planta vai perdendo força apesar de todos os cuidados desprendidos.

E a linda flor, sufocada pela ausência do sol, começa a murchar, provocando grande incompreensão e tristeza ao protagonista. Mas no momento em que o pequeno monge descobre que a flor somente teria uma vida feliz em seu lugar de origem, ele a leva e planta-na no solo que ela tanto ama.

Ali a flor se torna incomensuravelmente bela. E o menino monge descobre que, ainda que amamos muito algo ou alguém, não podemos deixá-lo cativo. Pois cada ser é ímpar e possui o seu modo íntimo de felicidade. Ele descobre que amar é aceitar a felicidade do outro ainda que esta felicidade não seja ao seu lado. E que por mais que nos dediquemos ao nosso objeto de desejo, ele precisa de seu próprio espaço para respirar, para crescer, para resplandecer.

“Deixar livre é único modo de amar verdadeiramente”. Clara Dawn.
[Fonte do texto: http://www.portalraizes.com/a-historia-de-dechen-amar-e-deixar-ir/]

“El Coronel no Tiene Quien le Escriba”


Há algo de insólito e desesperador, mas também de belo e encantador, no incomparável conto “El Coronel no Tiene Quien le Escriba” de Gabriel García Márquez. Este conto foi publicado pela primeira vez em 1961, posteriormente, por conta da grande receptividade que teve, ganhou edição própria e passou a ser publicado separadamente da coleção original. Em português já ganhou várias edições desde 1968, a primeira foi da Editora Sabiá e por último da Editora Record, que já está na 16ª edição [Tradução: Danúbio Rodrigues, 16ª edição, São Paulo:1996, 96 páginas], em 1999 ganhou no México uma versão cinematográfica de Arturo Ripstein, com brilhantes atuações de Fernando Lújan, Marisa Paredes e Salma Hayek.

Basta uma rápida e superficial leitura do título desta obra para se deduzir quem é o personagem principal: um Coronel, um velho coronel! Ele é um daqueles poucos homens que podem ser definidos numa curta e única palavra: honra! É também um daqueles raros homens que busca viver em sua velhice do modo mais coerente possível com suas crenças, ou com a falta delas, seus princípios e suas opiniões políticas.

O coronel é um veterano de guerra, participou de uma revolução com conotações religiosas, que ficou estacionado no tempo e no espaço, relembrando com nostalgia do passado, ainda se ressente de que os ideais pelos quais lutou, a liberdade do estado das mãos da religião fascista e manipuladora, não sejam mais do que uma lembrança no passado, se é que alguém ainda se lembra, além dele, desses motivos. A sua luta por um estado laico, sem a tutela de uma igreja que paralisa o povo por meio da religião supersticiosa, não é uma simples metáfora para Márquez, há algo de autobiográfico nisso.

Porém é por sua tenacidade, que pode ter conotações positivas ou negativas, depende do prisma pelo qual se olha, que o coronel é reconhecido. Alguns diriam que esta tenacidade na verdade é teimosia, outros que esperança vã, outros que ilusão e outros ainda que rabugices de um velho esclerosado, mas ainda assim não há quem possa negar que ele viva de modo coerente com o que crê, ou com o que não crê.

Após o término da revolução, tentando recompensar os militares que lutaram em favor de sua causa, o governo prometeu aos 200 oficiais que lideraram aquela revolta que cada um deles receberia uma indenização pelo esforço empreendido e uma aposentadoria vitalícia, porém devido à falta de recursos, não podemos esquecer que estavam reconstruindo o país após a guerra, adotou um sistema de filas de espera, o número do coronel era 1823. A partir de então, ele passa a esperar com orgulho pelo cumprir da promessa, já se vão quase 27 anos e a carta que comunicaria o tão esperado anúncio parece que nunca chega. Inexoravelmente, não importa se chova ou faça sol, todas as sextas-feiras ele veste o único terno que tem, põe um sapato gasto e cheio de buracos, um chapéu amarfanhado na cabeça, um guarda-chuva roto e cheio de buracos e, ainda que uma parte sua saiba que a carta não virá, enche-se de esperança e vai ao cais, aguardar o barco que traz o carteiro com as correspondências para o povoado. Mas ninguém escreve ao coronel, ninguém! No filme não há como não se encolerizar com a indiferença do carteiro ao desembarcar da chalupa e o seu riso zombeteiro e cheio de desdém ao comunicar ao coronel que não há cartas para ele, parece até que ele sente um prazer sádico em minimizar naquele pobre homem o pouco que lhe resta: um fio de esperança.

Sua esposa, europeia por nascimento (uma culta espanhola que tinha dificuldades para se adaptar ao meio ambiente atrasado da aldeia na qual moravam) era apaixonada pelos filmes que teimosamente eram exibidos no tosco cinema da vila, era também teimosa e orgulhosa, porém uma bondosa, abnegada e compreensível mulher, tinha a saúde em frangalhos em virtude da alimentação precária, do cansaço da velhice e das péssimas condições em que vivia, sofria crises cada vez mais forte de asma, sua têmpera era de aço, pode-se dizer que ela era uma mulher dura, não verteu uma lágrima sequer quando o filho morreu, porém estava definhando pouco à pouco, por causa do desgosto, da espera em vão e da desilusão.

O estopim que desencadeia uma sucessão de fatos, que entrelaçados dão corpo ao conto é a morte do filho do coronel, este teima em acreditar que seu filho morreu por conta de ser um revolucionário, enquanto que as demais pessoas atribuem à morte do rapaz à querela numa rinha de galo envolvendo uma prostituta, tudo o que uma família orgulhosa como a do coronel não podia tolerar. As únicas posses que o filho deixou, são recebidas como um alento após a morte trágica do rapaz, são também a única esperança daquela família orgulhosa e que vivia na miséria total: uma máquina de costura velha, instrumento de sua profissão de alfaiate e um galo de briga, instrumento de sua diversão, e ao que parece de mais da metade da cidade. Estes bens, pensava o coronel, garantiriam a ele e à sua mulher a sobrevivência por certo período, alimentando esperança de um futuro melhor que só viria com a aposentadoria do governo. Mas ninguém escreve ao coronel, ninguém! Os dias se sucedem e com eles as semanas, o coronel espera a tão desejada carta, que nunca vem.

O dinheiro que recebeu pela máquina de costura chegou ao fim, um misto de vergonha com um resquício de dignidade, parte de seu ser que não foi ultrajada, impedem-no de assumir diante de todos a miséria em que vive e de vender o único bem de valor que ainda possui: um relógio de parede, porém, sem ter como alimentar a esposa, suas dívidas com a mercearia, na qual compra fiado há anos, só fazem aumentar, obrigando-o a se esquivar quando passa defronte dela e é “tacitamente” cobrado, o coronel vive um dilema: vender o galo herdado do filho. O galo tinha sido treinado pelo filho do coronel para combater nas rinhas, e nele o coronel deposita as suas esperanças de ganhar algum dinheiro para poder sanar as dívidas, comprar alimentos e remédios, comprar roupas e sapatos, pagar a hipoteca da casa que estava perto de ser liquidada, até que a carta com a benfazeja notícia chegue, mas ninguém, ninguém mesmo escreve ao coronel e nem o galo, muito menos sua mulher, se alimentam de esperança e ar. Aparece então a proposta de vender o galo por 900 pesos, obviamente bem abaixo do valor que o galináceo teria, mas para as condições atuais do casal, era uma fortuna! O que fazer: vender o galo ou esperar os 45 dias que faltavam para o início das rinhas de briga de galo? O que comer até lá? E se o galo perder na rinha? Perguntas que nunca saberemos as respostas.

Fazendo coro com centenas de outros apreciadores da obra de Gabo, afirmo sem medo de errar que este é um conto doloroso de se ler. Alguns leitores apaixonados dizem que esta é uma história fraca em comparação ao grande Cem anos de solidão (tal comparação para mim é despropositada, visto que a abordagem deste conto é muito diferente da abordagem apresentada naquele livro, tão denso, de personagens tão complexos e de enredo intrincado, e o propósito do autor é outro), creio porém que nenhum dos seus escritos pode ser comparado a este conto, ele é único, de uma simplicidade arrebatadora, e atende a uma intenção única. Tenho a impressão que estou lendo um dos contos de Dostoiévski, seja Humilhados e ofendidos, seja Memórias do subterrâneo, ou mesmo Crime e castigo, tal é a miséria que vejo em suas poucas páginas, ainda que seja uma miséria orgulhosa. Alguém já disse que “é uma história dura e cruel com um final triste e desconcertante”, eu diria que além disso é um diário de bordo de um homem que a miséria total não conseguiu arrancar-lhe a única coisa que lhe restou: a esperança! Além disso não se pode perder de vista a densidade da leitura e a inexplicabilidade da mesma, o que não é novidade em se tratando de Gabo.

O tema subjacente a este conto, é também um tema recorrente nas obras de Gabo, e pode ser desmembrado em três tópicos: a) a condição de miserabilidade do ser humano; b) quanto do espírito deste ser foi afetado pela miséria que é tão presente; c) até que ponto o ser humano pode resistir a uma vida dura e cruel, que não lhe oferece nenhuma oportunidade para a felicidade.

Um outro velho, num passado tão distante passou por dúvidas cruéis e por motivos para desistir talvez mais fortes do que os do coronel: “... Abraão, contra toda esperança, em esperança creu!” (Romanos 4:18 NVI), creio que lições e verdades evangélicas podem ser extraídas deste conto de Gabo.

O coronel era ateu, considerava a religião crendices e superstições, mas ainda assim vestia-se de esperança todos os dias, mesmo em meio à miserabilidade aquela família conseguia crer, mesmo recebendo golpes sobre golpes, ele teimava em crer, ainda que pareça ingenuidade, a esperança dele é admirável. A miséria que o envolvia não tocou sua alma, ela permanecia intacta, seu corpo definhava, mas sua esperança cada dia se renovava.

Sei que Ruach sopra onde quer e como quer, e creio que este conto é um dos muitos sopros que ele deu sobre a nossa sociedade secularizada e intelectualizada, por meio deste conto muitos foram catequizados sem perceberem. Enquanto louvavam a genialidade de Gabo, Ruach os ensinava que para manter a esperança viva, não é necessário ter fundamentos sólidos e concretos, que a esperança verdadeira nasce quando o desespero domina, e é neste macro-ambiente que Ruach encontra espaço para espalhar suas fagulhas de fé e esperança.

Pode ser que ninguém escreva ao coronel, pode ser que ninguém nos dê a resposta que tanto almejamos, mas certamente Ruach permanecerá ao nosso lado para que não desistamos quando estivermos tão perto de conquistar aquilo pelo qual esperamos por anos a fio.

Candeias apagadas, vidas despedaçadas!


A nota começa de forma lacônica: "Há um bálsamo em Gileade" cantaram os coristas em um culto solene no sábado dia 19 de maio de 2012, que marca o fim de 161 anos de vida em adoração da Catedral Episcopal de St. John, em Wilmington, estado de Delaware, nos Estados Unidos…”. A canção, que talvez não seja muito conhecida do evangelicalismo tupiniquim, é o leitmotiv adequado para a ocasião, me arrisco de que esta classificação que fiz possa ser chamada de despropositada, em virtude de ser uma canção desconhecida, ainda assim insisto que, além de ser uma peça bastante tradicional da hinódia evangélica é nada mais, nada menos, do que isso: um leitmotiv.

Continua a nota: “... Tragicamente, ele não tem mais fiéis para manter as portas abertas. O Ex-Bispo Presidente da liberal Igreja Episcopal dos Estados Unidos Frank Griswold fez um sermão de “ação de graças" para desfazer o "espaço sagrado" e "lugar sagrado" e "deu graças pela presença sagrada "[seja lá o que isso signifique]. Mas na verdade seu sermão era um elogio, um culto in memoriam para uma catedral que vai agora juntar-se a muitas outras paróquias que fecharam as portas na Igreja Episcopal dos Estados Unidos. Talvez, com o tempo, a Catedral Nacional de Washington também poderá fechar. Mais Catedrais da Igreja Episcopal estão quase sem fieis. Ao longo dos próximos 20 anos elas vão calmamente fechar e serão vendidas para se tornarem prédios seculares. […] Nesse “culto in memoriam” pela primeira vez em anos, a Catedral estava cheia com cerca de 300 pessoas. Foi a última vez que esse santuário teve fieis. […] Em julho, um desmantelamento terá lugar, uma espécie de funeral eclesiástico para a família e amigos, e a Catedral será então desmontada e seus objetos litúrgicos, bancos, peças, incluindo um magnífico conjunto de vitrais sobre o altar, serão vendidos pelo maior lance. "FIM”. Termina a nota de forma tão lacônica quanto começou.

Li esta funesta nota (que mais parece um daqueles anúncios na seção “Avisos Fúnebres” em algum jornal de terceira categoria), na última terça (22) no site da Diocese Anglicana do Recife (www.dar.org.br), não sei ainda qual o sentimento prevalecente, se tristeza, pesar, amargura, desapontamento, etc, só o tempo é que dirá, o fato em si, para mim é inclassificável. Sei apenas que durante a leitura fui tomado por uma amargura que me acompanhou até o fim, e que perdurou por muito tempo após, e esta sensação volta quando reflito sobre o conteúdo da nota. Ainda que conhecedor das escrituras (diria que até mesmo um pouco acima da média, mesmo correndo o risco de parecer pretensioso, mas afirmo isso em virtude de ter lido e estudado a Bíblia desde os meus 08 anos de idade, antes de completar 10 anos já a tinha lido três vezes de capa a capa, e passei a ensiná-la na igreja quando tinha por volta de 14 anos) e sabedor de que isto foi previsto por Jesus e por seus apóstolos, ainda assim sou tomado por um sentimento de inadequação e pesar, ainda mais sabendo que tal comunidade faz parte da família confessional à qual pertenço.

Este excerto me fez lembrar de uma história antiga e triste que, eu creio ser ideal para nos conduzir à uma reflexão sobre estes acontecimentos, haja vista que não podemos simplesmente ignorar os fatos e nem tampouco podemos deixar de retirar alguma lição preciosa, vamos à ela:

Quando os primeiros raios de sol da alvorada refulgiram naquelas encostas, foi que se pôde avaliar com precisão o que tinha de fato acontecido naquela que talvez tenha sido a mais sombria, tempestuosa e trágica noite que tinham vivido até então. Eram centenas de corpos despedaçados nas rochas, alguns estavam intactos, outros já tinha sido devorados parcialmente pelo cardume de tubarões que passou a noite se refestelando naquela baía, ao alvorecer, com o apetite saciado, rondava os corpos, arrancando pedaços apenas para obedecer ao seu próprio instinto destrutivo. De cima das rochas podia-se ver ainda algumas manchas de sangue que se dissipavam. Restos da embarcação, as velas rasgadas, cordas, tonéis boiando, um dos mastros quebrado pela fúria dos ventos, botes quebrados, madeirame do calado partido ao meio, equipamento do convés, além de diversos restos de comida e utensílios da cozinha jaziam na beira da praia, tornando mais dantesco ainda aquele cenário.

As centenas de pessoas das vilas vizinhas acorriam às encostas escarpadas tão logo a notícia se espalhava como um rastilho de pólvora, perplexos diante de tamanha tragédia se indagavam como aquilo, inominável, poderia ter acontecido, eles que se cercaram de tantos cuidados e adotaram tanta precaução, desde que um acidente há mais de 100 anos vitimou mais de 300 pessoas, desde então tinham sido eficientes em evitar que naufrágios, como aquele, ocorressem naquelas encostas.

Quando as autoridades chegaram, enquanto a população se organizava para resgatar os corpos, com o intuito de lhes dar um funeral decente, os soldados montaram uma mesa diante de uma tenda e os magistrados deram início imediatamente às apurações do que poderia ter permitido que uma catástrofe de tal dimensão acontecesse.

Ele foi trazido diante da mesa em que os magistrados estavam reunidos, cabisbaixo, trôpego, cabelo desgrenhados, roupa amarfanhada e suja e os olhos vermelhos que indicavam mais do que uma noite insone, indicavam uma noite de choro contínuo. As pessoas desviavam o olhar quando ele passava, se afastavam como se ele estivesse com lepra, até parecia que ninguém o conhecia, muito embora fosse amigo de infância ou mesmo parente de muitos do que estavam ali. Somente sua mãe e sua esposa não se afastaram, mesmo assim não ousou olhar para elas, sabia que estavam ali não para condená-lo, mas isto não diminuía sua dor por tê-las decepcionado tanto.

- Onde você estava?

Foi a pergunta que o magistrado lhe fez de chofre, demorou a responder, não porque estivesse pensando numa boa resposta, ele diria a verdade, mas sabia que a verdade não consertaria o que tinha sido feito.

- Estava no farol, como era o meu dever, desde que o sol se pôs que eu assumi o turno da noite.

- Se estava no farol, então me responda como é que deixou isto acontecer? Por que foi que não acendeu o farol quando começou a chover e a névoa se tornou densa e sólida?

Sabia que não poderia dizer a verdade, mas sabia que também não poderia mentir, quaisquer que fossem as consequências ele teria que arcar com elas.

- Estava muito frio, chovendo muito, eu levei uma garrafa de Rum para o farol, bebi um pouco e adormeci, só acordei quando algumas pessoas começaram a bater na porta me pedindo para acender o farol, mas já era muito tarde.

- Uma garrafa de Rum? Foi a pergunta que o magistrado lhe fez, apontando para algumas garrafas vazias de Rum, vinho e conhaque. Cabisbaixo e envergonhado ele não ousou contestar.

- Levem-no daqui antes que a população o despedace. E quanto a nós, que Deus nos ajude a colocar um pouco de ordem neste caos! Disse o magistrado às outras autoridades.

A ordem do magistrado o deixou temeroso, porém aliviado por sair dali, por se afastar daqueles olhares que queimavam mais do que mercúrio. Ele não ofereceu resistência quando foi cercado pelos soldados e levado para uma das celas do castelo, longe da família, longe dos amigos, longe dos que o queriam ver morto, não sabia mais que eram os amigos e quem eram os inimigos, a linha ficou muito tênue depois daquela noite. Sabia que as autoridades queriam protegê-lo, muito embora ele não pudesse ser protegido de quem ele mais temia: sua própria consciência.

Foi contemplando este quadro desolador que o poeta cristão Philip Paul Bliss[1] compôs os versos que se tornariam eternamente famosos e que são cantados até hoje em todas as igrejas de tradição evangélicas ao redor do mundo:

Nas tormentas dessa vida,
Perto está a perdição.
Aos incautos navegantes,
Quem trará a salvação?

Resplandeçam nossas luzes
Através do escuro mar,
Pois nas trevas do pecado
Almas podem naufragar!

Brilha sempre, em graça imensa,
Rico amor do eterno Deus.
Cumpre a nós mostrar o rumo
Do caminho para os céus.

Nuvens de paixão mundana
Não nos deixam ver o sol.
Oh, mostremos o perigo
Com as luzes do farol.

Aos errantes, insensatos,
Guia ao porto divinal!
Em Jesus há vero abrigo
Do furor do temporal.

Noite eterna se aproxima,
Tenebrosa em seu horror!
Clama, avisa aos infelizes;
Insta-os para o Salvador! [2]

Este é um leitmotiv apropriado para o momento em que vivemos, quando aqueles que são responsáveis por manter as candeias acesas se embriagam com este século, com todo o dinheiro, poder, fama, status e grandeza que ele oferece, não há outro canto a ser entoado senão este como lamento, como aviso, como advertência e como um sinal de despertamento.

As naus continuam singrando os mares perigosos no meio da procela em seu furor, envolvidos por névoas densas e trevas profundas, só mesmo um farol aceso sobre um rochedo no alto pode servir de referência. Ainda há aqueles que no meio da tempestade ousam vencer as condições adversas e acendem as candeias, ou todos estão embriagados e embriagando-se? Na última vez que duvidaram, Ele advertiu que ainda havia 7.000 varões que não tinham dobrado o joelho, a esperança não morreu, a esperança, há esperança!
__________________________________
[1] Philip Paul Bliss é um dos escritores de hinos mais famoso na história da música cristã. Ele foi quem escreveu a letra e a música, de hinos como os seguintes: Almost Persuaded, Dare to Be a Daniel, Hallelujah 'Tis Done!, Hallelujah, What a Saviour!, Hold the Fort, Jesus Loves Even Me, Let the Lower Lights Be Burning, Once for All, The Light of the World Is Jesus, Whosoever Will, Wonderful Words of Life. Escreveu apenas o texto de My Redeemer e escreveu apenas a música de I Gave My Life for Thee, It Is Well with My Soul, Precious promisse. Bliss morreu ainda novo, com 38 anos. E isso se deu em 1876. Mr. Bliss passou os dias do feriado de Natal com sua mãe e sua irmã na Pensilvânia e fez planos pra voltar pra Chicago em Janeiro, para trabalhar com Moody. Porém um telegrama chegou pedindo-lhe que voltasse mais cedo. Sendo assim, antecipou a volta pra Chicago, planejando chegar na sexta a noite. Ele decidiu deixar seus dois filhos pequenos, de 1 e 4 anos de idade, com sua mãe. Nesta viagem de volta pra casa, em 29 de dezembro, Philip Paul Bliss morreu juntamente com sua esposa num acidente com o trem no qual estavam. O funeral foi realizado em Roma, na Pensilvânia, onde um monumento foi erguido com a inscrição "PP Bliss, author... Segure o Fort!". Serviços memoriais foram realizados em todo o país para o casal amado. A morte de nenhum civil trouxe tanto sofrimento para a nação, como a morte de Philip e sua esposa. Em 31 de dezembro, D.L. Moody discursou em uma reunião memorial, em Chicago. No dia 05 de janeiro, um concerto memorial foi realizado para homenagear Philip Paul Bliss também em Chicago. A cerimônia contou com 8000 pessoas no salão e outras 4.000 do lado de fora.
[2] HNC 308 - Nas tormentas dessa vida.

Relendo O afogado mais bonito do mundo


(De novo o silêncio. E, de novo, a voz de outra mulher… “Essas mãos… Como são grandes! Que será que fizeram?” )

Sou antropófago, devoro livros. Quem me ensinou foi Murilo Mendes: livros são feitos com a carne e o sangue dos que os escreveram. Os hábitos de antropófago determinam a maneira como escolho livros. Só leio livros escritos com sangue. Depois que os devoro, deixam de pertencer ao autor. São meus porque circulam na minha carne e no meu sangue.

É o caso do conto “O Afogado Mais Bonito do Mundo”, de Gabriel García Márquez. Ele escreveu. Eu li e devorei. Agora é meu. Eu o reconto.

É sobre uma vila de pescadores perdida em nenhum lugar, o enfado misturado com o ar, cada novo dia já nascendo velho, as mesmas palavras ocas, os mesmos gestos vazios, os mesmos corpos opacos, a excitação do amor sendo algo de que ninguém mais se lembrava…

Aconteceu que, num dia como todos os outros, um menino viu uma forma estranha flutuando longe no mar. E ele gritou. Todos correram. Num lugar como aquele até uma forma estranha é motivo de festa. E ali ficaram na praia, olhando, esperando. Até que o mar, sem pressa, trouxe a coisa e a colocou na areia, para o desapontamento de todos: era um homem morto.

Todos os homens mortos são parecidos porque há apenas uma coisa a se fazer com eles: enterrar. E, naquela vila, o costume era que as mulheres preparassem os mortos para o sepultamento. Assim, carregaram o cadáver para uma casa, as mulheres dentro, os homens fora. E o silêncio era grande enquanto o limpavam das algas e líquens, mortalhas verdes do mar.

Mas, repentinamente, uma voz quebrou o silêncio. Uma mulher balbuciou: “Se ele tivesse vivido entre nós, ele teria de ter curvado a cabeça sempre ao entrar em nossas casas. Ele é muito alto…”.

Todas as mulheres, sérias e silenciosas, fizeram sim com a cabeça.

De novo o silêncio foi profundo, até que uma outra voz foi ouvida. Outra mulher… “Fico pensando em como teria sido a sua voz… Como o sussurro da brisa? Como o trovão das ondas? Será que ele conhecia aquela palavra secreta que, quando pronunciada, faz com que uma mulher apanhe uma flor e a coloque no cabelo?” E elas sorriram e olharam umas para as outras.

De novo o silêncio. E, de novo, a voz de outra mulher… “Essas mãos… Como são grandes! Que será que fizeram? Brincaram com crianças? Navegaram mares? Travaram batalhas? Construíram casas? Essas mãos: será que elas sabiam deslizar sobre o rosto de uma mulher, será que elas sabiam abraçar e acariciar o seu corpo?”

Aí todas elas riram que riram, suas faces vermelhas, e se surpreenderam ao perceber que o enterro estava se transformando numa ressurreição: um movimento nas suas carnes, sonhos esquecidos, que pensavam mortos, retornavam, cinzas virando fogo, desejos proibidos aparecendo na superfície de sua pele, os corpos vivos de novo e os rostos opacos brilhando com a luz da alegria.

Os maridos, de fora, observavam o que estava acontecendo e ficaram com ciúmes do afogado, ao perceberem que um morto tinha um poder que eles mesmos não tinham mais. E pensaram nos sonhos que nunca haviam tido, nos poemas que nunca haviam escrito, nos mares que nunca tinham navegado, nas mulheres que nunca haviam desejado.

A história termina dizendo que finalmente enterraram o morto. Mas a aldeia nunca mais foi a mesma.

Rubem Alves
www.rubemalves.com.br

O afogado mais bonito do mundo


Os primeiros meninos que viram o volume escuro e silencioso que se aproximava pelo mar imaginaram que era um barco inimigo. Depois viram que não trazia bandeiras nem mastreação, e pensaram que fosse uma baleia. Quando, porém, encalhou na praia, tiraram-lhe os matos de sargaços, os filamentos de medusas e os restos de cardumes e naufrágios que trazia por cima, e só então descobriram que era um afogado.

Tinham brincado com ele toda a tarde, enterrando-o e o desenterrando na areia, quando alguém os viu por acaso e deu o alarma no povoado. Os homens que o carregaram à casa mais próxima notaram que pesava mais que todos os mortos conhecidos, quase tanto quanto um cavalo, e disseram que talvez tivesse estado muito tempo à deriva e a água penetrara-lhe os ossos. Quando o estenderam no chão viram que fora muito maior que todos os homens, pois mal cabia na casa, mas pensaram que talvez a capacidade de continuar crescendo depois da morte estava na natureza de certos afogados. Tinha o cheiro do mar e só a forma permitia supor que fosse o cadáver de um ser humano, porque sua pele estava revestida de uma couraça de rêmora e de lodo.

Não tiveram que limpar seu rosto para saber que era um morto estranho. O povoado tinha apenas umas vinte casas de tábuas, com pátios de pedra sem flores, dispostas no fim de um cabo desértico. A terra era tão escassa que as mães andavam sempre com medo de que o vento levasse os meninos, e os poucos mortos que os anos iam causando tinham que atirar das escarpas. Mas o mar era manso e pródigo, e todos os homens cabiam em sete botes. Assim, quando encontraram o afogado, bastou-lhes olhar uns aos outros para perceber que nenhum faltava.

Naquela noite não foram trabalhar no mar. Enquanto os homens verificavam se não faltava alguém nos povoados vizinhos, as mulheres foram cuidando do afogado. Tiraram-lhe o lodo com escovas de esparto, desembaraçaram-lhe os cabelos dos abrolhos submarinos e rasparam a rêmora com ferros de descamar peixes. À medida que o faziam, notaram que a vegetação era de oceanos remotos e de águas profundas; e que suas roupas estavam em frangalhos, como se houvesse navegado entre labirintos de corais. Notaram também que carregava a morte com altivez, pois não tinha o semblante solitário dos outros afogados do mar, nem tampouco a catadura sórdida e indigente dos afogados dos rios. Somente, porém, quando acabaram de limpá-lo tiveram consciência da classe de homens que era, e então ficaram sem respiração. Não era só o mais alto, o mais forte, o mais viril e o mais bem servido que jamais tinham visto, senão que, embora o estivessem vendo, não lhes cabia na imaginação.

Não encontraram no povoado uma cama bastante grande para estendê-lo, nem uma mesa bastante sólida para velá-lo. Não lhe serviram as calças de festa dos homens mais altos, nem as camisas de domingo dos mais corpulentos, nem os sapatos do maior tamanho. Fascinadas por sua desproporção e sua beleza, as mulheres decidiram então fazer-lhe umas calças com um bom pedaço de vela carangueja e uma camisa de cretone de noiva, para que pudesse continuar sua morte com dignidade. Enquanto costuravam, sentadas em círculo, contemplando o cadáver entre ponto e ponto, parecia-lhes que o vento não fora nunca tão tenaz nem o Caribe estivera tão ansioso quanto naquela noite, e supunham que essas mudanças tinham algo a ver com o morto. Pensavam que, se aquele homem magnífico tivesse vivido no povoado, sua casa teria as portas mais largas, o teto mais alto e o piso mais firme, e o estrado de sua cama seria de cavernas mestras com pernas de ferro, e sua mulher seria a mais feliz. Pensavam que tivera tanta autoridade que poderia tirar os peixes do mar só os chamando por seus nomes, e pusera tanto empenho no trabalho que fizera brotar mananciais entre as pedras mais áridas, e semear flores nas escarpas. Compararam-no, em segredo, com seus homens, pensando que não seriam capazes de fazer, em toda uma vida, o que aquele era capaz de fazer numa noite, e acabaram por repudiá-los, no fundo de seus corações, como os seres mais fracos e mesquinhos da terra. Andavam perdidas por esses labirintos de fantasia, quando a mais velha das mulheres, que por ser a mais velha contemplara o afogado com menos paixão que compaixão, suspirou:

- Tem cara de se chamar Estêvão.

Era verdade. À maioria bastou olhá-lo outra vez para compreender que não podia ter outro nome. As mais teimosas, que eram as mais jovens, mantiveram-se com a ilusão de que, ao vesti-lo, estendido entre flores e com uns sapatos de verniz, pudesse chamar-se Lautaro. Mas foi uma ilusão vã. O lençol ficou curto, mal cortadas e pior costuradas, ficaram apertadas e as forças ocultas de seu coração faziam saltar os botões da camisa. Depois da meia noite diminuíram os assobios do vento e o mar caiu na sonolência da quarta feira. O silêncio pôs fim às últimas dúvidas: era Estêvão. As mulheres que o vestiram, as que o pentearam, as que lhe cortaram as unhas e barbearam não puderam reprimir um estremecimento de compaixão quando tiveram de resignar-se a deixá-lo estendido no chão. Foi então quando compreenderam quanto devia ter sido infeliz com aquele corpo descomunal, se até depois de morto o estorvava. Viram-no condenado em vida a passar de lado pelas portas, a ferir-se nos tetos, a permanecer de pé nas visitas, sem fazer o que fazer com suas ternas e rosadas mãos de boi marinho, enquanto a dona da casa procurava a cadeira mais resistente e suplicava-lhe, morta de medo, sente-se aqui Estêvão, faça-me o favor, e ele encostado nas paredes, sorrindo, não se preocupe senhora, estou bem assim, com os calcanhares em carne viva e as costas abrasando de tanto repetir o mesmo, em todas as visitas, não se preocupe senhora, estou bem assim, só para não passar pela vergonha de destruir a cadeira, e talvez sem ter sabido nunca que aquele que lhe diziam não se vá, Estêvão, espere pelo menos até que aqueça o café, eram os mesmos que, depois, sussurravam já se foi o bobo grande, que bom, já se foi o bobo bonito. Isto pensavam as mulheres diante do cadáver um pouco antes do amanhecer. Mais tarde, quando lhe cobriram o rosto com um lenço para que não o maltratasse a luz, viram-no tão morto para sempre, tão indefeso, tão parecido com seus homens, que se abriram as primeiras gretas de lágrimas nos seus corações. Foi uma das mais jovens que começou a soluçar. As outras, consolando-se entre si, passaram dos suspiros aos lamentos, e enquanto mais soluçavam, mais vontade sentiam de chorar, porque o afogado estava se tornando cada vez mais Estêvão, até que o choraram tanto que ficou sendo o homem mais desvalido da Terra, o mais manso, o mais serviçal, o pobre Estêvão. Assim que, quando os homens voltaram com a notícia de que o afogado também não era dos povoados vizinhos, elas sentiram um vazio de júbilo entre as lágrimas.

- Bendito seja Deus - suspiraram: - é nosso!

Os homens acreditaram que aqueles exageros não eram mais que frivolidades de mulher. Cansados das demoradas averiguações da noite, a única coisa que queriam era descartar-se de uma vez do estorvo do intruso, antes que acendesse o sol bravo daquele dia árido e sem vento. Improvisaram umas padiolas com restos de traquetes e espichas, e as amarraram com carlingas de altura, para que resistissem ao peso do corpo até as escarpas. Quiseram prender-lhe aos tornozelos uma ancora de navio mercante para que ancorasse, sem tropeços, nos mares mais profundos, onde os peixes são cegos e os búzios morrem de saudade, de modo que as más correntes não o devolvessem à margem, como acontecera com outros corpos. Porém, quanto mais se apressavam, mais coisas as mulheres lembraram para perder tempo. Andavam como galinhas assustadas, bicando amuletos do mar nas arcas, umas estorvando aqui porque queriam por no afogado os escapulários do bom vento, outras estorvando lá para abotoar-lhe uma pulseira de orientação; e depois de tanto sai daí mulher, ponha-se onde não estorve, olhe que quase me faz cair sobre o defunto, aos fígados dos homens subiram as suspeitas e eles começaram a resmungar, para que tanta bugiganga de altar-mor para um forasteiro, se por muitos cravos e caldeirinhas que levasse em cima os tubarões iam mastigá-lo, mas elas continuavam ensacando suas relíquias de quinquilharia, levando e trazendo, tropeçando, enquanto gastavam em suspiros o que poupavam em lágrimas, tanto que os homens acabaram por se zangar, desde quando aqui semelhante alvoroço por um morto ao léu, um afogado de nada, um presunto de merda. Uma das mulheres, mortificada por tanta insensibilidade, tirou o lenço do rosto do cadáver e também os homens perderam a respiração.

Era Estêvão. Não foi preciso repeti-lo para que o reconhecessem. Se lhe tivessem chamado Sir Walter Raleigh, talvez, até eles ter-se-iam impressionado com seu sotaque de gringo, com sua arara no ombro, com seu arcabuz de matar canibais, mas Estêvão só podia ser único no mundo e ali estava atirado, como um peixe inútil, sem polainas, com umas calças que não lhe cabiam e umas unhas cheias de barro, que só se podia cortar à faca. Bastou que lhe tirassem o lenço do rosto para perceber que estavam envergonhado, de que não tinha culpa de ser tão grande, nem tão pesado, nem tão bonito, e se soubesse que isso ia acontecer, teria procurado um lugar mais discreto para afogar-se, de verdade, me amarraria eu mesmo uma âncora de galeão no pescoço e teria tropeçado como quem não que nada nas escarpas, para não andar agora estorvando com este morto de quarta-feira, como vocês chamam, para não molestar ninguém com esta porcaria de presunto que nada tem a ver comigo. Havia tanta verdade no seu modo de estar que até os homens mais desconfiados, os que achavam amargas as longas noites no mar, temendo que suas mulheres se cansassem de sonhar com eles para sonhar com os afogados, até esses, e outros mais empedernidos, estremeceram até a medula com a sinceridade de Estêvão.

Foi por isso que lhe fizeram os funerais mais esplêndidos que se podiam conceber para um afogado considerado enjeitado. Algumas mulheres, que tinham ido buscar flores nos povoados vizinhos, voltaram com outras que não acreditavam no eu lhes contavam, e estas foram buscar mais flores quando viram o morto, e levaram mais e mais, até que houve tantas flores e tanta gente que mal se podia caminhar. Na última hora, doeu-lhes devolve-lo órfão às águas, e lhe deram um pai e uma mãe dentre os melhores, e outros se fizerem seus irmãos, tios e primos, de tal forma que, através dele, todos os habitantes do povoado acabaram por ser parentes entre si. Alguns marinheiros que ouviram o choro à distância perderam a segurança do rumo, e se soube de que um se fez amarrar ao mastro maior, recordando antigas fábulas de sereias. Enquanto se disputavam o privilégio de carregá-lo nos ombros, pelo declive íngreme das escarpas, homens e mulheres perceberam, pela primeira vez, a desolação de suas ruas, a aridez de seus pátios, a estreiteza de seus sonhos, diante do esplendor e da beleza do seu afogado. Jogaram-no sem âncora, para que voltasse se quisesse, e quando o quisesse, e todos prenderam a respiração durante a fração de séculos que demorou a queda do corpo até o abismo. Não tiveram necessidade de olhar-se uns aos outros para perceber que já não estavam todos, nem voltariam a estar jamais. Mas também sabiam que tudo seria diferente desde então, que suas casas teriam as portas mais largas, os tetos mais altos, os pisos mais firmes, para que a lembrança de Estêvão pudesse andar por toda parte, sem bater nas traves, e que ninguém se atrevesse a sussurrar no futuro já morreu o bobo grande, que pena, já morreu o bobo bonito, porque eles iam pintar as fachadas de cores alegres para eternizar a memória de Estêvão, e iriam quebrar a espinha cavando mananciais nas pedras e semeando flores nas escarpas para que, nas auroras dos anos venturosos, os passageiros dos grandes navios despertassem sufocados por um perfume de jardins em alto-mar, e o capitão tivesse que baixar do seu castelo de proa, em uniforme de gala, astrolábio, estrela polar e sua enfiada de medalhas de guerra, e, apontando o promontório de rosas no horizonte do Caribe, dissesse em catorze línguas, olhem lá, onde o vento é agora tão manso que dorme debaixo das camas, lá, onde o sol brilha tanto que os girassóis não sabem para onde girar, sim, lá é o povoado de Estêvão.

Gabriel Garcia Marques
“A incrível e triste história da Cândida Erêndira e sua avó desalmada”, pág. 46 – 55.
Tradução de Remy Gorga, Filho
Editora Record, 22 edição.
[Postarei reflexões, se é que posso chamar assim, teológicas sobe este belíssimo conto]

Um "rumor" de lealdade!


Em Rumores de outro mundo (Vida:2004), tradução do original inglês: Rumors of another world, Philip Yancey defende a teoria, que eu denominaria de “fronteiras da fé” usando seus próprios termos, de que alguns fatos e acontecimentos cotidianos são fagulhas de verdades eternas e transcendentes que a Queda não conseguiu apagar de todo da raça humana, este livro, que li por duas vezes, tendo terminado a segunda leitura em agosto de 2009, me trouxe muitas lições na área da espiritualidade e muito no que refletir e pensar na área teológica. Depois que “ruminei” o livro por vários meses, consciente ou inconscientemente, fiz uma colação (Termo que significa o confronto de uma cópia de um manuscrito com outra cópia, para verificar a correspondência entre os respectivos textos e assim analisar a maior ou menor autoridade para a escolha do texto exato. Ver Crítica Textual do Novo Testamento de Wilson Paroschi Vida Nova:1993) da teoria de Yancey com as teses de Don Richardson apresentadas em Fator Melquisedeque, um dos melhores livros de missiologia que tive a oportunidade de ler, devo ter terminado a sua “degustação” por volta de 1988, quase 20 anos antes de ler o livro de Yancey, quando ainda estava estudando o primeiro ano no primeiro seminário, dos três que cursei, porém o ruminei por muitos anos ainda.

Após esta síntese, passei então a enxergar com outros olhos as histórias e estórias de culturas antigas, mormente as não cristãs, em busca destes lampejos e rumores que são, no entender destes autores, sopros da verdade que o Espírito Santo preservou nestas culturas. Recentemente (2011) pude assistir por duas vezes Para sempre ao seu lado com Richard Gere, tão logo passou a emoção que a película me transmitiu, percebi que se tratava de um desses rumores. A história, que é baseada em fatos verídicos, se deu no Japão do começo do século passado e condensa elementos fortíssimos de algo que só pode ser explicado sobrenaturalmente. Convido-o(a) a me acompanhar nesta viagem e comprovar se tenho razão ou não.

Este “rumor” se tornou manchete (“Velho e fiel cão espera pela volta do dono por dez anos”) na primeira página do conceituado jornal japonês Asahi Shinbum, na edição de 4 de Outubro de 2009 (Coincidentemente o dia em que a cristandade ocidental reservou para Francisco de Assis, considerado o Protetor dos Animais), por meio dela, que sintetiza toda uma vida, somos guiados e ajudados a entender o que de fato aconteceu e quais os desdobramentos que teve. O filme com Gere, a qual me referi, que é intitulado no original como: Hachiko: A Dog's story (2009) é uma refilmagem de um filme japonês de 1987.

Hachiko, que indubitavelmente, é o principal personagem desta história, nasceu em novembro de 1923 e quando ainda era um pequeno filhote foi enviado como presente para um professor do Departamento Agrícola da Universidade de Tóquio, o Profº Hidesaburo Ueno que morava em Shibuya, este acalentou por muitos anos o sonho de ter um cão Akita, esta raça sempre gozou de alta estima e valor para a sociedade japonesa por suas características tão peculiares e incomuns que serão expostas mais à frente, porem à época, se encontrava em vias de extinção.

Paulatinamente a amizade e a convivência entre o cão e o dono foram se transformando em amor e respeito de ambas as partes, e duas coisas, dentre outras, evidenciavam essa relação tão profunda: o costume adquirido por Hachi de sempre, invariavelmente, acompanhar o Profº Hidesaburo até a estação onde este tomaria um trem com destino à Universidade, depois que se despedia, na entrada da estação, voltava para casa, e em segundo lugar é que Hachi parecia ser dotado de um dispositivo interno, algo como um timer, que o fazia ir sozinho à estação de trem esperar o dono sempre por volta das 15h00, sem nunca se atrasar e sem nunca faltar, não importava como ele estava, não importavam as adversidades climáticas, quer chovesse, nevasse ou fizesse sol, lá estava ele esperando o professor à porta da estação, para que os dois pudessem voltar juntos para casa.

Depois de quase dois anos de amizade crescente e convivência intensa, em maio de 1925, o professor Hidesaburo durante uma aula na universidade veio a falecer, e infelizmente, jamais retornou vivo para a estação de trem onde Hachi o esperava.

Neste ponto da história, o filme japonês apresenta uma cena muito comovente, e talvez a mais comovente da história, Hachi é filmado atravessando a sala da casa durante o velório do professor e como único recurso para demonstrar sua dor e perda começa a uivar, depois, sem saber o que estava acontecendo, é filmado acompanhando o carro que conduz o féretro do professor.

Ainda que haja divergência sobre os fatos que se passaram após a morte do professor (Na história os parentes e amigos dos Ueno cuidaram de Hachi, já no filme o cão acabou se transformando em uma espécie de ‘estorvo’, uma triste lembrança para toda a família, de algo que eles talvez não quisessem lembrar), o que importa na verdade, o fato que é o mais relevante da história, é que não havia nada que o impedisse, fome, doença, frio, chuva, neve ou sol, etc. de aparecer pela manhã na antiga casa dos Ueno, e de lá se dirigir à estação de trem, como sempre fizera por dois anos levando o professor, e no final da tarde se posicionar defronte à saída da estação, sempre por volta das 15h00, “britanicamente”, na esperança de reencontrar seu dono.

Sua presença na estação já tinha sido notada por todos os que a frequentavam, sejam passageiros, sejam funcionários da companhia de trem, sejam comerciantes que atuavam nas redondezas, porém, após a morte de Hidesaburo, que era bastante popular e querido na comunidade, ela se tornou bem mais famosa por sua postura empertigada de espera e pela constância com que fazia aquilo, alguns vendedores que comercializavam no acesso à estação e os antigos amigos de Hidesaburo se revezavam levando comida e água para Hachi, parecia que aquilo era dado como um tributo, era o mínimo que podiam fazer pelo cão, de uma lealdade e fidelidade ímpares, que sempre voltava para esperar pelo dono que, ele parecia não se dar conta, nunca voltaria.

Esta espera, quase uma devoção religiosa, durou exatamente longos 10 anos, que representavam mais do que 10 anos para um cão, em virtude de sua vida nem tão longeva quanto a humana. Não foi surpresa quando em 1932 a história de Hachiko tornou-se conhecida por meio das páginas dos jornais japoneses, e essa história quando difundida, (Que apresentava um cão da raca Akita de uma lealdade ao dono que transcendia até mesmo a limitação inexorável que a morte impunha), serviu de estopim para um movimento que defendia a raça Akita. No Japão eram catalogadas apenas 30 espécimes vivas, uma matilha diminuta de um animal tão valioso. Ocorreu uma verdadeira revolução que se alastrou como uma febre, tomando a lealdade do cão e sua amizade inconteste como exemplo foi estimulada a reprodução e cuidados para evitar a extinção plena foram tomados, com sucesso incontestável, haja vista que a raça hoje não mais enfrenta o risco da extinção. Como reconhecimento à tamanha lealdade em 1934 foi erigida uma estátua de bronze de Hachiko, a mesma foi destruída pelos próprios japoneses durante as inúmeras batalhas da Segunda Guerra, em 1948, durante a reconstrução do país, foi erigida uma nova estátua, que permanece até hoje defronte a estação de Shibuya, na posição empertigada de espera que o caraterizou para sempre e por meio da qual sempre será lembrado.

Quando enfim morreu em 1935, Hachiko, então sentindo o peso dos 12 anos de vida, dos quais 10 foram de expectativa em vão, estava em algum esconderijo habitual próximo à estação de trem, ainda esperando pelo seu dono. E aí o filme presta um tributo ao Hachi numa cena bastante comovente: Ele enfim reencontra o seu dono após tanto tempo, óbvio que isso é uma licença poética, mas não deixou de ser cativante ver este encontro tão esperado por aquele leal cão.

Até hoje é realizada anualmente, todo dia 8 de Abril, uma cerimônia solene na área frontal da estação de trem, em homenagem à história do cão mais leal que a história já registrou. Nada mais justo!

A história não podia ter um final feliz, o que talvez fizesse com que a mesma fosse uma bonita e alegre história, porém, o conceito de beleza não está associado ao conceito de felicidade, algo pode ser muito triste, mesmo assim muito belo, bela ainda que triste e triste ainda que bela. Esta é uma das mais belas histórias verídicas que eu conheço.

Mas não é pela beleza, nem pela tristeza que a reputo por um “rumor de outro mundo”, mas sim por ser a mais densa metáfora de lealdade, de expectativa e esperança que eu conheço. Se um cão, que não é dotado de razão e nem possui em sua integralidade nenhuma parte espiritual, é capaz de ter uma atitude dessas, o que dizer daquele ser que foi formado à Imago Dei?

Esta é minha "opinião de segunda", na próxima segunda-feira eu posto o resultado daquilo que vou "maltrapilhar" e ruminar durante a semana!

Oração de uma mãe judia


Abba hoje para algumas pessoas é dia das mães, eu queria poder dizer que estou feliz, eu queria poder dizer que este dia será muito bom para mim, mas não posso! O aperto que tenho no coração e o peso na alma não permitem que eu diga isso.

A razão para isso são os últimos acontecimentos relacionados com meu filho, meu coração está ferido e a minha alma parece caminhar por um vale de sombra de morte. Há noites que não durmo e os meus dias se resumem às lágrimas e cinzas, a esperança há muito que foi embora e o desespero me acompanha diuturnamente.

Como toda menina um dia eu sonhei em ser mãe, sonhei em ter filhos fortes, saudáveis e abençoados por ti, mas só mesmo quando eu soube que estava grávida foi que eu me dei conta do que seria ser mãe, só mesmo quando ele nasceu, cresceu, adoeceu, foi que eu entendi o que era ser mãe. Eu ia ao templo todas as vezes que podia, tal como Ana, eu não conseguia fazer com quê as lágrimas parassem de rolar pela minha face, eu não sabia se chorava ou se sorria, ser mãe me fez mudar a forma de me encarar e até mesmo de Te encarar, senti-me bem-aventurada, como nunca imaginara que um dia seria.

Ainda lembro da primeira vez que olhei para o meu filho, com os olhos inchados, tentando respirar, tentando entender o que estava acontecendo ao redor dele, só pude envolvê-lo nos meus braços e protegê-lo o máximo que eu pudesse, quase que não deixava que o tirassem de meus braços para purificá-lo como manda a Tua Lei. Qualquer choro ou gemido durante a noite eu me levantava para ver o que era, e só voltava a dormir depois que ele estivesse dormindo tranquilamente outra vez.

Quando pequeno demais eu não deixava que ele saísse da frente da nossa humilde casa, enquanto o pai dele trabalhava no fundo do quintal eu ficava cuidando dos afazeres domésticos, mas sempre atenta aos sons e ruídos que vinham de fora, ao menor de sinal de algo estranho, ou mesmo de silêncio, eu corria para a porta só me acalmava e retornava aos afazeres quando via que estava tudo bem.

Aos sábados, desde a mais tenra idade eu o via ir à Sinagoga com o pai, eu me sentia tão orgulhosa disso, ele voltava correndo para me recitar os textos que havia aprendido e as lições que lhe foram ensinadas naquele dia. Era muito inteligente e eu sempre soube que ele seria alguém muito mais importante do que eu e o pai dele.

Quando chegou o Bar Mitzváh, fizemos o que foi possível, dentro de nossas condições financeiras para que a data ficasse marcada na memória dele, depois da cerimônia na Sinagoga, no qual ele leu a Torah pela primeira vez, fizemos o "mazal-tov" no qual jogamos, seguidas vezes, aquela cadeira para o alto com ele sentado nela, cada vez que ele subia eu me pegava dizendo: “Fica no alto filho, é aí que eu quero que fique, o mais alto que puder!”.

Vezes sem conta eu me sentava debaixo de uma árvore, costurando alguma roupa rasgada, e fingia que estava entretida no trabalho, mas o que eu fazia mesmo era ficar olhando para a bancada no fundo do quintal, onde o pai dele, com tanto cuidado, ensinava-o os segredos da profissão, queria fazer dele o maior mestre na arte, e levava isso muito a sério, ensinou-lhe tudo o que pôde, o resto ele aprendeu por si mesmo, era inteligente demais e o único da família que sabia ler. Mas, mesmo ali eu sempre soube que ele não seria um mero artesão, ele tinha talento demais para ser apenas um simples trabalhador braçal.

Um dia, há três anos atrás, ele me disse que tinha que ir embora, que tinha uma missão para cumprir e que esta missão tinha sido dada por Ti, por isso, mesmo ficando triste, eu não me opus, sabia que se era a Tua vontade, ela teria que ser feita, eu não poderia, nem deveria, fazer nada contra isso.

Soube depois que ele e os seus amigos andavam pregando a liberdade, o amor, os mistérios do Teu Reino, como eles costumavam dizer, e curando os enfermos, expulsando demônios, com isso desafiando o poderio de Roma e criando inimizade com o poder religioso do Sinédrio, por mais medo que eu tivesse de que algo de ruim lhe acontecesse, ainda assim senti orgulho de saber que ele estava cumprindo a Tua vontade. Quando eu os via pregando, me enchia de orgulho e de satisfação, qual mãe não teria orgulho de um filho como o meu?

Soube no mês passado que três cruzes foram erigidas no Monte Gólgota e que alguns prisioneiros revolucionários, dentre eles um que pregava o amor e curava os doentes, seriam executados pelo romanos, já estava me preparando para ir para lá, tinha recolhido os poucos pertences de valor que eu tinha, para tentar comprar a liberdade dele, sempre ouvi falar que os romanos recebiam suborno.

Porém soube que o crucificado seria o Teu filho, não o meu filho, segundo me disseram o meu filho traiu o Teu com um beijo, beijo de amizade, beijo de traição. Eu não sei o que dizer, eu não sei nem o que pensar, me disseram também que meu filho ao se dar conta do que fez, e não vendo como corrigir o mal que causara, se enforcou, vou em busca do corpo dele, quero pelo menos dar-lhe um sepultamento. Não posso Te pedir perdão por ele, mas sei que como pai que és, compreenderás a minha dor de mãe e me darás a paz que eu tanto anseio.

Para muitos ele será Iscariotes, o Judas, para mim ele será sempre meu filho!

Duas Parábolas


Havia um homem muito rico, possuidor de vastas propriedades, que era apaixonado por jardins. Os jardins ocupavam o seu pensamento o tempo todo e ele repetia sem cessar: “O mundo inteiro ainda deverá se transformar num jardim. O mundo inteiro deverá ser belo, perfumado e pacífico. O mundo inteiro ainda se transformará num lugar de felicidade.” 

Suas terras eram uma sucessão sem fim de jardins, jardins japoneses, ingleses, italianos, jardins de ervas, franceses. Era um trabalhão cuidar dos jardins. Mas valia a pena pela alegria. O verde das folhas, o colorido das flores, as variadas simetrias das plantas, os pássaros, as borboletas, os insetos, as fontes, as frutas, o perfume... Sozinho ele não daria conta. Por isso anunciou que precisava de jardineiros. 

Muitos se apresentaram e foram empregados. Aconteceu que ele precisou fazer uma longa viagem. Iria a uma terra longínqua comprar mais terras para plantar mais jardins. Assim, chamou três dos jardineiros que contratara, Paulo, Hermógenes e Boanerges e lhes disse: “Vou viajar. Ficarei muito tempo longe. E quero vocês cuidem de três dos meus jardins. Os outros, já providenciei quem cuide deles. A você, Paulo, eu entrego o cuidado do jardim japonês. Cuide bem das cerejeiras, veja que as carpas estejam sempre bem alimentadas... A você, Hermógenes, entrego o cuidado do jardim inglês, com toda a sua exuberância de flores pelas rochas... E a você, Boanerges, entrego o cuidado do jardim mineiro, com romãs, hortelãs e jasmins.” Ditas essas palavras ele partiu. O Paulo ficou muito feliz e pôs-se a cuidar do jardim japonês. O Hermógenes ficou muito feliz e pôs-se a cuidar do jardim inglês. Mas o Boanerges não era jardineiro. Mentira ao se oferecer para o emprego. Quando ele viu o jardim mineiro ele disse: “Cuidar de jardins não é comigo. É trabalho demais...” Trancou então o jardim com um cadeado e o abandonou. 

Passados muitos dias voltou o Senhor dos Jardins, ansioso por ver os seus jardins. O Paulo, feliz, mostrou-lhe o jardim japonês, que estava muito mais bonito do que quando o recebera. O Senhor dos Jardins ficou muito feliz e sorriu. Veio o Hermógenes e lhe mostrou o jardim inglês, exuberante de flores e cores. O Senhor dos Jardins ficou muito feliz e sorriu. Aí foi a vez do Boanerges. E não havia formas de enganar. “Ah! Senhor! Preciso confessar: não sou jardineiro. Os jardins me dão medo. Tenho medo das plantas, dos espinhos, das taturanas, das aranhas. Minhas mãos são delicadas. Não são próprias para mexer com a terra, essa coisa suja... Mas o que me assusta mesmo é o fato das plantas estarem sempre se transformando: crescem, florescem, perdem as folhas. Cuidar delas é uma trabalheira sem fim. Se estivesse no meu poder, todas as plantas e flores seriam de plástico. E a terra seria coberta com cimento, pedras e cerâmica, para evitar a sujeira. As pedras me dão tranquilidade. Elas não se mexem. Ficam onde são colocadas. Como é fácil lavá-las com esguicho e vassoura! Assim, eu não cuidei do jardim. Mas o tranquei com um cadeado, para que os traficantes e os vagabundos não o invadissem.\" E com estas palavras entregou ao Senhor dos Jardins a chave do cadeado. O Senhor dos Jardins ficou muito triste e disse: “Esse jardim está perdido. Deverá ser todo refeito. Paulo, Hermógenes: vocês vão ficar encarregados de cuidar desse jardim. Quem já tinha jardins ficará com mais jardins. E, quanto a você, Boanerges, respeito o seu desejo. Você não gosta de jardins. Vai ficar sem jardins. Você gosta de pedras. Pois, de hoje em diante, você irá quebrar pedras na minha pedreira...” 

*  *  *

“O Bom Samaritano” = “O Bom Travesti” 

E perguntaram a Jesus: “Quem é o meu próximo?” E ele lhes contou a seguinte parábola: Voltava para sua casa, de madrugada, caminhando por uma rua escura, um garçom que trabalhara até tarde num restaurante. Ia cansado e triste. A vida de garçom é muito dura, trabalha-se muito e ganha-se pouco. Naquela mesma rua dois assaltantes estavam de tocaia, à espera de uma vítima. Vendo o homem assim tão indefeso saltaram sobre ele com armas na mão e disseram: “Vá passando a carteira”. O garçom não resistiu. Deu-lhes a carteira.

Mas o dinheiro era pouco e por isso, por ter tão pouco dinheiro na carteira, os assaltantes o espancaram brutalmente, deixando-o desacordado no chão. Às primeiras horas da manhã passava por aquela mesma rua um padre no seu carro, a caminho da igreja onde celebraria a missa. Vendo aquele homem caído, ele se compadeceu, parou o caro, foi até ele e o consolou com palavras religiosas: “Meu irmão, é assim mesmo. Esse mundo é um vale de lágrimas. Mas console-se: Jesus Cristo sofreu mais que você.” Ditas estas palavras ele o benzeu com o sinal da cruz e fez-lhe um gesto sacerdotal de absolvição de pecados: “Ego te absolvo...” Levantou-se então, voltou para o carro e guiou para a missa, feliz por ter consolado aquele homem com as palavras da religião. 

Passados alguns minutos, passava por aquela mesma rua um pastor evangélico, a caminho da sua igreja, onde iria dirigir uma reunião de oração matutina. Vendo o homem caído, que nesse momento se mexia e gemia, parou o seu carro, desceu, foi até ele e lhe perguntou, baixinho: “Você já tem Cristo no seu coração? Isso que lhe aconteceu foi enviado por Deus! Tudo o que acontece é pela vontade de Deus! Você não vai à igreja. Pois, por meio dessa provação, Deus o está chamando ao arrependimento. Sem Cristo no coração sua alma irá para o inferno. Arrependa-se dos seus pecados. Aceite Cristo como seu salvador e seus problemas serão resolvidos!\" O homem gemeu mais uma vez e o pastor interpretou o seu gemido como a aceitação do Cristo no coração. Disse, então, “aleluia!” e voltou para o carro feliz por Deus lhe ter permitido salvar mais uma alma. 

Uma hora depois passava por aquela rua um líder espírita que, vendo o homem caído, aproximou-se dele e lhe disse: “Isso que lhe aconteceu não aconteceu por acidente. Nada acontece por acidente. A vida humana é regida pela lei do karma: as dívidas que se contraem numa encarnação têm de ser pagas na outra. Você está pagando por algo que você fez numa encarnação passada. Pode ser, mesmo, que você tenha feito a alguém aquilo que os ladrões lhe fizeram. Mas agora sua dívida está paga. Seja, portanto, agradecido aos ladrões: eles lhe fizeram um bem. Seu espírito está agora livre dessa dívida e você poderá continuar a evoluir.” Colocou suas mãos na cabeça do ferido, deu-lhe um passe, levantou-se, voltou para o carro, maravilhado da justiça da lei do karma. 

O sol já ia alto quanto por ali passou um travesti, cabelo louro, brincos nas orelhas, pulseiras nos braços, boca pintada de batom. Vendo o homem caído, parou sua motocicleta, foi até ele e sem dizer uma única palavra tomou-o nos seus braços, colocou-o na motocicleta e o levou para o pronto socorro de um hospital, entregando-o aos cuidados médicos. E enquanto os médicos e enfermeiras estavam distraídos, tirou do seu próprio bolso todo o dinheiro que tinha e o colocou no bolso do homem ferido. Terminada a estória, Jesus se voltou para seus ouvintes. Eles o olhavam com ódio. Jesus os olhou com amor e lhes perguntou: “Quem foi o próximo do homem ferido?” 

Rubem Alves
Fonte: www.rubemalves.com.br
Publicado originalmente em Correio Popular, 21 de julho de 2002.

O ocaso de uma igreja!


Ouvi, ou devo ter lido, nem me recordo mais, esta história (Quem sabe se não é só uma estória cheia de metáforas e significados?) há muitos anos atrás, creio que desde a época em que eu coletava historietas, fábulas, contos, anedotas, etc, com a finalidade de ter um arquivo mental (Em tempos de intensa tecnologia da informação alguns diriam: “repositórios na nuvem”) de ilustrações que pudessem me ajudar durante uma aula, palestra ou sermão, ela ficou guardada por muitos anos na memória, vou transcrevê-la e registrá-la, não somente para preservá-la, bem como à guisa de advertência para o momento vivido pela igreja brasileira, momento perigoso, crítico e delicado, que determinará a sua existência ou qual o tipo de existência que ela terá.

Numa encosta qualquer do norte da Europa, numa região dominada por rochas escarpadas, muros imensos de pedras que se estendem por centenas de quilômetros, regiões inacessíveis àqueles que ousassem se aproximar imprudentemente da costa, alguns moradores resolveram construir um abrigo singelo para aqueles, dentre eles, que com perigo de suas vidas guardavam aquelas costas diuturnamente. Como não era possível a construção de cais e os faróis distavam muito um do outro, eles então acendiam fogueiras para que fossem vista do alto mar como aviso de perigo, e quando estes sinais não eram suficientes, se lançavam ao mar para resgatar com vida alguém que estivesse ferido ou mesmo resgatar corpos que de outra maneira seriam devorados pela variegada fauna marinha.

Um dos maiores problemas que tais resgatadores enfrentavam era a falta de uma base de apoio, que lhes servisse de amparo, refúgio, para que descansassem após a labuta tão ingrata e ao mesmo tempo de que neste local as vítimas recebessem os primeiros socorros ao serem tiradas das águas, algumas já haviam morrido de frio ou por falta de cuidados, já que ficavam, às vezes, expostas nos rochedos ao frio e às tempestades inclementes que eram uma constante naquele lugar, enquanto os seus resgatadores mergulhavam outra vez em busca de mais feridos. O fato de não serem assalariados não os incomodava, não mais do que a falta de um lugar de refúgio.

As autoridades das cidades mais próximas se reuniram e decidiram que cada cidade que era beneficiada com a ação daqueles destemidos voluntários reservariam uma parte de sua arrecadação e destinariam tal monta ao grupo que liderava os resgatadores para que pudesse construir o abrigo que lhes era tão necessário.

Em alguns meses já era possível ver as colinas daquilo que seria o quartel-general que iria dar guarida aos salvados e salvadores. Foram erigidas numa ampla área no mais alto rochedo da região, num verdadeiro platô, havia água potável perto, foram construídas estradas e outras foram melhoradas, para que o acesso às cidades se tornasse propício, já que estudavam a possibilidade de transferir os enfermos para os hospitais de forma mais ágil e eficiente. Em menos de um ano foi terminada a primeira etapa que incluía: duas torres de 06 metros de altura com escadas circundando-as que permitiriam que os vigias pudessem subir ao topo e acender os faróis que dariam rumo às embarcações e denunciariam o perigo aos incautos navegantes ou aos que estivessem à mercê de alguma tempestade, construíram um imenso salão com janelas amplas que permitiam a visualização de grande faixa do litoral, neste salão ficariam os salvadores de plantão, desenvolvendo diversas atividades que lhes permitissem não só passar o tempo, bem como estar em constante atualização e treinamento. Construíram auditório para reuniões, cozinha e dispensa para as refeições tão necessárias e um alojamento para 50 pessoas, biblioteca e um salão de jogos, além de uma ambulatório para o tratamento dos feridos e uma enfermaria para acomodá-los. Com o passar dos anos, com cada vez mais recursos, as instalações foram ficando mais luxuosas, aconchegantes e pomposas. Os salvadores agora eram assalariados e gozavam de grande prestígio na sociedade da região. Havia já um Centro de Formação de Salvadores, um programa intenso de treinamento que durava quase 05 anos, requisito para quem almejasse assumir a liderança de um grupo ou mesmo se tornar o Grão-Salvador, que só era reservado aos mais antigos e mesmo assim por meio de aclamação da assembleia geral anual.

Mas toda essa harmonia estava com os dias contados, e já surgiam os primeiros problemas: nos fins de semana, aqueles que estavam de plantão gostavam de trazer a família para que ficasse mais próxima, e isso causava vários problemas, além da questão da acomodação e da diminuição dos recursos armazenados, havia ainda a distração que isso pudesse trazer, alguns, defensores deste tipo de comportamento, diziam que isto era um prêmio àqueles que tão desinteressadamente abriam mão do conforto dos seus lares, e que como estavam em constante treinamento, não acreditavam que houvesse portanto risco na perda de foco.

Agora o Quartel, isso mesmo, com “Q” maísculo já estava aparelhado com piscinas para adultos e crianças, campos de futebol, quadras para diversos esportes, amplos estacionamentos, salas com diversos jogos e uma ala imensa de quartos para os vistantes. Os mais experientes nem se lançavam mais ao mar, isso era tarefa dos neófitos, eles cuidavam do planejamento estratégico e viviam em intensas reuniões com a intenção de elaborar a Visão e a Missão da instituição.

Quanto mais crescia em importância e prestigio a organização, mas cresciam as divergências entre os salvadores. Os mais experientes ao se aperceberem do cisma que se aproximava, resolveram convocar uma reunião geral que pudesse conciliar as opiniões divergentes e restaurasse a paz e a harmonia tão sonhada.

Mas na reunião os ânimos só fizeram se acirrar, ao grupo original que havia fundado a organização haviam se somado centenas de outros que tinham um visão menos ortodoxa do papel que deveriam desempenhar e achavam que os mais velhos eram muito radicais e que deveriam ceder em alguns pontos, os mais antigos culpavam os mais novos pelo fato de que o Quartel mais parecia um balneário, com festas e eventos que descaracterizavam a instituição. Após muitas horas de debate e sem chegarem a consenso algum, os mais antigos resolveram sair do grupo com a promessa de fundarem um novo quartel alguns quilômetros ao norte de onde estavam, num outro platô e que ali pudessem restaurar a visão original de salvar vidas e cuidar de feridos.

Todos aqueles que partilhavam da visão do grupo cismático saíram naquele dia e logo fundaram o novo Quartel, como haviam construído o primeiro e tinham experiência, puderam construir um quartel melhor, com uma estrutura até mesmo mais otimizada.

O tempo passou e quando uma geração nova surgiu e assumiu a liderança do Segundo Quartel as mesmas ideias de entretenimento ganharam raiz e se desenvolveram, logo havia mais um cisma, mais uma vez aqueles que preservavam o ideal dos Pais Fundadores, que já haviam morrido, resolveram sair e fundaram o Terceiro Quartel, para poderem preservar aquilo em que criam ser a missão da instituição: salvar vidas!

Hoje naquelas encostas existem mais de 30 balneários e clubes, todos um dia foram sedes de Quartéis de Resgatadores de Náufragos. Não há mais nenhum órgão na região que tenha a missão de salvar os náufragos ou de cuidar de feridos de naufrágios.

Vem a advertência: “... removerei teu candelabro de sua posição...” Apoc. 2:5b

Diante da Lei


Em frente da Lei está um porteiro e junto deste chega um homem vindo do campo que lhe pede que o deixe entrar. O porteiro, todavia, diz que, de momento, não lhe pode permitir a entrada. O homem, em seguida, pergunta se poderá entrai mais tarde. 'É possível', responde o porteiro, 'mas neste momento não' Como a porta que conduz à Lei está aberta, como de costume, e o porteiro se afasta para o lado, o homem inclina-se para espreitar através da entrada. Quando o porteiro se apercebe desta tentativa, ri-se e diz: 'Se está tão tentado, experimente entrar sem a minha autorização. Mas repare que sou muito forte e, no entanto, sou apenas o porteiro mais baixo.

De sala para sala encontrará um porteiro em cada porta, sendo cada um deles mais possante que o anterior. E o aspecto do terceiro homem é já, mesmo para mim, uma presença insuportável.' Estas são dificuldades que o homem vindo do campo não esperava encontrar, devendo a Lei, segundo ele, ser acessível a todos em qualquer altura; contudo, ao olhar mais de perto para o porteiro, envolto na sua capa de peles, com o seu enorme nariz pontiagudo e uma barba comprida e fina à tártaro, decide que é melhor esperar até ter autorização para entrar. O porteiro dá-lhe um banco e deixa-o ficar sentado ao lado da porta. Ali se conserva à espera durante dias e anos. Faz muitas tentativas pata que o deixem entrar e fatiga o porteiro de tanto o importunar. Este inicia frequentemente breves conversas com ele, fazendo-lhe perguntas acerca da sua casa e de outros assuntos, mas essas perguntas são postas num tom bastante impessoal, tal como fazem os grandes senhores, e acabam sempre com a afirmação de que a entrada ainda lhe não é permitida. O homem, que se fornecera de muitas coisas para a sua viagem, desfaz-se de tudo o que possui, ainda que valioso, na esperança de subornar o porteiro. Este aceita as ofertas, dizendo, no entanto, quando as guarda: 'Aceito isto apenas para evitar que pense que deixou alguma coisa por acabar.' Durante todos estes longos anos, o homem observa o porteiro quase incessantemente. Esquece-se dos outros porteiros e este parece-lhe a única barreira entre ele próprio e a Lei. Nos primeiros anos, amaldiçoa em voz alta a sua ma sina; mais tarde, à medida que vai envelhecendo, apenas resmunga para consigo. Alcança a segunda meninice e, desde que no demorado estudo que fez do porteiro aprendeu a conhecer mesmo as pulgas que pousavam na sua gola de pele, pede as pulgas que o ajudem a persuadir o porteiro a mudar de ideias. Finalmente, os seus olhos já vêem mal e não sabe se o mundo que o rodela é realmente escuro ou se são os seus olhos que o enganam. Todavia, mesmo no meio da escuridão, consegue distinguir um fulgor que jorra indistintamente da porta da Lei. Mas a sua vida agora aproxima-se do fim. Antes de morrer, tudo o que suportou durante todo o tempo em que permaneceu à espera se condensou no seu espírito numa pergunta que jamais pusera ao porteiro. Chama este com um gesto, visto que já não pode erguer o seu corpo entorpecido.

O porteiro tem de se curvar bastante para o ouvir, dado que a diferença de estatura entre eles se tinha acentuado muito em desfavor do homem. 'Que é que deseja saber agora?', pergunta o porteiro. 'Você é insaciável.' 'Todos procuram alcançar a Lei', responde o homem; 'como se explica, portanto, que, durante todos estes anos, ninguém a não ser eu tenha procurado o acesso a ela?' O porteiro sente que o homem está próximo do fim e que tem dificuldade em ouvir, pelo que lhe segreda ao ouvido: 'Ninguém excepto você pode entrar por esta porta, pois esta porta foi-lhe destinada. Vou agora fechá-la.'» 

[Fonte: Franz Kafka, em "O Processo", Cap. IX - Na Catedral].