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Era uma vez...

Se alguma música pudesse definir minha personalidade ou minha própria vida em toda sua totalidade, esta seria C’era una volta il West de autoria do italiano Ennio Morricone (tema do filme de faroeste Once upon a time in the West, versão brasileira: Era uma vez no Oeste), revelo isto com temor de ser linchado pelos fundamentalistas modernos, já que a música que mais me fala à alma é uma música secular e não uma música sacra, além disso ela não tem letra e fala mais que muitas músicas que só tem palavrório sem melodia e harmonia. É triste e bela, tão triste quanto bela, triste ainda que bela, bela ainda que triste. Só aqueles que associam a beleza apenas às coisas alegres, pensamento fruto da pós-modernidade vaga e de modismos efêmeros, não conseguirão entender isto que eu estou apregoando, posso até parecer um arauto louco ou bêbado em cima de um telhado, mas pelo menos tenho a coragem de gritar o que penso sem fazer coro com a massa.



O início suave, quase imperceptível da música, a leveza do trinado das cordas, o piano que parece ter vida própria e querer falar, a harmonia da orquestra, a coesão dos instrumentos, a sensação de que nada é inadequado ou que está fora do lugar, o êxtase qual onda que quebra na praia, o sentimento de paz que se instala após a passagem do turbilhão avassalador e aquele solfejo triste da solista, qual Polimnia a musa grega do canto solene, encantam minha alma, com a mesma intensidade que a entristecem, o único ato propício, como uma liturgia recomendada por meio de rubrica, para ouvir adequadamente é fechar os olhos e calar, só assim, desligando alguns periféricos é possível ouvir com a alma, os olhos abertos podem distrair, as palavras ditas, por mais belas que sejam se mostram inadequadas.

Se compararmos essa “universidade” musical com a superficialidade das músicas gospel de hoje de pouca letra e menos acordes ainda, não fica difícil entender a minha preferência por ela, as músicas contemporâneas parecem mantras, versos repetidos à exaustão, vãs repetições já dizia o evangelho. Quando a música acaba fica uma sensação de vazio que só passa quando eu volto e a ouço novamente, hoje com comodidade graças ao controle remoto, santa tecnologia! Antes tinha que fazer um esforço físico grande para mover o braço mecânico da radiola e posicionar no começo da faixa do disco de vinil. Sei que quando a ouço eu fico triste, mas a ouço exatamente para isso. Quando quero ficar reflexivo, pensativo, sondar minha própria alma, eu me sento e vou ouvi-la, não há saída, ao ouvir alimento minha alma, às vezes de uma tristeza profunda e de sentimentos inexplicáveis, sou tomado de uma sensação, que não sei definir, e não consigo fugir disso.

Já devo ter ouvido esta música pelo menos umas 5.000 vezes, ainda pretendo ouvir mais umas 10.000, mormente depois que eu me aposentar, mas a sensação é de que estou ouvindo pela primeira vez, os sentimentos se renovam ao primeiro acorde. Parece estranho este fato, principalmente para alguém que se sente inadequado quando tem que cantar o mesmo estribilho 10 ou quinze vezes só porque um ministro de louvor, que tem vontade de parecer com André Valadão, quer, tem alguns que até a flanela põe no bolso para ficarem mais caricatos, seria risível, se não fosse tão ridículo.

 Quando tinha uns 10 anos de idade eu era apaixonado por filmes de faroeste, ainda sou, mesmo hoje com 52 anos de idade, e a TV do Grande Irmão, que à época era apenas o braço direito na área de comunicação da ditadura militar, gostava de passar filmes que não permitiam a reflexão social, era para entreter, hoje é para “emburrecer” mesmo. Um dos que mais repetiu foi o citado Era uma vez no Oeste, com toda a poesia da direção do italiano criador de metáforas Sérgio Leone, a fotografia impecável, a capacidade de dar a uma cena de uma goteira uma dimensão inigualável e fazer de uma mosca uma atriz coadjuvante, o latinismo visceral, a atuação de grandes atores (como o novato Charles Bronson, o já veterano Henry Fonda e o expressivo e assustador Jason Robards) e a trilha sonora assinada pelo mestre Ennio Morricone, muito embora esta à época me passasse despercebida. Eu adorava assoviar a música de “O Bom, o Mal e o Feio”, mas não me lembro de ter sentido nenhum êxtase ao ouvir C’era una volta il West quando Cláudia Cardinale (seria Melpômene a musa grega da tragédia?) descia na estação do trem e o crescente melodioso até o âmago na chegada à fazenda e encontrar seu marido e os filhos deste todos mortos pondo um aparente fim à possibilidade de uma vida decente para uma prostituta em recuperação.

 Quando eu tinha uns dezesseis anos tentei entrar para o seminário, tinha pressa em cursar teologia o quanto antes possível para exercer o sacerdócio, quanto antes eu estivesse pronto mais rápido o mundo seria consertado, era mais ou menos o que eu pensava, não me deixaram entrar, o mundo deve ter agradecido, porém a “salvação” do mesmo foi adiada um pouco, era muito novo, como prêmio de consolação me colocaram num grupo teatral, composto em sua maioria de alunos do seminário, que tinha como missão despertar vocações nas igrejas da região.

Uma das minhas participações era como soldado comunista, eu vestia uma farda de verdade e junto com outros seminaristas (o hoje Rev. Alexandre da Igreja Episcopal Carismática e o também Rev. Marco Cosmo da Igreja Anglicana) representávamos soldados do então regime comunista que torturavam pastores, missionários e até mesmo leigos cristãos, era época da Guerra Fria e “Torturado por amor a Cristo”, “Ivan”, “Perdoa Natasha” e “Torturado por sua fé” estavam em evidência, eu já os tinha lido várias vezes e tinha uma grande vontade de ser missionário no leste europeu, porém na peça eu é que estava por trás do gatilho, recebíamos então ordens do “General” Zózomo Malta (isso mesmo, não escrevi errado o nome do sujeito é esse mesmo, Zózomo, irmão do Senador Magno Malta) para arrancar as unhas dos cristãos.

Os que representavam os missionários colocavam unhas feitas com pedaços de plástico de carretel de linha de costura, que eram presas com sabão, fingíamos então que cada unha era arrancada com alicate, o sangue de “brincadeira” escorria pelos braços e os gritos convincentes deixavam a plateia em prantos e depois atirávamos neles com revólveres de espoleta, que nem sempre davam tiros com qualidade, parecia que “a bala pinava”, os nossos missionários portavam por baixo da roupa um “saquinho” com suco de uva que ao ser apertado vazava parecendo sangue, o que dava um tom de realismo às cenas. Quantas crianças não fizemos chorar de medo, tínhamos que mostrar depois que era de brincadeira e que ninguém tinha morrido. 

A música que fazia fundo musical para a cena era essa, confesso que não associava a música ao filme, não fazia essa ilação. Um dia ao ouvir intencionalmente na casa de um parente essa música me dei conta das duas épocas de minha vida que ela tinha marcado e desde então eu passei a ouvi-la cada vez mais intensamente. 

Um dia estava fazendo terapia em grupo, não sei quanto ao grupo, mas eu num aprendi nada daquilo tudo e nem aproveitei uma linha sequer de caderno pequeno, quando a psicóloga colocou essa música eu travei, ela tinha invadido meu santuário particular, pois a música falava demais ao meu coração e o que ela falava não combinava com o momento, foi desde então que eu a “canonizei”, só a ouço em momentos especiais e que eu mesmo tenha escolhido ouvir, não gosto de intromissão. Até hoje não perdoei àquela psicóloga por tamanha heresia. 

Muito tempo depois, não sei se foi sonho ou realidade, estava deitado numa praça bastante arborizada pensando na vida, sempre que não estamos fazendo nada, dizemos que estamos pensando na vida, até parece um contrassenso ou que a vida não vale nada para nós, já estava meio sonolento e quase dormindo, quando de repente ouvi esta música tocando, no começo tocava baixo, depois foi aumentando, ainda sem acreditar me ergui sobressaltado, a sensação que tenho hoje é que senti pânico (o sentimento trazido pelo mítico Pã), e vi que era um carro de som que havia parado próximo à praça e que tocava a música, tocava e repetia sem parar, achei que estava morrendo com minha cabeça repousada no colo de uma ninfa do bosque ou de uma náiade e que os anjos do céu ou as fortes e doces valquírias nórdicas tinham vindo me buscar tocando a música de minha preferência.

Seria uma ótima forma de se despedir da vida e entrar na eternidade, provavelmente não sentiria medo, tal era o êxtase, mas justamente por conta deste que eu queria permanecer vivo, a sensação de paz era maior que eu mesmo. A melhor definição do que senti naquele momento é o que disse o Leone sobre a película: “O ritmo do filme pretendeu criar a sensação dos últimos suspiros que uma pessoa exala antes de morrer. Era uma vez no Oeste é do começo ao fim, uma dança da morte...”. Na hora de partir da vida, tendo como fundo musical esta música, nada melhor que tirar a morte para uma dança. Ela vai gostar, há muito que não se diverte, trabalha demais e a área de atuação dela é muito sombria. 

Desde este dia decidi que se eu não morrer ouvindo esta música, pelo menos que a toquem em meu velório, tenho certeza que ela, naquele momento, não me poderá deixar triste, será vez de ouvi-la e sorrir, será a vez de mudar a história, será o momento de cantar definitivamente “era uma vez...

Um homem bom é difícil de encontrar


A avó não queria ir para a Florida. Queria visitar uns parentes no leste do Tennessee e aproveitava todas as oportunidades para induzir Bailey a mudar de ideia. Bailey, o filho com o qual ela morava, seu único filho homem, sentado a mesa na beira da cadeira, dobrava-se sobre o alaranjado da pagina de esportes do Journal. "Olhe só isso aqui, Bailey, olhe só, leia isso aqui", disse ela em pé a seu lado, com uma das mãos no quadril magro e a outra esfregando outra folha de jornal na careca do filho. "Esse tal cara que fugiu da penitenciaria federal, o Desajustado, como ele mesmo se chama, e que foi justamente em direção a Florida... leia só o que diz aqui, veja o que ele fez com as pessoas. Vale a pena você ler. Eu é que não levaria os meus filhos, fosse lá para onde fosse, com um bandido desses assim a solta na área. Não ficaria em paz com a minha consciência."

Bailey não olhou para cima, não parou de ler o que lia, e ela então deu uma volta. Foi ficar cara a cara com a mãe das crianças, mulher nova, numa calça folgada, cujo rosto era tão largo e inocente quanto um repolho, estando envolto num lenço verde de cabeça amarrado com duas pontas no alto, como as orelhas de um coelho. Ela, sentada no sofá para alimentar o bebê, dava-lhe geleia de damasco que tirava do vidro. "À Flórida as crianças já foram", disse a velha senhora. "Deveriam leva-las a algum outro lugar, para variar, para que vejam diferentes partes do mundo e possam ter perspectivas mais amplas. Ao leste do Tennessee elas nunca foram."

A mãe das crianças nem pareceu escutar, mas o garoto de oito anos, John Wesley, parrudinho e de óculos, disse: "Se a senhora não quer ir para a Flórida, por que e que não fica em casa?". Ele e a menina, June Star, estavam lendo historias em quadrinhos no chão.

"Em casa? Duvido. Por nada desse mundo ela fica", disse June Star sem levantar a cabeça.

"Ah, é? E o que fariam vocês, se esse camarada, o Desajustado, pegasse vocês?"

"Eu quebrava a cara dele", John Wesley disse.

"Nem por um milhão de dólares ela ficava em casa" June Star disse. "Tem medo de estar perdendo coisas. Tem de ir pra toda parte com a gente."

"Esta bem, mocinha", disse a avó. "Da próxima vez que me pedir para cachear seu cabelo, você vai ver uma coisa."

June Star disse que seu cabelo já era naturalmente cacheado.

Na manha seguinte a avo foi a primeira a entrar no carro, pronta para partir. Tinha posto num canto sua enorme malinha preta, que parecia uma cabeça de hipopótamo, por baixo da qual ela escondia numa cesta o gato, Pitty Sing. Não quis deixar o gato em casa sozinho, por três dias, porque ele sentiria muito a sua falta e ela tinha medo de que acidentalmente se asfixiasse ao se esfregar num bico de gás. Mas o filho dela, Bailey, não gostava de chegar a um motel com um gato.

A avó ia no banco de trás, no meio, com um neto de cada lado, John Wesley e June Star. Bailey e a mãe das crianças com o bebê iam na frente e eles saíram as oito e quarenta e cinco de Atlanta com o painel indicando 89.944 quilômetros rodados. A avó anotou o numero por achar que seria interessante saber quantos quilômetros eles teriam feito, quando voltassem para casa. Levaram vinte minutos para atingir a periferia da cidade.

A velha senhora se instalou a vontade, tirando as luvas brancas de algodão e pondo-as junto com a bolsa no espaço por trás do banco. A mãe das crianças continuava com a mesma calça folgada, e com o mesmo lenço verde amarrado na cabeça, mas a avó estava usando um chapéu de palha azul-marinho, com um buque de violetas brancas na aba, e um vestido também azul-marinho de bolinhas brancas. A gola e os punhos eram de organdi branco, com debruns de renda, e um ramalhete roxo de violetas de pano, que era um sachê, estava pendurado em seu peito. Qualquer um que a visse morta na estrada, em caso de acidente, logo saberia tratar-se de uma senhora distinta.

Disse que o dia, a seu ver, era bom para viajar, nem muito quente nem muito frio demais, e lembrou a Bailey que o limite de velocidade era de noventa quilômetros por hora, e que os guardas rodoviários, escondidos atrás de anúncios e de amontoados de árvores, logo saiam em disparada atrás, sem nem dar chance de reduzir. E apontou interessantes detalhes dos panoramas: Stone Mountain; o granito azulado que nalguns trechos aflorava de ambos os lados da rodovia; os barrancos brilhantes, de barro vermelho rajado ligeiramente de roxo; e as diversas plantações enfileiradas como rendilhados verdes na terra. As árvores estavam cheias de uma luz solar prateada, e até mesmo as mais insignificantes brilhavam. As crianças iam lendo suas historias em quadrinhos e a mãe tinha voltado a dormir.

"Vamos passar pela Geórgia bem rápido para não ter de olhar muita coisa" John Wesley disse.

"Eu, se eu fosse um menino", disse a avó, "eu não falaria assim desse jeito do meu estado natal. O Tennessee tem montanhas, a Geórgia tem suas colinas..."

"O Tennessee não passa de um lixão, é uma terra de arigós" John Wesley disse, "e a Geórgia também é uma porcaria de estado."

"E isso mesmo", disse June Star.

"No meu tempo", a avó disse, cruzando os dedos de veias finas, "as crianças tinham mais respeito pela terra natal, pelos pais e por tudo o mais. Procedia-se bem, naquela época. Oh, mas vejam só o pretinho, que graça!" disse e apontou para um menino negro, em pé na porta de um barraco. "Não daria um quadro?" perguntou, e todos se viraram, olhando o menino negro pelo vidro de trás. Ele deu adeus.

"Ele estava sem calça", disse June Star.

“Talvez nem tenha" a avó explicou. "Os negrinhos da roça não são assim como nós, não tem coisas." E acrescentou: "Ah, se eu soubesse pintar, bem que faria esse quadro!".

As crianças trocaram de revista.

A avó se ofereceu para segurar o bebê, que a mãe das crianças lhe passou por cima do banco. Tendo-o posto nos joelhos, ela agora o puxava para cima e lhe falava das coisas pelas quais estavam passando. Revirava os olhos, fazia bico com a boca, colava a cara magra e dura no rosto, lisinho e fofo, da criança, que de vez em quando lhe dava algum sorriso distante. Passaram por uma grande plantação de algodão com um cercado com cinco ou seis túmulos no meio, como uma ilhota.

"Olhem lá o cemitério!" disse a avó, apontando. "O antigo campo- santo da família. Pertencia á fazenda."

"E onde esta a fazenda?" John Wesley perguntou.

"E o vento levou..." disse a avó. "Ha, ha."

Alívio após uma doença


Jair acordou a meio da noite. Mandara colocar uma cama dentro do closet e era ali que dormia. Durante o dia tirava a cama, instalava uma secretária e recebia os filhos, os ministros e os assessores militares mais próximos.

Alguns estranhavam. Entravam tensos e desconfiados no armário, esforçando-se para que os seus gestos não traíssem nenhum nervosismo. Interrogado a respeito pela Folha de São Paulo, o deputado Major Olímpio, que chegou a ser muito próximo de Jair, tentou brincar: “Não estou sabendo, mas não vou entrar em armário nenhum. Isso não é hétero.” Michelle, que também se recusava a entrar no armário, fosse de dia ou de noite, optou por dormir num outro quarto do Palácio da Alvorada.

Aliás, o edifício já não se chamava mais Palácio da Alvorada. Jair oficializara a mudança de nome: “Alvorada é coisa de comunista!” — Esbravejara: “Certamente foi ideia desse Niemeyer, um esquerdopata sem vergonha.”

O edifício passara então a chamar-se Palácio do Crepúsculo. O Presidente tinha certa dificuldade em pronunciar a palavra, umas vezes saía-lhe grupúsculo, outras prepúcio, mas achava-a sólida, máscula, marcial. Ninguém se opôs.

Naquela noite, pois, Jair Messias Bolsonaro despertou dentro de um closet, no Palácio do Crepúsculo, com uma gargalhada escura rompendo das sombras. Sentou-se na cama e com as mãos trêmulas procurou a glock 19, que sempre deixava sob o travesseiro.

— Largue a pistola, não vale a pena!

A voz era rouca, trocista, com um leve sotaque baiano. Jair segurou a glock com ambas as mãos, apontando-a para o intenso abismo à sua frente:

— Quem está aí?

Viu então surgir um imenso veado albino, com uma armação incandescente e uns largos olhos vermelhos, que se fixaram nos dele como uma condenação. Jair fechou os olhos. Malditos pesadelos.

Vinha tendo pesadelos há meses, embora fosse a primeira vez que lhe aparecia um veado com os cornos em brasa. Voltou a abrir os olhos. O veado desaparecera. Agora estava um índio velho à sua frente, com os mesmos olhos vermelhos e acusadores:

— Porra! Quem é você?

— Tenho muitos nomes. — Disse o velho. — Mas pode me chamar Anhangá.

— Você não é real!

— Não?

— Não! É a porra de um sonho! Um sonho mau!

O índio sorriu. Era um sorriso bonito, porém nada tranquilizador. Havia tristeza nele. Mas também ira. Uma luz escura escapava-lhe pelas comissuras dos lábios:

— Em todo o caso, sou seu sonho mau. Vim para levar você.

— Levar para onde, ô paraíba? Não saio daqui, não vou para lugar nenhum.

— Vou levar você para a floresta.

— Já entendi. Michelle me explicou esse negócio dos pesadelos. Você é meu inconsciente querendo me sacanear. Quer saber mesmo o que acho da Amazônia?! Quero que aquela merda arda toda! Aquilo é só árvore inútil, não tem serventia. Mas no subsolo há muito nióbio. Você sabe o que é nióbio? Não sabe porque você é índio, e índio é burro, é preguiçoso. O pessoal faz cordãozinho de nióbio. As vantagens em relação ao ouro são as cores, e não tem reação alérgica. Nióbio é muito mais valioso que o ouro.

O índio sacudiu a cabeça, e agora já não era um índio, não era um veado — era uma onça enfurecida, lançando-se contra o presidente:

— Acabou!

Anhangá colocou um laço no pescoço de Jair, e no instante seguinte estavam ambos sobre uma pedra larga, cercados pelo alto clamor da floresta em chamas. Jair ergueu-se, aterrorizado, os piscos olhos incrédulos, enquanto o incêndio avançava sobre a pedra:

— Você não pode me deixar aqui. Sou o presidente do Brasil!

— Era. — Rugiu Anhangá, e foi-se embora.

Na manhã seguinte, o ajudante de ordens entrou no closet e não encontrou o presidente. Não havia sinais dele. “Cheira a onça”, assegurou um capitão, que nascera e crescera numa fazenda do Pantanal. Ninguém o levou a sério.

Ao saber do misterioso desaparecimento do marido, Michelle soltou um fundo suspiro de alívio.

Os generais soltaram um fundo suspiro de alívio. Os políticos (quase todos) soltaram um fundo suspiro de alívio.

Os artistas e escritores soltaram um fundo suspiro de alívio. Os gramáticos e outros zeladores do idioma, na solidão dos respetivos escritórios, soltaram um fundo suspiro de alívio.

Os cientistas soltaram um fundo suspiro de alívio. Os grandes fazendeiros soltaram um fundo suspiro de alívio.

Os pobres, nos morros do Rio de Janeiro, nas ruas cruéis de São Paulo, nas palafitas do Recife, soltaram um fundo suspiro de alívio.

As mães de santo, nos terreiros, soltaram um fundo suspiro de alívio.

Os gays, em toda a parte, soltaram um fundo suspiro de alívio.

Os índios, nas florestas, soltaram um fundo suspiro de alívio.

As aves, nas matas, e os peixes, nos rios e no mar, soltaram um fundo suspiro de alívio.

O Brasil, enfim, soltou um fundo suspiro de alívio — e a vida recomeçou, como se nunca, à superfície do planeta Terra, tivesse existido uma doença chamada Jair Messias Bolsonaro.

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Publicado originalmente na revista “Visão” de Portugal. Reproduzido no blog do Juca Kfouri.
Por José Eduardo Agualusa

Fonte: https://www.brasil247.com/cultura/escritor-angolano-descreve-o-triste-fim-de-jair-messias-bolsonaro?fbclid=IwAR3SKBlHl6s4WL5xjFvLRxpGvrN7u8GoLC_ZKDmUX3E3JchB5kZX5gMX1js

Primeira carta: livros e leituras



Jaboatão dos Guararapes, primavera de 2018.

Prezado e estimado Nilton,

Primeiramente sente-se em algum lugar sossegado, pode ser aquele banco de pedra no quintal ou nos degraus da escada, leia esta carta devagar, calmamente. Eu sei que você está assustado em recebê-la, na verdade é a primeira carta que você receberá na vida e ela foi enviada por alguém que tem o mesmo nome que o teu e está com a data de um futuro tão longe (vou logo te adiantar: o mundo não vai se acabar no ano 2.000, aquela teoria do pastor Oliveira que o mundo terminará ao fim desse milênio é um erro de interpretação da parte dele, não adianta você dizer-lhe isso, vai te perguntar como você sabe, se disser que alguém do futuro te contou, vão dizer que você ficou louco, mais ainda!), mas, não se assuste. O nome que está no envelope é o seu mesmo, não há engano algum, espero que tenha recebido essa carta das mãos do Assis, o carteiro, não se admire com o que vou dizer: um dia você será colega dele de profissão e sentirá saudades da época em que ele passava na frente de tua casa e gritava: - Corrêêêêêiô! Mas a farda que você vai usar será uma outra, não é essa toda amarela, não cairia muito bem você, creio que nisso nós dois concordamos.

Você também precisa se acostumar com o tipo de linguagem com a qual esta carta foi escrita. Ela é uma carta do futuro, foi escrita quase 45 anos depois desse momento em que você está vivendo, não se espante com essa questão temporal e nem com as outras cartas que chegarão depois, algumas em ocasiões banais e outras nem tão banais assim, depois você entenderá e até esperará ansioso para que cheguem. No tempo certo todas que foram escritas chegarão as tuas mãos, apenas leia, somente isso: leia!

Você está com quase seis anos, essa carta foi escrita para chegar no momento em que aprendeu a ler, antes não faria sentido e elas não são para serem lidas pelos outros, mas sim apenas por você, foram escritas por você e para você.

Você ainda pensa em como foi perceber que sabia ler, foi uma experiência e tanto, de repente abrir um Almanaque do Tio Patinhas e entender todas as narrativas e diálogos, você nunca esquecerá, absolutamente nunca, repetirá sempre extasiado esse momento tão marcante. Mesmo aos 50 anos ainda lembrará daquele dia, logo, não precisa ficar acordado a noite toda com medo de dormir e acordar e descobrir que foi um sonho, não é um sonho, você sabe ler.

No futuro você não lerá com tanta frequência gibis, portanto aproveite e leia os que puder, desde os de Tio Patinhas, Donald, Zagor, Ken Parker, Tex Willer, Universo Marvel, Super Homem, Aquaman, Vingadores, Luluzinha, Bolinha, Homem-Aranha, Batman, Homem de Ferro e todos os outros que tiver acesso. Seja generoso com as leituras, em algum momento você vai se lembrar de cada um deles quando estiver no cinema assistindo filmes com sua filha. Sim, você terá uma filha, mas não é momento de falar disso agora.

Você vai roubar livros da biblioteca da escola para poder ler mais, já que só poderá pegar um livro de cada vez e isso será pouco para você. Não cultive sentimento de culpas, no futuro vão fazer um filme de sucesso sobre uma menina que também gostava de livros e como não podia pagar por eles, roubava-os sem constrangimento. O filme será um sucesso e ninguém chama a menina de ladra, ela é bem mais bonita que você (sinto dizer isso), mas ninguém vai te condenar quando disser um dia que roubava livros. Roubar livros é mais perdoável até do que roubar comida, pode apostar nisso, quem rouba livros para ler, rouba para alimentar a alma. Não há como julgar alguém que faz isso. Não se preocupe, você não continuará roubando livros, vai ganhar muitos e vai comprar mais ainda, até mesmo mais do que a capacidade de lê-los (você terá um emprego de “consultor” numa livraria no qual você ganhará uns 50 livros todo mês, alguns ficarão no plástico durante anos, até você conseguir ler). Em média você comprará 70 ou 80 livros por ano e lerá sempre uma média de 100 ou 120, não se preocupe, você terá onde guardá-los, você terá uma biblioteca na sua casa, algumas vezes você se trancará no quarto e ficará olhando para cada livro, resgatando a emoção que sentiu ao ler o livro pela primeira vez.

Sim, você lerá alguns livros mais de uma vez, alguns serão lidos até 06 vezes, esse será um hábito que você alimentará e terá o costume de ler 10 ou 15 livros ao mesmo tempo, se acostumará com isso e não conseguirá ler apenas um. Portanto leia todos os clássicos antes dos 15 anos, a quantidade de livros que terá que ler depois dos 30 não permite que você pense em ler os 03 mosqueteiros ou 20.000 légua submarinas com quase 40 anos, leia todos, leia com sofreguidão, você não sabe o que é isso ainda: leia como se a sua vida dependesse disso. Leia Júlio Verne, Victor Hugo, C.S. Lewis, Tolkien, Charles Dickens, Alexandre Dumas, Machado de Assis (eu sei que você vai achar chato, te garanto que no futuro vai considerá-lo o maior escritor brasileiro), Cecília Meireles, Raquel de Queiroz, José Lins do Rego e tantos outros. Se você pegar algum livro de Clarice Lispector, grave bem esse nome, não leia, você não vai entender tão fácil, mesmo aos 50 você não julga que a entende tão bem. A mesma coisa para Nietzsche, Søren Kierkegaard, Kafka e Gabriel Garcia Márquez. No futuro você vai amar Tolstoi, Dostoiévski, Mia Couto, José Saramago e Amós Oz, todos chegarão até você no devido tempo, não se preocupe em decorar esses nomes, você lembrará dessa nossa conversa quando estiver com algum exemplar deles em mãos.

Acostume-se a ser olhado de forma esquisita, mesmo aos 50 anos você ainda lerá andando. Isso mesmo, você estará tão acostumado a ler que não escolherá lugar para fazer isso: fila de banco (um dia eu te explicarei o que é um banco e porque deverá ficar na fila), ônibus (eu sei que você vomita quando anda de ônibus), no futuro você andará de ônibus para poder ler, mesmo tendo carro e sabendo dirigir (sim, você terá carro e deixará na garagem para poder andar de ônibus e metrô – com o devido tempo eu explicarei o que é isso – e ler alguns livros). Não se incomode quando for desprezado por teus colegas de escola ou vizinhos, você não tem culpa por ter duas pernas esquerdas e não possuir coordenação motora suficiente para jogar futebol com desenvoltura (no futuro você saberá o que cada palavra dessa significa, as que não souber, anote e procure no dicionário Aurélio da biblioteca da escola, você não vai acreditar quando eu te falar de um negócio chamado “Google”, mas esquece, você não compreenderá tão fácil assim!), teus amigos e colegas não são maus, eles são apenas crianças sendo crianças, não são culpados por você ter a cabeça no mundo da fantasia e da ficção, tenha paciência com eles, você vai precisar se acostumar com pessoas que não têm as mesmas prioridades que você. Para não ser tão esquisito, aprenda a contar piadas, procure ser engraçado, decore todas que puder e conte-as como se tivessem acontecido com você, as pessoas te acharão um cara legal e nem notarão que você não costuma sorrir.

Você vai cair numa ladeira por causa desse costume de ler andando, não se preocupe antecipadamente, alguns arranhões nos joelhos não causam tanto estrago assim. Terá um transtorno maior quando cair da bicicleta com o Rui, ele vai balançar a bicicleta sentado no bagageiro, ele acha que ela estará sem freios, não adianta você dizer que sabe o que está fazendo, o pânico vai dominá-lo e ele vai provocar a queda de vocês. Você precisa perdoar esta fraqueza dele, num futuro razoavelmente distante, algumas dores não curadas dentro dele vão levá-lo a cometer alguns equívocos e por causa desses equívocos ele vai encerrar a jornada aqui nesta dimensão. Você sequer lembrará dessa queda quando souber que ele foi embora, por isso, valorize o que é de fato importante e ele será o teu primeiro amigo de verdade e por muito tempo, teu único amigo. A queda vai te deixar de cama, porém uma coisa boa acontecerá: você terá tempo de sobra para ler mais livros. Outra coisa: devolva os livros de faroeste de Tio Chico, você lerá uns 500 ou 600 (vai desistir de contar depois de passar de 300), cuidado para não perdê-los, ele certamente nem perceberá se você perder, mas ele troca os que já leu por livros novos, por isso cuidado, do contrário não vai ter mais o que ler.

O costume que você vai adquirir de ler à noite pela réstia de luz da lua que entra no teu quarto através da telha de vidro vai te deixar míope, você não conseguirá ler na cozinha e nem no banheiro, tua mãe não deixará, não se pergunte porque alguém impediria um garoto de ler tanto, aos 50 anos você ainda não entenderá, logo, gaste seus neurônios (uns negócios que você tem no cérebro que está dentro da cabeça, vai descobrir depois para que serve, te ajuda a pensar, nem sempre você vai dar atenção devida ao que eles dizem, mas eles estão aí para isso), não se preocupe com a miopia, você vai usar óculos com lentes grossas para poder ler, mas não sentirá desconforto, eles te ajudarão a ser proteger das pessoas, verá que não é tão ruim assim quanto parece.

Cada carta que receberá abordará um tema, por isso não vamos tratar de outro assunto desta vez, não fique ansioso para receber a próxima carta, ela vai chegar no momento exato. Você só saberá que é o momento exato quando ele acontecer, confie em mim, eu sei quando será esse momento.

Por ora era só isso, aproveite a infância, deixe tua imaginação fluir, nunca tenha vergonha de ser um sonhador, você conhecerá pessoas e visitará lugares antes dos 10 anos que a maioria das pessoas não visitará a vida toda, portanto, você já sabe que ler não dá sono, ler dá sonhos, leia muito, leia tudo, leia a vida.

Até breve garoto, cuide bem de minha mente, cuide bem de meus olhos, cuide bem de minha alma.

Eu,

Gente boa da roça


Além da expressão neutra que ela carregava quando estava sozinha, a Senhora Freeman tinha outras duas, uma afirmativa e outra retroativa, que ela usava para todas as suas relações humanas. Sua expressão afirmativa era firme e forte como a de um caminhão pesado. Seus olhos nunca desviavam para a esquerda ou direita, mas viravam de acordo com o rumo da estória como se seguissem uma linha amarela bem no centro da estória. Ela raramente usava a outra expressão porque muitas vezes não era necessário retirar uma declaração, mas quando usava, seu rosto parava completamente, havia um movimento quase imperceptível em seus olhos negros, enquanto eles pareciam retroceder, e então o observador via que a Senhora Freeman, embora estivesse lá, tão real quanto sacos de grão jogados em cima uns dos outros, não estava mais lá em espírito. Fazê-la entender qualquer coisa quando isso acontecia era impossível, a Senhora Hopewell havia desistido. Ela poderia falar até morrer. A Senhora Freeman nunca seria convencida a admitir seu erro em qualquer aspecto. Ela permaneceria lá e, se a pudessem convencer a falar qualquer coisa, seria algo como: “Bem, eu não diria que sim ou não diria que não” ou, ao direcionar seu olhar vago para a prateleira de cima da cozinha onde havia várias garrafas empoeiradas, ela poderia mencionar: “Eu vejo que você não comeu muitos dos figos das conservas que você fez no verão passado”.

Elas cuidavam de seus assuntos mais importantes na cozinha durante o café da manhã. Todas as manhãs a Senhora Hopewell se levantava às sete e ligava seu aquecedor à gás e o de Joy. Esta era sua filha, uma moça loira e alta que tinha uma prótese na perna. A Senhora Hopewell ainda via Joy como uma criança mesmo que ela tivesse trinta e dois anos e alto nível de formação. Joy se levantava enquanto sua mãe estivesse comendo e arrastava-se para o banheiro, batendo a porta, e logo a Senhora Freeman chegava à porta dos fundos. Joy ouvia sua mãe dizer: “Entre”, e então as senhoras conversavam por um tempo em voz baixa, inaudível no banheiro. No momento em que Joy entrava, elas já haviam terminado o relatório da previsão do tempo e estavam falando sobre uma das filhas da Senhora Freeman, Glynese ou Carramae. Joy as chamava de Glicerina e Caramelo. Glynese, uma moça ruiva, tinha dezoito anos e muitos admiradores; Carramae, uma moça loira, tinha apenas quinze, mas já estava casada e grávida. Ela não conseguia manter qualquer coisa em seu estômago. Todas as manhãs a Senhora Freeman contava à Senhora Hopewell quantas vezes Carramae havia vomitado desde o último relatório.

A Senhora Hopewell gostava de dizer para as pessoas que Glynese e Carramae eram duas das moças mais finas que ela conhecia, que a Senhora Freeman era uma lady e que ela nunca teria vergonha de levar a Senhora Freeman a qualquer lugar ou apresentá-la a qualquer pessoa que elas pudessem encontrar. Então ela contava como havia contratado os Freeman em primeiro lugar, como eles eram uma benção de Deus para ela e como estavam junto dela há quatro anos. A razão para mantê-los por tanto tempo era que eles não eram lixo. Eram boa gente do interior. Ela havia telefonado para o homem cujo nome havia sido dado como referência e ele contou para ela que o Senhor Freeman era um bom agricultor, mas que a Senhora Freeman era a mulher mais barulhenta a caminhar pela terra. “Ela tem que estar em tudo”, disse o homem. “Se ela não chegar lá antes que a poeira assente, pode apostar que ela está morta, só isso. “Ela vai querer saber de toda a sua vida. Eu o considero muito”, ele disse, “mas nem eu nem minha esposa conseguiríamos aguentar aquela mulher mais um minuto”. Isso desencorajou a Senhora Hopewell por alguns dias.

Por fim ela os contratou porque não houve outros candidatos, mas decidiu de antemão como lidaria com a mulher. Já que a Senhora Freeman era do tipo de se meter em tudo, a Senhora Hopewell decidiu que ela não apenas seria incluída em tudo, mas providenciaria para que ela estivesse em tudo, ela seria a pessoa encarregada. A Senhora Hopewell não tinha defeitos, mas tinha a habilidade de usar os defeitos de outras pessoas de maneira tão construtiva que ela já tinha os Freeman há quatro anos.

Nada é perfeito. Este era um dos ditados favoritos da Senhora Hopewell. O outro era: é a vida! E ainda mais um, o mais importante, era: bem, outras pessoas têm suas opiniões também. Ela diria essas expressões geralmente à mesa, em tom de insistência gentil, como se ninguém soubesse deles além dela, e a grande desajeitada Joy, cujo ultraje constante havia apagado qualquer expressão em seu rosto, apenas direcionaria um pouco seu olhar para o lado, seus frios olhos azuis, com o jeito de alguém que havia ficado cego por vontade própria e se manteve assim.

Quando a Senhora Hopewell dizia à Senhora Freeman que a vida era assim, esta dizia: “Eu sempre digo isso”. Nada acontecia sem que a Senhora Freeman soubesse primeiro. Ela era mais rápida que o Senhor Freeman. Quando a Senhora Hopewell disse a ela, após certo tempo da chegada deles: “Sabe, você é a comandante deste navio” e deu uma piscadela, a Senhora Freeman respondeu: “Eu sei. Sempre fui rápida. Há sempre aqueles que são mais rápidos que os outros”.

“Todos são diferentes”, disse a Senhora Hopewell.

“Sim, a maioria é”, respondeu a Senhora Freeman.

“É preciso gente de todos os tipos para formar o mundo”.

“Eu sempre disse isso”.

A menina estava acostumada com esse tipo de diálogo no café da manhã e também no jantar; de vez em quando elas conversavam no lanche também. Quando não tinham visitas, elas comiam na cozinha porque era mais fácil. A Senhora Freeman se esforçava para chegar durante a refeição e assisti-las terminar. Ela ficava na porta se fosse verão, mas no inverno ela apoiava um cotovelo em cima da geladeira e olhava para elas de cima, ou ficava ao lado do aquecedor a gás, levantando um pouco a parte de trás da saia. Ocasionalmente ela se apoiava na parede e rolava a cabeça de um lado para o outro. Ela nunca tinha pressa de ir embora. Tudo isso era muito penoso para a Senhora Hopewell, mas esta era uma mulher de grande paciência. Ela havia percebido que nada é perfeito, que os Freeman eram boa gente do interior e que, se em tempos presentes há boa gente no interior, era melhor segurá-la.

Ela teve muita experiência com lixo. Antes dos Freeman, ela tivera em média uma família de caseiros por ano. As mulheres desses agricultores não eram do tipo que você gostaria por perto por muito tempo. A Senhora Hopewell, que havia se divorciado do marido há anos, precisava de alguém que tocasse a plantação para ela; e quando Joy tinha de ser mandada a fazer esses serviços, as coisas que ela fazia eram geralmente tão malfeitas e sua expressão tão carrancuda que a Senhora Hopewell dizia: “Se você não faz de boa vontade, eu não quero”, ao que a moça, firme, com os ombros rígidos e o pescoço um pouco jogado para a frente, respondia: “Se você me quer, aqui estou – COMO SOU”.

A arcaica lavoura de Nassar


Uma impressão similar à que tive ao ler Um copo de cólera tive também ao ler Lavoura arcaica: a narrativa de Nassar a todo o tempo parecia me remeter à prosa rascante de Franz Kafka. Essa percepção, sobre a qual já falei na resenha que escrevi sobre o primeiro livro, foi redimensionada no segundo livro, pois a história ali contada é de tal maneira límpida e solene, que a catarse, a tragédia, aparece como um golpe desferido após uma longa gestação de prazeres sinestésicos. Não à toa é tão fulminante e desconcertante, é “um machado para quebrar o ar de gelo que há dentro de nós.”

Mas, antes de me fiar em recursos investigativos dos quais já me utilizei outrora ou de querer fruir a obra de um autor através de obras de outros autores, ao invés de partir da sua singularidade, deixem-me discorrer um pouco sobre o enredo, a estrutura e os personagens de Lavoura arcaicaO romance foi publicado em 1975 e conta a história de André, filho de uma família camponesa, que deixou a casa paterna após constatar que não conseguiria continuar sob a égide da mentalidade tradicionalista e conservadora que imperava sobre o sítio em que habitavam. Entre outras razões. A sequência que abre o livro é justamente aquela em que Pedro, irmão de André, chega ao quarto de pensão do irmão, e busca convencê-lo a voltar para casa.

As feições psicológicas dos personagens vão se desenhando com riqueza apesar de Nassar ser preciso e econômico em sua escritura. Pedro é um tipo mais calmo, de espírito mais brando, que busca reconciliar as pontas soltas da família e reconstituir o tecido existencial dos tempos de outrora, nos quais imperava a harmonia. André é o espírito flamejante, sedento de liberdade e constantemente propenso a entregar-se com ardor as suas paixões e arroubos. O pai representa a típica vontade férrea e o pulso firme daqueles cujas rédeas da família e do sítio repousam à mão, decidido, direto, bruto e sistemático. A mãe vive em constante estado de tensão, esticada sobre os dilemas familiares entre dois pólos de atitude: a obediência ao rígido patriarca e a candura maternal para com os filhos. Ana é a filha, a mulher a florescer, confusa, ardorosa, sensível e propensa a assumir posturas extremas diante das invectivas dos pais. Lula é o caçula, o caçula que parece ter aprendido com os irmãos a atitude gauche daqueles que não se conformam com as normatizações cotidianas de uma vida sob um estigma.

A trama do livro decorre em torno do amor proibido que André sente por Ana, assim como sua reciprocidade. O contraste entre essa polêmica relação e o pano de fundo de tradições conservadoras clássicas do campo dá o tom com o qual a trama se move. Nassar consegue delinear traços típicos da mentalidade e da visão de mundo da “lavoura arcaica” através de pinceladas apuradas, traduzindo nos atos e palavras do pai, por exemplo, todo um constructo de valores e elementos históricos, assim como na postura da mãe, a partir da qual o tecido existencial da questão da posição da mulher no mundo da lavoura arcaica é trazido a lume.

O romance incestuoso que põe em questão o suposto arcaísmo da lavoura não passa despercebido como algo chocante aos olhos do autor. Ele não quer nos levar a relativizar de maneira absoluta o fato de que se trata de um tabu profundamente arraigado, mas conduzir nosso olhar para uma perspectiva perturbadoramente interessante: o de como a transgressão amorosa de André e Ana se encontra incrustada dentro de um cosmos particular, o modo de vida rural.

Para que esse conflito tenha profundidade e seja cotejado em sua complexidade, Nassar faz o movimento de urdir a tessitura sentimental e moral do cosmos da lavoura arcaica. Para tal ele busca nos personagens e nas situações recursos através dos quais essa ambiência (ambiência no sentido de extrapolar o espaço e transformá-lo em arranjo e experiência humanos) venha à tona. A postura rígida do pai, por exemplo, é um dos elementos que compõem a vida nos domínios da lavoura arcaica, assim como ela é, também, um dos elementos que indispõem André a esse mundo. A moralidade estrita, o trabalho duro e estafante, a aridez existencial que esse mundo costuma cobrar de seus habitantes são outros dos elementos que ajudam a compor o panorama espiritual e humano da vida na lavoura.

É assim que o leitor, ciente da textura humana desse modo vida, consegue enxergar as várias dimensões do ato de André bem como a beleza rústica dessa experiência existencial. Nassar não quer nos conduzir a julgamentos fechados, mas chamar nossa atenção para a complexidade da questão, apesar da moralidade polarizante nela imbricada. Não moralismo, moralidade.

Creio que seja por conta dessa intencionalidade velada que ele faz sua narrativa ter algo de parábola bíblica. O retorno de André ao sítio tem em torno de si uma aura estarrecedoramente similar à bíblica volta do filho pródigo. A dança profana de Ana, celebrando de forma ousada a volta do irmão amado, tem algo que lembra as descrições da mulheres pecaminosas que perambulam pelas páginas da Bíblia, entre elas a famosa – e controversa – Maria Madalena. A atitude extremada do pai tem algo daquele ranger de dentes que não raro espoca em algumas das histórias bíblicas. O próprio patriarcado parece ser um outro ponto de semelhança entre uma e outra narrativa.

Com poucos elementos e personagens, Raduan Nassar cria uma bela história. A riqueza psicológica dos personagens dá conta de expressar o espírito e a essência dos conflitos da lavoura arcaica e de suas dinâmicas humanas. Os objetos e os eventos são revestidos de tal poder simbólicos que prescindem da existência de mais deles: o sono fingido de Lula como a cumplicidade confusa de dois deslocados naquele mundo; os acessórios de Ana como a coroação ritualística da dança catalisadora da catarse; o arroubo do pai como a tragédia do homem que quer preservar sua rigidez patriarcal a todo o custo.

Costurando sentimentos, personagens e situações, a prosa poética de Nassar consegue dar conta de explorar algumas das várias dimensões que, entretecidas na trama da vida e da existência humana, formam a “geometria barroca do destino”. Com uma expressividade muito bem trabalhada e alocada, Lavoura arcaica consegue ir além de suas imediações históricas e suas circunscrições específicas, sendo um clássico no sentido universal, isto é, que lida com dramas que pertencem ao domínio da assim chamada natureza humana, e não somente daqueles personagens ou dos sujeitos que os inspiraram.



Ivine e o Travesseiro


Campanha mundial da Unicef "Unfairy Tales" ("Histórias Injustas", em tradução livre). A ação alerta sobre o drama das crianças refugiadas da guerra na Síria que arriscam suas vidas atravessando o Mar Mediterrâneo em botes precários para chegar à Europa. Lançado mundialmente esta semana, o filme de animação "Ivine and the Pillow" ("Ivine e o Travesseiro") mostra a trajetória da garota síria de 14 anos chamada Ivine e é narrado pela própria garota.

Malak e o Barco



A Unicef apresenta uma animação para chamar atenção às milhões de crianças refugiadas por causa da guerra civil na Síria.

O filme “Malak e o barco” de dois minutos, é narrado por uma menina de sete anos, que cruzou o Mar Mediterrâneo para fugir do conflito. Atingida pela água fria que invadia o barco, ela admite ter ficado apavorada com a possibilidade de ser afogada junto com a mãe. Nesse momento, as ondas tomam a forma de um polvo que ataca a embarcação, materializando o pesadelo diante de seus olhos.

A assinatura "Some stories were never meant for children" (“Algumas histórias nunca foram feitas para crianças”, em português) reforça o conceito de que ninguém deveria passar por essa situação.

Ao final, é revelada a criança que deu vida à animação. No site da Unicef, a organização traz a história completa da menina e sua família. Ela e a mãe se reencontraram com o pai e as irmãs na Grécia, mas seu irmão ficou na Alemanha. Como ela menciona na narração, tem saudades dos amigos.

O filme faz parte da série "Unfairy Tales", criada pela agência americana 180LA e produzida pela House of Colors, que traz animações sobre histórias reais de crianças sírias como Malak. A criação contou com criativos de diferentes países, entre eles, dez brasileiros: Eduardo Marques e Rafael Rizuto (da 180 LA) Adhemas Batista (da House of Colors); o roteirista e diretor André Holzmeister; Eliza Gatti, Ricardo Almeida e Guilherme Neder (da Today), Eduardo Luke e Luiz Abud (Hefty) e Rodrigo Augusto.

A Unicef lançará o segundo vídeo da série, "Ivine and Pillow", em março, além de outro conteúdo para a série para marcar os cinco anos do início do conflito na Síria.

Fonte: http://www.meioemensagem.com.br/home/comunicacao/2016/02/04/unicef-mostra-pesadelo-de-criancas-sirias.html

O rouxinol e a rosa


Oscar Wilde

"Ela disse que dançaria comigo se eu lhe trouxesse rosas vermelhas", exclamou o jovem Estudante, "mas em todo o meu jardim não há nenhuma rosa vermelha."

Do seu ninho no alto da azinheira, o Rouxinol o ouviu, e olhou por entre as folhas, e ficou a pensar.

"Não há nenhuma rosa vermelha em todo o meu jardim!", exclamou ele, e seus lindos olhos encheram-se de lágrimas. "Ah, nossa felicidade depende de coisas tão pequenas! Já li tudo que escreveram os sábios, conheço todos os segredos da filosofia, e no entanto por falta de uma rosa vermelha minha vida infeliz."

"Finalmente, eis um que ama de verdade", disse o Rouxinol. "Noite após noite eu o tenho cantado, muito embora não o conhecesse: noite após noite tenho contado sua história para as estrelas, e eis que agora o vejo. Seus cabelos são escuros como a flor do jacinto, e seus lábios são vermelhos como a rosa de seu desejo; porém a paixão transformou-lhe o rosto em marfim pálido, e a cravou-lhe na fronte sua marca."

"Amanhã haverá um baile no palácio do príncipe", murmurou o jovem Estudante, "e minha amada estará entre os convidados. Se eu lhe trouxer uma rosa vermelha, ela há de dançar comigo até o dia raiar. Se lhe trouxer uma rosa vermelha, eu a terei nos meus braços, e ela deitará a cabeça no meu ombro, e sua mão ficará apertada na minha. Porém não há nenhuma rosa vermelha no meu jardim, e por isso ficarei sozinho, e ela passará por mim sem me olhar. Não me dará nenhuma atenção, e meu coração será destroçado."

"Sim, ele ama de verdade", disse o Rouxinol. "Aquilo que eu canto, ele sofre; o que para mim é júbilo, para ele é sofrimento. Sem dúvida, o Amor é uma coisa maravilhosa. É mais precioso do que as esmeraldas, mais caro do que as opalas finas. Nem pérolas nem romãs podem comprá-lo, nem é coisa que se encontre à venda no mercado. Não é possível comprá-lo de comerciante, nem pesá-lo numa balança em troca de ouro".

"Os músicos no balcão", disse o jovem Estudante, "tocarão seus instrumentos de corda, e meu amor dançará ao som da harpa e do violino. Dançará com pés tão leves que nem sequer hão de tocar no chão, e os cortesãos, com seus trajes coloridos, vão cercá-la. Porém comigo ela não dançará, porque não tenho nenhuma rosa vermelha para lhe dar." E jogou-se na grama, cobriu o rosto com as mãos e chorou. 

"Por que chora ele?", indagou um pequeno Lagarto Verde, ao passar correndo com a cauda levantada.

"Sim, por quê?", perguntou uma Borboleta, que esvoaçava em torno de um raio de sol.

"Sim, por quê?", sussurrou uma Margarida, virando-se para sua vizinha, com uma voz suave.

"Ele chora por uma rosa vermelha", disse o Rouxinol.

"Uma rosa vermelha?", exclamaram todos. "Mas que ridículo!" E o pequeno Lagarto, que era um tanto cínico, riu à grande.

Porém o Rouxinol compreendia o segredo da dor do Estudante, e calou-se no alto da azinheira, pensando no mistério do Amor.

De repente ele abriu as asas pardas e levantou vôo. Atravessou o arvoredo como uma sombra, e como uma sombra cruzou o jardim.

No centro do gramado havia uma linda Roseira, e quando a viu o Rouxinol foi até ela, pousando num ramo.

"Dá-me uma rosa vermelha", exclamou ele, "que cantarei meu canto mais belo para ti". 

Porém a Roseira fez que não com a cabeça.

"Minhas rosas são brancas", respondeu ela, "tão brancas quanto a espuma do mar, e mais brancas que a neve das montanhas. Porém procura minha irmã que cresce junto ao velho relógio de sol, e talvez ela possa te dar o que queres."

Assim, o Rouxinol voou até a Roseira que crescia junto ao velho relógio de sol.

"Dá-me uma rosa vermelha", exclamou ele, "que cantarei meu canto mais belo para ti."

Porém a Roseira fez que não com a cabeça.

"Minhas rosas são amarelas", respondeu ela, "amarelas como os cabelos da sereia que está sentada num trono de âmbar, e mais amarelas que o narciso que floresce no prado quando o ceifeiro ainda não veio com sua foice. Porém procura minha irmã que cresce junto à janela do Estudante, e talvez ela possa te dar o que queres."

Assim, o Rouxinol voou até a Roseira que crescia junto à janela do Estudante.

"Dá-me uma rosa vermelha", exclamou ele, "que cantarei meu canto mais belo para ti."

Porém a Roseira fez que não com a cabeça.

"Minhas rosas são vermelhas", respondeu ela, "vermelhas como os pés da pomba, e mais vermelhas que os grandes leques de coral que ficam a abanar na caverna no fundo do oceano. Porém o inverno congelou minhas veias, e o frio queimou meus brotos, e a tempestade quebrou meus galhos, e não darei nenhuma rosa este ano."

"Uma única rosa vermelha é tudo que quero", exclamou o Rouxinol, só uma rosa vermelha! Não há nenhuma maneira de consegui-la?"

"Existe uma maneira", respondeu a Roseira, "mas é tão terrível que não ouso te contar." 

"Conta-me", disse o Rouxinol. "Não tenho medo."

"Se queres uma rosa vermelha", disse a Roseira, "tens de criá-la com tua música ao luar, e tingi-Ia com o sangue de teu coração. Tens de cantar para mim apertando o peito contra um espinho. A noite inteira tens de cantar para mim, até que o espinho perfure teu coração e teu sangue penetre em minhas veias, e se torne meu."

"A Morte é um preço alto a pagar por uma rosa vermelha", exclamou o Rouxinol, "e todos dão muito valor à Vida. É agradável, no bosque verdejante, ver o Sol em sua carruagem de ouro, e a Lua em sua carruagem de madrepérola. Doce é o perfume do pilriteiro, e as belas são as campânulas que se escondem no vale, e as urzes que florescem no morro. Porém o Amor é melhor que a Vida, e o que é o coração de um pássaro comparado com o coração de um homem?"

Assim, ele abriu as asas pardas e levantou vôo. Atravessou o jardim como uma sombra, e como uma sombra voou pelo arvoredo.

O jovem Estudante continuava deitado na grama, onde o Rouxinol o havia deixado, e as lágrimas ainda não haviam secado em seus belos olhos.

"Regozija-te", exclamou o Rouxinol, "regozija-te; terás tua rosa vermelha. Vou criá-la com minha música ao luar, e tingi-la com o sangue do meu coração. Tudo que te peço em troca é que ames de verdade, pois o Amor é mais sábio que a Filosofia, por mais sábia que ela seja, e mais poderoso que o Poder, por mais poderoso que ele seja. Suas asas são da cor do fogo, e tem a cor do fogo seu corpo. Seus lábios são doces como o mel, e seu hálito é como o incenso.

O Estudante levantou os olhos e ficou a escutá-lo, porém não compreendia o que lhe dizia o Rouxinol, pois só conhecia as coisas que estão escritas nos livros.

Mas o Carvalho compreendeu, e entristeceu-se, pois ele gostava muito do pequeno Rouxinol que havia construído um ninho em seus galhos.

"Canta uma última canção para mim", sussurrou ele; "vou sentir-me muito solitário depois que tu partires."

Assim, o Rouxinol cantou para o Carvalho, e sua voz era como água jorrando de uma jarra de prata.

Quando o Rouxinol terminou sua canção, o Estudante levantou-se, tirando do bolso um caderno e um lápis.

"Forma ele tem", disse ele a si próprio, enquanto se afastava, caminhando pelo arvoredo, "isso não se pode negar; mas terá sentimentos? Temo que não. Na verdade, ele é como a maioria dos artistas; só estilo, nenhuma sinceridade. Não seria capaz de sacrificar-se pelos outros. Pensa só na música, e todos sabem que as artes são egoístas. Mesmo assim, devo admitir que há algumas notas belas em sua voz. Pena que nada signifiquem, nem façam nada de bom na prática." E foi para seu quarto, deitou-se em sua pequena enxerga e começou a pensar em seu amor; depois de algum tempo, adormeceu.

E quando a Lua brilhava nos céus, o Rouxinol voou até a Roseira e cravou o peito no espinho. A noite inteira ele cantou apertando o peito contra o espinho, e a Lua, fria e cristalina, inclinou-se para ouvir. A noite inteira ele cantou, e o espinho foi se cravando cada vez mais fundo em seu peito, e o sangue foi-lhe escapando das veias.

Cantou primeiro o nascimento do amor no coração de um rapaz e de uma moça. E no ramo mais alto da Roseira abriu-se uma rosa maravilhosa, pétala após pétala, à medida que canção seguia canção. Pálida era, de início, como a névoa que paira sobre o rio - pálida como os pés da manhã, e prateada como as asas da alvorada. Como a sombra de uma rosa num espelho de prata, como a sombra de uma rosa numa poça d' água, tal era a rosa que floresceu no ramo mais alto da Roseira.

Porém a Roseira disse ao Rouxinol que se apertasse com mais força contra o espinho. Aperta-te mais, pequeno Rouxinol", exclamou a Roseira, "senão o dia chegará antes que esteja pronta a rosa."

Assim, o Rouxinol apertou-se com ainda mais força contra o espinho, e seu canto soou mais alto, pois ele cantava o nascimento da paixão na alma de um homem e uma mulher.

E um toque róseo delicado surgiu nas folhas da rosa, tal como o rubor nas faces do noivo quando ele beija os lábios da noiva. Porém o espinho ainda não havia penetrado até seu coração, e assim o coração da rosa permanecia branco, pois só o coração do sangue de um Rouxinol pode tingir de vermelho o coração de uma rosa.

E a Roseira insistia para que o Rouxinol se apertasse com mais força contra o espinho. "Aperta-te mais, pequeno Rouxinol", exclamou a Roseira, "senão o dia chegará antes que esteja pronta a rosa."

Assim, o Rouxinol apertou-se com ainda mais força contra o espinho, e uma feroz pontada de dor atravessou-lhe o corpo. Terrível, terrível era a dor, e mais e mais tremendo era seu canto, pois ele cantava o Amor que é levado à perfeição pela Morte, o Amor que não morre no túmulo.

E a rosa maravilhosa ficou rubra, como a rosa do céu ao alvorecer. Rubra era sua grinalda de pétalas, e rubro como um rubi era seu coração.

Porém a voz do Rouxinol ficava cada vez mais fraca, e suas pequenas asas começaram a se bater, e seus olhos se embaçaram. Mais e mais fraca era sua canção, e ele sentiu algo a lhe sufocar a garganta.

Então desprendeu-se dele uma derradeira explosão de música. A Lua alva a ouviu, e esqueceu-se do amanhecer, e permaneceu no céu. A rosa rubra a ouviu, e estremeceu de êxtase, e abriu suas pétalas para o ar frio da manhã. O Eco vou-a para sua caverna púrpura nas montanhas, e despertou de seus 
sonhos os pastores adormecidos. A música flutuou por entre os juncos do rio, e eles levaram sua mensagem até o mar.

"Olha, olha!", exclamou a Roseira, "a rosa está pronta." Porém o Rouxinol não deu resposta, pois jazia morto na grama alta, com o espinho cravado no coração.

E ao meio-dia o Estudante abriu a janela e olhou para fora.

"Ora, mas que sorte extraordinária!", exclamou. "Eis aqui uma rosa vermelha! Nunca vi uma rosa semelhante em toda minha vida. É tão bela que deve ter um nome comprido em latim." E, abaixando-se, colheu-a.

Em seguida, pôs o chapéu e correu até a casa do Professor com a rosa na mão.

A filha do Professor estava sentada à porta, enrolando seda azul num carretel, e seu cãozinho estava deitado a seus pés.

"Disseste que dançarias comigo se eu te trouxesse uma rosa vermelha", disse o Estudante. "Eis aqui a rosa mais vermelha de todo o mundo. Tu a usarás junto ao teu coração, e quando dançarmos ela te dirá quanto te amo."

Porém a moça franziu a testa.

"Creio que não vai combinar com meu vestido", respondeu ela; "e, além disso, o sobrinho do Tesoureiro enviou-me jóias de verdade, e todo mundo sabe que as jóias custam muito mais do que as flores."

"Ora, mas és mesmo uma ingrata", disse o Estudante, zangado, e jogou a rosa na rua; a flor caiu na sarjeta, e uma carroça passou por cima dela.

"Ingrata!", exclamou a moça. "Tu é que és muito mal-educado; e quem és tu? Apenas um Estudante. Ora, creio que não tens sequer fivelas de prata em teus sapatos, como tem o sobrinho do Tesoureiro." E, levantando-se, entrou em casa.

"Que coisa mais tola é o Amor!", disse o Estudante enquanto se afastava. "É bem menos útil que a Lógica, pois nada prova, e fica o tempo todo a nos dizer coisas que não vão acontecer, e fazendo-nos acreditar em coisas que não são verdade. No final das contas, é algo muito pouco prático, e como em nossos tempos ser prático é tudo, vou retomar a Filosofia e estudar Metafísica."

Assim, voltou para seu quarto, pegou um livro grande e poeirento, e começou a ler.

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Oscar Fingal O´Flahertie Wills Wilde nasceu na cidade de Dublin, Irlanda, no dia 16 de outubro de 1854, filho de Sir William Wilde, médico, e de Jane Francisca Elgee. Com ela, ainda jovem, acompanhou as discussões literárias e estéticas do grupo de amigos de sua mãe, que publicava poesias com o pseudônimo de "Speranza". Estudou em Oxford, tendo se dedicado, com ênfase, aos clássicos. Apresentando um comportamento estranho para aquela época — cabelos longos, roupas de veludo caras - era fustigado por seus colegas de universidade por seu jeito efeminado de ser. Em sociedade teve mais sorte e influência, e ficou famoso por sua personalidade. Suas frases de efeito eram repetidas em todo o lugar, e a fama de líder desse novo movimento estético lhe valeu um convite para palestrar nos Estados Unidos. Casou-se em 1884 com Constance Lloyd. Publicou em 1888 os contos de "O príncipe feliz e outras histórias".Outros livros de contos e romances foram publicados, destacando-se o grande sucesso de sua carreira, "O retrato de Dorian Gray" (1891). Todavia, sua popularidade cresceu mesmo foi no teatro, com peças irônicas e brilhantes como "O leque de Lady Windermere" (1892) e "Um marido ideal" (1895). O envolvimento homossexual do escritor com Lord Alfred Douglas foi denunciado pelo pai deste. Wilde processou seu acusador por calúnia, foi derrotado e foi condenado a dois anos de prisão (a "sodomia" era crime então). Em pouco tempo foi à bancarrota. Deixou mulher e dois filhos e exilou-se em Paris, sob o pseudônimo de Sebastian Melmoth. Morreu, em Paris, na obscuridade, no dia 30 de novembro de 1900.

Texto publicado em "O rouxinol e a rosa" (The nightingale and the Rose - 1888), foi extraído do livro "Contos de amor do século XIX", Ed. Cia. das Letras - São Paulo - 2007, pág. 551, organização de Alberto Manguel, tradução de Paulo Henrique Britto.
Fonte: http://www.releituras.com/owilde_rouxinol.asp

[Escuta Resenha] Os contos de Clarice Lispector


Já não era sem tempo. Eis que finalmente foi publicado no Brasil, no mês passado pela editora Rocco, um livro reunindo todos os contos de Clarice Lispector. Trata-se da obra Clarice Lispector. Todos os Contos, que vem à luz depois de uma trajetória pouco convencional, tendo sido publicada originalmente nos Estados Unidos, em 2015 – quando foi selecionada pelo The New York Times como um dos melhores livros do ano passado – para finalmente chegar agora às mãos do leitor brasileiro. É verdade que muitos dos contos já eram conhecidos pelo grande público, sobretudo aqueles divulgados em livros de maior repercussão como Laços de Família, Legião Estrangeira e Felicidade Clandestina – que contêm pérolas como “A galinha”, “A menor mulher do mundo” e “Felicidade clandestina” –, porém, parte significativa das histórias aqui reunidas ainda permanecia desconhecida para a grande maioria, exceto para aqueles aficionados por Clarice.

A obra Clarice Lispector. Todos os Contos é organizada pelo norte-americano Benjamin Moser, autor da bela biografia Clarice, publicada em 2009 pela editora Cosac Naify. Nesta biografia minuciosamente construída, Moser recupera os percursos de Clarice – desde o seu nascimento na Ucrânia em 1920, sua vinda ainda nova para o Brasil, sua passagem por Maceió e Recife, o casamento com o diplomata Maury Gurgel Valente e sua longeva vida no exterior, seu divórcio, o retorno para o Rio de Janeiro, seu trabalho como escritora, suas relações familiares, especialmente com os dois filhos, seu círculo de amizades, sua morte e sua posterior transformação em uma espécie de mito da literatura brasileira –, entremeando com reflexões sobre os livros escritos pela autora, como Perto de Coração Selvagem – romance lançado em 1943 que a projetou nacionalmente –, A Paixão segundo G.H. e A Hora da Estrela. As alegrias, sofrimentos, dores e angústias de Clarice são contadas de forma cuidadosa por Moser, cuja obra tem como diferencial ancorar as raízes da autora no misticismo judaico, destacando o impulso espiritual e o caráter sagrado que impulsionou e atravessou a sua obra.

Clarice Lispector. Todos os Contos é composto por oitenta e cinco textos, publicados desde 1929, quando a autora tinha 19 anos, até a sua morte, em 1977. A organização dos contos em forma cronológica permite ao leitor acompanhar os escritos de Clarice durante toda a sua vida adulta, abrindo possibilidades para associar seus escritos a fases específicas de sua trajetória. Milhares de personagens desfilam nas páginas desta obra: poucos homens; a grande maioria, mulheres. Cristina, Luísa, Flora, Idalina, Gertrudes, Catarina, Sofia, Margarida, Ofélia, Frozina, Sra. Jorge B. Xavier, Ruth, Carmen, Beatriz, Aurélia, Cândida… Mulheres novas, de meia idade, idosas; mulheres de diferentes tipos, trejeitos, profissões, sonhos, desejos, inquietações, questionamentos. Nas várias mulheres narradas nos diferentes contos que compõem a obra, Clarice, é claro, se faz presente. Na maior parte das vezes de forma implícita; em outras, de forma explícita, sobretudo em seus últimos contos, nos quais sua personalidade aparece mais destacada, especialmente quando a dimensão reflexiva – e também melancólica – passa a ganhar um espaço importante no direcionamento de sua escrita.

Como sugere o próprio Moser na introdução à obra, o registro da condição de mulher de Clarice não deve ser tomado como mero detalhe sem importância. Os escritos de Clarice, em sua maioria, abordam temas que foram tradicionalmente associados ao universo feminino, e é uma escrita feminina situada social e historicamente: uma mulher, artista, de classe média, mãe, casada e posteriormente divorciada, em uma época na qual o divórcio era visto como heresia. Porém, e isto que importa perceber, esta inscrição no mundo feminino, esta escrita de uma mulher sobre mulheres, não a circunscreve a qualquer nicho específico e não reduz em absolutamente nada a universalidade das experiências ali narradas. A literatura de Clarice é uma literatura universal e o reconhecimento tardio que o mundo anglo-saxão lhe devota se deve mais à sua condição de escritora de um país periférico, que tem como idioma o português, muito mais restrito em termos de circulação no mundo editorial quando comparado, por exemplo, com o espanhol, do que propriamente com algo associado à qualidade da sua obra.

Não se lê Clarice; se sorve Clarice. Suas palavras parecem escolhidas a dedo, com precisão, esmero, requinte. Em alguns contos, ela adquire uma verve mais seca, refreada, contida; em outros, a leveza, a delicadeza e a suavidade se impõem. A prosa elegante faz com que o leitor flutue na leitura, embora se veja, constantemente, surpreendido, não apenas com a trama desenvolvida, mas, especialmente, com os recursos formais mobilizados pela autora. Dessa perspectiva, flutua-se sim na leitura de Clarice, mas se flutua com cuidado, com apuro, com parcimônia, como se se andasse em uma loja de cristais, permanecendo atento a cada passo dado. Por estar repleta de obstáculos – que não impossibilitam o percurso, mas o tornam mais complexo –, a escrita de Clarice atrai e afasta, seduz e repele, em um jogo intrigante, que desafia o tempo todo o leitor atento que busca saborear em cada sentença o gosto da frase bem escrita.

O fato de Clarice ter se tornado postumamente pop, sugada pelo mundo da indústria cultural, com frases autorais que lhe são atribuídas, citadas fora do contexto nas redes sociais, pode dar a impressão de que Clarice é uma escritora fácil, cuja leitura se dá sem maiores esforços. É um engano. Estamos a falar de uma autora complexa, densa, em certo sentido, difícil. Seria, então, Clarice necessariamente uma escritora hermética? Em sua última entrevista, em 1977, concedida à TV Cultura, Clarice responde negativamente à acusação de hermetismo. Admite, porém, que certos contos são, inclusive para ela mesma, ainda incompreensíveis, a exemplo do perturbador “O ovo e a galinha”. Não ser hermético, contudo, não é sinônimo de ser fácil. Para ser bem sorvida, como merece ser, sua leitura demanda atenção, concentração. Lê-la de forma acelerada é um erro que pode levar à perda de detalhes primorosos de sua escrita. A pressa, a rapidez e a agitação do mundo moderno não se coadunam com a prosa moderna de Clarice; esta exige calma, respiro, silêncio.

A literatura de Clarice pode ser associada àquilo que Leyla Perrone-Moisés, em ótimo ensaio sobre autores brasileiros contemporâneos como Nuno Ramos, André Queiroz e Julian Fuks, publicado em 2012 na “Ilustríssima”, da Folha de São Paulo, chamou de “literatura exigente”, o que a colocaria, caso se aceite esta classificação, ao lado de nomes como Joyce, Kafka, Borges e Beckett. No caso de Clarisse, esta literatura exigente se mostra de forma clara em seu experimentalismo formal, ancorado em uma orientação vanguardista, que também está presente em outros autores de sua geração, como Guimarães Rosa, especialmente em Grande Sertão: Veredas. Não à toa, há aqueles que apontam para as linguagens de Clarice e Guimarães – assim como para aquela desenvolvida por artistas visuais a exemplo de Lygia Clark – como aprofundamentos tardios do modernismo dos anos 1920, embora suas literaturas inovem para outros caminhos, apostando em novas perspectivas.

Esse experimentalismo já estava presente em alguns contos de sua juventude, a exemplo de “Mais dois bêbados”, contido em Primeiras Histórias, que se encerra de forma abrupta e repentina: “De repente, ele tirou o palito da boca, os olhos piscando, os lábios trêmulos como se fosse chorar, disse:”. Contudo, ele se exacerba em contos posteriores, indo às suas últimas consequências, como no já mencionado “O ovo e a galinha”, “Discurso para a inauguração”, de Fundos de Gaveta, de Legião Estrangeira, “Perdoando Deus”, “Tempestade das almas” e “Vida ao natural”, de Felicidade Clandestina, e, especialmente, em “O relatório e a coisa”, contido no livro Onde estivestes de Noite. Como destacado por Moser no “Apêndice”, este texto foi originalmente publicado com o título “Objeto: anticonto”. Na ocasião de sua publicação, Clarice, que o chamou de “anticonto geométrico”, incluiu o seguinte prefácio: “Acho que queria fazer um anticonto, uma antiliteratura. Como se assim eu desmistificasse a ficção. Foi uma experiência valiosa para mim. Não importa que eu tenha falhado. Chama-se OBJETO” (p.652-3). Alguns contos de Clarice, a exemplo de “Perfil de seres eleitos” e “Seco estudos de cavalo”, causam espanto e inquietação: precisam ser decifrados, desemaranhados. O leitor deve se comportar como um caçador, deslocando as vírgulas, empurrando as palavras, adentrando pelo interior do papel para buscar, em meio àquela suposta estranheza, a riqueza que se extrai de variadas passagens.

Sergio Buarque de Holanda, no artigo “Tema e Técnica”, publicado originalmente no Diário Carioca, em 1950, já chamava a atenção para o fato de Clarice, ao lado de Oswald de Andrade, ter sido uma das escritoras brasileiras que mais levaram a fundo a dimensão poética e a problematização das questões formais em suas escritas, deixando em segundo plano a preocupação temática. Na introdução de Clarice Lispector. Todos os Contos, Moser avança em uma hipótese interessante para explicar esta ousadia formal e a “estranha gramática” da autora, destacando para além da influência do misticismo judaico herdado do pai, a ausência, em uma perspectiva mais ampla, de uma tradição na qual pudesse se ancorar, o que lhe assegurava um grau maior de liberdade para apostar no novo, sem que isso significasse uma inovação pela simples inovação. Clarice, segundo Moser, “vinha de uma tradição de fracasso, de uma tradição, como escritora brasileira, como escritora, como mulher, mas talvez principalmente em consequência de suas origens” (p.17). Clarice, em certo sentido, inventa uma tradição, a partir de “uma incessante busca linguística, uma mutabilidade gramatical” (p.21).

Essas reflexões sobre as inovações formais de Clarice e sobre sua “literatura exigente” não devem, contudo, afastar o leitor de Clarice Lispector. Todos os Contos. Pelo contrário. Deve-se ler e sorver Clarice, pois uma vez que se adentra em seu universo mergulha-se em uma torrente viciante de sofisticação. Não que todos os contos sejam primorosos. Clarice tropeça, se apressa em algumas histórias, simplifica enredos ou se estende demasiadamente em algumas narrativas. Seus últimos contos, especialmente aqueles publicados em A Via Crucis do Corpo, não alcançam a mesma potência de outros trabalhos, e não apenas pelo fato de abordarem o erótico no contexto conservador da ditadura que então vigia no país, como parece sugerir a introdução de Moser, mas pela razão mais prosaica de que eles não têm a mesma elegância e precisão dos livros anteriores. Mas, de modo geral, o que impera é uma capacidade imensa e assombrosa de construir uma literatura repleta de requintes, paradoxalmente contida e visceral. Seus personagens, na maior parte das vezes, expõem subjetividades atordoadas, marcadas por aquilo que podemos chamar de um equilíbrio frágil, como se algo estivesse permanentemente na iminência de se romper. É uma literatura do limiar, da beira, do limite, da expectativa.

Espera-se que Clarice Lispector. Todos os Contos possa contribuir para uma maior difusão de Clarice Lispector, tão citada, mas ainda tão pouco efetivamente lida no Brasil. Em um país que gosta de seguir os modismos que nos chegam de fora, resta torcer para que a consagradora recepção deste livro no mundo anglo-saxão influencie os daqui a conhecerem melhor uma autora que, sem qualquer arrombo nacionalista ou patriotesco, está no panteão daquilo que a literatura universal produziu de mais sofisticado.

* Fernando Perlatto é um dos Editores da Revista Escuta.** Crédito da imagem: Fraco e Moura. Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Clarice_Lispector>. Acesso em: 14 jun. 2016.