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O Nakba e a reviravolta na política palestina

O horror israelense já dura 72 anos, mas o ataque à Sheikh Jarrah pode ter saído pela culatra. A Autoridade Palestina se mostrou fraca e impotente. Hamas ganha mais popularidade, apostando na luta unificada e resistência “mais contundente”


O bairro de Sheikh Jarrah, em Jerusalém Oriental, é o lar e o exílio de algumas famílias palestinas desde 1950, quando foram desalojados de suas casas em 1948, em decorrência dos confrontos violentos, conhecido como a Nakba (“catástrofe”). Muitos palestinos, de segunda e terceira geração, nasceram em Sheikh Jarrah. Para eles, Sheikh Jarrah sempre foi e sempre será o seu lar nacional.

A vitória israelense na guerra de 1948 determinou conquistas territoriais importantes e o deslocamento interno e externo de mais de 700 mil palestinos. Parte dos palestinos desalojados foram alocados nos Estados árabes vizinhos como a Jordânia, Síria, Líbano e Egito e outra parte para os territórios da Faixa de Gaza, Cisjordânia e Jerusalém Oriental. Se do lado israelense, 1948 foi o ano de independência do Estado de Israel, do lado palestino, 1948 é a Nakba, um período marcado pela desintegração da sociedade palestina através da dispersão humana, dos massacres e da destruição da vida em sociedade. A Nakba está enraizada na memória e na história palestina como um ponto de ruptura e de mudanças irreversíveis.

O momento, definido pelos palestinos como catástrofe, paradoxalmente, marca o nascimento do lar nacional do povo judeu, o Estado de Israel, após uma década de perseguições e de extermínios da comunidade judaica da Europa promovido pelo nazismo. A criação do Estado de Israel representa, na memória coletiva judaica, o renascimento e a ressurreição do povo judeu.

Embora a sociedade palestina seja detentora de diversas identidades étnicas, culturais, políticas e religiosas, desde antes de 1948, a Nakba unificou a memória coletiva e a identidade nacional palestina. A Nakba é frequentemente invocada durante a eclosão de novos conflitos e de ciclos de violência nos territórios ocupados, em Israel e nos campos de refugiados. Isso ocorre porque muitos conflitos registrados na história palestina, como o Setembro Negro, na Jordânia, em 1971; os massacres nos campos de refugiados de Sabra e Chatila, no Líbano, e as Intifadas (de 1987 e 2000) nos territórios ocupados, não teriam acontecido se não fossem precedidos pela Nakba.

De um modo geral, a Nakba representa um trauma constante, uma injustiça irreparável. A Nakba não é apenas uma lembrança do passado, a Nakba está presente nas condições de vida de todos os palestinos dos territórios ocupados, em Jerusalém Oriental, Cisjordânia e Faixa de Gaza; nos campos de refugiados e na diáspora. A Nakba é traduzida pelo cerceamento da locomoção dos palestinos, nos inúmeros check in points, na precariedade dos campos de refugiados no mundo árabe e na legislação discriminatória em Israel. A Lei de Nacionalidade, aprovada pelo parlamento israelense em julho de 2018, estabeleceu que o exercício do direito de autodeterminação em Israel é exclusivo do povo judeu. Essa nova lei retirou o idioma árabe da categoria de língua cooficial do Estado de Israel.


Os palestinos vivem, até hoje, o seu exílio e o seu deslocamento permanente.

Para os palestinos, os lugares do período pré-Nakba não são apenas lugares de memória, mas, acima de tudo, um símbolo de tudo que foi perdido. Muitos refugiados palestinos ainda guardam as chaves de suas propriedades perdidas durante a Nakba. Para os palestinos, nascidos nos campos de refugiados e no exílio, a Palestina se resume à memória de seus pais e avós que lutam para que esta lembrança não seja esquecida e a Palestina não desapareça. A Palestina não é apenas um território geográfico, mas a memória dos palestinos exilados.

O caso de Sheikh Jarrah, particularmente, tornou-se dramático porque no mesmo mês em que os palestinos estavam sendo ameaçados de perderem suas casas para alguns israelenses que reclamavam na justiça o direito de posse de propriedade, perdida em 1948, aconteciam duas importantes celebrações do calendário religioso judaico e islâmico, o Iyyar e o Ramadã.

No início desse ano de 2021, a Suprema Corte israelense decidiu a favor de alguns colonos reaverem suas propriedades em Sheikh Jarrah, e outorgou até o dia 2 de maio para que as famílias palestinas de Sheikh Jarrah negociassem um acordo com esses colonos israelenses sobre a propriedade de suas casas. Diante do impasse, o Poder Judiciário israelense propôs um acordo, requereu que as famílias palestinas despejadas pagassem aluguel aos colonos pelas residências até que o título de propriedade fosse transferido aos cidadãos israelenses e não exatamente aos herdeiros, desalojados em 1948. O que é ilegal, de acordo com a lei internacional.

Ainda, no dia 10 de maio, aconteceu a controversa marcha anual do “Dia de Jerusalém”, que celebra a “reunificação” da cidade de Jerusalém, em decorrência da vitória israelense na guerra de Junho de 1967. Nessa manifestação, grupos nacionalistas israelenses costumam percorrerem os territórios palestinos, localizados na cidade velha de Jerusalém. Foi nesse mesmo dia que muitos muçulmanos palestinos celebravam o fim do mês sagrado do Ramadã, o Eid al-Fitr, no Haram al-Sharif, nos arredores da mesquita de Al-Aqsa, conhecido pelos judeus como o Monte do Templo.

Em meio às celebrações religiosas do calendário judaico e islâmico, foi deflagrado uma guerra entre jovens palestinos e israelenses no bairro de Sheikh Jarrah. Os ataques à mesquita de Al-Aqsa, durante as celebrações do fim do mês sagrado do Ramadã, provocaram a fúria dos grupos de resistência palestina. Os foguetes do Hamas, dessa vez, alcançaram cidades importantes de Israel, chegando a atingir os arredores de Jerusalém e de Tel Aviv, provocando medo entre a população israelense, além de pôr em cheque o sistema de defesa aérea, o Iron Dome.

A decisão de retaliação aos ataques do Hamas em Israel deu projeção ao premiê israelense, Benjamin Netanyahu, que, até então, vivia um momento político conturbado. Netanyahu fracassou na formação de um governo em Israel, além de, atualmente, enfrentar alguns processos judiciais por corrupção, fraude e abuso de poder. Do lado palestino, o presidente da autoridade palestina, Mahmoud Abbas, cada vez mais impotente e enfraquecido e que se perpetua no poder há mais de 12 anos, adiou mais uma vez as eleições palestinas, diante da nova crise instalada.

O novo ciclo de violência, deflagrado em Jerusalém Oriental e na Faixa de Gaza, fortaleceram os dois extremos: o ministro Benjamin Netanyahu e o grupo Hamas. Os projetos políticos de ambos se sobrepõem à existência e à narrativa do outro.

Benjamin Netanyahu nunca reconheceu o Estado palestino. Ao longo de sua gestão, em Israel, Netanyahu anexou territórios palestinos por intermédio de construção de assentamentos na Cisjordânia e em Jerusalém Oriental. Em dezembro de 2017, em apoio ao atual premiê israelense, o então presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, anunciou a transferência da embaixada dos Estados Unidos, da cidade de Tel Aviv para Jerusalém, de modo a reconhecer oficialmente Jerusalém como a capital indivisível do Estado de Israel e, assim, inviabilizar o projeto de tornar Jerusalém Oriental a capital de um futuro Estado palestino. O gesto do governo americano influenciou outros Estados, como a Sérvia e a Guatemala, a transferirem suas embaixadas.

O grupo Hamas (Movimento de Resistência Islâmica), por outra parte, é cada vez mais popular entre os palestinos, sobretudo na Faixa de Gaza. A gradual popularidade do Hamas ocorre basicamente por duas razões. O grupo islamita mantém inúmeros programas sociais, culturais e religiosos, capazes de aproximar os palestinos, sobretudo os mais pobres, de sua ideologia. Além disso, o fracasso dos Acordos de Paz de Oslo (1993), combinado com a progressiva brutalidade da ocupação israelense provocou, ao longo do tempo, o ceticismo de muitos palestinos pelas iniciativas de diálogos com o governo de Israel.

A permanência da Nakba, refletida nos contínuos ataques em Gaza e nos últimos acontecimentos em Sheikh Jarrah, sequestraram o movimento nacional e secular palestino. O Hamas passou a ser reconhecido como o “campeão” da resistência palestina, ao enfrentar arduamente o inimigo israelense. Diante de uma autoridade palestina extremamente impopular e enfraquecida, o Hamas passou a controlar a narrativa palestina e a garantir a sua popularidade frente ao partido al-Fatah, de Mahmoud Abbas, e, do mesmo modo, entre as comunidades da Cisjordânia e de Jerusalém Oriental. Muitos estudiosos, como o professor de Ciências Políticas da Universidade de Bar Ilan, Ariel Zellman, acredita, inclusive, que o cancelamento das eleições na palestina se deveu ao receio da autoridade palestina pelas chances reais de vitória do Hamas.

Além da sobreposição de narrativas, os últimos confrontos comprovaram que o Hamas está belicamente mais forte. Os foguetes lançados contra Israel são mais potentes e sofisticados. Mesmo assim, os 11 dias de pesados bombardeios israelenses deixou 232 palestinos mortos, entre as vítimas fatais haviam 65 crianças, 39 mulheres e 17 idosos. O número de vítimas palestinas escancara publicamente a força militar desproporcional de Israel frente ao seu adversário palestino.


O fortalecimento de dois adversários que não se reconhecem mutuamente é especialmente trágico, pois tende a sinalizar para mais confrontos violentos. Os eventos em Sheikh Jarrah e na Faixa de Gaza refletem a fragmentação da sociedade palestina desde a Nakba e reafirma a face cruel e desumana de Israel, representada pelo atual governo. Além disso, os interesses políticos dos governos israelense e palestino abafam as inúmeras tentativas de aproximação e de diálogo entre as sociedades civis israelense e palestina. A ocupação da Palestina, desde a Nakba, impediu e ainda impede o encontro de muitos palestinos e israelenses que se recusam a ser inimigos. Contudo, apesar das dificuldades, durante os eventos violentos em Sheikh Jarrah houve manifestações conjuntas em 30 cidades israelenses. “A luta é política, entre os que querem a ocupação e a supremacia e aqueles que desejam a paz e a igualdade”, afirmou publicamente o deputado palestino Ayman Odeh, em uma grande manifestação na cidade de Tel Aviv. A conciliação acontecerá entre palestinos e israelenses quando os palestinos passarem a viver com dignidade. Enquanto houver Nakba a paz estará longe de ser alcançada...

Luciana Garcia de Oliveira é mestre no Programa de Estudos Judaicos e Árabes do Departamento de Letras Orientais da Universidade de São Paulo (DLO-USP) e uma das responsáveis pela tradução da coletânea Escritos Judaicos, de Hannah Arendt, publicado pelo selo Amarilys (2016).

Israel: 70 anos de brutalidade

Desde a criação do Estado hebreu, palestinos são expulsos de suas casas, presos, torturados, mortos e submetidos a violência econômica grosseira. É a “nakba”. Poderia ser a “solução final” de Hitler.


Por Greg Shupak, no Jacobin | Tradução: Mauro Lopes

Em 14 de maio de 1948, setenta anos atrás, Israel lançou sua “declaração de independência”. Desde então, todo dia 15 de maio tem sido o Dia Nakba quando os palestinos marcam a limpeza étnica sofrida por seu povo depois da criação de Israel. [Nakba é uma palavra árabe que significa “desastre” ou “catástrofe”, termo similar a shoá em hebraico, que os judeus utilizam para designar o massacre nazista – nota OP]. Este Dia Nakba foi marcado pela Grande Marcha de Retorno, uma grande mobilização em massa até a cerca que Israel ergueu para separar Gaza e Israel, para manifestar seu desejo de passar pela barreira. Até o momento, Israel já matou pelo menos 52 manifestantes palestinos, no que a Anistia Internacional chamou de “uma violação repugnante da lei internacional”, envolvendo “o que parecem ser assassinatos intencionais, que constituem crimes de guerra”.

Como outros estados coloniais, Israel pretende asfixiar a vida social das populações dos territórios ocupados que procura dominar. Esse imperativo é particularmente urgente no caso de Israel, onde as populações judias e não-judias são de tamanho equivalente e a terra em questão é relativamente pequena. A negação discriminatória de direitos estende-se aos palestinos em outros países -são cidadãos de segunda classe em Israel, sob ocupação, na diáspora ou em campos de refugiados. Todos são impedidos de retornar às suas casas através do uso da violência e com a ajuda decisiva dos EUA.

A mensagem inconfundível para os palestinos de todas as gerações, desde antes da Nakba até a Grande Marcha de Retorno, é que a menor resistência ao etnoestado erigido em sua terra natal será combatido com prisões e mortes.

Anatomia da repressão
A violência israelense permeia todos os aspectos da vida dos palestinos, com estratégias de controle que assumiram uma variedade de formas ao longo do tempo. Para criar o Estado em 1948, as forças sionistas expulsaram 750.000 palestinos de suas casas. No processo, realizaram cerca de dez massacres em grande escala, cada um com pelo menos cinquenta vítimas, juntamente com cerca de cem massacres menores. As forças dos paramilitares israelenses mataram palestinos em quase todas as suas aldeias, despejando repetidamente os corpos das vítimas em covas, antes da oficialização do Estado de Israel. Em várias ocasiões, milícias sionistas mataram crianças e estupraram mulheres palestinas.

Atrocidades semelhantes continuaram nos primeiros anos do Estado de Israel. Em 1953, as forças israelenses massacraram 69 aldeões palestinos em Qibya, depois de alegarem “infiltração” do território israelense por refugiados palestinos. Durante o conflito de Suez, três anos depois, eles mataram 48 trabalhadores palestinos em Kafr Kassim; 275 civis palestinos em Khan Yunis e num campo de refugiados próximo; em seguida, mais 111 palestinos no campo de refugiados de Rafah.

Depois de 1967, com o estado de Israel consolidado, o governo começou a perseguir o que Tariq Dana e Ali Jarbawi chamam de “sonho de uma ‘Grande Israel’ com o máximo de terra e o mínimo de árabes”. Mais de 350.000 palestinos foram expulsos de suas casas, enquanto Israel ocupava a Cisjordânia, Gaza e Jerusalém Oriental (assim como as Colinas de Golan da Síria e o Sinai do Egito). Quase 600.000 colonos adentraram ilegalmente nos territórios ocupados com o apoio do Estado. E os massacres de palestinos em Israel continuaram desde então: no verão de 2014, Israel matou 2.251 palestinos – incluindo 1.462 civis e 556 crianças – durante a fúria assassina chamada Operação Margem Protetora. Como observou o estudioso canadense Nahla Abdo, a violência dos palestinos deve ser vista no contexto dessa “relação assimétrica” entre os dois lados.

Enquanto isso, aos palestinos nos territórios ocupados é sistematicamente negado o devido a processo legal: mantidos sem julgamento em detenções administrativas ou submetidos a processos militares e rotineiramente torturados. Tal tratamento estende-se às crianças palestinas, sujeitas a práticas que, nas palavras da UNICEF, “resultam em tratamento ou punição cruel, desumano ou degradante, de acordo com a Convenção sobre os Direitos da Criança e a Convenção contra a Tortura”, incluindo ameaças de “morte, violência física, confinamento solitário e agressão sexual, contra si mesmos ou um membro da família”. Atualmente, existem mais de 6.000 presos políticos palestinos em prisões israelenses.

Quando os palestinos não estão sendo algemados, torturados, bombardeados ou abatidos, eles vivem sob a ameaça contínua de tais ações. Depois da guerra de 1967, Israel estabeleceu um regime para examinar tudo, desde oficinas palestinas que fabricam móveis, sabão, tecidos, produtos de azeitonas e doces, até listar quantos televisores, refrigeradores, fogões a gás, pomares, animais e tratores os palestinos possuem, muitas vezes censurando livros, romances, filmes, jornais e panfletos políticos.

Expropriação econômica
A violência econômica – a expropriação da riqueza palestina e a destruição da capacidade dos palestinos de se sustentarem – marcou o tratamento de Israel aos palestinos desde o início do Estado israelense. Nos anos imediatamente posteriores a 1948, Israel adotou políticas destinadas a confiscar e controlar a terra palestina, destacadamente com a Lei da Propriedade Desocupada de 1950, pela qual Israel garantiu para si 90% da terra, designando como “desocupada” toda terra que os palestinos tivessem sido obrigados a abandoar devido repartição conduzida pelas Nações Unidas em 1947.

Os assentamentos israelenses são construídos em áreas ricas em recursos, projetados para explorar a água palestina e a terra arável – uma política que aumenta os recursos de Israel e priva os palestinos de desenvolvimento econômico. Após a ocupação de 1967, Israel construiu um regime econômico destinado a incorporar a economia palestina à economia de Israel, tornando seu governo colonial um empreendimento barato e, ao mesmo tempo, frustrando o desenvolvimento econômico palestino. Entre as medidas adotadas estavam o fechamento de instituições financeiras e monetárias árabes, a imposição da moeda israelense, a proibição de exportações e importações, exceto através de fronteiras controladas por Israel, a imposição de altos impostos (alfândega, imposto de renda, IVA), quase nenhum investimento em infraestrutura nas áreas palestinas, licenciamento restrito para atividades industriais e controle sobre comunicações, recursos de eletricidade, água e recursos naturais. As políticas israelenses transformaram o mercado palestino num mercado cativo, que se tornou um conveniente lixão para produtos industriais israelenses de má qualidade que não podiam competir com os fabricantes dos países industrializados da Europa e EUA. Isso não só trouxe grande lucro para a economia israelense, mas igualmente formou uma nova classe de capitalistas israelenses, cujas principais atividades industriais foram projetadas para os territórios ocupados.

Assim, as políticas israelenses provocaram uma deterioração da base econômica palestina e criaram uma dependência estrutural à economia de Israel, na medida em que o Estado ocupante controla os principais pontos nodais da atividade econômica, como fronteiras, terras, recursos naturais, comércio, movimentação de mão-de-obra, gestão fiscal e zoneamento industrial. Por mais de uma década, além disso, um brutal cerco militar combinado entre EUA e Israel e o Egito dizimou Gaza, a ponto de em breve a região ser inabitável. Militares e colonos de Israel arrancaram centenas de milhares de oliveiras palestinas na Cisjordânia e na Faixa de Gaza e nos primeiros anos do milênio o exército israelense arrasou quatro milhões de metros quadrados de terra cultivada.

A Grande Marcha do Retorno

Desde o início da Grande Marcha do Retorno, em 30 de março, Israel matou dezenas de palestinos e feriu quase 4.000. Nenhum israelenses foi morto ou ferido. O poder da Marcha é que ela chama a atenção para a ilegitimidade de manter artificialmente uma maioria demográfica judaica na Palestina histórica. Enquanto massas de palestinos aproximam-se da cerca entre Gaza e Israel, os manifestantes personificam a “ameaça” de palestinos retornando a seus lares e vivendo em uma Palestina-Israel que não pode ter como premissa manter os palestinos fora e perpetuamente apátridas -como refugiados ou como uma minoria oprimida dentro de Israel.

Os manifestantes estão, em suma, tentando afirmar, pelo menos temporária e simbolicamente, seu direito à sua terra, identidade, nacionalidade, liberdade -o que as negociações com Israel e seu patrono norte-americano não produziram até hoje.

Greg Shupak é professor de mídias na Universidade de Guelph, Canadá. É autor de “A história equivocada: Palestina, Israel e a Media (OR Books)

Fontehttps://outraspalavras.net/sem-categoria/israel-70-anos-de-brutalidade/ - Publicado originalmente em 16/05/2018. 



Antissionismo não é antissemitismo

 

José Welmowicki e Soraya Misleh

Uma confusão sempre à espreita e que ganha corpo nos últimos dias é que antissionismo seria uma forma de antissemitismo. Nada mais falso. Entendemos que há três tipos de confusões em relação a isso: a primeira é deliberada e, portanto, criminosa, como faz o Estado racista de Israel e suas organizações; a segunda é por desonestidade ou oportunismo, e geralmente está atrelada à primeira; e a terceira é por equívoco ou desconhecimento, fruto das ideologias que permeiam frequentemente os meios de comunicação de massa e estão na boca dos políticos e outras personalidades. A proposta deste artigo é explicar a diferença entre antissionismo e antissemitismo, que é grande.

Antissemitismo esteve presente nas falas do apresentador Bruno Aiub (Monark), durante a edição do Flow Podcast no último dia 7 de fevereiro, e do deputado federal Kim Kataguiri (DEM-SP) no mesmo programa, o que é absolutamente condenável. Nosso repúdio veemente à ideia absurda que propagaram de que o nazismo não deveria ser tratado como crime e que, como afirmou Aiub, “tudo bem ser antijudeu”. Não está nada bem defender o racismo e discriminação e a opressão. Não está, portanto, nada bem ser antissemita. Isso significa naturalizar o ódio a determinadas etnias ou raças.

O nazismo, com sua abominável ficha de atrocidades cometidas durante o Holocausto contra judeus (6 milhões de mortos), e também contra ciganos, comunistas e anarquistas, LGBTs e deficientes físicos, todos os que não seriam parte da “raça ariana”, durante o século XX, foi um crime contra a humanidade. Defender a legalização de um partido nazista é inaceitável. Infelizmente Aiub e Kataguiri não são os únicos. O vereador paulistano capitão-do-mato Fernando Holiday (Novo), que disse antes que racismo contra negros no Brasil não existe, é outro que, do alto de sua idiotia sem tamanho, defendeu a “descriminalização do nazismo”, sob a lógica distorcida de “liberdade de expressão”.

O direito democrático à liberdade de expressão não significa direito a incitar racismo, sob quaisquer formas. Não pode ser usado como muleta para se propagar livremente crimes contra a humanidade e discursos de ódio. As consequências, e isso não é de hoje, são amplamente conhecidas.

Ao mesmo tempo, no seu ridículo pedido de desculpas, tentando justificar o injustificável, Kim Kataguiri trouxe a máxima, em vídeo nas suas redes sociais, que não poderia ser antissemita porque “não tem ninguém mais pró-Israel dentro do Parlamento do que eu”, para emendar dizendo que considera “até engraçado pessoas anti-Israel me chamando agora de antissemita, de nazista”.

Essa ideologia não é à toa. Atende à confusão deliberada feita pelo Estado racista de Israel, que coloca um sinal de igual no que não tem absolutamente nada a ver, uma chantagem que merece também repúdio veemente, para silenciar os críticos do projeto colonial sionista. E que não é de hoje.

Mas o que é antissemitismo e quais suas origens?
O racismo contra os judeus, o antissemitismo, teve origem na Idade Média europeia. Os reis, nobres e sacerdotes, exploravam os servos em seus feudos na Europa medieval; na sociedade feudal, as transações comerciais e financeiras e atividades como a usura eram vistas como pecaminosas, proibidas aos cristãos. Um não cristão tinha que fazê-las. Na verdade, fazê-las a serviço da nobreza e do clero, que eram a classe dominante. Os judeus cumpriram esse papel de comerciantes, artesãos, ourives etc. e também de agiotas, tarefa que estava vetada aos cristãos. Faziam isso sob o controle dos reis do clero e dos nobres, e quando surgiam as catástrofes como a fome, as pestes, a cada período desse sistema feudal, as classes dominantes viam como necessário um bode expiatório. Por seu papel na sociedade, o de mercadores que comerciam as mercadorias e de emprestadores de dinheiro e que cobram juros, os judeus eram um alvo fácil, daí as lendas divulgadas pela Igreja cristã, como o mito de que “os judeus mataram Cristo”, eram utilizadas pelos nobres para jogar a culpa de todos os infortúnios da população nos judeus.

A revolução francesa, com seus três lemas – liberdade, igualdade e fraternidade – colocou a questão de considerar os seres humanos iguais perante a lei. Mas, como sabemos hoje, a nova sociedade capitalista foi incapaz de dar verdadeira igualdade às mulheres e às etnias e raças perseguidas. Foi a revolução russa de 1917 que trouxe a libertação dos povos de todo o antigo Império russo, o fim da discriminação a todas as etnias, incluindo os judeus de seu território.

E em sua fase imperialista, o capitalismo acirrou a exploração e as guerras de colonização de povos: e a perseguição racial tomou uma forma ainda mais assassina. Foi nessa fase imperialista que surgiram o fascismo e o nazismo; uma ideologia que justificava o genocídio e a eliminação de raças como única forma de avanço para o povo alemão. O antissemitismo foi transformado em uma política industrial de genocídio, de eliminação dos judeus.

Surgimento do sionismo
O sionismo, surgido no fim do século XIX, com Theodor Herzl, defendeu que o problema da discriminação dos judeus só seria resolvido se os judeus tivessem um estado exclusivo deles. O sionismo aceitava, assim, um pressuposto que os racistas antissemitas vinham pregando – era impossível a convivência sem discriminação entre diferentes raças e etnias, entre judeus e não judeus. Sua própria constituição racial impediria isso. E Herzl e a Organização Sionista mundial (OSM) trataram de procurar os dirigentes das potências imperialistas e ministros do império czarista da Rússia para negociar seu apoio a esse projeto, entre outros argumentos, lembrando-os que poderiam livrar-se dos judeus de seu território. Durante a Primeira Guerra Mundial (1914-1918), através de Chaim Weizmann, liderança sionista, a OSM obteve uma declaração do governo imperialista inglês, a Declaração Balfour de 1917, comprometendo-se a permitir a instalação de um Lar Nacional Judeu no território da Palestina. Ou seja, era um compromisso da autoridade colonial inglesa em permitir que a Palestina, agora colonizada por eles, fosse utilizada pelos sionistas para instalar novos colonos judeus lá. Mas isso só seria possível expulsando a população palestina existente.

O dirigente sionista “revisionista” Jabotinsky (do qual derivaram as organizações de ultradireita Irgun e Likud de Begin e de Netanyahu, primeiro-ministro por mais de uma década de Israel), levariam essa visão às últimas consequências, pregando uma “muralha de ferro” entre judeus e os árabes habitantes da Palestina, e nenhuma “mistura de sangue” entre eles, ou seja, Israel deveria ser um estado abertamente racista, exclusivamente dos judeus. Esse foi o projeto implantado e que deu origem ao Estado de Israel, às custas da expulsão da população palestina. Como revela o historiador israelense Avi Shlaim em seu livro “A muralha de ferro – Israel e o mundo árabe” (Editora Fissus, 2004), esse era também o pressuposto não declarado do denominado sionismo trabalhista – e sua liderança David Ben-Gurion – que, de fato, levou a cabo a limpeza étnica em 1948.

A limpeza étnica da Palestina

 

Comentário sobre o livro de Ilan Pappé

Há livros difíceis de serem lidos. Às vezes empacamos diante de conceitos ou de formulações rebuscadas. Há, também, outros tipos de dificuldades. Paramos a leitura para tomar ar, para dar ao pensamento tempo para se conectar com a narrativa de experiências históricas terríveis, devastadoras. Somos postos diante do precipício daquilo que chamamos “humanidade”.

Os crimes contra a humanidade nos arrancam do nosso lugar confortável e nos fazem pensar sobre os próprios sentidos que os criminosos dão ao “humano”. Foi a conta-gotas que li A limpeza Étnica da Palestina, do historiador israelense Ilan Pappé. A cada página o autor nos apresenta aos horrores cometidos pelos sionistas para expulsar os/as palestinos/as de suas terras para que pudessem fundar um Estado judeu.

Nas duas viagens que fiz à Palestina vi fragmentos. Conheci parte considerável dos 700 quilômetros de muro, serpentes de concreto; as barreiras militares. Escutei tiros que executaram um jovem na Cidade Velha de Jerusalém, ritual de morte que acontece quase todos os dias nas barreiras militares. Acompanhei e chorei com os moradores de Silwan (bairro palestino em Jerusalém Oriental) que tiveram suas casas demolidas. Conversei com crianças que tinham sido presas pelo Estado de Israel. Visitei alguns campos de refugiados.

Faltava, contudo, ligar os vários pontos dos múltiplos atos de terror cometidos pelo Estado de Israel contra o povo palestino. Tão logo voltei ao Brasil, em janeiro de 2017, o livro de Ilan Pappé foi lançado. Este livro me deu um quadro histórico mais coerente e completo, que seria impossível de alcançar apenas pela dimensão da experiência. O que eu tinha assistido era, de fato, a continuidade da política iniciada em 1947 pelo futuro Estado de Israel: eu vi a continuidade da limpeza étnica da Palestina.

Um dos principais mitos que tenta justificar a existência de Israel se fundamenta no lema “Uma terra sem povo para um povo sem terra”. A narrativa sionista é mais ou menos assim: “judeus miseráveis, perseguidos pelos antissemitas na Europa, finalmente, voltam para suas terras ancestrais. Encontraram terras desocupadas e, com seu trabalho, fizeram da terra seca brotar a abundância. Cercado de inimigos por todos os lados, os/as heroicos/as soldados/as judeus/judias resistiram, lutaram e fundaram o glorioso Estado de Israel!”. Após a pesquisa de Ilan Pappé, este mito foi definitivamente destruído.

A tese da limpeza étnica não é nova. Walid Khalidi, por exemplo, nos seus escritos, já seguia este caminho. Em sua obra-prima, Una Historia de los Palestinos a traves de la fotografia 1876-1948, Khalidi nos apresenta uma Palestina pulsante, com uma vida urbana conectada com grandes centros culturais e econômicos do mundo. O autor combina vários elementos narrativos em seu livro: fotografias, mapas, dados censitários e textos analíticos. A própria palavra síntese, usada pelos/as palestinos/as para se referir ao que lhes aconteceu, principalmente a partir de novembro de 1947, Nakba (catástrofe), nos revela que a tese de limpeza étnica não é nova.

Qual seria, então, a singularidade da obra de Ilan Pappé e por que sua leitura deve ser obrigatória para todos/as que estão conectados/as com a luta do povo palestino e/ou interessados/as em entender os mecanismos de dominação do neocolonialismo materializados nas políticas do Estado de Israel? Pela primeira vez, um pesquisador entra na alma do projeto sionista: vale-se dos arquivos da Haganá, das FDI (Forças de Defesa de Israel), arquivos centrais sionistas, registro das reuniões da Consultoria, diário e os arquivos pessoais de Ben-Gurion.

Com rigor científico cirúrgico, o autor nos apresenta também cartas, documentos da ONU, repercussão em jornais de alguns dos massacres cometidos contra o povo palestino, arquivos da Cruz Vermelha. Além da descrição e análise histórica dos fatos, o livro ainda mostra fotos, cronologia dos fatos principais, mapas e um apartado com centenas de notas explicativas das fontes consultadas. São estas notas que garantem o rigor científico e o compromisso com a verdade. São centenas, iguais à Nota 5 (Capítulo 6): “Isso estava nas ‘Ordens operacionais para as brigadas de acordo com o Plano Dalet’, Arquivos das FDI, 22/79/1.303” (p. 313).

No primeiro capítulo, o historiador irá apresentar o conceito de “limpeza étnica” aceita por todos os organismos internacionais como “um esforço para deixar homogêneo um país de etnias mistas, expulsando e transformando em refugiados um determinado grupo de pessoas” (p. 23). Logo depois, nos conduzirá aos antecedentes históricos do projeto sionista de construção de um Estado para os judeus (por exemplo, a Declaração Balfour, de 1917) e nos apresentará aos “intelectuais orgânicos” da limpeza étnica, destacando-se o grande arquiteto Ben-Gurion.

Em carta ao filho, em 1937, Ben-Gurion antecipará o que iria acontecer: “Os árabes terão de ir, mas para fazê-lo acontecer, é necessário um momento oportuno, como uma guerra” (p. 43). Dez anos depois, em 1947, Yigael Yadin (outro importante quadro político-militar que planejou e executou a limpeza) afirmará: “os árabes palestinos não têm ninguém para organizá-los devidamente” (p. 42). Ou seja, a suposta guerra que Ben-Gurion já desejava em 1937 não aconteceu. Guerra só existe quando há um mínimo de equilíbrio na correlação de forças bélicas entre os inimigos. O que mostra a falsidade da retórica acionada sem timidez por Ben-Gurion de que os judeus na Palestina corriam risco de serem vítimas de um segundo Holocausto. Ao descrever os palestinos como nazistas, “a estratégia era uma manobra deliberada de relações públicas para garantir que, três anos depois do Holocausto, o ímpeto dos soldados judeus não vacilasse quando eram ordenados a limpar, matar e destruir outros seres humanos” (p. 93).

Foram três planos, ao todo, para realizar a limpeza étnica (Plano A, 1937; Plano B, 1946 e que passou a integrar o Plano C, de 1948). No entanto, o mais minucioso e melhor estruturado foi o Plano Dalet (“D” em hebraico). Assim, “alguns dias depois de escrito, o Plano D foi distribuído entre os comandantes das 12 brigadas incorporadas agora à Haganá. Junto à lista recebida vinha uma descrição detalhada dos vilarejos no seu raio de ação e de seu destino imanente: ocupação, destruição e expulsão. Os documentos israelenses liberados pelo arquivo das Forças de Defesa de Israel, no fim dos anos 1990, mostram claramente que, ao contrário das alegações feitas por historiadores como Benny Morris [historiador israelense], o Plano Dalet foi entregue aos comandantes de brigadas não como diretrizes gerais, mas como categóricas ordens para a ação” (p. 103).

Árabes, Israel e os prejuízos do dispensacionalismo cristão

As ramificações do pensamento dispensacionalista e a ausência de paz no Oriente Médio


O dispensacionalismo é um sistema teológico bastante criticado pelos que não o aceitam. Não obstante muitos evangélicos, especialmente nos Estados Unidos, mas também no Brasil e em outras partes do mundo, ou são dispensacionalistas ou são influenciados por suas vertentes, mesmo que não conheçam a palavra ou o seu conceito.

Este artigo não é escrito com a intenção de analisar se o dispensacionalismo é ou não resultado de uma hermenêutica correta, nem defender a perspectiva no outro extremo do espectro teológico, a saber, a Teologia da Aliança. Nem espero que os dispensacionalistas mudem suas convicções. Afinal, trata-se de uma escola de pensamento, uma entre muitas. O que pretendo apresentar são os efeitos da teologia dispensacional e seus subprodutos: (a) na política do mundo e do Oriente Médio, (b) na vida da Igreja no Oriente Médio e (c) no pensamento e prática missiológica da Igreja Ocidental, de modo que os que têm um ponto de vista influenciado pelo dispensacionalismo possam minimamente considerar se não há uma maneira bíblica de evitar a dor que, direta ou indiretamente, está sendo causada a milhões de pessoas no Oriente Médio e nos seus arredores.

Minha esperança também é a de que este artigo influencie, mesmo que de forma modesta, a Igreja Brasileira e seu esforço missionário no mundo muçulmano em geral, e no Oriente Médio em particular.

Todavia, é necessário apresentar uma ressalva importante antes de desenvolver o tema. Veremos, na sequência, alguns fatos lamentáveis que aconteceram nas últimas décadas por conta da iniciativa de evangélicos com influências dispensacionalistas, especialmente nos Estados Unidos. É de suma importância levar em conta que a popularização e ampla disseminação do dispensacionalismo se apoia em um forte sistema, que envolve um grande número de pessoas e da mídia. Seu avanço tomou proporções gigantescas. Tornou-se quase impossível falar a respeito de uma única versão de dispensacionalismo. Como consequência, nem todos os dispensacionalistas clássicos estão necessariamente de acordo com tudo que se desenvolveu ao redor desse sistema teológico, nem com tudo que tem sido dito e feito como resultado de convicções escatológicas encontradas em ambientes teológicos influenciados por essa abordagem.

Outrossim, é importante ressaltar que nem sempre é clara a distinção feita entre os diferentes conceitos (dispensacionalismo pré-milenista e pré-tribulacionista, restauracionismo, sionismo cristão, dispensacionalismo radical e até mesmo o cristianismo evangélico). Nas próximas linhas os termos podem ser usados de modo intercambiável.

Também vale dizer, já de início, que eu estou totalmente de acordo com o direito de o povo judeu ter o seu lar na Palestina, apesar de não concordar com a forma que o moderno Estado de Israel tem atuado em relação ao povo árabe palestino, que habita há mais de mil anos na “Terra Prometida”. Finalmente, é importante esclarecer que as opiniões expressadas neste artigo são de minha responsabilidade, e não representam, necessariamente, a opinião das organizações cristãs com as quais estou envolvido.

DEFININDO O DISPENSACIONALISMO
As principais características do que veio a ser definido como dispensacionalismo clássico, ou normativo1 (que inclui as posições pré-milenista e pré-tribulacionista2) desenvolveram-se no decorrer de anos, e ainda que haja discordâncias, o conceito pode ser sumarizado da seguinte maneira:

1. Deus em sua soberania decidiu que a revelação e a execução de seu plano para a humanidade aconteceriam através de diferentes dispensações, introduzidas por Deus mesmo, em diferentes épocas. Uma dispensação pode ser concisamente definida como “uma economia3 discernível na execução do plano de Deus”4 que pode “prevalecer em uma época especial”, mas “não necessariamente em outra”5. Os dispensacionalistas nem sempre estão de acordo sobre quantas são as dispensações, mas a maioria parece crer em sete.6 7 Eles entendem que o alvo da história é “o estabelecimento do reino milenar na terra […]”.8

2. Os judeus continuam sendo entendidos como o povo escolhido de Deus que irá desfrutar na terra as promessas ainda não cumpridas do Antigo Testamento9. Por conseguinte, a primeira das três condições sine qua non (ou a primeira das “pedras angulares”) do dispensacionalismo é a descontinuidade clara entre Israel e a Igreja. A Igreja está limitada apenas à presente era. Os judeus, enquanto nação, não pertencem ao mesmo grupo em que está a igreja, ou os gentios. Os que pertencem à igreja são diferentes dos santos que morreram antes de Cristo ou dos de uma dispensação futura. A Igreja do Novo Testamento não é o “Israel nacional”. Logo, não é o cumprimento das promessas dadas a esta nação. Deus tem seu povo redimido no decorrer das eras. Entretanto, o dispensacionalismo nega fortemente que isto constitui um mesmo povo. Eles creem nos “povos” de Deus.10 Para os dispensacionalistas, “a doutrina dos dois povos… deve ser sustentada eternamente […]”.11 Conforme Chafer, um grande defensor do dispensacionalismo,

É tão ilógico e enganoso argumentar que o judaísmo e o cristianismo irão se fundir como discutir que o céu e a terra deixarão de existir como esferas separadas. O dispensacionalismo tem sua base e é entendido na distinção entre judaísmo e cristianismo.12

O dispensacionalista crê que através das eras Deus está executando dois propósitos distintos: um relacionado à terra com pessoas terrenas e pautados por objetivos terrenos, que é o judaísmo, enquanto o outro está relacionado ao céu com pessoas celestiais e está envolvido com objetivos celestiais, que é o cristianismo […].13

3. Quando a atual dispensação (conhecida como Dispensação da Graça ou Era da Igreja) acabar, o “arrebatamento”14 irá acontecer. Jesus chamará os crentes, o que incluirá os santos ressuscitados de dispensações passadas e os vivos da dispensação presente, para o encontro com ele nos ares15. Eles adquirirão um corpo celestial e viverão no céu com Jesus.

4. O arrebatamento marcará o início da Grande Tribulação, um período de sete anos no qual o anticristo se manifestará e “conseguirá estabelecer-se firmemente na Palestina como um líder religioso e politico”.16 Durante esse tempo o terceiro templo será reconstruído em Jerusalém e o povo judeu mais uma vez viverá de acordo com a Lei Mosaica17.

5. Ao final dos sete anos da tribulação haverá a grande batalha do Armagedom, quando as nações se reunirão para combater Israel.

6. Nesse momento Jesus voltará para defender Israel, derrotar o anticristo e amarrar Satanás por mil anos.

7. É aí então que a última dispensação, o Milênio, terá lugar:

a) Será um período que durará literalmente mil anos e Jesus reinará sobre toda a terra18. Seu trono será em Jerusalém.

b) Imediatamente antes do início deste período os judeus de todos os cantos do mundo serão regenerados e restaurados, e retornarão à terra de Israel 19 20. Judeus e gentios serão “julgados para assegurar que apenas os que creem entrarão no reino.”21

c) De acordo com alguns dispensacionalistas, durante esse tempo os que foram arrebatados antes do início da Grande Tribulação terão retornado com Jesus em corpos glorificados e reinarão com ele. Assim, de acordo com essa perspectiva dispensacionalista, durante o Milênio haverá na terra pessoas com corpos celestiais e aqueles (judeus e gentios que sobreviveram à Grande Tribulação) com corpos terrestres 22 23. Outros, como Dwight Pentecost, são da opinião que durante o Milênio apenas os sobreviventes da Grande Tribulação estarão na terra, com seus corpos físicos, e viverão sob o senhorio de Jesus.24

d) Devido ao fato que os dispensacionalistas enfatizam grandemente a necessidade de utilizar uma interpretação da Bíblia que seja “literal, plena, normal ou histórico-gramatical”25 26 e para que a “igreja não roube as bênçãos de Israel”27, será durante o Milênio que as promessas parcialmente cumpridas ou ainda não cumpridas do Antigo Testamento (especialmente aquelas concernentes à Aliança Davídica, a posse incondicional e permanente da terra e suas fronteiras geográficas) serão completamente cumpridas e a nação de Israel finalmente terá sua plena extensão,28 que será “[…] do rio do Egito ao grande rio, o rio Eufrates […].”29 30. Outra promessa a ser cumprida durante o Milênio é Jeremias 31.31-34, que menciona que a lei de Deus será gravada nos corações dos judeus.

e) No final do Milênio Satanás será liberto por pouco tempo e haverá um tempo de rebelião31. Entretanto, Jesus triunfará.

f) Quando o Milênio acabar haverá um novo céu e uma nova terra. Não haverá necessidade de um templo, porque Deus mesmo será o santuário.

Se formos resumir esse sumário em poucas palavras provavelmente não haverá melhor maneira que citar Hal Lindsay, um dos mais importantes popularizadores do dispensacionalismo do século 20:
“Crucial para uma leitura dispensacionalista da profecia bíblica é a convicção que o período da tribulação é iminente, juntamente com o arrebatamento secreto da igreja e a reconstrução do templo judeu no lugar do, ou ao lado do Domo da Rocha. Isto assinalará o retorno do Senhor para restaurar o reino a Israel, centrado em Jerusalém. Esse evento pivotal também é entendido como o gatilho para o início da Guerra do Armagedom, na qual grande parte da população do mundo, juntamente com muitos judeus, irão sofrer e morrer”.32

Questão Israel-Palestina: 73 anos de limpeza étnica

Leitura da situação como um “conflito” esconde opressão do Estado israelense em processo histórico de colonização e extermínio na Palestina. 

Originalmente publicado em 24 de junho de 2021

Por Amanda Mazzei e Bruna Irala


No início do mês passado, os episódios de bombardeios na Faixa de Gaza foram noticiados em diversos veículos como uma “escalada de violência” entre israelenses e palestinos, ou ainda um “conflito” entre Israel e Hamas, muitas vezes apontado como parte de uma “longa guerra” entre dois lados irredutíveis. Essa cobertura tem gerado críticas de cidadãos palestinos, ativistas, jornalistas de diversas nacionalidades e pesquisadores, que consideram que é escolhida uma narrativa que esconde a realidade da região.

“É uma perspectiva que parte do pressuposto de que é um confronto entre duas partes igualmente poderosas, que possuem os mesmos recursos ou que estão em posição de igualdade. Mas, quando estudamos a história desse ‘conflito’, o que vemos é que se trata de um conflito de ordem colonial.” Isabela Agostinelli dos Santos é doutoranda em Relações Internacionais no Programa de Pós-Graduação San Tiago Dantas (UNESP, UNICAMP, PUC-SP) e pesquisadora do Grupo de Estudos sobre Conflitos Internacionais da PUC-SP. Ela explica que se trata de “colonizadores e colonizados, em posições de poder altamente discrepantes e assimétricas”.

Para Agostinelli, a questão não deve ser lida como um confronto ou guerra, e sim um processo histórico de limpeza étnica feita por Israel na região da Palestina.
“O que a Palestina vive desde o fim do século 19, com o avanço do projeto sionista [criação de um Estado étnico judeu na região da Palestina, que já era habitada pelos árabes] de colonização daquele espaço, e que se intensificou em alguns momentos da história, como a criação do Estado de Israel, em 1948, e a ocupação da Cisjordânia, Jerusalém Oriental e Faixa de Gaza, em 1967, é um processo de limpeza étnica.”
Agostinelli afirma que os esforços coloniais de Israel, baseados no projeto sionista, “significam a expulsão dos palestinos nativos de suas terras para sua substituição – ou, em alguns casos, assimilação – pelos colonos israelenses.”

O historiador israelense Ilan Pappé caracteriza o sionismo como uma ideologia, que tem como projeto a implantação de um Estado judaico exclusivista no território palestino, às custas da população palestina. Como complementa o cientista político Norman Finkelstein, em seu livro Imagem E Realidade Do Conflito Israel-palestina (1995), “o sionismo fundamentava seu direito de preempção [preferência] ao estabelecimento de um Estado judaico na Palestina — um direito que supostamente se sobrepunha às aspirações da população local — no alegado direito do povo judeu àquela terra”.

De acordo com o movimento sionista, os árabes palestinos “mesmo sendo cidadãos e residentes [do território da Palestina] há muito tempo, não eram intrinsecamente ‘dele’”. A presença de não-judeus se não amplamente hostilizada era dispensável, “facilmente se prestando a esquemas favoráveis à transferência de populações — e à sua expulsão”. De forma que o êxodo em massa da população nativa da Palestina em 1948 era visto não como uma tragédia, mas a solução ideal para o conflito.

Acontecimentos recentes na Faixa de Gaza e Sheikh Jarrah
Recentemente estiveram no centro das discussões os bombardeios na Faixa de Gaza, que aconteceram após uma resposta do Hamas (partido político fundado em 1987 que hoje governa Gaza) às ameaças israelenses de despejo a famílias palestinas de Sheikh Jarrah, um bairro na porção palestina de Jerusalém – o que é considerado crime de guerra pelas leis internacionais – e também a ataques da polícia israelense na Mesquita de Al Aqsa.

No episódio da Mesquita, no dia 10 de maio, palestinos que faziam suas orações no mês sagrado do Ramadã e protestavam contra os despejos em Sheikh Jarrah foram violentamente reprimidos com bombas de gás lacrimogêneo, granadas e balas de borracha disparadas por policiais israelenses, inclusive dentro da mesquita. Cerca de 300 palestinos foram feridos.

Em um ultimato, o Hamas exigiu que Israel retirasse suas forças do complexo de Al Aqsa e de Sheikh Jarrah – vale frisar, territórios palestinos –, o que não aconteceu. O Hamas então disparou dezenas de foguetes contra cidades israelenses, sendo boa parte deles interceptada pelo sistema antimísseis israelense chamado Domo de Ferro.

“Como de costume, a posição israelense frente ao lançamento de foguetes do Hamas foi extremamente desproporcional”. Isabela Agostinelli explica que as forças militares israelenses conduziram uma operação militar em Gaza, bombardeando diversos locais, o que resultou em mais de 250 palestinos mortos, cerca de 1900 feridos e 52 mil deslocados internos.

De acordo com Francirosy Campos Barbosa, antropóloga, docente associada no Departamento de Psicologia FFCLRP/USP, e membro da diretoria do IBRASPAL (Instituto Brasil Palestina), “tudo isso aconteceu e está acontecendo para implementar um projeto colonial racista e perverso que visa remover e desenraizar o povo palestino de sua terra e apagar seus milhares de anos de história e civilização pluralista”. Ela afirma que a questão Israel-Palestina “não pode ser chamada de ‘guerra’, e sim resistência” dos palestinos.

A antropóloga defende que acontece um uso de necropolítica [política que escolhe quem deve viver e quem deve morrer] na Palestina pelo Estado de Israel. “Basta ver o número de mortos no último enfrentamento, em maio de 2021, entre forças completamente desiguais. Mais de 250 palestinos mortos e 12 israelenses.”

Para entender por que os casos constantes de violência na região da Palestina não deveriam ser categorizados como confrontos de uma guerra entre dois lados, é preciso observar o processo histórico que gerou a situação de vulnerabilidade atual dos palestinos, assim como o controle que Israel exerce sobre suas vidas hoje, tanto dentro das fronteiras israelenses quanto nos territórios que ocupa, e até mesmo nas regiões que em tese não estão sob seu comando direto.

Os Testamentos

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"O Hológrafo de Árdua Hall

Apenas os mortos têm permissão para ter estátuas, mas eu ganhei uma ainda em vida. Eu já estou petrificada.

Aquela estátua era um pequeno sinal de agradecimento por minhas várias contribuições, dizia o discurso, que foi lido pela Tia Vidala. Ela fora incumbida dessa tarefa pelos nossos superiores e estava longe de transmitir entusiasmo. Agradeci-lhe com o máximo de modéstia que pude e puxei a corda que desatava o manto que me encobria; ele flutuou morosamente ao chão, e lá estava eu. Aqui em Ardua Hall não se ovaciona ninguém, mas ouviu-se uma discreta salva de palmas. Inclinei minha cabeça em agradecimento.

A minha estátua é algo descomunal, como tende a ser toda estátua, e me retrata mais jovem, mais magra e em melhor forma do que tenho estado há tempos. Estou ereta, ombros para trás, meus lábios curvos num sorriso firme, mas benevolente. Meus olhos se fixam em algum ponto de referência cósmico que se presume representar meu idealismo, meu compromisso inabalável com o dever, minha determinação em seguir em frente a despeito de qualquer obstáculo. Não que qualquer parte do céu esteja à vista da minha estátua, plantada onde está, naquele melancólico aglomerado de árvores e arbustos ao lado da trilha de pedestres que passa em frente do Ardua Hall. Nós, as Tias, não podemos ter grandes pretensões, mesmo em forma de pedra.

Agarrada à minha mão esquerda há uma menina de sete ou oito anos, mirando-me cheia de confiança. Minha mão direita está apoiada na cabeça de uma mulher agachada a meu lado, de cabelos cobertos, seus olhos voltados para cima em uma expressão que poderia ser lida tanto como amedrontada quanto como grata – uma de nossas Aias –, e atrás de mim há uma de minhas Pérolas, pronta para partir em seu trabalho missionário. Pendendo do cinto que contorna minha cintura está minha arma de choque. Esta arma me lembra de minhas limitações: se eu tivesse sido mais eficiente, não teria necessitado desse acessório. A persuasão da minha voz teria sido suficiente.

Como grupo estatuário, não somos um grande sucesso: há elementos demais. Eu preferiria uma maior ênfase na minha pessoa. Mas pelo menos eu pareço estar em meu perfeito juízo. Poderia ter sido bem outro o caso, dado que a escultora idosa – uma crente fervorosa que veio a falecer – tendia a esbugalhar os olhos das modelos para sinalizar devoção. O busto que ela fez da Tia Helena tem ares de hidrofobia, o de Tia Vidala está com hipertireoidismo, e o de Tia Elizabeth parece prestes a explodir.

Na inauguração, a escultora estava nervosa. Será que havia me adulado o suficiente com sua escultura? Eu a aprovava? As pessoas iam entender que aprovei? Cogitei franzir a testa assim que o manto caísse, mas achei melhor não: não sou totalmente destituída de compaixão.

– Ficou muito realista – falei.

Isso foi há nove anos. Desde esse dia minha estátua vem se deteriorando: pombos me adornaram, musgo brotou nas minhas dobras mais úmidas. Devotos adquiriram o hábito de deixar oferendas a meus pés: ovos pela fertilidade, laranjas para sugerir a corpulência da gravidez, croissants em referência à lua. Ignoro os artigos de padaria – geralmente eles pegaram chuva –, mas embolso as laranjas. Laranjas são muito refrescantes.

Escrevo essas palavras no meu gabinete particular dentro da biblioteca do Ardua Hall – uma das poucas bibliotecas restantes após as animadas fogueiras de livros que têm ocorrido em nossa terra. As digitais pútridas e ensanguentadas do passado precisam ser expurgadas para deixar uma tábula rasa para a geração moralmente pura que com certeza vai nos suceder. Em teoria, pelo menos, é isso.

Mas entre estas digitais sangrentas estão as que nós mesmos deixamos, e estas não são tão fáceis de apagar. Com o passar dos anos enterrei muitos ossos; agora minha vontade é de exumá-los – nem que seja só para te edificar, meu leitor desconhecido. Se você estiver lendo isso, pelo menos este manuscrito terá sobrevivido. Embora talvez eu esteja fantasiando: talvez eu nunca venha a ter um leitor. Talvez eu só esteja falando com as paredes, ou muros, em todos os sentidos.

Chega de escrevinhar por hoje. Minha mão está doendo, minhas costas ardendo, e meu copo noturno de leite morno me aguarda. Vou guardar essa arenga no seu devido esconderijo, evitando as câmeras de vigilância – que sei bem onde estão, já que eu mesma as instalei. Apesar dessas precauções, estou ciente do risco que corro: escrever pode ser perigoso. Que traições, e então que acusações, podem estar à minha espera? Há muita gente em Ardua Hall que adoraria se apoderar dessas páginas.

Aguardem, aconselho-os silenciosamente: pois vai ficar pior."
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'Os Testamentos', continuação de 'O Conto da Aia', escrita por Margaret Atwood

Dostoiévski: condenação e exílio



“Nunca houve uma [revolução] que tivesse se espalhado tão rápida e amplamente, se alastrando como fogo na palha por sobre fronteiras, países e mesmo oceanos.” Assim o historiador Hobsbawm vê as Revoluções de 1848 que estouraram em toda a Europa. Surgidas como resposta à sociedade industrial, crises econômicas e más condições de trabalho, tendo como alvos a nobreza e os grandes industriais, pequenos burgueses uniram-se para quebrar máquinas e reivindicar direitos junto ao povo e ao rebento da industrialização: o proletariado. Muito baseadas no socialismo utópico de Fourier e acontecendo no mesmo ano da publicação do "Manifesto Comunista" de Marx e Engels, as revoluções tiveram conquistas avassaladoras com suas barricadas, varrendo diversas monarquias do mapa.

O duro czar Nicolau I da Rússia, isolado em seu enorme, porém distante país, observava tudo com cautela e temor. Há muito havia naquela nação grupos de intelectuais revolucionários e anticzaristas que se reuniam secretamente para falar de política. Nicolau sabia disso e aumentou a repressão contra os grupos enviando infiltrados para descobrir quem eram os revoltosos.

Em 1849, o Círculo Petrashevski – pois os intelectuais se reuniam na casa do progressista Mikhail Petrashevski – de São Petersburgo foi descoberto, preso e condenado. Entre os que lá estavam, encontrava-se o já famoso romancista russo Fiódor Dostoiévski, aclamado pelo seu livro de lançamento "Gente Pobre" (1846). Condenado à morte aos 28 anos, o desesperado Dostoiévski e seus companheiros são postos de frente ao pelotão de fuzilamento. Segundos antes do disparo que os tiraria a vida, uma carta chegou assinada pelo czar com o perdão aos condenados. Na verdade, tudo não passou de encenação, mas eles não sabiam.

No mesmo dia, já absolvido, Dostoiévski escreve ao seu irmão mais velho, Mikhail:

“Meu tão querido irmão!
Tudo está resolvido! Fui sentenciado a quatro anos de trabalhos forçados em uma fortaleza [...] e depois, alistamento como soldado raso. Hoje, 22 de dezembro, fomos todos levados à Praça Semionovski. Lá, a sentença de morte foi lida para nós, deram-nos a cruz para que beijássemos [...] e foram feitos nossos trajes mortuários (camisas brancas). Então, três de nós fomos colocamos diante do pelotão de fuzilamento para a execução da sentença de morte. Eu era o sexto da fila; fomos chamados em grupos de três, logo eu estava no segundo grupo e tinha não mais que um minuto de vida. Pensei em você, meu irmão, em todos vocês; naquele último instante, apenas você estava em meu pensamento – foi quando percebi o quanto eu amo você, meu adorado irmão! Tive tempo de abraçar Plechtchéiev e Durov, que estava ao meu lado, e despedir-me deles. No último instante, veio a ordem para suspender a execução, os soldados do pelotão de fuzilamento recuaram, e foi lida a sentença final.”

Ele foi enviado para o exílio na gelada e inóspita Sibéria, em Omsk, para cumprir trabalhos forçados e depois servir como soldado raso. Chegando na prisão após longa e difícil jornada, se impressionou com o que viu. Em carta ao irmão datada de 1854, ele escreve que seus companheiros de prisão eram “homens rudes, raivosos, amargurados. Seu ódio pela nobreza não tem limites; eles olham para todos nós, que pertencemos às classes mais abastadas, com hostilidade e rancor. Teriam nos devorado se tivessem a oportunidade. Julgue, então, o perigo que corremos, tendo que coabitar com essas pessoas por alguns anos, comer com eles, dormir ao seu lado, e sem qualquer possibilidade de reclamar das afrontas que eram constantemente direcionadas a anos.” E continua: “Passei quatro anos inteiros sob as paredes da prisão, e de lá saía apenas quando era escalado para o trabalho forçado. O trabalho era duro, mas nem sempre; algumas vezes, com mau tempo, sob a chuva, ou no inverno, durante as eternas nevascas, minhas forças faltavam-me. Certa vez, tive que fazer quatro horas de trabalho extra sob um frio que congelou até mesmo o mercúrio dos termômetros; creio que estava uns quarenta graus abaixo de zero. [...] Some-se a todos esses desconfortos o fato de que era quase impossível conseguir um livro, e quando consegui um, tive que ler às escondidas: tudo ao meu redor era uma incessante maldade, turbulência e discórdia. Vivíamos sob constante vigilância, e na impossibilidade de se estar sozinho, fosse por um minuto sequer – e sem qualquer variação desse quadro por quatro longos anos: você entenderá quando eu disser que eu não era feliz. Agora imagine, além de tudo isso, a ameaça constante de sofrer uma punição, os ferros, a opressão extrema de espírito – e terás um retrato fiel do que era minha vida.”

Livre em 1860 após dez longos anos em exílio, Dostoiévski relata suas memórias de prisão na novela Recordações da Casa dos Mortos (1862). Por suas experiências, uma nova fase surge em sua obra com seus grandes clássicos pós-siberianos: Crime e Castigo (1866), O idiota (1869), Os demônios (1871) e Os irmãos Karamázov (1880). Sua produção literária foi lida atentamente por Friedrich Nietzsche, Sigmund Freud e vários outros importantes nomes do século XIX e XX. Não à toa ele é um dos pensadores mais gloriosos e importantes da História!

DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Correspondências: 1838-1880. Porto Alegre: 8Inverso, 2009.HOBSBAWM, Eric J. A era do Capital: 1848-1875. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2009.

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Como o anarquismo cresce na Grécia

Oferecendo serviços que o Estado abandonou e acolhendo a população empobrecida e refugiados, movimentos articulam-se e querem ocupar espaço político — obviamente, sem fundar partido.


Sete anos após as políticas de austeridade e mais recentemente, a crise de refugiados ter afetado os poucos recursos do governo, há cada vez menos recursos para os cidadãos. Muitos perderam a fé. Alguns dos que nunca tiveram fé desde o início decidiram resolver a situação com as próprias mãos, para a vergonha das autoridades.

Tasos Sagris, de 45 anos anos, membro do grupo anarquista grego chamado Void Network e do grupo de teatro auto-organizado Embros, é um dos que se colocam à frente do ressurgir do ativismo social que preenche o vácuo deixado pela ausência do Estado.

“As pessoas confiam porque não as usamos como consumidores ou eleitores,” diz Sagris. “Toda falha do sistema prova que a ideia do anarquismo é verdadeira.”

Nos últimos dias, a ideia não tem sido apenas o caos e a destruição das instituições do Estado e da sociedade — a crise econômica tem dado conta dessa demanda — mas também de apoio mútuo e ação cidadã.

Mas o movimento continua diverso, com alguns grupos enfatizando a necessidade do ativismo social e outros priorizando a luta contra a autoridade com atos de vandalismo e confrontos com a polícia em manifestações. Alguns buscam combinar ambas perspectivas.

Independente dos meios, desde 2008 espaços como os “centros sociais de auto-organização” têm se desenvolvido em toda a Grécia, financiadas por doações privadas ou o dinheiro arrecadado de eventos programados com certa regularidade, exibições e bares, a maioria aberta ao público. Existem cerca de 250 em todo o país.

Alguns ativistas organizam-se em torno de centros de distribuição de comida e remédios, por conta da intensificação da pobreza e do colapso dos serviços públicos.

Nos últimos meses, grupos anarquistas e de esquerda têm dedicado o seu tempo e energia para abrigar refugiados que sofreram com inundações ocorridas em 2015 e os despejados de suas casas, desde que a União Europeia e as nações balcãs fecharam as suas fronteiras. Cerca de 3 mil refugiados vivem em 15 prédios abandonados, que foram tomados pelos anarquistas na capital.

Os anarquistas tiveram um papel importante nos levantes estudantis que ajudaram a derrubar a ditadura grega no final de 1970 — inclusive na rebelião da Politécnica de Atenas, em novembro de 1973, reprimida pelas autoridades com policiais e tanques de guerra, o que resultou em diversas mortes.

Desde o final dos anos 1970 e o inicio da década de 80, os anarquistas somaram-se aos grupos de esquerda na ocupação dos espaços das universidades gregas para promover o seu pensamento e estilo de vida. Muitos desses espaços existem até hoje.

Ao longo dos anos, os anarquistas também apoiaram múltiplas causas, como a oposição à reforma neoliberal da educação ou a campanha contra os jogos olímpicos de Atenas em 2004.

O movimento continua sendo amplamente apoiado pelo público em geral, o que reflete uma profunda desconfiança nas autoridades. Boa parte dos gregos foi afetada pelas políticas de “austeridade” nos últimos anos, impostas pelos credores internacionais.

Em Atenas, o epicentro anarquista continua sendo o bairro bohêmio de Exarchia, onde o assassinato de um adolescente por um policial em 2008 desencadeou duas semanas de revolta, auxiliando a revigorar o movimento.

A policia desocupou recentemente alguns prédios ilegalmente ocupados (squats) por anarquistas de Atenas, no norte da cidade de Thesssalonika e na ilha de Lesbos, que foram possíveis alternativas para centenas de imigrantes pelos últimos dois anos. Por pouco, não emergiu uma ampla crise, que o Syriza — partido de esquerda do primeiro ministro Alexis Tsipras — teria dificuldade em administrar.

Em uma entrevista, o ministro da Ordem Pública, Nikos Toskas, disse que as remoções policiais seriam “sistemáticas”, e riam até onde “se fizesse necessário”. O prefeito de Atenas, Giorgos Kaminis, condenou os squats, dizendo que eles comprometem “a qualidade de vida dos refugiados”.

“Ninguém sabe quem os controla e em que condições estão vivendo as pessoas que estão sendo postas nos prédios”, disse ele, respondendo a pergunta de um repórter.

Os anarquistas dizem que os squats são espaços humanos alternativos aos acampamentos organizados pelo Estado, que estão lotados por 60 mil imigrantes e refugiados. Grupos dos Direitos Humanos têm condenado amplamente os campos como sujos e perigosos.

Em Exarchia, um dos squats é uma escola estadual do ensino secundário que foi abandonada por questões estruturais. Ela foi ocupada na ultima primavera com ajuda de anarquistas, tornando-se a casa de 250 refugiados, maioria da Síria, que tem uma copa e cozinha no teto. Muitos refugiados estão nas “listas de espera” para entrar em um dos prédios ocupados.

Segundo Lauren Lapidge, uma ativista social britânica de 28 anos, que veio à Grécia em 2015, no auge da crise dos refugiados gregos e está ativamente envolvida com as diversas ocupações de prédios, os squats funcionam na forma de comunidades auto-organizadas, independentes do Estado e de organizações não-governamentais. “Eles são organismos vivos: as crianças vão para a escola, alguns nasceram no squat, nós temos casamentos aqui dentro”, disse Lauren.

Outra iniciativa em Exarchia envolve anarquistas e moradores locais que levaram um container de carga para a praça central do bairro, convertendo-o em quiosque político, onde eles distribuem comida e remédio e vendem literatura anarquista.

Vassilik Spathara, uma pintora e anarquista de 49 anos que vive em Exarchia, disse que a iniciativa era necessária devido às autoridades locais não auxiliarem “nem mesmo para trocar lâmpadas’ na praça, conhecida pela presença de criminosos, que a atividade constante auxiliou a dissipar.

“As autoridades atacam a área porque é o único lugar de Atenas que tem se organizado, com uma identidade anti-establishment”, diz Spathara.

O prefeito Kaminis diz que as autoridades locais têm cooperado com os moradores “para renovar a área”, e insistiu que os moradores de Exarchia têm os mesmos direitos de todos os atenienses.

Dentro da perspectiva política desabante grega, os anarquistas parecem ter se constituído como uma alternativa política ao governo.

“Nós queremos que o povo resista, de todas as formas, desde tomar conta dos refugiados até queimar bancos e o Parlamento”, disse Sagris, membro do Void Network e do grupo de teatro Embros, que arrecada dinheiro para financiar os squats. “Os anarquistas usam todas as táticas, as violentas e não-violentas”.

Ele também notou que os anarquistas tem uma “obrigação moral” de ter certeza que tragédias — como a morte de três pessoas em maio de 2010 quando o banco de Atenas foi incendiado durante um ato anti-austeridade — não aconteça de novo. Apesar de os anarquistas terem sido culpados, ninguém foi condenado em um tribunal que terminou com três executivos de banco condenados por assassinato por negligência, resultante da ausência de precauções de segurança. (Ele foram soltos com fiança, podendo apelar).

Outro grupo anarquista, Rouvikonas, está querendo transcender a violência, apesar de seus membros terem vandalizado prédios públicos e de empresas. Na última semana, membros do grupo, armados com pedaços de pau com bandeiras pretas anarquistas, realizaram uma patrulha no centro de Atenas, dizendo que a polícia não age para interromper o tráfico de drogas e a prostituição envolvendo jovens imigrantes.

Membros do Rouvikonas recentemente entraram com um processo na corte para fundar uma “sociedade cultural” destinada a organizar os eventos de arrecadação. No sábado, o grupo apresentou sua “identidade política” em um squat em Exarchia. (Os anarquistas insistem que eles não estão formando um partido político).

Os anarquistas obviamente não podem forma um partido político”, disse Spiror Dapergolas, de 45 anos, um desenhista gráfico que participa do Rouvikonas. “Mas nós podemos ter os nossos próprios meios de entrar na arena política”, disse ele. “Nós queremos crescer.”

Por Niki Kitsantonis, no New York Times | Tradução: Lucca Ignácio, em seu espaço no Medium

Malak e o Barco



A Unicef apresenta uma animação para chamar atenção às milhões de crianças refugiadas por causa da guerra civil na Síria.

O filme “Malak e o barco” de dois minutos, é narrado por uma menina de sete anos, que cruzou o Mar Mediterrâneo para fugir do conflito. Atingida pela água fria que invadia o barco, ela admite ter ficado apavorada com a possibilidade de ser afogada junto com a mãe. Nesse momento, as ondas tomam a forma de um polvo que ataca a embarcação, materializando o pesadelo diante de seus olhos.

A assinatura "Some stories were never meant for children" (“Algumas histórias nunca foram feitas para crianças”, em português) reforça o conceito de que ninguém deveria passar por essa situação.

Ao final, é revelada a criança que deu vida à animação. No site da Unicef, a organização traz a história completa da menina e sua família. Ela e a mãe se reencontraram com o pai e as irmãs na Grécia, mas seu irmão ficou na Alemanha. Como ela menciona na narração, tem saudades dos amigos.

O filme faz parte da série "Unfairy Tales", criada pela agência americana 180LA e produzida pela House of Colors, que traz animações sobre histórias reais de crianças sírias como Malak. A criação contou com criativos de diferentes países, entre eles, dez brasileiros: Eduardo Marques e Rafael Rizuto (da 180 LA) Adhemas Batista (da House of Colors); o roteirista e diretor André Holzmeister; Eliza Gatti, Ricardo Almeida e Guilherme Neder (da Today), Eduardo Luke e Luiz Abud (Hefty) e Rodrigo Augusto.

A Unicef lançará o segundo vídeo da série, "Ivine and Pillow", em março, além de outro conteúdo para a série para marcar os cinco anos do início do conflito na Síria.

Fonte: http://www.meioemensagem.com.br/home/comunicacao/2016/02/04/unicef-mostra-pesadelo-de-criancas-sirias.html