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Indústria 4.0: Estratégias e Implementação

A indústria 4.0 é uma visão e uma realidade com um roteiro estratégico consideravelmente documentado para sua concretização.

Comparando a transformação digital e o papel da Internet Industrial das Coisas nele, juntamente com as evoluções na mecânica, engenharia e manufatura, são essencialmente do que a Indústria 4.0 trata.

Assim como a transformação digital e a Internet Industrial das Coisas, a adoção do Indústria 4.0 acontece no contexto individual de uma organização.

Em essência, isso significa que na Indústria 4.0 há um corpo de trabalho, modelos de referência, roteiros e componentes bem descritos antes que as implementações reais realmente aconteçam. Isso é completamente original quando se fala na quarta revolução industrial.

Confira agora um infográfico com algumas diretrizes para implementação da realidade da Indústria 4.0 de maneira mais descomplicada possível:


Do ponto de vista dos sistemas e equipamentos, essas etapas correspondem, respectivamente, à uma visão do que está acontecendo (dados), saber por que está acontecendo (análise, conhecimento), prever o que acontecerá (com base nos padrões e capacidades desenvolvidas e da Inteligência Artificial). O passo final seria o esforço da Indústria 4.0 rumo à uma reação autônoma das máquinas.

O que queremos alcançar e o que deve ser avaliado hoje é onde queremos ir e quais os links que faltam para chegar lá. Depois disso, pensar na implementação de um plano estratégico com um roteiro claro em relação aos processos, segurança e tecnologias necessárias.

Por fim
Espero que tenha curtido nosso infográfico e também tenha aprendido muito com ele! Se você acha que seus amigos irão gostar de conferir esse conteúdo tanto quanto você, por favor, compartilha com eles ou nas suas mídias sociais!

Caso tenha ficado alguma dúvida ou queira discutir mais sobre o assunto, pode entrar em contato comigo pelo debora.silva@logiquesistemas.com.br. Ficarei super feliz em ter a oportunidade de te ajudar!

Fonte: http://www.logiquesistemas.com.br/blog/industria-4-estrategias-e-implementacao/

Plano de negócios


Perfil do empreendedor brasileiro


Acredite no seu sonho

A evolução da palavra empreendedorismo


Uberização do trabalho: subsunção real da viração


Entre salões e apps
Em outubro de 2016, o governo de Michel Temer sancionou uma lei que passou desapercebida nos embates sobre as terceirizações. A lei “Salão parceiro – profissional parceiro” desobriga proprietários de salões de beleza a reconhecerem o vínculo empregatício de manicures, depiladora(e)s, cabelereira(o)s, barbeiros, maquiadora(e)s e esteticistas. O estabelecimento torna-se responsável por prover a infraestrutura necessária – os demais trabalhadores seguem sendo reconhecidos como funcionários – para que suas “parceiras” e “parceiros”, agora legalmente autônomos, realizem seu trabalho. Assim, aquela manicure que trabalha oito horas por dia ou mais, seis vezes por semana, para o mesmo salão, poderá ser uma prestadora de serviços. 

Talvez por referir-se ao trabalho tipicamente feminino, aparentemente irrelevante e socialmente invisível, a lei foi recebida mais como perfumaria do que como a abertura legal da porteira para a uberização do trabalho no Brasil1. A uberização, tal como será tratada aqui, refere-se a um novo estágio da exploração do trabalho, que traz mudanças qualitativas ao estatuto do trabalhador, à configuração das empresas, assim como às formas de controle, gerenciamento e expropriação do trabalho. Trata-se de um novo passo nas terceirizações, que, entretanto, ao mesmo tempo que se complementa também pode concorrer com o modelo anterior das redes de subcontratações compostas pelos mais diversos tipos de empresas. A uberização consolida a passagem do estatuto de trabalhador para o de um nanoempresário-de-si permanentemente disponível ao trabalho; retira-lhe garantias mínimas ao mesmo tempo que mantém sua subordinação; ainda, se apropria, de modo administrado e produtivo, de uma perda de formas publicamente estabelecidas e reguladas do trabalho. Entretanto, essa apropriação e subordinação podem operar sob novas lógicas. Podemos entender a uberização como um futuro possível para empresas em geral, que se tornam responsáveis por prover a infraestrutura para que seus “parceiros” executem seu trabalho; não é difícil imaginar que hospitais, universidades, empresas dos mais diversos ramos adotem esse modelo, utilizando-se do trabalho de seus “colaboradores just-in-time” de acordo com sua necessidade2. Este parece ser um futuro provável e generalizável para o mundo do trabalho. Mas, se olharmos para o presente da economia digital, com seus motoristas Uber, motofretistas Loggi, trabalhadores executores de tarefas da Amazon Mechanical Turk, já podemos ver o modelo funcionando em ato, assim como compreender que não se trata apenas de eliminação de vínculo empregatício: a empresa Uber deu visibilidade a um novo passo na subsunção real do trabalho, que atravessa o mercado de trabalho em uma dimensão global, envolvendo atualmente milhões de trabalhadores pelo mundo e que tem possibilidades de generalizar-se pelas relações de trabalho em diversos setores.

A uberização, portanto, não surge com o universo da economia digital: suas bases estão em formação há décadas no mundo do trabalho, mas hoje se materializam nesse campo. As atuais empresas promotoras da uberização – aqui serão tratadas como empresas-aplicativo – desenvolvem mecanismos de transferência de riscos e custos não mais para outras empresas a elas subordinadas, mas para uma multidão de trabalhadores autônomos engajados e disponíveis para o trabalho. Na prática, tal transferência é gerenciada por softwares e plataformas online de propriedade dessas empresas, os quais conectam usuários trabalhadores a usuários consumidores e ditam e administram as regras (incluídos aí custos e ganhos) dessa conexão.

O fato é que as empresas-aplicativo têm pouca materialidade, mas altíssima visibilidade. A empresa Uber tem tamanha atuação pelo mundo que torna hoje cabível utilizarmos o termo em questão. A fonte da fetichizada “força da marca” neste caso se refere à multidão de trabalhadores e consumidores que a empresa consegue mobilizar pelo mundo (apenas na cidade de São Paulo, sabe-se que os motoristas já são mais numerosos que os taxistas. Ultrapassam os 50 mil; entretanto, a empresa não divulga seus dados). A atuação do Uber tocou em questões centrais do desenvolvimento capitalista, como a mobilidade urbana e as legislações em torno da economia digital. Tornou-se tema de campanhas e debates eleitorais, no terreno arenoso da permeabilidade entre empresas e Estado, que envolve interesses dos consumidores-eleitores, conflitos dos trabalhadores e embates de titãs sobre o tal “livre” mercado. Porém, mais do que isso, o Uber tornou evidente tendências mundiais do mercado de trabalho, que envolvem não só a transformação do trabalhador em microempreendedor, mas também do trabalhador em trabalhador amador3 produtivo, questão que desenvolvo ao longo da análise.

As empresas-aplicativo firmam-se no mercado como mediadoras entre consumidores e trabalhadores-microempreendedores, provendo a infraestrutura necessária – ainda que virtual – para que esse encontro aconteça. Para tanto, assim como a proprietária que receberá a comissão pelo trabalho da manicure, o Uber recebe uma porcentagem (de 25%) por atuar como mediador entre a multidão de consumidores-poupadores e a multidão de motoristas amadores. Obviamente, sua atuação é muito mais complexa que isso. Assim como a “parceira” manicure não está em relação de igualdade com o proprietário ou a proprietária do salão para definir seus ganhos, a intensidade de seu trabalho, a extensão de sua jornada, o trabalhador uberizado também tem seu trabalho subsumido. Entretanto, as formas de controle, gerenciamento, vigilância e expropriação de seu trabalho são ao mesmo tempo evidentes e pouco tangíveis: afinal, o estatuto do motorista é de um trabalhador autônomo, a empresa não é sua contratante, ele não é um empregado, mas um cadastrado que trabalha de acordo com suas próprias determinações; ao mesmo tempo, o que gerencia seu trabalho é um software instalado num smartphone: mesmo definindo as regras do jogo, a empresa aparece mais como uma marca do que de fato como uma empresa. Mas o discurso sobre a “parceria” entre empresas-aplicativo e trabalhadores, assim como a imaterialidade destas, rapidamente se esfumaçam quando trabalhadores uberizados se apropriam de seu poder enquanto multidão e estabelecem formas coletivas de resistência e de negociação. Nesse momento as formas de controle, expropriação e opressão ficam explícitas.

Já estão em ato novas formas de organização política, que envolvem a criação de sindicatos de aplicativos, greves e manifestações de trabalhadores uberizados. Em 2016 ocorreu uma série de manifestações, greves, processos judiciais, formação de sindicatos de trabalhadores de aplicativos pelo mundo. Motoristas Uber americanos (atualmente mais de 400 mil) juntaram-se a enfermeiras, trabalhadores do setor hoteleiro, entre outros, na campanha “Fight for US$15”, que demandava o pagamento mínimo de quinze dólares por hora de trabalho. Na Califórnia, a empresa Uber optou por pagar US$100 milhões em acordo com dezenas de milhares de trabalhadores (não há dados claros sobre esse número) que acionaram coletivamente a justiça, requerendo reconhecimento legal do vínculo empregatício com a empresa. O acordo evitou que o processo fosse a julgamento (ver aqui e aqui). No final do ano, a justiça inglesa determinou que a Uber reconhecesse o vínculo empregatício com seus motoristas; o processo ainda está em andamento.

Os motoboys que trabalham para o aplicativo Loggi também organizaram, sob coordenação do SindimotoSP, manifestação que interrompeu faixas da Marginal Pinheiros e da Av. Rebouças, contra a nova forma de remuneração por entrega implementada pela empresa, que em realidade aumenta sua porcentagem de ganhos sobre o trabalho dos motofretistas. Os ciclistas-entregadores da empresa Foodora organizaram as primeiras greves de trabalhadores por aplicativos na Itália, as quais evidenciaram novas formas de punição (como o desligamento do aplicativo de lideranças), assim como de apoio (as manifestações começaram a contar com a adesão de usuários consumidores). Motociclistas do aplicativo Deliveroo, após sete dias de greve, conseguiram impedir mudanças que rebaixariam o valor de sua hora de trabalho. Também foram criados em 2016 o Sindicato dos Motoristas de Aplicativo de São Paulo, a Associação dos Motoristas Autônomos por Aplicativos e Sindicato dos Motoristas de Transporte Privado Individual de Passageiros do Estado do Pernambuco. No início de 2017, a Uber acionou a justiça da Califórnia, tentando impedir a formação de sindicatos.

O trabalhador-perfil e o consumidor-vigilante
Basicamente, a empresa Uber promove a conexão entre uma multidão de motoristas amadores pagos e uma multidão de usuários em busca de tarifas reduzidas em relação aos táxis; em algumas cidades se estabelece como uma opção economicamente acessível, menos degradante e mais veloz que o transporte público. Entrando de forma totalmente predatória e com poucas regulamentações, rapidamente a empresa reconfigura o mercado privado da mobilidade urbana. Tem uma estratégia agressiva de entrada nos mercados locais; em muitas cidades o Uber é ilegal, mas segue operando normalmente. Para tanto, conta com uma multidão de usuários e recruta – na passiva (melhor seria, conta com a adesão permanente de) – uma multidão de motoristas amadores, que encontram nessa atividade uma forma de geração de renda.

O Uber, assim como outras empresas que operam com a mesma lógica, estabelece regras, critérios de avaliação, métodos de vigilância sobre o trabalhador e seu trabalho, ao mesmo tempo que se exime de responsabilidades e de exigências que poderiam configurar um vínculo empregatício. Consumo, avaliação, coleta de dados e vigilância são elementos inseparáveis. Em realidade, o controle sobre o trabalho é transferido para a multidão de consumidores, que avaliam os profissionais a cada serviço demandado. Essa avaliação fica visível para cada usuário que for acessar o serviço com aquele trabalhador. A certificação sobre o trabalho vem agora da esfera do consumo, por meio dessa espécie de gerente coletivo que fiscaliza permanentemente o trabalhador. A multidão vigilante, na forma multidão, é então quem garante de forma dispersa a certificação sobre o trabalho. A confiança, elemento chave para que o consumidor entregue seus bens e documentos nas mãos do motoboy, para que adentre o carro de um desconhecido que será seu motorista (e que, diferentemente do taxista, não passou por um processo de certificação publicamente regulamentada), é então garantida pela atividade dessa multidão vigilante, que se engaja e também confia no seu papel certificador. Assim o trabalhador uberizado se sabe permanentemente vigiado e avaliado. Essa nova forma de controle tem se mostrado eficaz na manutenção de sua produtividade, na sua adequação aos procedimentos – informalmente estabelecidos – que envolvem sua ocupação. Ao adequar-se o trabalhador trabalha para si e para a empresa, para si e para o cultivo da marca, que em realidade depende inteiramente da atuação dispersa desse exército de motoristas.

A realização do trabalho conta com a disposição do trabalhador em aceitar a tarefa oferecida – o que quer dizer um permanente gerenciamento de sua própria produtividade –, mas essa aceitação requer vencer a concorrência entre os motoristas disponíveis. A avaliação da multidão de consumidores fornece os elementos para o ranqueamento dos trabalhadores. Este opera como um critério na determinação – programada, automatizada – de quais trabalhadores terão mais acesso a quais corridas.

Trabalhadores e consumidores tornam-se perfis virtuais, números de um cadastro. A atividade de ambos é material e tangível, é ela a fonte que alimenta o controle sobre o trabalho, sua organização e distribuição no tempo e no espaço, que, no entanto, são programados e executados pelos softwares e seus algoritmos.

Ser um trabalhador-perfil em um cadastro da multidão significa na prática ser um trabalhador por conta própria, que assume os riscos e custos de seu trabalho, que define sua própria jornada, que decide sobre sua dedicação ao trabalho e, também, que cria estratégias para lidar com uma concorrência de dimensões gigantescas que paira permanentemente sobre sua cabeça4.

A uberização, portanto, consolida a passagem do trabalhador para o microempreendedor. Essa consolidação envolve novas lógicas que contam, por um lado, com a terceirização da execução do controle sobre o trabalho das empresas para um multidão de consumidores vigilantes; e, por outro lado, com o engajamento da multidão de trabalhadores com relação à sua própria produtividade, além da total transferência de custos e riscos da empresa para seus “parceiros”.

Mais um passo na flexibilização do trabalho
De saída, o termo flexibilização só tem sentido crítico se o compreendermos como mudanças contemporâneas do processo de trabalho ligadas à relação entre Estado, capital e trabalho; à relação entre inovações tecnológicas, políticas dos Estados nacionais na promoção dos fluxos financeiros e de investimento, aumento do desemprego e de novas formas de exploração que também envolvem mudanças subjetivas do trabalhador. Refere-se à relação entre a mobilidade do capital e a do trabalho em nível global. A flexibilização também pode ser compreendida mais simplesmente como as formas contemporâneas de eliminação de direitos associados ao trabalho e, ainda mais do que isso, da transferência de riscos, custos e trabalho não pago para os trabalhadores. Essa transferência envolve a extensão do tempo de trabalho, assim como sua intensificação, em formas mais ou menos reconhecíveis.

Nas últimas décadas ficou claro que também era possível transferir o gerenciamento do trabalho para o próprio trabalhador – é óbvio que um gerenciamento subordinado, costurado pelas ameaças da concorrência e do desemprego. O fato é que a passagem do relógio de ponto para o relógio de pulso mostrou-se extremamente eficaz na intensificação do trabalho e na extensão do tempo de trabalho. Hoje a jornada de oito horas parece uma lembrança distante para trabalhadores das mais diversas qualificações e remunerações5.

O cerne da flexibilização em realidade está nesse movimento que transfere para o trabalhador a administração de seu trabalho, dos custos e dos riscos, sem com isso perder o controle sobre sua produção. David Harvey ao tratar da organização na dispersão, João Bernardo6 ao demonstrar que terceirizar a produção não significa perder o controle sobre a mesma são autores que deixam evidente que a dispersão do trabalho não significou perda de controle do capital ou qualquer tipo de democratização no processo de trabalho. Pelo contrário, o que vimos nestas décadas é a enorme centralização do capital acompanhada por novas formas de intensificação do trabalho, extensão do tempo de trabalho e transferência de riscos e custos para os trabalhadores, em formas cada vez mais difíceis de mapear.

A uberização complementa-se com as terceirizações ao mesmo tempo que concorre com elas. Complementa-se na medida em que é mais um passo na transferência de custos e responsabilidades sobre a produção. Mas é também uma forma de eliminação de empresas terceirizadas que não conseguirão bancar a concorrência com as empresas-aplicativo. É o que vemos no segmento dos motoboys, hoje legalmente reconhecidos como motofretistas. Nos anos 1980, o motoboy era diretamente contratado pela empresa, até mesmo a moto era de propriedade da contratante e não do trabalhador. A partir dos anos 1990 empresas terceirizadas de entregas espraiam-se pelo mercado. Hoje são mais de 900 mil motoboys no Brasil, na cidade de São Paulo provavelmente mais de 200 mil. Esse imenso exército de motoqueiros – que dão suas vidas e pernas cotidianamente para garantir a circulação de bens de consumo e de documentos – foi se expandindo juntamente com a terceirização de seu trabalho. A extensão do crédito para os mais pobres permite a aquisição financiada da moto; os celulares tornam-se instrumento de trabalho popular, o que reconfigura toda a logística e o ritmo de trabalho desses profissionais; a baixa qualificação exigida e a remuneração mais alta que outras ocupações de mesmo nível são elementos que contribuem para a consolidação e o espraiamento das empresas terceirizadas e de uma ampla oferta de vagas para motoboys. Ao mesmo tempo, o crescimento do contingente de trabalhadores e das empresas contratantes também está relacionado ao desenvolvimento de São Paulo como metrópole colapsada na questão da mobilidade urbana e simultaneamente centro da valorização financeira e fundiária.

Nesse universo bem consolidado de empresas terceirizadas e seu enorme exército de trabalhadores, adentram os aplicativos de motofrete. Estão há menos de cinco anos no mercado, não há dados precisos, mas já contam com a adesão de dezenas de milhares de motofretistas em São Paulo. Para ser um entregador da Loggi o motoboy torna-se um microempreendor MEI7 e tem de estar regulamentado como motofretista8. Os fundadores da Loggi entraram no mercado criando um nicho que não existia até então. Assim como o Uber, o aplicativo Loggi conecta consumidores e motoristas (neste caso, motofretistas); define o valor da entrega, retendo uma comissão de 20% por essa mediação; automatizou a logística, desenvolvendo um software que geolocaliza os motofretistas disponíveis e os consumidores. O consumidor faz um pedido, a plataforma online torna o pedido visível para os motofretistas mais próximos do ponto de partida, quem aceitar primeiro leva. Motofretistas são mapeados antes e também ao longo da entrega. O consumidor tem acesso aos dados do motofretista – nome, foto, avaliação de outros consumidores – e pode acompanhar online seu deslocamento: a vigilância opera como um mecanismo central para a confiança do consumidor. Para o motoboy, os aplicativos podem ser o meio de livrar-se da exploração da empresa terceirizada (que em geral abocanha 40% do valor da entrega realizada) e tornar-se um trabalhador por conta própria, o que, por enquanto, pode proporcionar-lhe rendimentos maiores. Trabalhar por conta própria requer abrir mão de direitos (caso o motoqueiro seja formalizado) e enfrentar a relação permanente entre concorrência e rendimentos: quanto mais trabalhadores aderirem aos aplicativos, menor será a possibilidade de ganho e provavelmente maior será o tempo de trabalho9.

Ainda, é possível a articulação e uma retroalimentação entre uberização e terceirização clássica. Para muitos, hoje o aplicativo e as terceirizadas se combinam: o motofretista preenche com entregas ofertadas no aplicativo os poros de não-trabalho na sua jornada para as terceirizadas – uma estratégia que requer o saber-fazer de sua própria logística.

O admirável mundo doe-marketplace
Para compreendermos a uberização temos de enfrentar os termos já muito familiares ao mercado, mas pouco apropriados pelas armas da crítica (para onde mirar?). A economia digital hoje é o novo campo da flexibilização do trabalho, enquanto um campo virtual que conecta a atividade de consumidores, trabalhadores e empresas, sob formas menos reconhecíveis e localizáveis.

Atualmente, olhando apenas para o Brasil, motoristas, motofretistas, caminhoneiros, esteticistas, operários da construção civil, trabalhadores do setor de limpeza, babás, assim como advogados, médicos, professores, entre outros, contam com aplicativos que possibilitam a uberização de seu trabalho. O mercado de trabalho em geral agora é permeado por um espaço virtual de compra e venda de trabalho, conhecido como e-marketplace. Trata-se de um universo virtual extremamente propício para a transformação de trabalhadores em microemprendedores, assim como de trabalhadores em trabalhadores amadores. Como me explica o diretor de uma empresa-aplicativo de motofrete em São Paulo, o “e-marketplace é um lugar onde pessoas se encontram para fazer compras. Somos um lugar onde pessoas que procuram motofrete encontram motofretistas.”

O e-marketplace tornou-se um universo extremamente profícuo e lucrativo, fomentado pelas chamadas startups, que são novos modelos de empresa. Loggi, Uber, Google, Facebook são exemplos de startups que deram certo. Startup nomeia a combinação contemporânea entre inovação, empreendedorismo e um amplo mercado de fundos de investimento (os chamados investidores-anjo). São pequenas empresas de alto potencial lucrativo; a inovação aqui se refere ao desenvolvimento tecnológico, mas também à possibilidade de criarem novos modelos de negócios. Segundo a revista Exame, “uma startup é um grupo de pessoas à procura de um modelo de negócios repetível e escalável, trabalhando em condições de extrema incerteza”. As startups dão uma espécie de materialidade ao espírito empreendedor do capitalista contemporâneo e a um novo formato de futuras corporações: a empresa Uber é o exemplo de startup bem sucedida; como narra seu site, foi criada em 2008, quando dois amigos iluminados, andando nas ruas de Paris, se deram conta de que a dificuldade para conseguir um táxi era em realidade um belo nicho de mercado. Lançada no mercado em 2010, a empresa hoje atua em 540 cidades pelo mundo. Em 2016 seu valor de mercado era de mais de 64 bilhões de dólares. Livrar-se dos custos do trabalho mantendo os ganhos e controle sobre a produção: as startups que se firmam como empresas-aplicativo – tal como as compreendo aqui – concretizam o auge do modelo da empresa enxuta, com um número ínfimo de empregados e milhares de empreendedores conectados, de consumidores engajados, de trabalhadores amadores. São fundamentais na consolidação do e-marketplace; mas, se aparecem como mediadoras entre oferta e demanda (tais como a Amazon; o site de sebos Estante Virtual; os aplicativos móveis para táxis, como Easytaxi; sites de vendas de roupa online, como Dafiti), em realidade parte dessas empresas promove uma imensa reorganização do mundo do trabalho, estabelecendo novos nichos para diversas ocupações, novas formas de controle sobre o trabalho, novas experiências do consumo.

Crowdsourcing: a multidão produtiva detrabalhadores amadores
A multidão como um bom negócio. Em 2008, o jornalista Jeff Howe cunhou o termo crowdsourcing10. O outsourcing teria chegado ao seu novo estágio, a crowd constituía-se como a nova fonte das terceirizações. Navegando na celebração da economia compartilhada, o autor em realidade desvendava a enorme transferência de trabalho das empresas para os usuários navegantes do ciberespaço. O debate é longo e complexo. O que somos nós, usuários do Facebook? A cada post, um cent, não para nós, é claro. O que torna a empresa uma das de maior valor de mercado no mundo senão a participação de seus usuários? O que faz do Youtube o Youtube senão a produção e uploads e visualizações permanente de seus usuários? Seria essa atividade trabalho? Mas não é preciso enveredar por esse caminho complexo das atividades criativas de consumidores que se traduzem magicamente em lucro para empresas. Atualmente, a transferência de trabalho na forma trabalho está explícita em diversos sites que contam com a adesão da multidão de usuários-trabalhadores. No início dos anos 2000, a NASA criou o projeto Clickworkers e com ele descobriu que não precisava ter trabalhadores contratados para identificar elementos como crateras nas fotos de Marte: após testar a multidão, comprovou que esta era tão eficiente e muito mais rápida no cumprimento da tarefa, realizada gratuitamente como forma de “colaboração para o futuro”. O site Innocentive hoje congrega cientistas uberizados com corporações como Procter & Gamble, Johnson’s & Johnson’s. Estas perceberam que seus departamentos de pesquisa e desenvolvimento podem se estender aos laboratórios improvisados de profissionais em busca de complemento de renda ou apenas motivados pelos “desafios” lançados no site. As soluções propostas pelos usuários podem ser patenteadas pelas empresas, a contrapartida para o usuário selecionado são as premiações em dinheiro.

O crowdsourcing só é possível se o trabalhador for o trabalhador amador. O que vamos nos deparando é com uma perda – apropriada de forma lucrativa – do lastro do trabalho. A multidão de trabalhadores realiza trabalho sem a forma socialmente estabelecida do trabalho, em atividades que podem transitar entre o lazer, a criatividade, o consumo e também o complemento de renda. Trata-se de uma ausência da forma concreta do trabalho, o que significa a plena flexibilidade e maleabilidade de uma atividade que, entretanto, se realiza como trabalho (estaríamos vendo o que Francisco de Oliveira, há 14 anos, denominou de a plenitude do trabalho abstrato?11). O motorista Uber não é um motorista profissional, como o taxista. O resolutor de enigmas do Innocentive pode até ser um empregado de algum departamento de Pesquisa e Desenvolvimento, mas enquanto usuário, é um cientista amador. Não há local de trabalho definido, não há vínculos, não há dedicação requerida, não há seleção, contrato ou demissão (ainda que, como vimos, a concorrência opera permanentemente, de forma difusa e ilocalizável). Digamos que, na contemporaneidade, todo trabalhador é um potencial trabalhador amador. Assim como o motofretista combina seu trabalho na terceirizada com o do aplicativo, assim como o engenheiro pejotizado passa seus dias entre o computador e a direção do carro Uber, trabalhadores dos mais diversos perfis socioeconômicos engajam-se em atividades que não têm um estatuto profissional definível, mas que podem ser fonte de rendimento, de redução de custos, ou mesmo do exercício de sua criatividade.

Da viração para a Gig economy
Voltando para os salões de beleza, o trabalho tipicamente feminino oferece-nos as raízes da flexibilização do trabalho que atravessa o mercado de cima a baixo. A indistinção entre o que é e o que não é tempo de trabalho, a fusão entre esfera profissional e esfera privada e a impossibilidade de mediações publicamente instituídas na regulação do trabalho, a indefinição quanto ao que é e o que não é trabalho são alguns dos elementos que costuram a vida das mulheres. No mais precário trabalho da costureira em domicílio, da empregada doméstica, da dona de casa podemos encontrar elementos que hoje tecem a exploração do trabalho de forma generalizada12. Olhando para uma ocupação tipicamente feminina, foi possível reconhecer tendências em curso no mercado de trabalho que hoje desembocam na forma visível da uberização. As revendedoras de cosméticos, só para a empresa Natura, hoje são mais de um 1,4 milhão de mulheres no Brasil. Com os mais diversos perfis socioeconômicos, diaristas, secretárias, professoras, donas de casa, entre tantas outras, combinam sua profissão, ou a ausência dela, com as revendas. As revendas têm uma capilaridade impressionante com a vida pessoal e com outras ocupações. Vender ao longo da jornada de trabalho na escola, no escritório, vender nas festas de família, promover oficinas de maquiagem nas férias, distribuir produtos na repartição pública: o que a pesquisa evidenciou foi uma plena adesão a um trabalho sem forma trabalho, e é justamente essa falta de formas que possibilita sua permeabilidade com outras atividades.

A empresa transfere para a multidão de trabalhadoras uma série de riscos e custos, e conta com uma dimensão não contabilizável e não paga do trabalho dessas mulheres. O espaço da casa, o ambiente de trabalho, o investimento em produtos para uso próprio como meio de venda, as relações pessoais funcionam como vetores para venda e também para a promoção da marca. Mas o que mais nos interessa aqui é perceber a atual adesão de 1,4 milhão de mulheres, somente no Brasil, somente para uma empresa, ao trabalho amador. O trabalho sem forma trabalho, sem estatuto de trabalho, que opera como um meio de complemento de renda, como um exercício de uma identidade profissional indefinida, como facilitador para o consumo. Do lado da empresa, o trabalho amador informal está muito bem amarrado, traduz-se em informação, em uma fábrica que tem sua produção pautada pelo ritmo das vendas desse exército gigantesco.

O motorista Uber tem com seu trabalho uma relação muito parecida com a da revendedora Natura: um complemento de renda advindo de uma atividade que não confere um estatuto profissional, um bico, um trabalho amador, que utiliza o próprio carro, a destreza do motorista, suas estratégias pessoais e sua disponibilidade para o trabalho.

Olhando para esses trabalhadores, vemos em ato a viração, tema atual e ao mesmo tempo constitutivo do mercado de trabalho brasileiro desde sua formação. A viração – e remeto-me ao uso que Vera Telles fazia do termo já no início dos anos 200013 – é pouco tratada nos estudos do trabalho brasileiros, inclusive na produção e análise de dados sobre emprego/desemprego; entretanto é constitutiva da vida e da sobrevivência dos trabalhadores de baixa qualificação e rendimento. O “viver por um fio”14 das periferias brasileiras significa um constante agarrar-se às oportunidades, que em termos técnicos se traduz na alta rotatividade do mercado de trabalho brasileiro, no trânsito permanente entre trabalho formal e informal (como demonstra Adalberto Cardoso15), na combinação de bicos, programas sociais, atividades ilícitas e empregos (ver pesquisas do viver na periferia, em especial os coordenados por Gabriel Feltran, Vera Telles e Cibele Rizek16). A trajetória profissional dos motoboys entrevistados deixa isso evidente. Hoje motoboy-celetista e entregador de pizza, amanhã motofretista-MEI, ontem montador em fábrica de sapatos, manobrista, pizzaiolo, feirante, funileiro, funcionário de lava-rápido. Motogirl hoje, antes diarista, copeira, coordenadora de clínica para viciados em drogas. Motofretista, serralheiro, repositor de mercadorias; confeiteiro e também ajudante de pedreiro. Proprietário de loja de bebidas, trabalhador na roça, funcionário do Banco do Brasil e hoje motofretista autônomo. Motoboy hoje, antes faxineiro, porteiro e cobrador de ônibus. Este é o movimento com que grande parte dos brasileiros tecem o mundo do trabalho.

Mas a viração agora já tem nome internacional e globalizado, seguimos na vanguarda do atraso: a gig economy17 nomeia hoje o mercado movido por essa imensidão de trabalhadores que aderem ao trabalho instável, sem identidade definida, que transitam entre ser bicos ou atividades para as quais nem sabemos bem nomear. A plataforma online da empresa Airbnb, por exemplo, hoje conta com a adesão de milhares de usuários que disponibilizam seus domicílios para aluguel instantâneo e passageiro; atuando como microempreendedores amadores, tornam-se uma espécie de administradores de suas próprias casas. A gig economy é feita de serviços remunerados, que mal têm a forma trabalho, que contam com o engajamento do trabalhador-usuário, com seu próprio gerenciamento e definição de suas estratégias pessoais. A gig economy dá nome a uma multidão de trabalhadores just-in-time (como já vislumbrava Francisco de Oliveira no início dos anos 2000 ou Naomi Klein ao mapear o caminho das marcas até os trabalhadores)18, que aderem de forma instável e sempre transitória, como meio de sobrevivência e por outras motivações subjetivas que precisam ser mais bem compreendidas, às mais diversas ocupações e atividades. Entretanto, essas atividades estão subsumidas, sob formas de controle e expropriação ao mesmo tempo evidentes e pouco localizáveis. A chamada descartabilidade social também é produtiva. Ao menos por enquanto.

Por Ludmila Costhek Abílio é Doutora em Ciências Sociais pela UNICAMP. Possui graduação em Ciências Sociais pela FFLCH-USP (2001) e mestrado em Sociologia pela mesma instituição (2005). Atualmente faz seu Pós-doutorado na FEA-USP sobre a constituição da chamada nova classe média brasileira. É autora do premiado Sem maquiagem: o trabalho de um milhão de revendedoras de cosméticos (Boitempo, 2014).

* Artigo publicado originalmente no site PassaPalavra.
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NOTAS
1 Quando da sanção, o presidente do SEBRAE, Guilherme Afif Domingos, adiantou: “o setor de beleza será o modelo para a terceirização em todos os setores”.
2 O Contrato Zero Hora já abrange 3% da força de trabalho no Reino Unido, mais de 900 mil trabalhadores, e cresce exponencialmente a partir de 2012. O contrato regulamenta a condição de trabalhador just-in-time, possibilitando às empresas a utilização da mão de obra de acordo com sua necessidade, a custos e encargos reduzidos.
3 Para discussão sobre o trabalhador amador: Dujarier, M. Le travail du consommateur. Paris, La Découverte, 2009. Abílio, L.C. Sem maquiagem: o trabalho de um milhão de revendedoras de cosméticos. São Paulo : Boitempo, 2014.
4 Fazendo o cálculo custo-benefício, centenas de motoristas Uber concluíram que custos com o desgaste do carro, entre outros, são maiores na realização de pequenas corridas. Uma das saídas encontradas foi buscar as corridas mais longas a partir do aeroporto de Guarulhos. Essa decisão se traduziu na formação de bolsões de estacionamento, nos quais formam-se gigantescas filas de espera pelo próximo trabalho. O motorista pode passar horas (12 horas, como diz a notícia) esperando por um chamado vindo do aeroporto – o qual ele tem de aceitar sem saber seu destino nem o valor a ser ganho. Motoristas passam o dia jogando baralho e dominó, e em torno deles já se formou uma rede de trabalhadores informais fornecedores de marmitas, bebidas, banheiros químicos.
5 Na pesquisa que realizei com motofretistas ficou claro que a maioria dos entrevistados tem uma jornada de 14 horas por dia ou mais sobre a moto, em meio ao trânsito de São Paulo.
6 Harvey, D. A condição pos-moderna: uma pesquisa sobre as origens da mudança cultural. São Paulo : Loyola, 1992. Bernardo, J. Democracia totalitária: teoria e prática da empresa soberana. São Paulo: Cortez, 2004.
7 No Brasil a uberização é ainda potencializada por uma nova figura jurídica, criada no governo Dilma, do Microempreendedor Individual (MEI). A princípio estabeleceu-se como um meio para a formalização de trabalhadores informais de baixa renda, que então se tornam pessoas jurídicas, podendo emitir nota fiscal, sem terem as responsabilidades jurídicas de uma empresa. O MEI não pode faturar mais de 60 mil reais por ano e contribui para a Previdência Social, tendo acesso a benefícios sociais tais como auxilio maternidade, auxílio doença e aposentadoria. A figura do MEI tornou-se ao mesmo tempo instrumento governamental para a redução da taxa do trabalho informal no Brasil e veículo extremamente eficaz da pejotização dos trabalhadores de baixa qualificação e rendimento.
8 Em 2009 o governo Lula reconheceu e regulamentou a profissão de motofretista e mototaxista. As prefeituras encarregam-se das regulamentações locais. Em São Paulo a regulamentação foi o mote de diversas manifestações em que centenas de motofretistas bloquearam vias principais da cidade com seu instrumento de trabalho. A regulamentação envolve uma série de custos para os motoboys. Até hoje, apesar de estar implementada na cidade de São Paulo, não é fiscalizada, permanecendo opcional para o trabalhador. As empresas-aplicativo de motofrete cadastram apenas profissionais regularizados. Para elas a regulamentação é extremamente propícia, na medida em que certifica o trabalhador autônomo, operando como uma forma de burocratização da relação de confiança que é fundamental para que o consumidor contrate o serviço. Assim sendo, os motoboys que trabalham com aplicativos são motofretistas-MEI.
10 Howe, Jeff. Crowdsourcing: How the power of the crowd is driving the future of business. Nova York, Rondon House, 2008.
11 Oliveira, F. Crítica à razão dualista/ O ornitorrinco. São Paulo: Boitempo, 2003.
12 Ver seções “O flex é feminino” e “O sistema de vendas diretas e a exploração do trabalho tipicamente feminino” em Abílio, L.C. Sem maquiagem.., cit.
13 Telles, V. Mutações do trabalho e experiência urbana. Tempo social, n.18, v.1, 2006, p. 173-95.
14 Castel, R. As metamorfoses da questão social: uma crônica do salário. Petrópolis: Vozes, 1998.
15 Cardoso, A. Ensaios de sociologia do mercado de trabalho brasileiro. Rio de Janeiro: FGV, 2013.
16 CABANES, R.; GEORGES, I.; RIZEK, C. & TELLES, V (orgs.). Saídas de emergência: Ganhar/perder a vida na periferia de São Paulo. São Paulo: Boitempo, 2011; FELTRAN, G. O valor dos pobres. Cadernos CRH, Salvador, v.27, n.72, p. 495-512, Dez. 2014; TELLES, V. S.; CABANES, R. (Orgs.). Nas Tramas da Cidade – trajetórias urbanas e seus territórios. São Paulo: Associação Editorial Humanitas, 2006.
17 Gig economy é o termo que hoje nomeia a sobrevivência por meio de bicos, contratos de trabalho temporário, atividades como a do Uber. O termo dá a dimensão da globalização da viração (ver aqui e aqui).
18 Oliveira, F. Passagem na neblina. In: Stédile, J., Genoíno, J. (orgs.) Classes sociais em mudança e luta pelo socialismo. São Paulo: Perseu Abramo, 2000. Klein, N. Sem logo: a tirania das marcas em um planeta vendido. São Paulo: Record, 2002.

Atirando pedras no ônibus do Google


Como crescimento se tornou inimigo da prosperidade

Pedro Demo (2016)

Rushkoff (2016) (R) publicou livro que pretende mostrar ter-se o crescimento tornado inimigo da prosperidade – por isso estamos atirando pedras no ônibus do Google. O que haveria de tão errado neste cenário? O crescimento econômico capitalista sempre foi questionado, em especial na obra de Marx, que foi em parte deixada de lado por muitos pesquisadores, mas continua ecoando como “espectro” (tal qual dizia no Manifesto Comunista de 1848). As argumentações vão variando no tempo – o que Marx dizia ainda vale relativamente, mas estamos em outro contexto muito diferente, tendo-se entrementes também invalidade alguma previsões, enquanto outras se tornaram ainda mais evidentes. Hoje, imersos em tecnologias de alto a baixo que prometem revolucionar a produtividade/competitividade, inclusive eliminando o fator do trabalho humano – peça chave da crítica marxista – assistimos a cenários tétricos, marcados por concentração sem precedentes de renda (uma ínfima minoria, e que se torna cada dia mais ínfima, tem quase tudo e o “resto” quase nada) (Noys, 2014), insustentabilidade gritante, em especial nos exemplos americano e chinês, inviabilidade de estender o bem-estar eurocêntrico para o planeta etc. A velha estória das crises recrudesceram, de certa forma comprometendo um percurso razoável ocorrido no pós-guerra com a proliferação da classe média (o igualitarismo máximo que o capitalismo faculta), mas, na outra ponta, o pensamento único galopa impávido, como se mercado liberal fosse a ordem das coisas...

I. GOOGLE VISADO
Lembra Rushkoff que numa manhã de dezembro de 2013, moradores do Mission District de San Francisco se deitaram ao chão à frente de um veículo para impedir sua passagem. Embora atos de protesto não sejam inusitados na Califórnia, este tinha objetivo improvável: os ônibus do Google usado para transportar empregado de suas casas na cidade para o campus da empresa em Mountain View, a quase 50 km. Enquanto fotos e tomadas ao vivo chegavam na mídia social usada pelo A, não sabia bem como reagir. Afinal, Google era, sob muitos ângulos, a estória mais recente de sucesso da internet – um experimento elaborado em quarto de residência estudantil que virou um dos maiores gigantes de tecnologia e cria milhares de empregos – enquanto alega não fazer qualquer mal a ninguém. Seu crescimento exponencial também reavivou muitos setores econômicos e alguns bairros. Parecia que, até ao momento, todos estavam felizes como o andar das coisas. Todos usam busca gratuita e email. Blogueiros são pagos por colocarem advertisings em seus sites, crianças recebem alguma remuneração pelos vídeos no YouTube e Mission District ficou um pouco mais gentil e seguro, à medida que gente da última moda e profissionais tecnológicos chegaram, novas lojas de café e livraria abriram, apartamentos foram construídos e valores imobiliários subiram.

Assim parece – crescimento é bom. Pelo menos para quem o maneja. Mas in influxo de “googlers” nos bairros mais históricos de San Francisco elevou alugueis, forçando residentes de longa data e pequenos negócios a se deslocarem, não aproveitando nada deste crescimento. Os ônibus com ar condicionado do Google eram a prova da invasão – como transporte espacial levando alienígenas. Acrescentando insulto à injúria, Google estava agora usando paradas de ônibus público para embarcar em seu sistema. Aluguéis por perto subiram 20%, cujos preços continuavam subindo, acomodando não só novos empregados do Google, mas também de Facebook, Twitter e outras preciosidades do Vale do Silício (Gumbel, 2014). No mesmo dia, para ironia maior ainda, as ações do Google estavam nas altura de novo em Wall Street, o que levou uma dezenas de manifestantes dispersos e vestindo amarelo a paralisarem um dos ônibus do gigante tecnológico.

Apresentavam um banner plastificado amigável para Instagram que dizia “Gentifrication & Eviction Technologies” (Tecnologias da Elitização e Despejo) em fonte perfeita e multicolorida do Google. Apontando para o ceticismo crescente em torno dos benefícios desigualmente distribuídos do boom tecnológico, a imagem se espalhou como fogo selvagem. Rushkoff diz que se sentiu, pelo menos em parte, solidário com esta crítica. Semanas depois, não havia nada mais de divertido nisso. Manifestantes em Oakland estavam agora atirando pedras nos ônibus do Google, quebrando uma janela e aterrorizando os empregados. Claro, Rushkoff diz-se preocupado com as práticas da empresa e frustrado pelo crescimento rápido do Vale do Silício que parecia deslocar, não enriquecer o povo de San Francisco e redondezas. Mas tinha amigos nos ônibus, tentando ganhar a vida a seu modo com suas habilidade de codificação. Poderiam estar ganhando $100 mil anuais, mas sentiam estressados, perpetuamente monitoradas e dolorosamente alertas de sua vulnerabilidade. “Sprints” (arrancos) – explosões cronometradas de codificação para atingir metas fatais – estavam mais frequentes, à medida que objetivos novos, mais ambiciosos de crescimento substituíam a última rodada.

Aqui podemos todos estar do mesmo lado. Os trabalhadores do Google são bem menos que beneficiários de empresa em expansão do que recursos rapidamente consumidos. O trabalhador médio deixa a firma em um ano (Giang, 2013) – alguns para galgar posições melhores em outras empresas, mas a maioria simplesmente para fugir da pressão insuportável produtiva. Tomar ônibus lhes oferece mais tempo para trabalhar ou para relaxar ao invés de dirigir. Afinal são “seres humanos” (R:2). Por sua parte, Google está aliviando as rodovias e o ambiente das circunvizinhanças; ao contrário de muitas outras empresas na Bay Area, que fazem de conta nesta parte, ou no máximo organizam caronas sistemáticas, Google oferece programa de transporte coletivo que pouca mais de 29 mil toneladas métricas de CO2 por ano – estaria fazendo a coisa certa tornando a coisa errada? Há preocupações gritantes sobre como Google está impactando o mundo, mas nem seus ônibus, nem seus trabalhadores dentro deles são o problema central; são apenas o alvo mais fácil. Esses trabalhadores não esquecem da pobreza aí fora, quando viajam para o trabalho – o que acaba aguçando o temor também de um dia estarem desempregados. Também gostariam de virar milionários, mas não para viver só de luxo.

Num país sem rede maior segurança social, trabalhadores sempre são bombardeados com a balela de que devem tornar-se milionários ou vão ficar na rua da amargura na aposentadoria ou se adoecerem gravemente. O atuário da previdência calcula que quem ganha $50 mil anuais precisará de pelo menos $1.5 milhão para aposentar-se com 65 anos, sendo que uma conta inesperada médica pode nos tornar no 1.7 milhão de aposentados em bancarrota. Nem mesmo investidores, oficiais do Google ou o 1% infame deveriam – para Rushkoff – ser culpados pelas desigualdades crescentes da economia digital. Executivos e capitalistas de risco do Vale do Silício estão apenas praticando capitalismo como aprender na escola/universidade, em grande dando conta de sua obrigação legal aos acionistas das empresas. Certo, estão ficando mais ricos do que resto, e há dano colateral associado com crescimento desgarrado de suas empresas e ações. Mas, segundo Rushkoff, está presos a este destino como todos; muitos diretos executivos entendem que atingir crescimento de curto prazo não é o interesse melhor de longo prazo das empresas ou clientes, mas estão enrolados numa corrida na qual vencedores abocanham tudo (winner-takes-all) por domínio contra todos os outros mamutes digitais. É crescer ou morrer (R:3).

Embora nos Estados Unidos, mercado liberal seja visto como a ordem das coisas, a alavanca evolucionária em si, inclemente e objetiva, do que surgiu o “pensamento único” (é ideologia ser contra!), está cada dia mais claro que é uma praga para o planeta e seus habitantes, porque é uma engrenagem que, longe ser objetiva, natural, evolucionária, está completamente a serviço de interesses privados. O que mais incomoda no Google não é sua pujança tecnológica, riqueza gerada, inovações constantes, mas que tudo esteja nas mãos de dois proprietários. A maior mentira do mercado liberal é que, seguindo consequentemente o autointeresse, o mercado serve ao bem comum, orientado pela mão invisível. Embora a argumentação marxista esteja um pouco fora de moda, Marx captou ostensivamente esta contradição: não é viável compor o autointeresse com o bem comum via mercado liberal. No entanto, o mercado liberal tem “suas virtudes”, a começar pela capacidade de crescer, mesmo porcamente. Nenhum outro tipo de mercado tem se mostrado tão efetivo, muito menos os socialistas. Ocorre que o preço pago é demasiado, porque destrói tudo, planeta e seus habitantes, em nome de alguns poucos  - cada vez menos – locupletados. Na penumbra dessa miséria está a noção fortemente veiculada, em especial no Fórum Econômico de Davos, que os ricaços são tão ricos por “mérito”, porque são espécimes superiores evolucionários, muito acima dos mortais – seria pois um castigo tresloucado puni-los com tributações, impostos, restrições. De certa forma, a evolução assim procede: coloca o planeta a seus pés. Ponto.

II. CRESCER A QUALQUER PREÇO
A pressão de crescer a qualquer preço pode ser vista mais claramente num país como a China que, mesmo dizendo-se comunista, promove a economia mais “liberal” do mundo, também a mais suja e desigual, porque considera que só pode conquistar um lugar ao sol, para depois dominar o cenário, via crescimento a qualquer preço. Sabe que, para ter recursos para o lado social, precisa de uma economia pujante, crescendo freneticamente, mesmo que isto tenha um preço fatal para a sociedade. O exemplo da China vale para todos os países, a ponto de hoje não se poder tocar na prática nenhuma economia de esquerda – está fadada ao fracasso, como foram os exemplos já clássicos da União Soviética e Cuba. Por isso China saiu desta expectativa – seu mercado é encardidamente liberal e assim será, para crescer tudo que pode (e não pode!).

Voltando ao Google, toda firma de tecnologia precisa tornar-se intrusiva, extrativa, divisionista, consumidora de tempo, gastadora, cara, matadora de postos de trabalho, espoliativa e manipulativa como todas (R:3). Quanto aos acionistas impacientes, são como todos: a começar pelo fato de que são mantidos pelos clientes... Mas, para Rushkoff, não há limiar claro para quem pode atirar pedras. É porque o conflito não propriamente entre residentes de San Francisco e empregados do Google ou os 99% e 1%. Nem mesmo os estressados empregados contra as firmas onde trabalham, ou os desempregados contra Wall Street, tanto quanto não cada um – a própria humanidade – contra um programa que promove crescimento acima de tudo. “Estamos aprisionados na arapuca do crescimento” (Ib.). Este é o problema para questões que não parecem ter face ou nome, parecendo inevitáveis e normais. É a lógica empurrando a recuperação sem emprego, a economia que rebaixa remunerações, a postura inescrupulosa do Uber e as invasões privadas do Facebook. É o mecanismo que solapa negócio e investidores, forçando a competir contra jogadores com chips digitalmente inflados de pôquer. É a pressão de tornar diretores executivos sem condições de priorizar a sustentabilidade de seus empreendimentos sobre os interesses de acionistas açodados. É o bode expiatório não identificado por trás das notícias das crises da economia desde o paradigma grego até as dívidas estudantis que se exponencializam. É a força que exacerba disparidade de riqueza, aumentando o hiato de paga entre empregados e executivos, e gerando as dinâmicas de power-law (efeito estatístico de curvas de concentração) separando vencedores e perdedores. É a caixa-preta extraindo valor do mercado de ações antes que comerciantes humanos saibam o que aconteceu e o momento irreflexivo expandindo a bolha tecnológica a proporções perigosamente explosivas.

“Para usar a metáfora de nossa era, estamos tocando um sistema econômico operativo extrativo e turbinado pelo crescimento que chegou a seus limites da habilidade de servir a todos, ricos ou pobres, humanos ou corporativos” (R:3). Mais, estamos tocando isso em supercomputadores e redes digitais que aceleram e amplificam todos os efeitos. Crescimento é o credo intocável, o comando fatal da economia digital. Economistas clássicos e expertos em negócio não ajudam muito; é porque tendem a aceitar que economia com base em crescimento como condição pré-existente da natureza. Mas não é! “As regras de nossa economia foram inventadas por seres humanos particulares, em momentos particulares da história, com objetivos e agendas particulares” (R:5). A normalização desta desgraça está no fundo desta “fatalidade”, que aparece na proposta econômica comum de que economia segue seu rumo implacável, tal qual a evolução. É também o que se conta para os países, em especial aos em desenvolvimento: se quiserem avanças, só via mercado liberal consequente. Assim nos tornamos marionetes do sistema.

É fundamental escavar as assunções do mercado digitalizado e nos perguntar o que é mesmo relevante para a vida no planeta. Ironicamente, apenas pensando como programadores podemos adaptar a economia para servir a seres humanos, ao invés da balela do crescimento a qualquer custo. Usando uma expressão freireana, é preciso “ler a realidade”, para, escavando por baixo, sacar seus pressupostos maquiavélicos aí embutidos perversamente. Caso contrário, vamos repetindo velhos equívocos, como papagaios adestrados. Agora está cada vez mais claro que, graças à velocidade e escala nas quais os negócios digitais operam, nossos erros ameaçam descarrilar não apenas a capacidade inovadora de nossas indústrias, mas também a sustentabilidade da sociedade inteira. Jogar pedra nos ônibus do Google são como o tremor antes do terremoto. Ou temos juízo e seguimos outra rota, ou adentramos para o precipício. Estamos no lucro de uma catástrofe anunciada. A humanidade precisa decidir. Precisamos pegar a oportunidade de reprogramar a economia – e empresas – a partir de dentro. Daí podem prover modos novos e mais distribuídos de criação de valor e permuta – tipos de geração de riqueza em sites de comércio, em redes de empréstimo entre pares, e plataformas de usuários ou mesmo em jogos e aplicativos programadas por colegiais em laptops e trazidos ao mercado. É a economia que nos 1980 era acenada por muitos de nós, mas no início dos 1990, esta economia centrada no humano foi substituída pela visão do negócio digital – pelos fundadores libertários e primeiros escritores da revista Wired e futuristas patrocinados por empresas de Cambridge (Massachusetts), muitos dos quais eram os mesmos. Viam a tecnologia digital de modo a reavivar os mercados securitários sob risco, bem como a restaurar a fé na noção da economia se expandindo infinitamente. Após o crash biotecnológico de 1987, muitos temeram que o meio século de crescimento sem paralelos do pós-guerra poderia se extinguir; mas agora a tecnologia digital iria fazer NASDAQ retornar à sua glória anterior. Logo quando parecia termos atingido os limites do mundo físico, descobria-se mundo virtual aparentemente inesgotável. Conforme os novos sabichões, esta nova economia digital prometia “longo boom” (Schwartz & Leyden, 1997) de crescimento econômico: uma economia digitalmente amplificada, especulativa que podia literalmente expandir-se para sempre (R:6). Otimizamos nossas plataformas não para as pessoas ou mesmo valor, mas para crescimento. Ao invés de obter mais tempo livre, virou menos; ao invés de mais variedades de expressão humana e interação, guinamos para previsibilidade amigável ao mercado e automação. Tecnologias foram glorificadas mais por sua habilidade de extrair valor das pessoas em termos de “horas oculares” e dados que podiam ser derivadas daí. Como resultado, acabamos em paisagem digital de conexão obsessiva, com atualizações frenéticas e interrupção perpétua de emergência – que Rushkoff chama de “choque presente” – previamente conhecido apenas para operadores de 911 e controladores de tráfego.

III. ECONOMIA PRIVADA COMO RAZÃO COMUM!
Desenvolvemos as novas tecnologias não para a melhoria da humanidade ou mesmo dos negócios, mas para maximizar crescimento do mercado especulativo. Não são objetivos parecidos ou complementares. No lado brilhante da coisa, bilionários emergem, não o suficiente para compensar os milhões desempregados ou desconectados da prosperidade pelos mesmos mecanismos, mas, para Rushkoff, são inspiradores, surgindo a cada nova onda, com manchete em Wall Street Journal. Cada vez alguma novidade no perfil: bilionários de “papéis”, cuja riqueza é medida em ações, não lucros. Na verdade, a maioria das empresas da internet não têm lucros – certamente não aqueles da capitalização de mercado; tornam-se estórias de sucesso apenas quando seus fundadores e investidores saem de cena – vendem sua parte por dinheiro real. É o jogo que hoje chamamos de economia digital. É aceita sem contestação, pois turbina as chamas do crescimento – mesmo artificialmente. Empresas com novas tecnologias são livres para romper qualquer indústria que escolherem – jornalismo, TV, música, manufatura – desde que não rompam o sistema financeiro operativo subjacente. Por incrível que pareça, a maioria dos fundadores das firmas digitais sequer sacam que este sistema existe. Estão felizes por desafiar uma “vertical” ou outra, mas a última coisa que fazem quando se tornam vencedores é desafiar as regras de banco de investimento, seu valor astronômico ou o lançamento inicial de ações que embolsam. Ganhar o crescimento digital é menos novo topo de prosperidade do que modo novo de executar negócio com usual: velho vinho em garrafa nova. Não é que fazer dinheiro seja tão errado; é que as premissas do capital de risco e o mercado de ações – bem como seus efeitos reais – não são nunca questionados. Os ganhadores têm sido, de modo bem substancial, enganados.

Assim viu Rushkoff o cofundador do Twitter, Evan Williams, na página frontal de Wall Street Journal em foto no dia do lançamento das ações – de um lado, feliz, de outro, entristecido um pouco. Sob seu queixo, constava o valor de $4.3 bilhões – o dinheiro que fizera no dia – a pessoa mais rica que Rushkoff conhecia pessoalmente (Demos et alii, 2013). Era o adolescente que começara Blogger, lutou para manter no ar e depois fez seu primeiro milhão vendendo para o Google; estava agora aqui – como o rapaz premiado por ter feito uma abóbora inconcebivelmente gigante – um dos homens mais ricos do mundo. A que custo? Evan rompeu jornalismo com o blog e a indústria da notícia com o tuite, mas agora estava entregando toda esta disrupção à indústria maior e pior de todas. Quando se está na primeira página do Wall Street Journal, aplaudido por aquela gente engravatada, não é por ter feito algo extraordinário; é porque ajudou a confirmar a centralidade do capital financeiro como regulador da vida no planeta. Evan e seus parceiros exitosamente tornaram Twitter empresa lançada na bolsa e multibilionária e o processo sacrificou um aplicativo potencialmente capaz de mudar o mundo numa persecução singular de crescimento. Eis aí talvez a ferramenta de mídia social mais poderosa jamais desenvolvida – desde organizar ativistas na Primavera Árabe a movimentos Occupy Wall Street, ou a propiciar plataforma global para jornalistas cidadãos e candidatos presidenciais igualmente. Não teria sido muito caro criar ou manter; não iria exigir montanha de dólares para funcionar. Agora, Twitter precisa produzir, crescer; os $43 milhões lucrados nos últimos três meses são vistos como fracasso redondo por Wall Street.

Em 2015, os investidores no Twitter queixaram-se de que a empresa estava ainda muito distante de atingir seu potencial de crescimento de “100x” e forçaram o diretor executivo a ir-se. Acionistas estão exigindo que Twitter ache melhores vias de monetização dos tuites dos usuários, ou injetando anúncios nos feeds das pessoas, ou minerando dados para inteligência de marketing, ou, por outra, degradando a utilidade do aplicativo ou a integridade da empresa. Twitter tem êxito, mas não tanto esperado financeiramente. Já houve ingresso suficiente para os empregados estarem felizes, os usuários bem servidos e mesmo os investidores originais para serem bem recompensados. Mas nunca há suficiente para os acionistas, que esperam lucros 100x maiores. Busca-se relação desproporcional entre capital e valor – ou dinheiro investido vs entrada real – como marca da economia digital dominante. Ao final, as firmas continuam crescendo, mesmo sem criar valor novo. Isto não é novo – nos últimos 70 anos ou mais, conforme economistas do Deloitte Center for the Edge (Hagel et alii, 2013), lucros corporativos sobre valor líquido estão sempre caindo; empresas acumulam dinheiro e recursos mais rápido que os pode utilizar. Continuam ricas, mas não sabem aplicar – cresceram demais para seu tamanho e desenvoltura. 

IV. ACELERAÇÃO CAPITALISTA
O que é novo nesta discussão é que, aplicando nossas inovações tecnológicas ao crescimento acima de tudo, deslanchamos forma poderosamente desestabilizadora de capitalismo acelerado. Piora a disparidade entre rico e pobre, punindo os que realmente trabalham para ganhar a vida, perdendo controle humano sobre os mercados de capital e deixando investidores de visão curta endurecer inovação de longo prazo. Para muitos, tecnologia digital é apenas convite ao jogo dos mercados de modos novos, criando crescentemente instrumentos abstratos e ultrarrápidos de bater o sistema, ao invés de criar valor. Há achegas melhores para realizar prosperidade na paisagem digital dos negócios. Se pudéssemos nos livrar do vício do crescimento, temos potencial para avançar sistema econômico mais funcional e mesmo compassivo que favorece o fluxo de dinheiro sobre acumulação e remunera as pessoas por criarem valor, ao invés de apenas extrair. Antes, porém, há que mudar a rota radicalmente, flagrando o suicídio organizado no sistema atual.

Como o sistema tem um centro próspero, mesmo com alguns beneficiários ensandecidos e em número cada vez menor, parece temerário virar a mesa. Ficaríamos com o quê? Melhor uma canoa furada do que nenhuma? Será? Funciona também o fascínio da prosperidade, como no caso Chinês, que conseguiu deslanchar um processo incrível de crescimento frenético, acumulando riqueza, ainda que extremamente concentrando, à revelia de qualquer fundamento “comunista”. Todos os países querem chegar lá, mesmo que matematicamente seja inviável, porque não há recursos para isso, ambientalmente falando. Como sempre – a evolução usada no argumento indica isso – o êxito é de quem chega antes, custe o que custar. Como as distâncias são grandes, todos querem correr, provocando acelerações do crescimento de toda sorte. Até mesmo certas esquerdas assim querem, no embalo da argumentação marxista de que o socialismo só viria após o esgotamento do capitalismo. Há, pois, que esgotar o capitalismo, fazê-lo correr na velocidade possível e impossível. Enquanto isso estamos todos nos suicidando.

CONCLUSÃO
São tempos kafkianos. Quanto mais crescemos, mais nos suicidamos, porque a insustentabilidade se potencializa desesperadamente. Não podemos ficar sem crescimento, porque sem riqueza gerada, nada há a distribuir. Este argumento é fraco, naturalmente, porque geral riqueza é uma coisa, distribuir ou redistribuir é outra. O autointeresse leva ao bolso do interessado, não ao bem comum. Assim, o conflito entre autointeresse e interesse comum se exacerba, tornando inacreditável a tese do pensamento único, patrimônio maior de instituições economicistas com Davos. Questionar o mercado liberal é insanidade, desinformação, ou jogo sujo. Um passo à frente e vamos encontrar a tese mais ainda inacreditável de que as grandes fortunas, sendo mérito dos afortunados, não podem ser coibidas, constritas, tributadas, castigadas. O mundo sempre foi uma hierarquia, mas agora ela ficou rarefeita aos bilionários.

Como o projeto é suicida, algo será feito – assim se espera. O mercado liberal como regulador da sociedade é aberração que vai custar caro, porque move uma sociedade totalmente dilacerada entre um poucos que têm quase tudo e os muitos que não têm quase nada. Uma sociedade global impossível.

REFERÊNCIAS
DEMOS, T., DIETRICH, C., KOH, Y. 2013. “Twitter Shares Take Wing with Smooth Trading Debut,” Wall Street Journal, November 6, 2013.
GIANG, V. 2013. “A New Report Ranks America’s Biggest Companies Based on How Quickly Employees Jump Ship,” businessinsider.com, July 25, 2013.
GUMBEL, A. 2014.  “San Francisco’s Guerrilla Protest at Google Buses Swells into Revolt,” Guardian, January 25, 2014.
HAGEL, J. et alii. 2013. Foreword, “The Shift Index 2013: The 2013 Shift Index Series,” Deloitte, 2013.
NOYS, B. 2014. Malign Velocities: Acceleration and capitalism. Zero Books, N.Y.
RUSHKOFF, D. 2016. Throwing rocks at the Google bus: How growth became the enemy of prosperity. Portfolio, N.Y.
SCHWARTZ, P. & LEYDEN, P. 1997. “The Long Boom: A History of the Future, 1980–2020,” Wired, July 1997.

Fonte: https://docs.google.com/document/d/1lkYX00aMV0lE3Uu4oUnql0655Pf1z9IczDD0PyzwTOs/pub

Gigantes do Brasil - 04 Guinle (History Channel)

Gigantes do Brasil - 03 Martinelli (History Channel)

O enigma do capital


É um grande privilégio estar aqui, eu gostaria de ter públicos como este em Nova Iorque, seria ótimo. A ideia geral do livro O enigma do capital foi pegar a teoria da crise, como eu a considerei ao longo dos anos, e tentar explicar o que estava acontecendo em torno de nós, com relação às compreensões teóricas. Uma das compreensões que surgiu, no sentido de trazer a teoria e juntar a teoria e a história, foi o reconhecimento de que o capital nunca resolve suas tendências de crise, ele simplesmente as move de lugar. E ele as move num sentido duplo, ele as move de um tipo de problema para outro. Por exemplo, pode haver problemas no mercado de trabalho, uma crise do poder do trabalho com relação ao capital, que depois é resolvida pela financeirização ou outras medidas, que tiram o poder do trabalho somente para deixá-lo com mais problemas no mercado. Há muitas maneiras diferentes de como a crise pode ser apresentada, e eu acho que o que nós estamos vendo, nos últimos cinco anos, tem sido um deslocamento, cada vez mais rápido, de um setor da economia para outro. Por exemplo, começa no mundo do consumo, com problemas de habitação, depois vai para o setor financeiro, e, depois do setor financeiro, para uma crise de dívida soberana de alguns estados-nação. E depois, uma maneira de como essa crise pode ser transferida, é de volta para o setor bancário, se as dívidas soberanas não puderem ser resolvidas. Mas, no lugar de fazer isso, a gente obtém uma política de austeridade, que empurra a crise para as pessoas, para o povo. Então, vocês veem esse movimento da crise ao longo do tempo. Mas ela também está se movendo no sentido geográfico, e eu gostaria de falar especialmente sobre isso, esta noite. Porque uma conexão que falta, na compreensão desta crise, é a maneira como ela está arraigada à história da urbanização e do desenvolvimento urbano. Isso é algo que me interessa particularmente, dado meu interesse na urbanização, e isso traz algumas questões políticas, a que eu vou chegar, assim que possível.

A crise, então, começou – no sentido de que ela tem um começo, porque ela está se mexendo o tempo todo –, o ponto inicial desta crise foi, essencialmente, a quebra do mercado de habitação, mas não foi uma quebra mundial, ela estava altamente localizada. Enquanto ela estava nos EUA, ela não estava em todas as partes dos EUA, ela estava altamente concentrada no sul da Califórnia, Nevada, Arizona e na Flórida, e o que aconteceu nessas áreas é que você tem um tipo peculiar de habitação, de bolha de habitação, que se desenvolveu e que tinha tudo a ver com a estrutura peculiar de habitação como um ativo, uma mercadoria, e o papel do capital financeiro na criação de habitação. Na verdade, o que os financistas fazem é emprestar dinheiro para os empreendedores construírem casas, mas depois eles emprestam dinheiro para os consumidores comprarem as casas, então, na realidade, as instituições financeiras controlam a oferta e a demanda de casas. Então, a construção de casas se torna totalmente dependente do fluxo de fundos que vai para a construção e do fluxo de fundos que vai para o consumo. E, o tempo todo, as instituições financeiras estão preparadas para bombear dinheiro para os dois lados, porque a construção ocorre cada vez mais rapidamente, e o valor das habitações sobe cada vez mais.

Então, a mecânica da bolha é razoavelmente simples, deste ponto de vista. Mas há também a questão de pra quem você empresta o dinheiro. Geralmente, as instituições financeiras dizem “A gente só empresta dinheiro pra pessoas que tenham bom crédito”. Então, você precisa provar que tem bom crédito. Mas o que aconteceu, em 1995, foi que o presidente Bill Clinton – e isso eu acho muito importante reconhecer: que começou com o presidente Clinton –, ele tomou uma iniciativa chamada Habitação Nacional e, nessa iniciativa, o que eles fizeram foi tentar dizer “Nós queremos que pessoas de baixa renda também tenham acesso à propriedade de casas, e o que isso significa é que nós queremos relaxar as aquisições de crédito”. E muitas instituições disseram “Isso parece ótimo, podemos ganhar muito dinheiro assim”. Então, de repente, de 1995 em diante, um grande fluxo de dinheiro começou a ir para as pessoas, com taxas de crédito cada vez mais baixas.

Tudo isso parou em 1998, porque houve uma grande crise em 1998, com a falência da Enron, da administração de capital em longo prazo. Então, tudo parou em 1998, mas em 2001, com o colapso da bolsa de valores, as pessoas começaram a dizer “O único lugar que nós temos sobrando para colocar seguramente o nosso excesso de capital é a habitação”. Então, foi o começo de um grande fluxo de dinheiro na habitação, e também houve um grande fluxo de dinheiro, que depois foi desviado por várias organizações, instituições financeiras, que foram particularmente ativas em alguns mercados de habitação, que construíram condomínios na Flórida e no sudoeste dos Estados Unidos. Então, se vocês quiserem… isso foi muito poderoso e continuou sendo mantido pela Reserva Federal, que sabia o que estava acontecendo, mas, por razões políticas, não fez nada. Ou então eles eram totalmente burros, porque todo mundo já sabia, em 2003, que o mercado de habitação era instável. O que aconteceu foi que o Greenspan, que era o chefe da Reserva Federal, decidiu que queria que a bolha continuasse. Então, ele manteve os juros muito baixos. Quer dizer, por razões políticas, a bolha continuou, sendo que a habitação era o que mais absorvia o excesso de capital.

Esta história de a habitação ser central na formação da crise e na resolução da crise nunca foi profundamente investigada. Só recentemente algumas das instituições originais da Reserva Federal começaram a observar mais cuidadosamente essa questão, e uma das conclusões a que eles chegaram, há pouco tempo, foi que os americanos saem da crise construindo casas e preenchendo-as com coisas. Esta é uma ideia muito interessante, ela basicamente diz “O capital excessivo: eu não sei onde investi-lo, então, tudo bem, eu vou na criação de habitações”. Você constrói uma casa e precisa comprar os móveis, as cortinas, tudo o que você precisa, e, se você constrói casas de um certo tipo, num estilo de consumo, precisa combinar com isso. Quando você olha os dados, historicamente, os EUA, nos anos 30, tiveram uma situação de depressão muito difícil, em que a construção foi muito baixa, e a propriedade também era muito baixa. Então, nos anos 30, muitas instituições foram estabelecidas, para tentar criar a possibilidade de sair da crise da construção, e da crise geral dos anos 30, construindo casas e enchendo-as de coisas. Isso funcionou por algum tempo, a 2ª Guerra Mundial resolveu o problema dos anos 30, mas, em 1945, você tinha o problema seguinte: onde é que você iria colocar todo o excesso de capital que existia nos EUA? Como todo esse excesso, essa produção que fora colocada no esforço de guerra, seria utilizado? E, além disso, como todos os soldados que tinham ido lutar e voltaram para os EUA iriam arrumar emprego?

Essa foi uma situação muito perigosa nos EUA, e esta situação perigosa encontrou duas formas: a econômica e a política, ou seja, a repressão de qualquer discussão da política de esquerda. Nós tivemos algo chamado macarthismo, que era uma mão de bruxa com qualquer pessoa que tivesse visões de esquerda; eram tirados dos sindicatos, considerados antipatrióticos, antiamericanos, e havia um comitê do congresso americano chamado A casa das atividades antiamericanas; em outras palavras, ser de esquerda era ser antiamericano. Então, se você estivesse ativamente na esquerda, por definição você era antiamericano e não pertencia aos EUA, e eram necessárias medidas para deportá-lo. Isto foi uma repressão política sobre todas as formas de pensamento de esquerda, e se tornou impossível ler Karl Marx nas universidades, quando Karl Marx foi demonizado, e a Guerra Fria também ajudou em tudo isso.

Suburbanização
Mas isto não resolveu o problema econômico, o problema econômico foi resolvido com a construção de casas e preenchendo-as com coisas. Houve um grande debate, em 1947/48, com relação a qual seria o futuro da urbanização nos EUA, e houve uma visão de um futuro urbano – que tinha a ver com a construção de cidades justas e compostas –, que seria desenvolvida em alguns círculos intelectuais, que era totalmente ignorada pelo impulso de construir subúrbios, ou seja, a suburbanização foi uma das grandes maneiras pelas quais os EUA saíram da grande depressão dos anos 30, suburbanizando, nos anos 50 e 60. Isto é, na verdade, um dado muito interessante: antes da 2ª Guerra Mundial, o número de unidades habitacionais construídas nos EUA flutuava entre 300 e 500 mil por ano, no máximo; depois de 1945, ele nunca ficou abaixo de 1 milhão por ano, em muitos anos, ele até chegou a 2 milhões de unidades habitacionais por ano. Esta é uma absorção imensa de excesso de capital, mas não é somente a habitação, há também as estradas, e o fato de que você precisa de um carro, pelo menos um, talvez dois. O que eu gosto de dizer é que, se você mora no subúrbio, você precisa de gramados, e, se você fosse bem esperto, em 1947, você construiria uma fábrica de cortador de gramas, porque todo mundo no subúrbio tem um cortador de gramas, e todo domingo eles ficam fazendo vrum-vrum. Era um estilo de vida, era uma mudança de estilo de vida, que também estava ligada à absorção de excesso de capital pela suburbanização. E, na verdade, se vocês analisarem os dados, verão, nos anos 30, que ele fica flutuando; de repente, ele sobe, quando começa a construção, e somente em 2008 ele começa a descer, e a habitação começa a voltar para os níveis de antes da 2ª Guerra. Eles ainda não estão lá, mas não tem nenhum sinal de ressurreição dos níveis de construção nos EUA, ou seja, os EUA, que tipicamente saem das suas dificuldades construindo casas e enchendo-as com coisas, não podem mais fazer isso, e, se você não pode fazer isso porque tem um excesso de casa e excesso de coisas, então, você tem um problema realmente sério nesse país.

Uma crise global
Quando eu mencionei isso como um problema urbano, geográfico, – porque tinha a ver com a urbanização dos EUA, que foi tão crítica,– eu também quis dizer um problema geográfico numa outra escala. Por exemplo, a quebra da habitação, que estava localizada no sudoeste dos EUA, na Flórida, afetou muitas instituições financeiras. Em outras palavras, ela mudou deste campo da urbanização para os centros financeiros do mundo, particularmente Nova Iorque e Londres. E, no nível em que todo o financiamento de hipotecas foi reestruturado e reorganizado, de forma a juntá-los, e essas obrigações colateralizadas de dívida (CDOs), esses instrumentos, esse tipo de instrumentos malucos, as hipotecas foram passadas para uma outra pessoa. Então, em um certo sentido, você tem a geração do que pode ser chamado de ativo tóxico, que foi repassado para outras pessoas, nessas estruturas de investimento diferentes, e qualquer pessoa que entrasse nisso, quando lhe diziam que era seguro comprar casas, acabou perdendo dinheiro. Foi pra Nova Iorque, depois para Londres, porque aí é que estavam todos os ativos. Então, poderia ir pra qualquer lugar do mundo em que houvesse uma pessoa burra o suficiente para comprar esses investimentos. Isso incluía muitos bancos europeus, muitos governos, no mundo inteiro.

Por exemplo, havia uma prefeitura no norte da Noruega que foi convencida a investir num desses instrumentos, e, de repente, eles descobriram que não valia nada, e como tinham investido todo seu dinheiro, não podiam mais pagar seus policiais, seus empregados, não podiam pagar mais nada. Então, qualquer lugar que tenha sido burro o suficiente para investir nisso, foi pego, mas muitas partes do mundo não foram tão burras. Eu não acho que os bancos no Brasil investiram, eu sei que os bancos no Canadá, por exemplo, não investiram, então, isso não foi um problema no sistema bancário canadense, os bancos chineses certamente não investiram. Então, foram somente algumas partes do mundo, e é muito interessante observar onde ficam esses lugares que foram idiotas o suficiente para investir, e eles foram golpeados.

Depois, veio a segunda onda de problemas: com o colapso do mercado de habitação, também colapsou o consumo nos EUA. Isso aconteceu de duas maneiras diferentes: em primeiro lugar, foi porque a confiança terminou e, depois, na verdade, muitas pessoas estavam usando a habitação quase como um banco privado. E a maneira como isso era feito é a seguinte: por exemplo, você comprava uma casa de 200 mil dólares, hipotecava por 200 mil dólares e, dois anos depois, valia 300 mil dólares. Então, você hipotecava de novo por 300 mil dólares, ou seja, você tinha 100 mil dólares no bolso. Dois terços das hipotecas que foram emitidas durante 2006/07 foram refinanciados, ou seja, pessoas que estavam retirando fundos das suas casas.

Mas por que elas estavam extraindo dinheiro de suas casas? Algumas pessoas diriam que elas eram simplesmente ambiciosas, mas não é só isso, alguns fizeram isso porque precisavam, e porque os salários estavam sendo reprimidos, ou seja, se você não consegue obter dinheiro através do salário, você obtém deste jeito. Mas isso não funcionou mais, o consumo acabou, e então, houve um colapso do mercado de consumo em 2008.

China
À medida que o mercado de consumo entrou em colapso, todos os países que estavam exportando para os EUA se encontraram em uma dificuldade considerável. A China, que se apoia muito pesadamente no mercado de consumo americano, perdeu 13 milhões de empregos em três meses, desde o final de 2008 até o começo de 2009. E depois houve um relatório, no final de 2009, que estimou que a perda líquida de trabalho, em todo o mundo, foi muito maior do que a que tinha ocorrido na China.

Então, de uma forma ou de outra, durante 2009, os chineses criarem 27 milhões de empregos, é uma coisa imensa. Agora, quando você vai e faz a pergunta: onde esses empregos foram criados? Num certo nível, o mercado de consumo reviveu, e alguns empregos voltaram, mas o grande empuxo na China foi dizer “Nós precisamos absorver esses trabalhadores e criar empregos pelo investimento em infraestrutura, investimentos maciços em novas estradas, trens de alta velocidade, novos sistemas hidráulicos, construindo cidades inteiras”. Os chineses construíram duas cidades novas, quase sem residências, e depois eles divulgaram na imprensa às empresas americanas: “Nós temos uma cidade vazia aqui, vocês podem dar subsídio e trazer seu negócio pra cá”.

Este é um caso clássico do que eu chamo de um capitalismo de culto das cargas. Os indonésios veem aviões voando, então eles criam uma faixa aérea na selva, achando que, se eles construírem essa pista, então, os negócios virão. A mesma coisa acontece na China: eles constroem as casas, esperando que os negócios venham, mas esse é um problema imenso. Isso não foi feito só centralmente, mas também nos governos locais e com os bancos locais. “Emprestem para os governos e permitam que eles construam o que eles puderem”.

Então, houve uma grande urbanização. Na verdade, o que a China estava fazendo, num grande sentido, era o que os EUA fizeram em 1945, os investimentos em infraestrutura, em estradas, a indústria de automóveis – altamente lucrativa na China, porque o aumento de proprietários de automóveis foi enorme –, construindo cidades, investimento em infraestrutura e todo esse tipo de coisa. Em outras palavras, os chineses estavam construindo casas e enchendo-as com coisas, como uma maneira de lidar com a crise.

O resultado foi um boom no mercado de propriedade chinês: os preços das propriedades em Xangai dobraram em um ano, eles têm aumentado numa taxa de cerca de 40%, 50% por ano, no país inteiro, nos últimos cinco anos, e qualquer pessoa que oferece matéria-prima para os chineses está indo muito bem, porque metade da produção de aço do mundo foi pra China, eles consumiram metade da produção de cimento nos últimos cinco anos, eles consumiram vastas quantidades de metais… Então, se você fornece essas matérias-primas, você se dá muito bem. O Chile se deu muito bem, por causa da grande demanda de cobre, os preços subiram. A Austrália se deu muito bem. Então, se você for para lugares como a Austrália e disser “Como é que você se sente em relação à crise?”, eles dirão “Que crise?”. Até na Argentina – que passou por sua própria crise em 2001/02 -, quando esta crise chegou, e você dizia para as pessoas “Como é que está indo a crise?”, eles diziam “Ah, sempre tem uma crise na Argentina.”, mas, economicamente, a Argentina está indo muito bem. Aqui também vocês estão indo muito bem. Então, todos os países que estão orientados para o comércio chinês estão indo muito bem, especialmente se há uma empresa que exporta pra estrutura chinesa e há um projeto interno de investimento em infraestrutura.

Então, você tem esse tipo de projeto de habitação neste país, e grandes projetos de construção que estão acontecendo no Chile, na Argentina, e grandes projetos de construção também nos estados do Golfo, lugares como Dubai, assim por diante. Nessas partes do mundo, não há colapso, em parte, por causa da mobilização de um grande projeto de urbanização. Quanto excesso de capital foi absorvido, em Dubai, por aquele impressionante projeto de construção urbana? Então, o que estamos vendo é um uso global da urbanização, grande parte do qual agora está recebendo poder de uma estrutura financeira interconectada, um uso global da urbanização, por meio do qual os economistas estão tentando estabilizar, e isto está sendo trabalhado na China, ou seja, a China está crescendo, e outras partes do mundo também estão crescendo, mas ela não pode funcionar nos EUA, porque os EUA já construíram as suas estradas, as suas casas e já encheram essas casas com coisas. Então, nós temos um excesso de casas por toda parte, o despejo de casas, cerca de 6 milhões de casas foram desapropriadas, existe um problema muito grande com habitação nos EUA. Ao mesmo tempo, nos EUA, há uma tentativa política, especialmente pelo Partido Republicano, por razões políticas, de impedir investimentos infraestruturais que o Obama quis fazer dizendo que nós não podemos sustentar, porque a dívida dos EUA é muito grande. Eu já vou voltar a isso daqui a pouco.

*

Mas o que estou fazendo aqui são duas coisas: eu quero falar sobre a geografia do projeto de urbanização e, em segundo lugar, quero falar sobre sua história, e como há uma conexão muito grande entre o processo de urbanização e as crises macroeconômicas, a formação da crise, ou seja, “qual o seu papel histórico na formação de crises e na sua resolução?”

Economistas convencionais nunca pensaram muito nisso. Quanto ao campo dos economistas marxistas, as pessoas também não prestam muita atenção, porque a urbanização não é considerada como um campo muito significativo de estudos – só algumas pessoas, como eu, estudam isso, e eu fico falando que é importante, e as pessoas falam que tudo bem, mas não se importam muito.

Recentemente, houve alguns estudos interessantes, e o que foi descoberto é que, nos anos 20, muito excesso de capital foi jogado num boom de construção e no desenvolvimento de construção nos EUA. Este boom esteve localizado em pouquíssimas áreas – Flórida sempre parece ser um bom lugar, Nova Iorque e Chicago. E o que aconteceu foi que, enquanto não havia instrumentos financeiros sofisticados, havia algumas estratégias similares de financiamento emergindo naqueles mercados, e havia, portanto, um boom muito grande nos preços de propriedades, durante os anos 20. Este boom, entretanto, terminou um ano antes da grande crise da bolsa de valores, e o que eles estão reconhecendo, agora, em círculos oficiais é que houve uma relação entre a crise do mercado de propriedade, em 1928, e o colapso da bolsa de valores, em 1929. E o colapso da bolsa, em 1929, atingiu tudo, enquanto que o colapso do mercado de propriedade, em 1928, atingiu somente o setor de construção, e era nesse setor que a maior parte da perda de empregos estava acontecendo, em que grande parte das dificuldades ocorriam. Até os anos 30, essa foi uma das áreas principais de depressão na economia americana, e foi a que chamou a atenção política dessas novas instituições de hipotecas, que entraram no cenário.

Então, o que isso sugere é que há uma relação entre acumulação de capital e urbanização, muito significativa em termos da dinâmica histórica do capitalismo. Além disso, quando você começa a observar bem de perto, percebe que o preço das propriedades tem um papel muito importante na acumulação de riquezas da burguesia.

Agora, vamos voltar ao século 16 e as classes altas inglesas, que conseguiram mais dinheiro da propriedade de terra, nos séculos 17, 18 e 19, do que das fábricas de Manchester. Esta foi uma das formas principais como a riqueza foi acumulada por indivíduos privados. E este ainda é o caso. Por exemplo, uma pessoa como Donald Trump, você olha e diz que é um bom exemplo de como a riqueza pode ser acumulada dessa forma. Na China, surgiram muitas pessoas agora que são bilionárias, muitas delas envolvidas no desenvolvimento da propriedade, na incorporação. Aqui também a incorporação é muito importante. Num certo sentido, a urbanização é um campo de acumulação de capital e, portanto, é vital para a manutenção do acúmulo de capital a longo prazo. E, num lugar em que você encontra repetidas quebras na bolsa de valores, mas depois recuperações com projetos de incorporação, esse é o caso.

Então, nós, politicamente, precisamos prestar muito mais atenção à dinâmica urbana, em termos daquilo que a acumulação de capital faz. E, para se declarar envolvido em uma política anticapitalista, nós temos de pensar a urbanização como um campo de luta de classes. É aí que eu tenho um tipo de história muito peculiar com meus colegas marxistas que gostam de falar sobre a classe trabalhadora: suas definições sobre a classe trabalhadora têm a ver com o trabalho nas fábricas, e eu sempre disse “E as pessoas que constroem as cidades? E as pessoas que mantêm a cidade? E todo este capital fixo na cidade, a sua manutenção?”, e as pessoas dizem “Ah, tudo bem, eles estão aí, mas a classe trabalhadora nas fábricas é o que realmente conta”.

Então, eu comecei a dizer “Bem, como é que o acúmulo de capital pode tratar a cidade como um campo aberto para suas atividades, e onde está a resistência a isso?”. Se você observar, verá resistência por toda parte, porque a reurbanização, quase invariavelmente, envolve uma economia de espoliação, e a economia de espoliação, geralmente, significa o que eu gosto de chamar deacumulação por desapossamento: você desprovê as pessoas da sua vizinhança, dos seus espaços de moradia, porque você quer aqueles espaços para a incorporação.

Eu me lembro de visitar uma cidade, Seul, na Coreia, e havia enormes colinas, que estavam sendo derrubadas por gangues contratadas pelos incorporadores, para tornar aquele lugar inabitável. Daí, então, eles construíam os arranha-céus que eles queriam construir. Mas é claro que havia resistência, e havia comunidades inteiras que se organizavam de uma forma militar, para resistir a essas expulsões. Nós vemos, na China, esse projeto de urbanização que se apoia na aquisição de terra urbana e rural, e que está gerando uma oposição considerável, e há muitos relatórios, na China, de conflitos violentos com relação a esses projetos de urbanização.

Redefinição da classe trabalhadora
Isso me faz voltar pra uma questão muito maior, que é de que forma a cidade é um campo viável para pensar a política da luta de classes, mas pensar sobre isso significa redefinir o que você quer dizer com classe trabalhadora. Eu gostaria de redefinir a classe trabalhadora como todas aquelas pessoas que produzem e reproduzem a vida urbana, e que geralmente está vivendo numa situação precária, que, cada vez mais, até nos EUA, vivem nos setores informais; E esta classe – que a maior parte dos meus colegas não quer considerar como uma classe, eles têm uma definição diferente –, está ativamente envolvida na resistência a essa política de desapossamento, elas estão tentando preservar um outro tipo de noção do que é urbanização. Porque a definição capitalista de urbanização não tem a ver com a criação de uma vida social, não tem a ver com a criação de comunidades políticas, ela tem a ver, simplesmente, com a construção de casas e encher essas casas de coisas, para manter o processo de acumulação continuadamente. E fazendo isso de tal forma que a política e toda oposição se fragmente, pela propriedade de casas – se isso acontecer, ótimo. E, se você observar as consequências políticas da suburbanização nos EUA, verá que quase todo mundo nos subúrbios vota nos republicanos, eles não estão interessados nas questões sociais, é uma grande forma de controle social. Isso foi explicitamente compreendido, nos anos 30, quando essas instituições para facilitar o financiamento de hipotecas foram estabelecidas. Havia um relatório que dizia que os proprietários de casas não entravam em greve, eles precisavam pagar suas hipotecas, se não, eram despejados. Eles não podem sustentar a perda dos seus empregos, eles não podem lidar com uma greve e, possivelmente, serem demitidos. Então, era uma medida de controle social que também se torna altamente significativa.

Revolução urbana
Depois, eu pergunto “O que acontece quando a gente começa a pensar na cidade como um lugar em que algumas formas de luta podem realmente funcionar?”, e é uma questão muito interessante. Quantas vezes houve revoluções urbanas? A Comuna de Paris é uma clássica, que é considerada, pelos esquerdistas, como tendo sido feita pelos trabalhadores, mas não foi feita pelos trabalhadores. É o meu tipo de definição de classe dos trabalhadores, mas, depois… este não é um fenômeno tão incomum. Houve uma greve geral de Seattle, de 1919, teve uma insurreição em Córdoba, Argentina, em 1969, teve uma comuna de Xangai, em Petersburgo e, se você observar os movimentos revolucionários, eles, geralmente, são muito interconectados na rede urbana – isso aconteceu até em 1848, houve uma revolução em Paris, mas simultaneamente também houve uma em Viena, em Varsóvia, em Milão, em Frankfurt.

E, quando você pensa em 1968, o que você vê? Você vê movimentos urbanos por toda parte, e, mais recentemente, houve esse evento impressionante, em 15 de fevereiro de 2003, havia 3 milhões de pessoas nas ruas de Roma, 2 milhões nas ruas de Madri, 1,5 milhão em Barcelona, 1,5 milhão em Londres, e Deus sabe quantos em Nova Iorque, porque a gente não pode se manifestar em Nova Iorque. Foi um movimento simultâneo, que ocorreu em muitas cidades, cerca de 280 cidades no mundo tiveram um movimento que era contra a guerra do Iraque. E o que nós vimos, com Ocuppy Wall Street? Também vários movimentos simultâneos.

Então, a rede urbana parece muito significativa politicamente, mas, politicamente na esquerda, nós nunca pensamos com muito cuidado sobre o que isso pode significar e como isso pode ser usado. E aqui está uma outra coisa: eu me mudei pra Nova Iorque três semanas antes do evento que hoje nós chamamos de 11 de setembro, e o que era interessante, sobre morar em Nova Iorque, é que tudo parou de se mexer, por três dias você não podia ir para as pontes, não podia passar pelos túneis, o metrô foi fechado, não tinha movimento e, de repente, os poderes perceberam que, se não tivesse movimento, não haveria acumulação de capital. Então, o prefeito de Nova Iorque foi pra televisão e fez o apelo “Saiam para as ruas, peguem os seus cartões de crédito e comecem a comprar, comecem a consumir, vão para a Broadway, vocês podem ver os melhores shows, e os ingressos estão disponíveis”. Houve o reconhecimento de que, se a cidade fechasse, parasse… essa é uma força econômica muito poderosa, e isso foi acidentalmente colocado em uso, em 2006, nos EUA.

Em 2006, alguém decidiu, no Congresso, que eles iriam criar uma nova lei, em que eles iriam criminalizar todos os imigrantes ilegais, não seria mais uma ofensa civil, mas criminal. Isso foi enorme, provocou uma reação enorme da comunidade de imigrantes, é claro, em especial, os imigrantes ilegais. Então, começaram a surgir protestos, e houve um dia em que foi anunciado que todos os imigrantes, especialmente os ilegais, não fossem ao trabalho, e eles não foram. Adivinhe o que aconteceu… Los Angeles parou, São Francisco parou, Chicago parou, Nova Iorque não parou totalmente, mas foi muito afetada, muitas indústrias, reconhecendo o que estava acontecendo, simplesmente não abriram.

Em outras palavras, parar a cidade é um movimento político muito importante, e nós vemos isso acontecendo politicamente, de tal forma que o centralismo na cidade se torna muito significativo politicamente. A gente vê isso na Praça Tahrir, no Cairo, em Wisconsin, no Madison Square… em muitos lugares, em que a política urbana se torna um campo em que muitas coisas podem começar a acontecer, e isso começa a envolver um grupo totalmente diferente da população.

Agora, nós temos, por exemplo, em Nova Iorque, um grupo chamado Congresso de Excluídos Políticos. São todos os trabalhadores que não podem criar sindicatos, por exemplo, todos os trabalhadores domésticos. O Congresso de Trabalhadores Excluídos toma atitudes na cidade, e ele também se une aos movimentos urbanos, para tentar militar sobre a qualidade da vida urbana e os problemas da vida urbana, os problemas que têm a ver com a gentrificação, e assim por diante. E o que nós vimos – que é ainda mais impressionante – na Bolívia, foi uma cidade como El Alto, que se mobilizou para depor dois presidentes, no espaço de três anos. El Alto é privilegiada, porque as três principais rotas que servem La Paz passam por El Alto, então, se você bloqueia essas três estradas, a burguesia fica sem comida em La Paz. Mas El Alto se tornou o centro, como Cochabamba, também na Bolívia, para uma política de transformação.

Então, um dos argumentos que quero colocar é que a urbanização é tão importante com relação à crise, à formação da crise e à resolução da crise, precisamente porque ela é tão importante para a classe capitalista, em termos do seu acúmulo de riquezas. Então, ela também deve ser tão importante para a esquerda, como um campo onde as organizações acontecem para tentar militar numa luta anticapitalista. Há, na realidade, uma história de luta anticapitalista que tem base nas cidades, e a esquerda tem que sair dos seus preconceitos contra os movimentos urbanos como veículos de uma luta anticapitalista.

Talvez isso não exista tanto aqui no Brasil, mas, na Europa ocidental, há uma tradição da esquerda que diz que só os trabalhadores das fábricas importam. O Partido Comunista ainda diz isto, eles falam que só importam os trabalhadores precários.

Então, é aí que eu gostaria de começar a pensar sobre uma nova política, que é uma nova política urbana anticapitalista, que coloca a questão: “Por que nós não pensamos, de uma forma mais coerente, sobre qual seria uma boa cidade socialista, e em que sentido é possível construir uma cidade comunal e socialista, no lugar de uma urbanização capitalista?” Este é o projeto político que me parece ser algo que vale a pena perseguir. Eu não garanto que esta seja a resposta, mas é um caminho e um projeto que merece uma grande discussão e reflexão por parte da esquerda, porque o proletariado tradicional nos EUA já desapareceu, como na Europa também.

O que nós temos é o que os franceses chamam de trabalhadores precários e temporários. É muito difícil mobilizá-los pelos partidos tradicionais, mas é absolutamente vital, como nós temos visto nos movimentos de direitos dos imigrantes de 2006, manter a cidade funcionando. Então, chamar a atenção do trabalho é um uso tático da cidade, como forma de engajamento político. Como eu vejo, há muitas possibilidades que não podem ser realizadas no momento presente, e este é o problema que eu gostaria de passar pra vocês, pra que vocês resolvam, porque é a sua geração que terá que resolvê-lo.

A destruição criativa
Uma coisa que nós precisamos também observar, que eu não tive tempo de falar é a política que Joseph Schumpeter chama de destruição criativa: que uma das formas como você pode sair da crise é através da destruição e da desvalorização. Já houve uma grande quantidade de destruição e desvalorização, em algumas cidades dos EUA. Talvez vocês já tenham visto imagens de Detroit, que é uma cidade que parece ter sido destruída por algum tipo de guerra, uma máquina de guerra, e o que isto quer dizer é que há grandes perdas nos valores de ativos. A gente pode acrescentar alguns números, mas, nos EUA, perto do valor de um ano de produção do país foi perdido pela desvalorização que ocorreu nos ativos financeiros em geral e na habitação, em particular. Então, uma das formas como você obtém acumulação crescente é destruindo a acumulação passada, e é claro que isso geralmente acontece em uma crise. A crise geralmente tem a ver com a desvalorização, e a destruição e a questão quantitativa – o crescimento de 3% – se você destruir o equivalente à produção de um ano, por meio da desvalorização de ativos, então, você abre caminho pra um crescimento de 3% no ano seguinte, simplesmente reconstruindo o que você perdeu no ano anterior, e quanto mais você perde, tanto mais fácil se torna sair da crise, porque há uma série de possibilidades mais abertas.

A desvalorização de ativos é muito traumática para aquelas pessoas que os possuem, e os ricos possuem ativos, mas muitos desses ativos, hoje em dia, são mantidos por fundos de pensão, então, na realidade, o que você pode acabar fazendo, com essa desvalorização, é destruir os direitos de pensão de grandes segmentos da população, como muitas pessoas nos EUA, no mundo acadêmico. Eu tenho fundo de pensão privado e, de vez em quando, eu olho pra ver o que está acontecendo com ele. Em 2008/09 ele caiu, eu perdi cerca de 20% dos meus bens, e eu acho que isso está muito ligado ao crescimento subsequente. Então, você abre espaço para o futuro, destruindo parte do passado, e essa foi uma das coisas significativas que aconteceram entre 1939 e 1949, muita destruição ocorreu, e a reconstrução se tornou significativa.

Eu tenho um exemplo particular disso: quando estive no Líbano, em 2008, no meio desta crise, eu perguntei às pessoas no Líbano “Tem uma crise aqui?”, e a resposta foi “Não, não há crise aqui no Líbano”. Por que não? Porque os israelenses destruíram tanto do sul de Beirute, que houve um grande projeto de reconstrução, para reconstruir o sul de Beirute. E eles tinham seu próprio projeto de reconstrução, que era financiado… Então, esse também é um exemplo do papel da destruição, que está envolvido agora nessa reconstrução.

Então, se é pra haver destruição criativa, eu gostaria de ver isso nos EUA, por exemplo, num projeto de reurbanização dos EUA, que é sair do estilo suburbano e começar a reconstruir as cidades como Detroit, reconstruir com uma imagem diferente. Você também pode ligar isso a questões ambientais, você deve tentar lidar com questões de transporte, residência e trabalho de uma nova forma. Existe a possibilidade de obter de volta os 3% fazendo uma reurbanização maciça e coerente, mas seria um projeto de reurbanização que não, necessariamente, teria a ver com a máquina política de crescimento e como eles encaram a urbanização. Então, iria significar uma transformação revolucionária, no que nós queremos dizer com vida urbana, e a transformação revolucionária de como nós lidamos com construção e reconstrução dos ambientes urbanos. Cada vez mais, há uma população urbana global de sete bilhões de pessoas. Isso, é claro, vai exigir um trabalho imenso.

Como pensar uma cidade 
Uma das coisas que eu acho que precisa acontecer, dentro do marxismo, é uma reconexão com as vozes das ruas. E uma das coisas que me atrai no trabalho de Henri Lefebvre, por exemplo, em A produção do espaço, A revolução urbana e O direito à cidade, é que ele é uma resposta ao que Lefebvre estava encontrando nas ruas de Paris, e eu acho que isso, no nível em que ele já estava trabalhando, há anos, e abrir-se para as cidades cria uma teoria muito melhor. Quando eu trabalhei com o Movimento do Direito à Cidade, em Nova Iorque, ou com o Congresso dos Trabalhadores Excluídos, o que eu tenho a dizer hoje, esta noite, ressoa com as pessoas que estão trabalhando politicamente nesses grupos. Houve até um deles que me perguntou – a pergunta que está na última parte da minha fala –, ele me disse “Como é que a gente organiza uma cidade inteira?” Eu acho que é uma coisa muito interessante. Eu não fiz essa pergunta, ele fez, ela veio das ruas, das pessoas trabalhando nas ruas. “Como é que a gente faz isso?” Eu disse “Não tinha pensado nisso”, ele disse “Por que você não pensa? Você é um acadêmico”. Então, o livro que eu acabei de publicar tem a ver com isso, como você organiza uma cidade inteira.

Eu acho que é aí que o marxismo precisa ir, mas, à medida que entramos nesse campo, a gente não precisa abandonar tudo que Marx falou sobre a teoria da crise. O que estou tentando fazer, noEnigma [O enigma do capital], é integrar essas ideias, o desenvolvimento teórico, nessas questões que vêm das ruas. Como é que você organiza toda uma cidade?

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Bem, agora, a questão das reformas, a gente vive num mundo muito complicado. Se ele fosse rompido completamente agora, nós morreríamos de fome em algumas semanas. Você pode ver o que acontece, quando as coisas ficam totalmente rompidas, não seria agradável. Então, uma revolução, a transformação não me parece ser do tipo violenta. A grande questão é criar uma agenda de reformas e transformá-la num projeto revolucionário. Há muitas reformas que apontam para uma direção revolucionária e, portanto, uma das questões é saber quando a reforma é um instrumento revolucionário e quando ela não é. Eu acho que isso também precisa ser muito bem pensado.

Marx fala sobre o sistema financeiro como um mundo em que o capital comum das classes é redirecionado, ele fala sobre a associação de capital; a coletivização do capital, do sistema financeiro é absolutamente crucial para a dinâmica do capitalismo. Sempre foi. Há uma conexão muito interessante, em que eu tenho trabalhado teoricamente (eu acho que já encontrei a resposta), que diz que a acumulação de riquezas, ao longo do tempo, sempre foi paralela à acumulação de dívidas. Quando eu percebi isso – e percebi isso porque estava acontecendo isso, e era necessariamente assim –, eu escrevi que o Partido Republicano, nos EUA, por ser tão antagonista à dívida, pode ter um papel mais importante contra o capitalismo do que as classes trabalhadoras, porque a dívida é absolutamente fundamental à maneira como a demanda efetiva se internaliza dentro da dinâmica do sistema de capital, porque ela depende de comprar agora e pagar depois.

Então, a acumulação de dívidas, como sendo uma parte necessária do sistema, não é algo periférico, é fundamental e sempre foi. Marx já tinha reconhecido isso, quando ele falou de uma formação de uma “bancocracia” no século 17, que é uma fusão do Estado e dos interesses financeiros. Agora, nós vemos essa fusão representada pela palavra Banco Central e, de uma forma estranha, quando você observa a situação, nós estamos realmente vivendo sob a ditadura dos bancos centrais mundiais. Eu estou muito impressionado com o poder dessas instituições. Isso não significa que eles sempre tomam as decisões corretas – a evidência é de que os bancos centrais adotaram políticas erradas, como Greenspan fez na primeira parte do século: ele afundou o mundo numa crise mais profunda do que a que está acontecendo agora.

Há um debate sobre a financialização e seu significado, mas o que eu disse é que ela sempre foi significativa, e a dificuldade com ela é que, por um lado, ela é necessária e, por outro lado, é quase impossível controlá-la, é isso que o Marx fala n’O capital: que, por um lado, você absolutamente precisa disso e, por outro lado, você não pode parar essas ondas de atividades especulativas. O que nós vemos, portanto, é a história da especulação financeira, que gera quebras, crises, e que geram impacto no resto da economia. Eu tenho tentado colocar o volume dois d’O Capital na rede, mas, fazendo isso, eu trouxe pro volume dois as questões do mercado de capitais do volume três. Então, na palestra do volume dois, há algumas partes do volume três, eu pego algumas dessas questões e tento voltar à maneira como Marx entendia essas questões, e o significado das questões financeiras com relação ao acúmulo de capital.

Uma das coisas que aconteceram na história do capitalismo é a história da aceleração, as coisas acontecem mais rápido, a lógica disso é dada pela ênfase em algo que Marx chama de turnover. Se eu posso diminuir o meu ritmo mais rápido do que você, antes do que você, então, eu produzo mais, eu ganho mais. Então, a história do capitalismo tem sido a história da aceleração, aceleração de tudo, a aceleração geralmente leva a um tempo de decisão cada vez menor. Isto significa que os sistemas econômicos se tornaram o que nós chamamos de sistemas acoplados, sistemas em que uma coisa se mexe e imediatamente uma outra coisa muda. As finanças no século 19 não eram acopladas. Quando os computadores entraram nas finanças, nos anos 80, isto começou a ficar totalmente acoplado ao sistema, quando o comércio computadorizado acontece, tudo isso ocorre em segundos.

Então, está tudo na rede, eles não contratam um especialista de Wall Street, eles contratam físicos e matemáticos, porque são eles que sabem como os computadores funcionam e podem usar os programas de computador. O resultado disso é que nós vivemos num mundo em que as crises são muito mais problemáticas, alguém em algum lugar pode vender muitas bombas, e há um movimento de preço que dispara o comércio de computadores, que dispara uma outra coisa, e tudo se move muito rapidamente. Então, tem muita volatilidade no mercado financeiro, que faz que seja muito difícil, a qualquer pessoa, estabelecer um controle exato sobre o que está acontecendo nesses mercados, porque os mercados estão descentralizados.

Então, o capitalismo está mudando, e suas formas de organização mudam algumas possibilidades. Uma das coisas que a esquerda precisa começar a pensar é como ela pode fazer essa luta de classes contra o sistema financeiro. Você pode fazer uma luta contra os bônus bancários, mas será que você pode lutar contra o sistema financeiro e transformá-lo, para que ele se torne mais socializado e mais democrático? É uma questão enorme, porque, se este for um instrumento de poder pra classe capitalista, é aí que você tem que ir, pra tentar confrontar o poder do capital. Essas transformações ocorreram em todos os tipos de área.

Uma das coisas que eu acho muito importante – e aqui nós chegamos à última questão – é a distinção urbano-rural. Henri Lefebvre tem uma história muito interessante sobre isso. Originalmente, ele trabalhava na sociologia rural, e depois ele ficou interessado na urbanização, nos anos 60, e depois ele colocou a questão sobre qual é a relação entre a cidade e o campo. Ele começou a sua vida num mundo em que havia uma sociedade muito distinta ali, que era chamada campesinato, a sociedade dos camponeses, que tinham uma organização e uma cultura muito diferente, que só vendiam seus produtos e seus excessos para os mercados, e era autossustentável. Portanto fazia sentido dizer que era um mundo separado, e eles chamavam de camponeses, ou campo, ou rural, que é muito diferente do urbano.

Mas, quando você chega no final dos anos 60, o campesinato na França desapareceu, e essa cultura distinta também desapareceu. O campo está sendo absorvido na urbanização, ele se torna um lugar em que a população urbana vai para lazer, se torna exclusivamente um lugar de produção de mercadorias para a cidade, está muito mais conectado, mais integrado ao mundo urbano. E, quando Lefebvre escreveu A revolução urbana, ele falou sobre o desaparecimento dessa distinção, e quando ele escreveu A produção do espaço, agora ele está falando sobre a produção de espaços diferenciados, dentro desse processo de colonização do mundo pela vida urbana, e a urbanização da vida.

Nos últimos seis meses, eu tenho vivido em uma terra, na Argentina, em um lugar relativamente longe. Eu tento criar plantações e uma organização autossustentável, mas ela é altamente urbanizada de muitas outras formas: nós usamos telefones celulares, eletricidade, a gente até assiste a televisão. A ideia de que essa é uma sociedade separada, os camponeses, ou algo desse tipo, é muito distinto da vida urbana? Sim, é diferente, mas é diferente em termos de um desenvolvimento geográfico heterogêneo, não distinto no sentido de que aqui está a cidade, aqui está o campo. É claro que é muito diferente, quando você vai para Buenos Aires, um lugar muito diferente. Às vezes eu preciso ir para a cidade, pra usar a internet, e é por isso que eu peço desculpas, se alguém tentar falar comigo por internet, porque minha conexão é muito ruim, mas eu gosto disso.

Eu acho que essa distinção… a gente não deve achar que ela é tão importante, a gente tem que pensar em um mundo muito mais integrado, que tem várias formas de possibilidades de organização política. Então, quando você tem os movimentos do campo, como é o MST, e qual é a sua política, a política numa certa arena deste desenvolvimento desigual, a sua política não está isolada e separada. Em algumas partes do mundo, em que as distinções tradicionais entre os camponeses e as formas tradicionais de vida e o capitalismo ainda persistem, você pode encontrar isso, na África, em partes da Ásia, mas, de uma forma geral, o mundo não está mais organizado assim. Então, acho que a gente tem política que não tem mais a ver com uma política do campesinato, uma política rural diferente, que não está conectada com a política urbana. Eu acho que essas conexões… se nós ignorarmos essas conexões, entre esses dois tipos de política, então perderemos a possibilidade real de criar ações políticas realmente interessantes. Eu mencionei o exemplo de El Alto, na Bolívia. El Alto é uma cidade, mas é uma cidade de imigrantes que têm fortes conexões com o campo em volta. O campo foi comercializado e perdeu grande parte das suas raízes indígenas, então, há uma conectividade entre os movimentos revolucionários no campo, que fluem para a cidade, em Cochabamba. As guerras foram feitas pelas pessoas ocupando a cidade por fora, e as pessoas na cidade deram apoio aos movimentos que estavam acontecendo no campo. Então, o desenvolvimento geográfico desigual, e eu gosto de pensar em política em termos desse desenvolvimento desigual, ao invés de duas ideias distintas, rural e urbana.

Conferência do professor David Harvey que aconteceu no Auditório Ariosto Mila da FAUUSP, em São Paulo, no dia 28 de fevereiro de 2012.
Fonte: https://blogdaboitempo.com.br/2013/03/23/o-enigma-do-capital/