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Era uma vez...

Se alguma música pudesse definir minha personalidade ou minha própria vida em toda sua totalidade, esta seria C’era una volta il West de autoria do italiano Ennio Morricone (tema do filme de faroeste Once upon a time in the West, versão brasileira: Era uma vez no Oeste), revelo isto com temor de ser linchado pelos fundamentalistas modernos, já que a música que mais me fala à alma é uma música secular e não uma música sacra, além disso ela não tem letra e fala mais que muitas músicas que só tem palavrório sem melodia e harmonia. É triste e bela, tão triste quanto bela, triste ainda que bela, bela ainda que triste. Só aqueles que associam a beleza apenas às coisas alegres, pensamento fruto da pós-modernidade vaga e de modismos efêmeros, não conseguirão entender isto que eu estou apregoando, posso até parecer um arauto louco ou bêbado em cima de um telhado, mas pelo menos tenho a coragem de gritar o que penso sem fazer coro com a massa.



O início suave, quase imperceptível da música, a leveza do trinado das cordas, o piano que parece ter vida própria e querer falar, a harmonia da orquestra, a coesão dos instrumentos, a sensação de que nada é inadequado ou que está fora do lugar, o êxtase qual onda que quebra na praia, o sentimento de paz que se instala após a passagem do turbilhão avassalador e aquele solfejo triste da solista, qual Polimnia a musa grega do canto solene, encantam minha alma, com a mesma intensidade que a entristecem, o único ato propício, como uma liturgia recomendada por meio de rubrica, para ouvir adequadamente é fechar os olhos e calar, só assim, desligando alguns periféricos é possível ouvir com a alma, os olhos abertos podem distrair, as palavras ditas, por mais belas que sejam se mostram inadequadas.

Se compararmos essa “universidade” musical com a superficialidade das músicas gospel de hoje de pouca letra e menos acordes ainda, não fica difícil entender a minha preferência por ela, as músicas contemporâneas parecem mantras, versos repetidos à exaustão, vãs repetições já dizia o evangelho. Quando a música acaba fica uma sensação de vazio que só passa quando eu volto e a ouço novamente, hoje com comodidade graças ao controle remoto, santa tecnologia! Antes tinha que fazer um esforço físico grande para mover o braço mecânico da radiola e posicionar no começo da faixa do disco de vinil. Sei que quando a ouço eu fico triste, mas a ouço exatamente para isso. Quando quero ficar reflexivo, pensativo, sondar minha própria alma, eu me sento e vou ouvi-la, não há saída, ao ouvir alimento minha alma, às vezes de uma tristeza profunda e de sentimentos inexplicáveis, sou tomado de uma sensação, que não sei definir, e não consigo fugir disso.

Já devo ter ouvido esta música pelo menos umas 5.000 vezes, ainda pretendo ouvir mais umas 10.000, mormente depois que eu me aposentar, mas a sensação é de que estou ouvindo pela primeira vez, os sentimentos se renovam ao primeiro acorde. Parece estranho este fato, principalmente para alguém que se sente inadequado quando tem que cantar o mesmo estribilho 10 ou quinze vezes só porque um ministro de louvor, que tem vontade de parecer com André Valadão, quer, tem alguns que até a flanela põe no bolso para ficarem mais caricatos, seria risível, se não fosse tão ridículo.

 Quando tinha uns 10 anos de idade eu era apaixonado por filmes de faroeste, ainda sou, mesmo hoje com 52 anos de idade, e a TV do Grande Irmão, que à época era apenas o braço direito na área de comunicação da ditadura militar, gostava de passar filmes que não permitiam a reflexão social, era para entreter, hoje é para “emburrecer” mesmo. Um dos que mais repetiu foi o citado Era uma vez no Oeste, com toda a poesia da direção do italiano criador de metáforas Sérgio Leone, a fotografia impecável, a capacidade de dar a uma cena de uma goteira uma dimensão inigualável e fazer de uma mosca uma atriz coadjuvante, o latinismo visceral, a atuação de grandes atores (como o novato Charles Bronson, o já veterano Henry Fonda e o expressivo e assustador Jason Robards) e a trilha sonora assinada pelo mestre Ennio Morricone, muito embora esta à época me passasse despercebida. Eu adorava assoviar a música de “O Bom, o Mal e o Feio”, mas não me lembro de ter sentido nenhum êxtase ao ouvir C’era una volta il West quando Cláudia Cardinale (seria Melpômene a musa grega da tragédia?) descia na estação do trem e o crescente melodioso até o âmago na chegada à fazenda e encontrar seu marido e os filhos deste todos mortos pondo um aparente fim à possibilidade de uma vida decente para uma prostituta em recuperação.

 Quando eu tinha uns dezesseis anos tentei entrar para o seminário, tinha pressa em cursar teologia o quanto antes possível para exercer o sacerdócio, quanto antes eu estivesse pronto mais rápido o mundo seria consertado, era mais ou menos o que eu pensava, não me deixaram entrar, o mundo deve ter agradecido, porém a “salvação” do mesmo foi adiada um pouco, era muito novo, como prêmio de consolação me colocaram num grupo teatral, composto em sua maioria de alunos do seminário, que tinha como missão despertar vocações nas igrejas da região.

Uma das minhas participações era como soldado comunista, eu vestia uma farda de verdade e junto com outros seminaristas (o hoje Rev. Alexandre da Igreja Episcopal Carismática e o também Rev. Marco Cosmo da Igreja Anglicana) representávamos soldados do então regime comunista que torturavam pastores, missionários e até mesmo leigos cristãos, era época da Guerra Fria e “Torturado por amor a Cristo”, “Ivan”, “Perdoa Natasha” e “Torturado por sua fé” estavam em evidência, eu já os tinha lido várias vezes e tinha uma grande vontade de ser missionário no leste europeu, porém na peça eu é que estava por trás do gatilho, recebíamos então ordens do “General” Zózomo Malta (isso mesmo, não escrevi errado o nome do sujeito é esse mesmo, Zózomo, irmão do Senador Magno Malta) para arrancar as unhas dos cristãos.

Os que representavam os missionários colocavam unhas feitas com pedaços de plástico de carretel de linha de costura, que eram presas com sabão, fingíamos então que cada unha era arrancada com alicate, o sangue de “brincadeira” escorria pelos braços e os gritos convincentes deixavam a plateia em prantos e depois atirávamos neles com revólveres de espoleta, que nem sempre davam tiros com qualidade, parecia que “a bala pinava”, os nossos missionários portavam por baixo da roupa um “saquinho” com suco de uva que ao ser apertado vazava parecendo sangue, o que dava um tom de realismo às cenas. Quantas crianças não fizemos chorar de medo, tínhamos que mostrar depois que era de brincadeira e que ninguém tinha morrido. 

A música que fazia fundo musical para a cena era essa, confesso que não associava a música ao filme, não fazia essa ilação. Um dia ao ouvir intencionalmente na casa de um parente essa música me dei conta das duas épocas de minha vida que ela tinha marcado e desde então eu passei a ouvi-la cada vez mais intensamente. 

Um dia estava fazendo terapia em grupo, não sei quanto ao grupo, mas eu num aprendi nada daquilo tudo e nem aproveitei uma linha sequer de caderno pequeno, quando a psicóloga colocou essa música eu travei, ela tinha invadido meu santuário particular, pois a música falava demais ao meu coração e o que ela falava não combinava com o momento, foi desde então que eu a “canonizei”, só a ouço em momentos especiais e que eu mesmo tenha escolhido ouvir, não gosto de intromissão. Até hoje não perdoei àquela psicóloga por tamanha heresia. 

Muito tempo depois, não sei se foi sonho ou realidade, estava deitado numa praça bastante arborizada pensando na vida, sempre que não estamos fazendo nada, dizemos que estamos pensando na vida, até parece um contrassenso ou que a vida não vale nada para nós, já estava meio sonolento e quase dormindo, quando de repente ouvi esta música tocando, no começo tocava baixo, depois foi aumentando, ainda sem acreditar me ergui sobressaltado, a sensação que tenho hoje é que senti pânico (o sentimento trazido pelo mítico Pã), e vi que era um carro de som que havia parado próximo à praça e que tocava a música, tocava e repetia sem parar, achei que estava morrendo com minha cabeça repousada no colo de uma ninfa do bosque ou de uma náiade e que os anjos do céu ou as fortes e doces valquírias nórdicas tinham vindo me buscar tocando a música de minha preferência.

Seria uma ótima forma de se despedir da vida e entrar na eternidade, provavelmente não sentiria medo, tal era o êxtase, mas justamente por conta deste que eu queria permanecer vivo, a sensação de paz era maior que eu mesmo. A melhor definição do que senti naquele momento é o que disse o Leone sobre a película: “O ritmo do filme pretendeu criar a sensação dos últimos suspiros que uma pessoa exala antes de morrer. Era uma vez no Oeste é do começo ao fim, uma dança da morte...”. Na hora de partir da vida, tendo como fundo musical esta música, nada melhor que tirar a morte para uma dança. Ela vai gostar, há muito que não se diverte, trabalha demais e a área de atuação dela é muito sombria. 

Desde este dia decidi que se eu não morrer ouvindo esta música, pelo menos que a toquem em meu velório, tenho certeza que ela, naquele momento, não me poderá deixar triste, será vez de ouvi-la e sorrir, será a vez de mudar a história, será o momento de cantar definitivamente “era uma vez...

Música da minha vida (III) 2ª edição

A mais tenra lembrança que eu tenho de alguma música que tenha fortemente impactado minha vida, é de meados de 1970, na minha bonita cidade de Monteiro, originalmente chamada de Alagoa Grande do Monteiro, no sertão paraibano, a flor do Cariri. Morávamos, à época, no Sítio do Limão, onde nasci, eu tinha por volta de 02 ou três anos, íamos à pé, desde a zona rural à sede do município, para a Igreja Presbiteriana de Monteiro, onde fui batizado e tive os primeiros e fundamentais ensinamentos da fé reformada. Faço uma digressão necessária, para efeito de honestidade intelectual comigo mesmo: a canção que eu tenho o mais longínquo registro é; “Anunciamos a Paz, anunciamos a Paz, anunciamos a Paz...” que é uma adaptação cristã de uma música judaica; “Hevenu Shalom aleichem, hevenu Shalom aleichem...”, a qual aprendi a cantar nas aulas de hebraico do Rev. Humberto Freitas, cerca de 20 anos depois, no seminário Presbiteriano do Norte em Recife, ainda que tenha o registro na memória, por ser breve e de um fraseado pequeno, não me causou impacto profundo, não naquela época. Digressão fechada.

A minha memória se reporta ao final da década de 70, e sou acometido por uma saudade, bucólica, nostálgica, e tudo mais que combine com este substantivo. O que me faz ter essa sensação é relembrar a hora de dormir. A noite poderia ser fria ou quente, com belo luar ou chuvosa, estando com saúde ou doentes, sempre, ajoelhados à beira da cama: eu e meus três irmãos cantávamos com D. Marilene (D. Leninha, ou ainda Maria Helena, de acordo com uma tia teimosa que nunca pronunciou o nome dela de forma correta), minha mãe, a canção de ninar mais bela que eu conheci, então orávamos pedindo proteção divina, era um som mavioso, inefável e indizível sensação: 

Finda-se este dia que meu Pai me deu
Sombras vespertinas cobrem já o céu
Ó Jesus bendito, se comigo estás
Eu não temo a noite, vou dormir em paz
 

Às vezes eu me entediava com as longas orações de minha mãe, pelo menos a minha impaciência me fazia acreditar que eram longas, e me distraía, uma noite eu sai do quarto em que estávamos todos reunidos em oração, andei por toda a casa, depois voltei, pé ante pé, silenciosamente e sorrateiramente entrei novamente no quarto, me aproximei de minha mãe, que orava de olhos fechados, tão empolgada estava que nem se deu conta de minha presença, eu segurei o seu nariz, queria dá-lhe um baita susto, não preciso dizer que logrei êxito nisto. 

Não há como calcular o efeito que esta canção causava no coração inseguro e temeroso de uma criança de cinco anos. Eu sempre lembrava desta primeira estrofe quando as minhas precoces insônias me impediam de adormecer logo, ou quando os sons da noite, quaisquer ruídos, por menores que fossem, as sombras que porventura aparecessem, os sussurros nas ruas, os estalos no telhado, tudo isto provocava sobressaltos, e trazia consigo a insônia, era cíclico, eu estava insone, me amedrontava com algo, e então ficava mais insone ainda, só mesmo a confiança que eu adquiri ao cantar: "... eu não temo a noite, vou dormir em paz...", para sossegar e poder dormir. Por força da ocupação de meu pai, que trabalhava à noite, e que por isso quase nunca estava em casa, sempre ausente todas as noites, o temor se acentuava, temia por nós que estávamos em casa, como por ele que estava fora desprotegido, só mesmo confiando no Pai Eterno para poder dormir e descansar, acreditando que pela manhã o veria de novo e que estaríamos em paz. Eu me sentia mais vulnerável ainda, sem o meu "herói" por perto.

Só então o meu coração começava a acalmar-se, a mente relaxava e o corpo cedia ao cansaço físico e então eu podia enfim dormir. 

Com pecados hoje, eu te entristeci
Mas perdão te peço por amor de ti
Sou pequeno e frágil, livra me do mal
Que em ti eu tenha proteção final
 

O ato de confessar as minhas faltas todas as noites tornou-se uma constante, primeiro porque eram muitas, eu era realmente "bagunceiro", aprontava todas que eu pudesse e mais algumas deixava na conta, segundo porque um dia a minha mãe contou para mim e para meus irmãos uma estória na qual uma criança rebelde, que não era muito obediente foi abduzida, não posso dizer que foi arrebatada, por Satanás. Será que se pode calcular o efeito que isso causou em nós? Era aterrorizante pensar nisto, era mais por medo que eu me aproximava de Deus do que por amor. O mais inusitado de tudo é que ela contou esta “estória pia” com a intenção de descobrir qual de nós havia cometido uma travessura, eu não lembro agora qual foi o ato, porém sabia que não tinha sido eu, mesmo que eu soubesse que era inocente, ainda assim fiquei com sentimentos de culpa. Porém, com o tempo, comecei a crer num Deus Pai que me ama e que sempre quer o melhor para mim, poder falar com alguém assim é mais fácil do que com um Deus Pai, distante, inquisidor e vingativo, que me deixava à mercê de Satã. 

Guarda o marinheiro no violento mar
E ao que sofre dores queiras confortar
Ao tentado estende sua mão Senhor
Manda ao triste aflito, o Consolador
 

Muito tempo depois, quando os temores da infância que a escuridão noturna trazia junto a si, já não me assustavam mais, ouvia a voz dela cantando mais uma estrofe: “... Guarda o marinheiro no violento mar, e ao que sofre dores queiras confortar, ao tentado estende Tua mão, Senhor; manda ao triste e aflito o Consolador...”, eu tinha ingressado na Marinha do Brasil e a canção era atual, tinha vencido o tempo. Eu conseguia ouvi-la cantando esta canção, nas muitas noites em que eu estava de sentinela, olhando para o mar escuro, sem poder divisar nada à frente, relembrava dela cantando este trecho e me emocionava, sentia uma saudade infinda destas noites em Monteiro, saudades de um tempo que não volta jamais, por isso mesmo que é tão importante, porque não pode ser revivido. Muitas vezes com o vento frio batendo no rosto, eu cantava baixinho este trecho do hino, era a minha oração, pedia a Deus que guardasse o marinheiro, pedia a Deus que me guardasse do mal. Hoje vejo que Ele não só me guardou do violento mar, como me protegeu nas tempestades que atravessei por toda a vida, poucos teriam sobrevivido ao que eu sobrevivi, poucos teriam se levantado se tivessem tropeçado e caído tanto quanto eu caí, me levantei, e me levantarei sempre, pois ainda que fraco, a mão que me ergue é meiga, mas é muito forte. 

Pelos pais e amigos, pela santa lei
Pelo amor divino, graças te darei
Ó Jesus, aceita minha petição 
E, seguro durmo sem perturbação.

Dormir nunca foi fácil para mim, nem mesmo na infância, posteriormente durante a adolescência e a juventude desenvolvi o hábito de tomar café em excesso, a cafeína me estimula e me deixa alerta, porém tenho crise de abstinência, se não consumir em grandes doses durante o dia, o que só aumenta a probabilidade de que eu passe algumas horas inquieto na cama e com dificuldades para “agarrar” no sono. Então passei a repetir esta frase: “... seguro durmo sem perturbação...”, nem sempre o sono reparador vem, nem sempre quando vem é reparador, e algumas vezes ele nem vem, mas ainda assim continuo fazendo minha petição, sei que sou atendido, quer durma logo, quer não.

Um dia eu ensinei algumas partes desta canção para minha filha Jessicah quando alegou que estava sem sono, preocupada com os estranhos ruídos da rua: ”... Ó Jesus, aceita minha petição, e seguro durmo, sem perturbação”. Calma e serena, reclinou a cabeça e dormiu a sono solto. Ela entendeu a mensagem.

Ainda que seja um adulto que está beirando a meia idade, com todas as nuances que um Baby Boomer possa ter, até hoje eu prefiro me sentir como um menino amedrontado por sombras e monstros inimagináveis, desde que isso me conduza a confiar no abraço protetor de Abba, não quero drogas e nem remédios para dormir, prefiro ouvir a chuva mansa no telhado, lembrar do Sítio do Limão, com a tritinar dos grilos e o coaxar das rãs, além do mugido do gado ou o balido das ovelhas, ou até mesmo o vento impetuoso que fazia o pé de Algaroba, que estava defronte de nossa casa, baloiçar como se fosse um simples galho de uma roseira, só assim me lembro desta canção, entoada de joelhos e lembro do quanto ela fazia sentir-me protegido, cantá-la era ter certeza de que dormiria por toda a noite, pois sabia que “... Jesus bendito, se comigo estás, eu não temo a noite, vou dormir em paz...” 

[Oração Noturna (Hinário Novo Cântico 148)]

Música da minha vida (II) 2ª Edição

"Salva, porém só”. Assim, de forma lacônica e sucinta, eu diria que até mesmo aparentemente desprovida de sentimentos, quase que apática, Anna Spafford comunicou, por meio de um bilhete telegráfico, ao seu marido Horatio que tinha sobrevivido ao naufrágio do Ville du Havre, porém, implicitamente, comunicava também que as suas quatro filhas que a acompanhavam não tinham sobrevivido ao desastre e tinham morrido afogadas, isso talvez explique a aparente falta de sentimentos a qual me referi no início deste parágrafo. Numa situação como essa, as pessoas, muitas vezes, são tomadas de algo que os Pais do Deserto¹ chamavam de Acedia². No mundo moderno costumamos confundir isso com depressão, já que, os acometidos por tal ausência de sentimentos não conseguem esboçar nenhuma reação diante de qualquer situação que lhes é proposta, desde a mais insignificante, como pentear o cabelo, a uma mais complexa, como tomar uma decisão estratégica, ou de extrema relevância, para algo que esteja fazendo ou que lhes diga respeito, até mesmo se essa decisão é em alguma área vital de sua vida. Até parece que algumas coisas não afetam em nada o ser humano que é tomado por tal sentimento, até parece não! De fato nada afeta mesmo o ser humano que foi dominado pela Acedia. Fecho o primeiro parágrafo com uma digressão e uma desculpa por tê-la efetuado, o meu vício por este tipo de recurso literário é incorrigível.

Ainda consigo lembrar o misto de emoção que senti ao ouvir e entender a mensagem de “Se paz a mais doce, me deres gozarpela primeira vez, conhecia o hino desde a minha tenra infância, porém não conhecia o drama que estava por trás da composição dele, não sabia a trajetória de vida do autor. Uma estranha emoção, com toda a carga benéfica que este vocábulo tem. Bela, boa e estranha, bela ainda que estranha e estranha ainda que bela e mesmo assim muito boa.

Eu estudava o primeiro ano no Seminário Presbiteriano do Norte em Recife, tinha cerca de 20 anos, estava naquela fase de encantamento, havia entrado para estudar e ser pastor, numa das melhores instituições do Brasil, sonho de minha infância, e estava passando por uma fase de despertamento espiritual muito intensa. A literatura que mais me chamava à atenção era literatura de avivamento espiritual. Ainda lembro do que senti ao ler: O homem que Deus usa, Por que tarda o pleno avivamento?, Recado para os ganhadores de alma, Crise de integridade e Avivamento na África do Sul. O grande professor Othon Guanaes Dourado, mais conhecido como “Mestre Othon”, era um dos maiores incentivadores de tais leituras e sempre tinha algum título novo para recomendar, o clima organizacional era muito benéfico e muito propício para que uma música como essa marcasse minha vida. Foi nesse período que surgiu o movimento de redescoberta da literatura puritana, algo que todos nós olhávamos com cuidado, pois quaisquer desvios, como querer reviver um movimento do passado como normativo para o presente, poderia causar distorções sérias e danosas, danos esses que poderiam ser irreversíveis. O anacronismo adoeceu este movimento, que nasceu com uma proposta tão boa. Hoje, muitas igrejas, que adotaram este movimento como modelo litúrgico e de práxis, sequer comemoram o Natal, posto que Jesus não nasceu em dezembro, e consideram a festa como de origem pagã, além de outras práticas que estão longe do culto reformado, assim como usar shofar durante os cultos, prática dos que adotam o modelo G-12, está longe do culto cristão. Recomenda-se moderação em tudo. Fechada segunda digressão, continuemos pois.

À época, no Centro de Convenções de Olinda foi realizado o Congresso Nordestino de Evangelização, por algum motivo eu não pude comparecer, porém aqueles que foram falaram da emoção vivida quando Nelson Bomílcar, músico influente no protestantismo brasileiro, antes de levar os presentes a cantarem este hino, contou a história de seu autor e a razão de ser da mesma. Quando eu soube, chorei como se estivesse naquele auditório, desde então, não posso cantar e nem ouvir sem ser tomado por um vendaval de emoção que me conduz às lágrimas.

Se paz a mais doce me deres gozar,
Se dor a mais forte sofrer;
Oh, seja o que for, Tu me fazes saber 
Que feliz com Jesus sempre sou.

Sou feliz com Jesus!
Sou feliz com Jesus, 
Meu Senhor! 

Costumo dizer há muito tempo que a hora que os cristãos mentem mais é na hora em que cantam, cantar esse hino não é para qualquer um, eu mesmo evito cantá-lo, depois de algumas experiências, não quero mentir, não posso mentir num momento sublime de adoração, pois para cantar esse hino é necessário mais do que uma bela voz, é necessário viver o que está sendo dito, e a letra é muito forte, muito densa: “... Oh, seja o que for, Tu me fazes saber, que feliz com Jesus sempre sou...”, ou como diz o original em inglês: “... está tudo bem com minha alma...”³. Não sou dado à hipocrisia, prefiro ficar calado, e já fiquei algumas vezes de boca fechada no púlpito ou no auditório da igreja, por entender que não deveria cantar algo que não pudesse viver com honestidade. Por exemplo: não gosto de cantar “Tudo ó Cristo a ti entrego, tudo, sim por ti darei...”, acho esta construção frasal muito forte, densa, de extrema responsabilidade, se cantada sem a devida atenção ou noção, incorre-se no risco da prática da hipocrisia e de um cristianismo superficial e supérfluo.

Esta canção, prefiro chamar aqui de hino, para evitar ferir olhos e ouvidos mais sensíveis, como os dos puritanos, foi concebida e escrita em meio à adversidade pelo advogado Horatio Gates Spafford, a sua intenção foi de registrar o momento que estava vivendo e a emoção sentida, não entendia que estava escrevendo uma canção, até porque foi a única que escreveu a letra. Spafford foi também, professor de jurisprudência médica na Universidade de Lind e chegou a ocupar o cargo de diretor de um Seminário Presbiteriano.

Spafford nasceu no dia 20 de outubro de 1828 em Lansingburgh, Rensselaer County, Nova York, e faleceu em 1888 em Jerusalém.

Em 1861, aos 33 anos, casou-se com uma jovem chamada Anna Tuben Larssen. O casal morava em Chicago, quando o Grande Incêndio que acometeu àquela cidade, destruiu tudo o que eles tinham, deixando-os com sérias dificuldades.

Em 1870, Horatio e Anna Spafford perderam um filho (Chamado Horatio) que morreu em consequência de uma forte febre, provavelmente causada pela tuberculose, era o segundo impacto que sofriam, isso era apenas o começo de uma trajetória de vida marcada por toda sorte de acontecimentos, alguns dos quais poderia levar qualquer ser humano ao desespero. O casal já tinha nesta época 3 filhas (Annie, Maggie e Bessie), mais tarde teriam uma outra filha chamada Tanetta.

Esta época que estamos nos referindo, foi marcada por um forte despertamento espiritual, missionário e evangelístico na igreja estadunidense, bem como na inglesa, é a época de Dwight L. Moody, um dos maiores evangelistas que a Igreja já teve, ele morava também em Chicago, e era amigo muito próximo de Horatio. Quando Moody decidiu em 1873 efetuar algumas cruzadas evangelísticas na Europa, mormente Inglaterra, Horatio e sua esposa decidiram viajar também, para encontrá-lo e apoiá-lo em sua turnê missionária e tencionavam também visitar a Europa Continental, além da companhia a Moody e do desfrute das bençãos que adviriam daquelas campanhas, eles planejavam esta viagem como uma forma de se recuperarem emocionalmente dos embates que a vida lhes causou.

Para poderem embarcar para a Europa, precisavam deslocar-se de Chicago à Nova York, foi o que fez toda a família Spafford. Porém um compromisso inadiável no último momento impediu Horatio de viajar. Ele então pediu à esposa que viajasse com as suas quatros filhas na frente, já que as reservas tinham sido efetuadas e não deveriam cancelar a viagem, o plano dele era encontrá-las tão logo pudesse, tão logo os negócios permitissem. Elas embarcaram no S.S. Ville Du Havre no final de novembro de 1873, e este partiu para Europa levando Anna, as quatro filhas do casal e mais aproximadamente 310 passageiros. Horatio voltou para Chicago para resolver os problemas que o impediram de viajar.

Na madrugada do dia 22 de novembro de 1873 já em águas do Atlântico Norte, o navio em que a família de Horatio estava, se chocou com um outro navio inglês e afundou em apenas 12 minutos. Uma tragédia sem precedentes, 226 pessoas morreram neste naufrágio, incluindo as quatro filhas de Horatio. Das 90 pessoas que sobreviveram, Anna Spafford era só um número, já que a desolação da morte das filhas não permitia que comemorasse ter se salvado agarrada aos destroços que boiavam.

O bilhete, a que me referi, com a triste mensagem foi escrito tão logo que chegou a um lugar seguro, após ter sido resgatada, em 01 de dezembro de 1873: “Salva, porém só”.

Horatio, imediatamente pegou o primeiro navio com destino à Inglaterra e foi ao encontro de sua esposa. Como forma de solidarizar-se com a dor dele e de outros passageiros que também tinham perdido entes queridos, o capitão da nau mandou avisar a todos que estava passando perto do local onde o Ville du Havre tinha submergido, que lançaria âncora enquanto os parentes fizessem as últimas homenagens, Spafford mirou por alguns instantes aquelas águas sepulcrais e tomado de profunda emoção e comoção, voltou para sua cabine e começou a escrever uma declaração de fé, original, profunda e de uma sublimidade, por ter sido escrita no meio de um vendaval de emoções, que não existem muitas que possam ser comparadas: “Se paz a mais doce me deres gozar, se dor a mais forte sofrer, oh! seja o que for, tu me fazes saber, que feliz com Jesus sempre sou”.

Ainda que tenha escrito estes versos no meio de tanta dor, ele deixa transparecer por meio das linhas de cada estrofe, que o conforto que sua alma encontrou em Jesus, está além da compreensão e do entendimento humanos. A paz que ele nos deixa perceber que experimentou, não pode ser explicada por meios das palavras que estão escritas e nem por meio das que são cantadas. É preciso muito sentir o amor paternal de Deus para cantar: “... está tudo bem com minha alma...”. Foi um momento de muita dor, mas ao mesmo tempo um momento em que ele pode sentir o consolo da paz que está acima de todo o entendimento humano, que só Cristo pode dar.

O título que deu ao hino “Ville de Havre”é o mesmo nome do navio que naufragou com as suas filhas, parece querer relembrar, o que nas palavras de um autor dos tempos modernos seriam, os “sonhos despedaçados”. A tradução para nossa língua “Sou feliz” não corresponde à realidade do que ele quis de fato dizer. Ele não foge da dor, não tem medo de olhar para dentro de sua alma sofrida, ele não se esconde, não sublima o que sente, antes, pelo contrário, sente a dor em sua essência, porém, toma uma decisão madura espiritualmente que permite que sua alma não sucumba no abismo de suas emoções sofridas.

Quando ele diz: “... está tudo bem com minha alma...”, ele necessariamente não está dizendo que está feliz. Apenas que os anseios que tem, estão submetidos à autoridade divina. Ele deixa transparecer que o maior anseio que tem é de relacionamento com Deus, as demais coisas podem ser importantes, mas não são mais do que esta verdade. Isto faz com ele não seja abalado pelo que aconteceu. Não tem correlação com o budismo que ensina a minimizar os anseios como formar de minimizar as frustrações. Mas é a consciência de que o que mais importa neste mundo é a proximidade com Deus, as demais coisas estão em segundo plano.

Embora me assalte o cruel Satanás,
E ataque com vis tentações,
Oh, sim certo estou, mesmo em tais provações,
Em Jesus acharei força e paz.

Jesus meu Senhor, ao morrer sobre a cruz
Livrou-me da culpa e do mal;
Salvou-me Jesus, oh, mercê sem igual!
Sou feliz, hoje vivo na luz.

A vinda eu anseio do meu Salvador;
Em breve virá me buscar;
E então lá no céu vou pra sempre morar,
Com remidos na luz do Senhor.

Se formos comparar a teologia deste hino com aquela que encontramos em boa parte da hinódia brasileira moderna, não encontraremos nenhum ponto de convergência. Vejamos alguns exemplos: “... restitui, eu quero de volta o que é meu...”, “... se diante de mim, não se abrir o mar, Deus vai me fazer andar por sobre as águas...”, “... abre as comportas do céu, e faz chover, faz chover...”, todas estas músicas hodiernas induzem a pensar que Deus nada mais é do que um garçom com um pano branco no braço, pronto a nos servir na hora em que quisermos, basta apenas que sejamos bons garotos e que contribuamos financeiramente com frequência e “fidelidade”. Distante demais do ideal de Horatio, que procurou demonstrar que nem mesmo a adversidade, nem mesmo a morte poderia afetar a sua alma e a relação desta com Jesus. Não precisamos ser falsos e hipócritas ao dizer “... sou feliz com Jesus...”, precisamos sim ter a certeza de que “... está tudo bem com minha alma...”, ainda que esteja doente, ou vendo um parente no leito da dor, ainda que tenha alguém da família num presídio, ainda que passando fome, ainda que desempregado, ainda que tenha distúrbios e transtornos graves psíquicos, está tudo bem com minha alma, nem sempre estaremos rindo, mas por conta do cuidado de Jesus conosco, poderemos sem hipocrisia alguma dizer: “... está tudo bem com minha alma...”. Quando a entregamos aos cuidados de Jesus, não importa a adversidade, realmente, está tudo bem com nossas almas.

Posso não ser plenamente feliz, nem tampouco ter tudo o que quero, mas, como o foco de meus desejos estão em Jesus e numa relação de dependência e de fé nele, posso dizer que está tudo bem com minha alma. E está mesmo, ainda que minha mente e minhas emoções sejam confusas e aterradoras, está tudo bem com minha alma, ainda que os medos e as angústias me dominem às vezes, está tudo bem com minha alma, ainda que sinta um vazio enorme no peito, está tudo bem com minha alma, ainda que desprezado pelos mais próximos, está tudo bem com minha alma, ainda que humilhado pelos outros, está tudo bem com minha alma, ainda que sofrendo as consequências dos meus próprios erros, está tudo bem com minha alma.

Meu maior anseio é ter uma relação com Jesus, desfrutar de seu amor e cuidado, meus sonhos não são de prosperidades e nem estou preocupado se vou ou não ser curado, quero enxergar Deus como Ele é, quero amá-Lo pelo que é, não pelo que pode fazer por mim. Está tudo bem com minha alma!

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1 O termo, Padres do Deserto inclui um grupo influente de eremitas e cenobitas do século IV que se estabeleceram no deserto egípcio. As origens do monaquismo oriental se encontram nessas ermidas primitivas e comunidades religiosas. Paulo de Tebas é o primeiro eremita do qual se tem notícia, a estabelecer a tradição do ascetismo e contemplação monástica e Pacômio de Tebaida é considerado o fundador do cenobitismo, do monasticismo primitivo. Ao final do terceiro século, contudo, o venerado Antão do Egito orienta colônias de eremitas na região central. Logo, ele se torna o protótipo do recluso e do herói religioso para a Igreja oriental - uma fama devida em grande parte à vasta louvação na biografia de Atanásio sobre ele. Esses primitivos monásticos atraíram um grande número de seguidores aos seus retiros austeros, através da influência de sua simples, individualista, severa e concentrada busca pela salvação e união com Deus. Os Padres do Deserto eram frequentemente solicitados para direção espiritual e conselho aos seus discípulos. Suas respostas foram gravadas e colecionadas num trabalho chamado "Paraíso" ou "Apotégmas dos Padres". Fonte: www.padresdodeserto.net
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“... A palavra saiu de uso tanto no português como em outras línguas latinas, mas continua presente no dicionário. De acordo com o Houaiss, significa enfraquecimento da vontade, inércia, preguiça ou desordem mental, caracterizada por apatia, melancolia e descuido...” Fonte: www.superinteressante.com.br/superarquivo/2006/conteudo_433090.shtml
3 It Is Well With My Soul
When peace like a river, attendeth my way,
When sorrows like sea billows roll;
Whatever my lot, Thou hast taught me to say,
It is well, it is well, with my soul.

Refrain:
It is well, with my soul,
It is well, with my soul,
It is well, it is well, with my soul.

Though Satan should buffet, though trials should come,
Let this blest assurance control,
That Christ has regarded my helpless estate,
And hath shed His own blood for my soul.

My sin, oh, the bliss of this glorious thought!
My sin, not in part but the whole,
Is nailed to the cross, and I bear it no more,
Praise the Lord, praise the Lord, O my soul!

For me, be it Christ, be it Christ hence to live:
If Jordan above me shall roll,
No pang shall be mine, for in death as in life,
Thou wilt whisper Thy peace to my soul.

But Lord, 'tis for Thee, for Thy coming we wait,
The sky, not the grave, is our goal;
Oh, trump of the angel! Oh, voice of the Lord!
Blessed hope, blessed rest of my soul.

And Lord, haste the day when my faith shall be sight,
The clouds be rolled back as a scroll;
The trump shall resound, and the Lord shall descend,
Even so, it is well with my soul.
Fonte: www.wikipedia.com – Verbete: “It Is Well with My Soul”.

Músicas da minha vida (I)

Se alguma música pudesse definir minha personalidade ou minha própria vida em toda sua totalidade, esta seria C’era una volta il West de autoria do italiano Ennio Morricone (tema do filme de faroeste Once upon a time in the West, versão brasileira: Era uma vez no Oeste), revelo isto com temor de ser linchado pelos fundamentalistas modernos, já que a música que mais me fala à alma é uma música secular e não uma música sacra, além disso ela não tem letra e fala mais que muitas músicas que só tem palavrório sem melodia e harmonia. É triste e bela, tão triste quanto bela, triste ainda que bela, bela ainda que triste. Só aqueles que associam a beleza apenas às coisas alegres, pensamento fruto da pós-modernidade vaga e de modismos efêmeros, não conseguirão entender isto que eu estou apregoando, posso até parecer um arauto louco ou bêbado em cima de um telhado, mas pelo menos tenho a coragem de gritar o que penso sem fazer coro com a massa.


O início suave, quase imperceptível da música, a leveza do trinado das cordas, o piano que parece ter vida própria e querer falar, a harmonia da orquestra, a coesão dos instrumentos, a sensação de que nada é inadequado ou que está fora do lugar, o êxtase qual onda que quebra na praia, o sentimento de paz que se instala após a passagem do turbilhão avassalador e aquele solfejo triste da solista, qual Polimnia a musa grega do canto solene, encantam minha alma, com a mesma intensidade que a entristecem, o único ato propício, como uma liturgia recomendada por meio de rubrica, para ouvir adequadamente é fechar os olhos e calar, só assim, desligando alguns periféricos é possível ouvir com a alma, os olhos abertos podem distrair, as palavras ditas, por mais belas que sejam se mostram inadequadas. Se compararmos essa “universidade” musical com a superficialidade das músicas gospel de hoje de pouca letra e menos acordes ainda, não fica difícil entender a minha preferência por ela, as músicas contemporâneas parecem mantras, versos repetidos à exaustão, vãs repetições já dizia o evangelho. Quando a música acaba fica uma sensação de vazio que só passa quando eu volto e a ouço novamente, hoje com comodidade graças ao controle remoto, santa tecnologia! Antes tinha que fazer um esforço físico grande para mover o braço mecânico da radiola e posicionar no começo da faixa do disco de vinil. Sei que quando a ouço eu fico triste, mas a ouço exatamente para isso. Quando quero ficar reflexivo, pensativo, sondar minha própria alma, eu me sento e vou ouvi-la, não há saída, ao ouvir alimento minha alma, às vezes de uma tristeza profunda e de sentimentos inexplicáveis, sou tomado de uma sensação, que não sei definir, e não consigo fugir disso. Já devo ter ouvido esta música pelo menos umas 5.000 vezes, ainda pretendo ouvir mais umas 10.000, mormente depois que eu me aposentar, mas a sensação é de que estou ouvindo pela primeira vez, os sentimentos se renovam ao primeiro acorde. Parece estranho este fato, principalmente para alguém que se sente inadequado quando tem que cantar o mesmo estribilho 10 ou quinze vezes só porque um ministro de louvor, que tem vontade de parecer com André Valadão, quer, tem alguns que até a flanela põe no bolso para ficarem mais caricatos, seria risível, se não fosse tão ridículo.

Vou iniciar uma nova série de reflexões que retratará as minhas razões em preferir algumas músicas, eu havia pensado em colocar o nome Hinos de minha vida, mas como existem outras músicas que transcendem esta categoria, resolvi nomear a série: Músicas de minha vida, esta é a primeira e talvez a mais intensa e marcante de todas. Isto não é uma hinódia, seria heresia e pecado de superbia tal intento, é apenas a minha reflexão pessoal sobre algumas músicas, pode ser que nem sempre seja a visão correta, porém é apenas a minha visão, quem quiser que tenha a sua.

Quando tinha uns 10 anos de idade eu era apaixonado por filmes de faroeste, ainda sou, mesmo hoje com 41 anos de idade, e a TV do Grande Irmão, que à época era apenas o braço direito na área de comunicação da ditadura militar, gostava de passar filmes que não permitiam a reflexão social, era para entreter, hoje é para “emburrecer” mesmo. Um dos que mais repetiu foi o citado Era uma vez no Oeste, com toda a poesia da direção do italiano criador de metáforas Sérgio Leone, a fotografia impecável, a capacidade de dar a uma cena de uma goteira uma dimensão inigualável e fazer de uma mosca uma atriz coadjuvante, o latinismo visceral, a atuação de grandes atores (como o novato Charles Bronson, o já veterano Henry Fonda e o expressivo e assustador Jason Robards) e a trilha sonora assinada pelo mestre Ennio Morricone, muito embora esta à época me passasse despercebida. Eu adorava assoviar a música de “O Bom, o Mal e o Feio”, mas não me lembro de ter sentido nenhum êxtase ao ouvir C’era una volta il West quando Cláudia Cardinale (seria Melpômene a musa grega da tragédia?) descia na estação do trem e o crescente melodioso até o âmago na chegada à fazenda e encontrar seu marido e os filhos deste todos mortos pondo um aparente fim à possibilidade de uma vida decente para uma prostituta em recuperação.

Quando eu tinha uns dezesseis anos tentei entrar para o seminário, tinha pressa em cursar teologia o quanto antes possível para exercer o sacerdócio, quanto antes eu estivesse pronto mais rápido o mundo seria consertado, era mais ou menos o que eu pensava, não me deixaram entrar, o mundo deve ter agradecido, porém a “salvação” do mesmo foi adiada um pouco, era muito novo, como prêmio de consolação me colocaram num grupo teatral, composto em sua maioria de alunos do seminário, que tinha como missão despertar vocações nas igrejas da região. Uma das minhas participações era como soldado comunista, eu vestia uma farda de verdade e junto com outros seminaristas (o hoje Rev. Alexandre da Igreja Episcopal Carismática e o também Rev. Marco Cosmo da Igreja Anglicana) representávamos soldados do então regime comunista que torturavam pastores, missionários e até mesmo leigos cristãos, era época da Guerra Fria e “Torturado por amor a Cristo”, “Ivan”, “Perdoa Natasha” e “Torturado por sua fé” estavam em evidência, eu já os tinha lido várias vezes e tinha uma grande vontade de ser missionário no leste europeu, porém na peça eu é que estava por trás do gatilho, recebíamos então ordens do “General” Zózomo Malta (isso mesmo, não escrevi errado o nome do sujeito é esse mesmo, Zózomo, irmão do Senador Magno Malta) para arrancar as unhas dos cristãos. Os que representavam os missionários colocavam unhas feitas com pedaços de plástico de carretel de linha de costura, que eram presas com sabão, fingíamos então que cada unha era arrancada com alicate, o sangue de “brincadeira” escorria pelos braços e os gritos convincentes deixavam a platéia em prantos e depois atirávamos neles com revólveres de espoleta, que nem sempre davam tiros com qualidade, parecia que “a bala pinava”, os nossos missionários portavam por baixo da roupa um “saquinho” com suco de uva que ao ser apertado vazava parecendo sangue, o que dava um tom de realismo às cenas. Quantas crianças não fizemos chorar de medo, tínhamos que mostrar depois que era de brincadeira e que ninguém tinha morrido.

A música que fazia fundo musical para a cena era essa, confesso que não associava a música ao filme, não fazia essa ilação. Um dia ao ouvir intencionalmente na casa de um parente essa música me dei conta das duas épocas de minha vida que ela tinha marcado e desde então eu passei a ouvi-la cada vez mais intensamente.

Um dia estava fazendo terapia em grupo, não sei quanto ao grupo, mas eu num aprendi nada daquilo tudo e nem aproveitei uma linha sequer de caderno pequeno, quando a psicóloga colocou essa música eu travei, ela tinha invadido meu santuário particular, pois a música falava demais ao meu coração e o que ela falava não combinava com o momento, foi desde então que eu a “canonizei”, só a ouço em momentos especiais e que eu mesmo tenha escolhido ouvir, não gosto de intromissão. Até hoje não perdoei àquela psicóloga por tamanha heresia.

Muito tempo depois, não sei se foi sonho ou realidade, estava deitado numa praça bastante arborizada pensando na vida, sempre que não estamos fazendo nada, dizemos que estamos pensando na vida, até parece um contra-senso ou que a vida não vale nada para nós, já estava meio sonolento e quase dormindo, quando de repente ouvi esta música tocando, no começo tocava baixo, depois foi aumentando, ainda sem acreditar me ergui sobressaltado, a sensação que tenho hoje é que senti pânico (o sentimento trazido pelo mítico Pã), e vi que era um carro de som que havia parado próximo à praça e que tocava a música, tocava e repetia sem parar, achei que estava morrendo com minha cabeça repousada no colo de uma ninfa do bosque ou de uma náiade e que os anjos do céu ou as fortes e doces valquírias nórdicas tinham vindo me buscar tocando a música de minha preferência. Seria uma ótima forma de se despedir da vida e entrar na eternidade, provavelmente não sentiria medo, tal era o êxtase, mas justamente por conta deste que eu queria permanecer vivo, a sensação de paz era maior que eu mesmo. A melhor definição do que senti naquele momento é o que disse o Leone sobre a película: “O ritmo do filme pretendeu criar a sensação dos últimos suspiros que uma pessoa exala antes de morrer. Era uma vez no Oeste é do começo ao fim, uma dança da morte...”. Na hora de partir da vida, tendo como fundo musical esta música, nada melhor que tirar a morte para uma dança. Ela vai gostar, há muito que não se diverte, trabalha demais e a área de atuação dela é muito sombria.

Desde este dia decidi que se eu não morrer ouvindo esta música, pelo menos que a toquem em meu velório, tenho certeza que ela, naquele momento, não me poderá deixar triste, será vez de ouvi-la e sorrir, será a vez de mudar a história, será o momento de cantar definitivamente “era uma vez...”.