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A coragem para liderar


BROWN, Brené.
A coragem para liderar: trabalho duro, conversas difíceis, corações plenos; tradução Carolina Leocádio. BestSeller, Rio de Janeiro, 2020. 8ª Ed.

Não é um livro tão simples, quanto parece à primeira vista. Na verdade, é simples sim, apenas que na simplicidade da exposição e escrita que reside toda a força e importância desse livro, simplicidade aliada à franqueza e honestidade, honestidade, principalmente, consigo mesma.

A verdade é que até para andar com esse livro nas mãos, à mostra, é preciso coragem. Muita gente “experiente” pega nesse livro nas livrarias, dá uma olhada para os lados, só depois que abre e folheia.

Eu comprei esse livro em 2019 para dar de presente para minha filha, não foi para mim, que isso fique bem claro [esse comportamento por si só já é vulnerabilidade, e a Brené Brown fala disso como ninguém].

Coragem para liderar é, mesmo correndo risco de usar chavão, uma obra inspiradora que mergulha nas águas profundas e complexas da liderança autêntica e compassiva. Brené é uma pesquisadora renomada nas áreas que envolvem vulnerabilidade, coragem e resiliência, sua perspicácia acadêmica e expertise é explorar como os líderes podem cultivar conexões significativas, promover a confiança e estimular a inovação em seus ambientes de atuação.

O livro procura ir além das teorias de liderança convencionais, desafiando os leitores a olharem para dentro de si mesmos, explorar sua própria autenticidade e vulnerabilidade como pré-requisitos essenciais para a liderança eficaz. Ao longo do livro é destacada a importância de os líderes desenvolverem aquilo que Carol Dweck (Mindset: a nova psicologia do sucesso) chama de mentalidade de crescimento, aliada à filosofia de lifelong learning (aprendizagem contínua) e a melhoria pessoal como elementos-chave para o sucesso.

A contribuição mais marcante do livro talvez seja a abordagem compassiva [do latim compassionis, que significa junção de sentimentos] em relação aos desafios e fracassos que os líderes enfrentam. A autora encoraja os líderes a abraçarem a imperfeição e a praticarem a autocompaixão, reconhecendo que todos estão sujeitos a cometer erros e que o verdadeiro crescimento vem da capacidade de se levantar após as quedas (resiliência). Importante aqui é fazer um diálogo dessa habilidade com o conceito de antifrágil de Nassim Taleb.

Além disso, o livro também apresentar insights práticos sobre como os líderes podem construir culturas organizacionais inclusivas, promovendo a diversidade e a equidade em todos os níveis da hierarquia. Destaca a importância de criar espaços seguros onde todos os membros da equipe se sintam valorizados e capacitados a contribuir plenamente com seus talentos e perspectivas únicas.

Brown compartilha, ao longo do livro, uma série de histórias envolventes e inspiradoras de líderes que incorporaram os princípios da coragem e da vulnerabilidade em suas práticas diárias de liderança. Essas narrativas adicionam uma dimensão humana à discussão, ilustrando como os conceitos abstratos podem ser aplicados de maneira tangível em diversos contextos profissionais e pessoais.

Podemos resumir que Coragem para Liderar é uma leitura obrigatória para todos os líderes (sejam neófitos no ofício ou calejados pela experiência) que buscam aprimorar suas habilidades e criar ambientes de trabalho mais positivos e produtivos. Com uma abordagem empática e perspicácia acadêmica, Brené Brown oferece um guia valioso para liderar com coragem, compaixão e autenticidade em um mundo cada vez mais complexo e desafiador.

O Conto da Aia de Margaret Atwood (Repost)


A canadense Margaret Atwood, autora de O Conto da Aia, sempre gostou de afirmar que sua obra não é exatamente ficção científica, mas sim ficção especulativa, asseverando que, enquanto a primeira lida com elementos que a Humanidade ainda não pode fazer ou alcançar, de uma forma ou de outra, a segunda transporta o que a Humanidade já faz ou tem a capacidade de fazer para um cenário hipotético. Apesar de a ficção científica ser uma espécie do gênero ficção especulativa, essa diferenciação é sim importante para a compreensão do que a autora pretendeu aqui.

Lançada em 1985, a história se passa em um futuro distópico em que os Estados Unidos tornaram-se uma ditadura militar teocrática comandada por homens que anularam completamente a mulher, que não passam de seres categorizados como esposas, oficialmente as mulheres dos homens de posse, Martas, o que hoje são as empregadas domésticas e as aias, que têm a função de gerar filhos. Há outros tipos ainda, como as “econo-esposas”, mas que não são exploradas a fundo na obra. O fato é que, nesse “futuro” a mulher foi reduzida a funções pré-determinadas sem que possam fugir delas.

Com essa breve descrição, já é perfeitamente possível entender o que Atwood procurou fazer. Religiões fundamentalistas – e, aqui, o exemplo mais atual é a muçulmana, sem dúvida – já de certa forma categorizam suas mulheres, com muitos países proibindo que elas estudem, que elas cresçam independente de uma figura masculina ou mesmo que mostrem seu rosto e seus cabelos livremente (e não me venham dizer que proibir a mulher de mostrar o cabelo é alguma coisa diferente de deixar clara sua submissão ao homem). Se olharmos para o passado – e Atwood também bebe daí, já que o Puritanismo é uma de suas fontes mais claras para os trajes das aias – veremos a repetição disso em outras religiões, em um ciclo vicioso assustador.

E o que ela faz é transplantar o que ela vê ao seu redor em diversas regiões do mundo hoje (ou quando ela redigiu a obra, só para ser mais exato) para os Estados Unidos, ou, aqui, República de Gilead, imaginando uma situação em que um conflito de bases religiosas instaurou-se, tornando o país uma ditadura nos moldes acima e em que, por questões explicadas apenas muito brevemente, a taxa de natalidade caiu alarmantemente, tornando as aias tão importantes nesse cenário apocalíptico. Tenho sido propositalmente críptico na função de uma aia no romance, pois Atwood constrói essa revelação muito vagarosamente em seu texto, não porque é um plot twist ou uma revelação que muda os rumos narrativos, mas sim porque ela trabalha do pressuposto de que a narradora – uma aia – já sabe de sua função e não “corre” para nos contar, mas é impossível fazer uma crítica sem abordar esse elemento, que é da essência da obra.

Nesse futuro distópico, a aia, que usa uma vestimenta vermelha inspirada nos figurinos femininos da época da colonização americana, inclusive com um chapéu que cobre seus cabelos completamente e também sua visão periférica – têm a única função de ser fecundada, engravidar e parir uma criança. O “fecundador” é, via de regra, o marido de uma das “esposas” – normalmente mulheres que já não podem mais ter filhos em razão da idade ou outro fator – e a aia não tem escolha alguma. Na verdade, tem: ela pode se recusar e ser mandada para as “colônias”, o que é sinônimo de alguma forma de extermínio protraído no tempo.

Em outras palavras, apesar de serem aparentemente bem cuidadas por seus “senhores”, as aias são ritualisticamente estupradas pelos Comandantes (assim são chamados os maridos das esposas) e, quando engravidam e têm filhos, eles são cuidados exclusivamente pelas esposas. É a institucionalização do estupro debaixo de uma interpretação perversa do texto do Velho Testamento e sob a rubrica de “segurança da mulher” causada por uma alegada liberação sexual que teria gerado a cultura de contraceptivos, promiscuidade e violência. E, quando menciono “ritualisticamente”, é porque há mesmo um ritual que antecede o coito – com direito à leitura da Bíblia – que ocorre diante da “esposa” e em que o prazer de qualquer parte é veementemente proibido.

Para contar essa terrível história, Atwood usa única e exclusivamente a narrativa em primeira pessoa de uma aia que permanece sem nome, como todas as aias. Aliás, sem nome não. Ela se chama Offred (inclusive na tradução em português, por razões que não consigo entender) que é algo mais tenebroso do que meramente um nome. Offred significa Of Fred ou, em português, “De Fred”, transformando a aia em uma propriedade de um homem em um mundo em que a mulher realmente não é muito diferente do que um objeto ornamental ou, no máximo, com muita boa vontade, um animal de estimação.

Mas, ao usar esse recurso da primeira pessoa, Atwood brinca com as expectativas e mantém o leitor constantemente engajado. Offred, uma aia de primeira geração, ou seja, que se lembra do mundo pré-Gilead, conta sua história de seu próprio jeito e, como toda a memória, parte de lembranças imperfeitas de seu passado, além de capítulos não necessariamente cronológicos. Com isso, aprendemos vagarosamente quem ela é e como ela foi parar ali, como foi seu “treinamento” (o correto seria lavagem cerebral) para aceitar toda essa submissão e aos poucos vamos então vendo esse mundo além das abas do chapéu branco da aia narradora. E é um mundo simplesmente aterrador, daqueles que por diversas vezes dá vontade ao mesmo tempo de fechar o livro e continuar lendo vorazmente, em uma daquelas contradições que só fazem sentido realmente mergulhando na história.

E a perseverança é muito bem retribuída por Atwood, que consegue, de maneira simples, mas muito eficaz, não só estabelecer o cenário completo e crível que  levou a essa mundo distópico como, também, usar artifícios narrativos que manobram nossa percepção de Offred. Sem entrar em muitos detalhes, basta dizer que a autora é capaz de nos oferecer visões de “segunda” mão de situações que Offred apenas ouviu falar, costurando-as muito bem dentro da estrutura em primeira pessoa. Além disso, por muitas vezes somos convidados a duvidar de algumas situações que ela descreve, quase tornando-a uma narradora não confiável em determinados momentos, o que instiga o leitor a continuar em sua jornada de leitura.

Além disso, Atwood não é maniqueísta e não torna as conclusões fáceis para o leitor. Quando ela trata da condição da mulher nessa sociedade (não tão)futurista, ela encaixa elementos da atualidade como pontos usados pelo poder estabelecido para justificar o porquê de tudo. De certa forma, é possível ver críticas da autora até mesmo ao feminismo radical e do politicamente correto excessivo. Basta, para isso, que o leitor saia do dizem que ele deve esperar do livro e comece a perceber as entrelinhas do que ela escreve. E não, de forma alguma quero afirmar que o livro não é um alerta a algo que pode vir a acontecer se não estivermos alertas – e não falo só de EUA aqui -, mas sim que Atwood é mais inteligente do que alguém que só escreve o que se quer ler. Ela vai além e toca profundamente em vaidades, em consumismo, em egocentrismo, em preconceitos e diversas outras questões que, por intermédio de sua Offred, ela vai abordando sem nunca se valer de didatismo e de forma alguma subestimando o leitor.

O Conto da Aia é leitura obrigatória. Mas fica um aviso: o cenário hipotético criado por Margaret Atwood está mesmo ali na esquina, pelo que a obra é uma leitura que machuca a cada virada de página, mas a dor, aqui, é necessária e, mais do que isso, instrutiva.

O Conto da Aia (The Handmaid’s Tale, Canadá)
Autora: Margaret Atwood
Editora original: McClelland and Stewart
Data original de publicação: 1985
Editoras no Brasil: Editora Marco Zero, Editora Rocco
Datas de publicação no Brasil: 1987 (Marco Zero), 2006 e 2017 (Rocco)
Tradução: Ana Deiró (edição da Rocco)
Páginas: 368 (edição da Rocco)


Ritter Fan
Fonte: http://www.planocritico.com/critica-o-conto-da-aia-the-handmaids-tale-de-margaret-atwood/

Trotsky na Netflix


Acaba de chegar aos telespectadores brasileiros a série Trotsky, exibida pela Netflix. Ela é original da Rússia, foi produzida pela TV Pevry Kanal sob a direção-geral de Konstantin Ernst e tem a produção de Alexandre Tsekalo. No momento que soube da notícia que a Netflix iria exibir a série, como admirador da figura política e intelectual, sobretudo por que o biografado desempenhou um importante papel junto com Lênin na condução da primeira revolução operária/camponesa duradoura, fiquei entusiasmado. Mas, fui advertido por colegas e pessoas que conhecem a história do processo revolucionário e também a vida e obra do criador do Exército Vermelho.

Mesmo com as advertências, fiz questão de assisti-la e comprovar o quanto é problemática do ponto de vista histórico e político, tanto no que se refere à biografia do personagem principal, como também à ambientação na qual lhe fez ser conhecido internacionalmente: a revolução russa. Portanto, confirmei que o enredo da série não é só reacionário politicamente, como também pratica indigência teórica e histórica do co-líder da revolução russa e o processo da revolução, ou seja, nem fatos históricos a série teve a dignidade de respeitar. Acredito que os erros sucessivos que aparecem ao longo dos episódios se dão por questão de escolha, e não por falta de conhecimento da produção do seriado. Basta uma pequena olhada na produção cinematográfica para perceber que teve um alto investimento e não foi feita com baixo orçamento. Sendo assim, seria muito tranquilo a produção contratar uma consultoria de historiadores sérios que não cometessem equívocos. Mas, como se trata deliberadamente de falsificar a história da revolução russa e, com isso, produzir grosserias, eles não se preocuparam nem um pouco com os fatos históricos.

O tamanho do absurdo que aparece ao longo da série faz inveja à grande maioria das produções anticomunistas de Hollywood durante a guerra fria. O fato é que trata-se da narrativa oficial do Governo Putin e daqueles que na derrocada da URSS espoliaram os meios de produção. O objetivo é a reescritura da história recente da Rússia.

Portanto, antes de relatar e desmentir algumas passagens da série (sim, algumas, pois se eu fosse tentar desfazer todas as mentiras e falsificações que existem nela, certamente este texto seria longo e cansativo para os leitores) queria elencar alguns pontos que considerei importante que a narrativa da série tenta inculcar naqueles que a assistem.

A primeira é a maneira como é retratada a vida e a personalidade de um dos principais dirigentes da revolução de Outubro. Trotsky é mostrado como um homem egoísta, ambicioso financeiramente, machista, tirano e sanguinário.

O segundo alvo das inverdades contidas no enredo da série localiza-se sobre o movimento socialista russo, sobretudo sobre o partido bolchevique, que é tratado como uma facção criminosa que só pensa em iludir o povo em beneficio dos seus dirigentes – especialmente Lênin, que é colocado como o chefe da máfia –, mostrando os debates dentro do partido não como embates de ideias e princípios socialistas, mas como uma disputa de egos para ver quem comandaria a facção. Em suma, a intenção é desmoralizar ao máximo o partido bolchevique, que liderou a revolução de Outubro.

A terceira e, para mim, o elemento principal do enredo reacionário da série, foi mostrar que a revolução russa foi um grande erro que só gerou violência e barbárie, indo ao ponto da série demonstrar que a atitude do partido que dirigiu a revolução foi motivada por dinheiro, e não pelo princípio da emancipação humana, que foi o significado maior daquele outubro de 1917. O fato é que a revolução não foi produzida pelo partido bolchevique, e não foi financiada pelo governo alemão (como mostra a série), mas, sim, pelos operários e camponeses que viram nas Teses de Abril de Lênin um programa de sua emancipação, e que atendiam suas reivindicações mais básicas e imediatas.

A primeira cena da série mostra a famosa imagem do trem blindado no qual Trotsky foi “morador” durante os tempos difíceis da guerra civil, quando foi comissário de guerra, organizador e comandante do Exército Vermelho. Assim, era imprescindível o transporte sob trilhos para coordenar essas tarefas. Em seguida, as câmeras focam o interior do Trem, com um Trotsky conversando com uma moça charmosa, vestida de modo pomposo, e fumando no interior do vagão. Seguem-se algumas palavras, beijos e sexo. Parece uma cena inocente, retratando um caso de extra-conjugal, porém é uma cena lastimável quando olhamos com mais rigor. A primeira observação é a de que o biógrafo de Trotsky mais gabaritado, Isaac Deutscher, não apresenta em nenhum momento que ele teve algum caso com uma moça chamada Larissa Reissnerque teria nascido na Polônia em 1895, se tornando socialista na Alemanha e que finalmente vai para a Rússia em 1917 acompanhar o processo revolucionário russo ao lado dos bolcheviques. Na invasão dos exércitos estrangeiros na Rússia, ela aceitou de prontidão se alistar nas fileiras do partido para defender a revolução dos ataques estrangeiros, e foi nesta tarefa que foi convidada a acompanhar e auxiliar Leon Trotsky na coordenação do Exército Vermelho. Mas a série a retrata como uma espécie de concubina de Trotsky, cujas atenções negligenciavam as tarefas principais do conflito,enquanto o mundo soviético desabava sob a guerra civil. Ou seja, mostra o co-líder da revolução como uma pessoa sem escrúpulos.

Posteriormente, a série dá uma guinada temporal para o México, país de seu último exílio. A cena que acabamos de descrever foi construída como uma espécie de memória do comandante do Exército Vermelho. A série então se desloca temporalmente para a apresentação do então namorado de sua secretária, de pseudônimo Jacson, que na realidade se chamava Ramón Mercader. Ao conhecer Trotsky (isto é, depois do atentado à sua vida pelos agentes stalinistas), Mercader começa a fazer uma série de entrevistas na casa do líder soviético. Porém, esta informação também não consta nas biografias sobre vida e a obra do líder revolucionário. Mas o processo de falsificação não para por aí. O enredo da série começa a mostrar que Jacson era um ferrenho defensor de Stálin, colocando-o em constante conflito com Trotsky. E ainda pior: com Trotsky sempre provocando-o, dando a ideia que Ramón assassinou-o não por motivos políticos, mas por questões pessoais. Se Jacson já se apresentou como um stalinista, então por que Trostsky iria manter amizade com ele, uma vez que Stálin já tinha mandado lhe assassinar? O fato é que o afã de desmoralizar Trotsky e o partido bolchevique foi tão grande, que até elementos de ficção foram utilizados.

A propósito da ficção,  um episódio que me chamou muita atenção: os encontros que Leon Trotsky teve com Sigmund Freud, o pai da psicanálise.Mas a ficção vai além.  também uma cena em que Freud entra em debate com o co-líder da revolução russa. Aquele lhe faz um diagnóstico de um homem obcecado pela revolução comunista a ponto de passar por cima de tudo e todos para atingir este objetivo. E, diga-se, que este objetivo é um projeto pessoal de Trotsky, e não o projeto de uma emancipação dos trabalhadores russos.

Para além das mentiras do diagnóstico de Trotsky feito por Freud nas cenas mencionadas, nunca houve um tal encontro entre os dois – nenhuma biografia minimamente séria sobre a vida e a obra do revolucionário russo menciona tal encontro. O problema não é utilizar-se de ficção. Basta que se anuncie que trata-se de uma obra de tal gênero. Porém, em entrevista ao site de O Globo, o produtor diz: “É difícil ser objetivo cem anos depois, mas tentamos produzir uma série fundamentada em acontecimentos reais”.

Na segunda e última parte deste texto, mostrarei as outras deformações do enredo referente à biografia de Trotsky e à revolução russa, concatenando uma resposta para os supostos motivos por detrás das falsificações grosseiras que a série produz, tanto contra Trotsky como contra a revolução de Outubro.

Jefferson Lopesmestre em História pela UFCG.

A arcaica lavoura de Nassar


Uma impressão similar à que tive ao ler Um copo de cólera tive também ao ler Lavoura arcaica: a narrativa de Nassar a todo o tempo parecia me remeter à prosa rascante de Franz Kafka. Essa percepção, sobre a qual já falei na resenha que escrevi sobre o primeiro livro, foi redimensionada no segundo livro, pois a história ali contada é de tal maneira límpida e solene, que a catarse, a tragédia, aparece como um golpe desferido após uma longa gestação de prazeres sinestésicos. Não à toa é tão fulminante e desconcertante, é “um machado para quebrar o ar de gelo que há dentro de nós.”

Mas, antes de me fiar em recursos investigativos dos quais já me utilizei outrora ou de querer fruir a obra de um autor através de obras de outros autores, ao invés de partir da sua singularidade, deixem-me discorrer um pouco sobre o enredo, a estrutura e os personagens de Lavoura arcaicaO romance foi publicado em 1975 e conta a história de André, filho de uma família camponesa, que deixou a casa paterna após constatar que não conseguiria continuar sob a égide da mentalidade tradicionalista e conservadora que imperava sobre o sítio em que habitavam. Entre outras razões. A sequência que abre o livro é justamente aquela em que Pedro, irmão de André, chega ao quarto de pensão do irmão, e busca convencê-lo a voltar para casa.

As feições psicológicas dos personagens vão se desenhando com riqueza apesar de Nassar ser preciso e econômico em sua escritura. Pedro é um tipo mais calmo, de espírito mais brando, que busca reconciliar as pontas soltas da família e reconstituir o tecido existencial dos tempos de outrora, nos quais imperava a harmonia. André é o espírito flamejante, sedento de liberdade e constantemente propenso a entregar-se com ardor as suas paixões e arroubos. O pai representa a típica vontade férrea e o pulso firme daqueles cujas rédeas da família e do sítio repousam à mão, decidido, direto, bruto e sistemático. A mãe vive em constante estado de tensão, esticada sobre os dilemas familiares entre dois pólos de atitude: a obediência ao rígido patriarca e a candura maternal para com os filhos. Ana é a filha, a mulher a florescer, confusa, ardorosa, sensível e propensa a assumir posturas extremas diante das invectivas dos pais. Lula é o caçula, o caçula que parece ter aprendido com os irmãos a atitude gauche daqueles que não se conformam com as normatizações cotidianas de uma vida sob um estigma.

A trama do livro decorre em torno do amor proibido que André sente por Ana, assim como sua reciprocidade. O contraste entre essa polêmica relação e o pano de fundo de tradições conservadoras clássicas do campo dá o tom com o qual a trama se move. Nassar consegue delinear traços típicos da mentalidade e da visão de mundo da “lavoura arcaica” através de pinceladas apuradas, traduzindo nos atos e palavras do pai, por exemplo, todo um constructo de valores e elementos históricos, assim como na postura da mãe, a partir da qual o tecido existencial da questão da posição da mulher no mundo da lavoura arcaica é trazido a lume.

O romance incestuoso que põe em questão o suposto arcaísmo da lavoura não passa despercebido como algo chocante aos olhos do autor. Ele não quer nos levar a relativizar de maneira absoluta o fato de que se trata de um tabu profundamente arraigado, mas conduzir nosso olhar para uma perspectiva perturbadoramente interessante: o de como a transgressão amorosa de André e Ana se encontra incrustada dentro de um cosmos particular, o modo de vida rural.

Para que esse conflito tenha profundidade e seja cotejado em sua complexidade, Nassar faz o movimento de urdir a tessitura sentimental e moral do cosmos da lavoura arcaica. Para tal ele busca nos personagens e nas situações recursos através dos quais essa ambiência (ambiência no sentido de extrapolar o espaço e transformá-lo em arranjo e experiência humanos) venha à tona. A postura rígida do pai, por exemplo, é um dos elementos que compõem a vida nos domínios da lavoura arcaica, assim como ela é, também, um dos elementos que indispõem André a esse mundo. A moralidade estrita, o trabalho duro e estafante, a aridez existencial que esse mundo costuma cobrar de seus habitantes são outros dos elementos que ajudam a compor o panorama espiritual e humano da vida na lavoura.

É assim que o leitor, ciente da textura humana desse modo vida, consegue enxergar as várias dimensões do ato de André bem como a beleza rústica dessa experiência existencial. Nassar não quer nos conduzir a julgamentos fechados, mas chamar nossa atenção para a complexidade da questão, apesar da moralidade polarizante nela imbricada. Não moralismo, moralidade.

Creio que seja por conta dessa intencionalidade velada que ele faz sua narrativa ter algo de parábola bíblica. O retorno de André ao sítio tem em torno de si uma aura estarrecedoramente similar à bíblica volta do filho pródigo. A dança profana de Ana, celebrando de forma ousada a volta do irmão amado, tem algo que lembra as descrições da mulheres pecaminosas que perambulam pelas páginas da Bíblia, entre elas a famosa – e controversa – Maria Madalena. A atitude extremada do pai tem algo daquele ranger de dentes que não raro espoca em algumas das histórias bíblicas. O próprio patriarcado parece ser um outro ponto de semelhança entre uma e outra narrativa.

Com poucos elementos e personagens, Raduan Nassar cria uma bela história. A riqueza psicológica dos personagens dá conta de expressar o espírito e a essência dos conflitos da lavoura arcaica e de suas dinâmicas humanas. Os objetos e os eventos são revestidos de tal poder simbólicos que prescindem da existência de mais deles: o sono fingido de Lula como a cumplicidade confusa de dois deslocados naquele mundo; os acessórios de Ana como a coroação ritualística da dança catalisadora da catarse; o arroubo do pai como a tragédia do homem que quer preservar sua rigidez patriarcal a todo o custo.

Costurando sentimentos, personagens e situações, a prosa poética de Nassar consegue dar conta de explorar algumas das várias dimensões que, entretecidas na trama da vida e da existência humana, formam a “geometria barroca do destino”. Com uma expressividade muito bem trabalhada e alocada, Lavoura arcaica consegue ir além de suas imediações históricas e suas circunscrições específicas, sendo um clássico no sentido universal, isto é, que lida com dramas que pertencem ao domínio da assim chamada natureza humana, e não somente daqueles personagens ou dos sujeitos que os inspiraram.



O homem que amava os cachorros


“A dor e a miséria figuram entre aquelas poucas coisas que, quando repartidas, tornam-se sempre maiores.”

*

“O ódio é uma doença incontrolável.”

*

“O olhar de Liev Davidovitch, no entanto, tentava ver para lá dos edifícios, das igrejas pontiagudas, das mesquitas arredondadas: tentava ver a si próprio naquela cidade (turca) onde não tinha um único amigo, um único seguidor de confiança. E não se encontrou. Sentiu que, naquele preciso instante, começava o seu exílio: verdadeiro, total, sem ter onde se agarrar. Para além da família e de alguns poucos amigos que lhe tinham reiterado a sua solidariedade, era um homem aflitivamente só. Seus únicos aliados úteis numa luta que devia iniciar (como?, por onde?) continuavam isolados em campos de trabalho ou já tinham claudicado, mas permaneciam todos dentro das fronteiras da União Soviética, e a relação com eles ia se apagando com a distância, a repressão e o medo.

Ao evocar aquela manhã de aspecto tão agradável, Liev Davidovitch recordaria sempre da urgência que experimentara de apertar a mão de Natália Sedova para sentir algum calor humano ao seu lado, para não asfixiar de tanta angústia diante da sensação de abandono que o acossava. Mas recordaria também que nesse momento tinha fortalecido a sua decisão de que, embora só, o seu dever seria lutar. Se a Revolução pela qual tinha combatido se prostituía na ditadura de um czar vestido de bolchevique, seria necessário nesse caso arrancá-la com raiz e tudo e semeá-la de novo, porque o mundo precisava de revoluções verdadeiras. Aquela decisão, estava ciente, o aproximaria ainda mais da morte que já o vigiava das torres do Kremlin. A morte, no entanto, podia ser considerada apenas uma contingência inevitável: Liev Davidovitch sempre pensara que as vidas de um, de dez, de cem, de mil homens podem e até devem ser devoradas se o turbilhão social assim o exigir para atingir seus fins transformadores, pois o sacrifício individual é muitas vezes a lenha que se queima na pira da revolução. Por isso lhe dava vontade de rir quando certos jornais insistiam em mencionar a sua “tragédia pessoal”. De que tragédia falavam?, escreveria. No processo sobre-humano da revolução não tinha cabimento pensar em tragédias pessoais. Sua tragédia, quando muito, era saber que para se lançar na luta não tinha à mão correligionários forjados no forno da revolução, nem meios econômicos e muito menos um partido. Mas restava-lhe aquela que sempre fora a sua melhor arma: a pena, a mesma que difundira as suas ideias nas colaborações entregues ao Iskrae que, já no seu primeiro desterro, o conduzira ao coração da luta, desde aquela noite de 1901 em que recebera a mensagem capaz de situar a sua vida de lutador no vórtice da história; a pena fora convocada para a sede do Iskra, em Londres, onde o esperava Vladimir Ilitch Ulianov, já conhecido como Lenin.”

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“O verdadeiro revolucionário começa a sê-lo quando subordina sua ambição pessoal a um ideal. Os revolucionários podem ser cultos ou ignorantes, inteligentes ou limitados, mas não podem existir sem vontade, sem devoção, sem espírito de sacrifício.” (L. D. Trotski)

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“Em Prínkipo, a presença de Trotski não provocava sobressaltos, e essa evidência o fez compreender que, se seu nome ainda gerava confusões na Europa, não se devia ao que ele pudesse originar mas àquilo que seus inimigos exigiam que lhe fosse entregue em pagamento dos seus atos: hostilidade, repressão, rejeição. O ódio de Stalin, transformado em razão de Estado, tinha posto em marcha a mais potente engrenagem de marginalização jamais dirigida contra um indivíduo solitário. Mais ainda, tinha se entronizado como estratégia universal do comunismo, controlado a partir de Moscou, e até como política editorial de dezenas de jornais. Por isso, engolindo os vestígios do seu orgulho, teve de admitir que, enquanto no Kremlin não decidissem quando a sua vida deixaria de ser útil, manteriam-no preso num ostracismo inflexível justamente até se decretar a queda do pano e o fim da palhaçada. E, pela primeira vez, atreveu-se a pensar em sua vida em termos de tragédia: a clássica, a grega, sem oportunidade para apelações.”

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“Olha, Ramón, entre as muitas coisas que você tem de aprender estão a ter paciência e a saber que não se atacam os inimigos quando estão de pé, mas quando estão de joelhos. E atacam-se sem piedade, caralho!”

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“A morte é tão definitiva e irreversível que quase não deixa margem para outros temores.”

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“Aquela jogada sórdida permitiu que Liev Davidovitch percebesse uma coisa que lhe escapara durante os julgamentos anteriores: Stalin também se propusera a transformar as poucas figuras do passado que ainda o acompanhavam já não em comparsas submissos de suas mentiras, mas em cúmplices diretos de sua fúria criminosa. Quem não fosse vítima seria cúmplice e, mais ainda, carrasco. O terror e a repressão estabeleciam-se como política de um governo que adotava a perseguição e a mentira como recursos de Estado e estilo de vida para o conjunto da sociedade.”

*

“A primeira conclusão de Trotski foi que, de acordo com o governo stalinista, todos os membros do bureau político que levaram a revolução ao triunfo, que acompanharam Lenin nos dias mais difíceis da guerra e da fome e colocaram o país em marcha, homens que sofreram a cadeia, o desterro e inúmeras repressões, na realidade tinham sido desde sempre traidores dos seus ideais e, mais ainda, agentes a serviço de potências estrangeiras desejosas de destruir o que eles próprios tinham construído. Não seria um paradoxo os líderes de Outubro, todos eles, acabarem sendo traidores? Será que o traidor não era um só e se chamava Stalin?”

*

“Há várias semanas, um grupo de escritores e ativistas políticos que se diziam próximos das posições do velho revolucionário tinham se obstinado, no calor dos vinte anos de Outubro, em procurar os defeitos do sistema bolchevique que proporcionaram a entronização do stalinismo. Para isso, quiseram desenterrar, com particular insistência, a repressão sangrenta da revolta dos marinheiros de Kronstadt e, invocando a pureza da verdade histórica, decidiram tornar pública a responsabilidade do exilado nos acontecimentos. O argumento mais utilizado fora de que aquela repressão podia ser considerada o primeiro ato do “terror stalinista” inerente ao bolchevismo no poder, e equiparavam a resposta militar e o fuzilamento de reféns aos expurgos de Stalin. Devido à sua responsabilidade à frente do exército, consideravam o então comissário da Guerra o progenitor daqueles métodos de repressão e de terror.

Fora doloroso para Liev Davidovitch saber que homens como Eastman, Victor Serge ou Souvarine sustentavam aquelas opiniões acerca de uma responsabilidade que o acossava há anos, mas incomodava-o, sobretudo, que tivessem retirado do seu contexto um motim militar, verificado no tempo da guerra civil, e o tivessem colocado ao lado de processos fabricados e fuzilamentos sumários de civis em tempos de paz.

Durante semanas, Liev Davidovitch se embrenharia naquela disputa histórica. Para começar a rebatê-los, o exilado teve de aceitar a responsabilidade que lhe correspondia como membro do Politburo, por ter aprovado, ele também, a repressão daquela estranha sublevação, mas recusou-se a aceitar a acusação de que ele pessoalmente favorecera a repressão e incentivara a crueldade com que tinha se manifestado. “Estou disposto a considerar que a guerra civil não é precisamente uma escola de conduta humanitária e que, de um lado e de outro, se cometem excessos imperdoáveis”, escreveu. “É verdade que em Kronstadt houve vítimas inocentes, e o pior excesso foi o fuzilamento de um grupo de reféns. Mas, mesmo tendo morrido inocentes, o que é inadmissível em qualquer tempo e lugar, e mesmo tendo sido eu, como chefe do exército, o derradeiro responsável pelo que aconteceu ali, não posso admitir uma equiparação entre o esmagamento de uma rebelião armada contra um governo frágil e em guerra com 21 exércitos inimigos e o assassinato frio e premeditado de camaradas cujo único crime foi pensar e, quando muito, dizer que Stalin não era a única nem a melhor opção para a revolução proletária.”

Mas Liev Davidovitch sabia que Kronstadt ficaria eternamente marcado como um capítulo negro da Revolução e que ele próprio, cheio de vergonha e de dor, carregaria para sempre essa culpa. Também sabia que, se em Kronstadt os bolcheviques (e incluía-se a si próprio e a Lenin) não tivessem reprimido sem piedade a rebelião, talvez tivessem aberto as portas à restauração. Assim, simples, terrível e cruel, podem ser a revolução e suas opções, pensou nessa altura e continuaria a pensar até o fim, sem que nada o fizesse mudar de opinião.”

*

“A jogada de mestre da procuradoria era acusar Iagoda de ter agido como um instrumento das agressões trotskistas. Em consequência disso, durante os dez anos em que perseguira, prendera e torturara os camaradas de Liev Davidovitch e confinara milhares de pessoas aos campos da morte, seus excessos criminosos deviam-se a ordens contrarrevolucionárias justamente de Trotski, e não a disposições de Stalin…

Sentindo como aquela agressão à verdade lhe devolvia as forças, o exilado escreveu que Stalin, o Coveiro da Revolução, conseguia superar toda a sua experiência anterior, além de ultrapassar os receptáculos da credulidade mais militante. A irracionalidade das acusações era tanta que lhe era quase impossível conceber um contra-ataque, embora inicialmente tenha decidido responder usando a ironia: é tamanho o meu poder, escreveu, que por ordens minhas, dadas a partir da França, da Noruega ou do México, dezenas de funcionários e de embaixadores com quem nunca falei se transformam em agentes de potências estrangeiras e me enviam dinheiro, muito dinheiro, para apoiar minha organização terrorista; chefes de indústrias tornam-se sabotadores; médicos respeitáveis dedicam-se a envenenar seus pacientes. O único problema, comentaria, era aqueles homens terem sido dirigentes escolhidos pelo próprio Stalin, pois há muitos anos ele não nomeava ninguém na União Soviética.

As confissões inacreditáveis ouvidas durante os dez dias que durou o processo e a forma como foram obrigados a humilhar-se homens repletos de história como Bukharin e Rikov não surpreenderam Liev Davidovitch. Mas provocou-lhe uma enorme tristeza, pelo contrário, ler as autoincriminações de um lutador como o radical Rakovski (tão perto da morte que lhe fora permitido prestar declarações sentado), que reconheceu ter se deixado levar pelas aventureiras teorias trotskistas, apesar de Trotski ter lhe confessado em 1926 sua condição de agente britânico. A que extremos teriam chegado as pressões para quebrar a dignidade de um homem que resistira a anos de deportações e de prisão sem renunciar às suas convicções e que sabia, além disso, estar no fim da vida? Será que algum deles acreditava que, com a sua confissão, prestava um serviço à União Soviética, como eram obrigados a repetir? Liev Davidovitch teve de reconhecer ser incapaz de compreender aquelas exibições de submissão e covardia.

Um primeiro contratempo do processo revelou as costuras da sua montagem. Foi protagonizado por Krestinski, que, durante uma tarde inteira, se atreveu a afirmar que suas confissões, feitas à polícia secreta, eram falsas e se declarou inocente de todas as acusações. Mas, na manhã seguinte, quando subiu ao estrado, Krestinski admitiu serem verdadeiras as acusações anteriores, além de mais algumas, certamente elaboradas a toda a pressa. Com que argumentos teriam quebrado um homem já convencido de que ia ser fuzilado? A nova GPU estava desenvolvendo métodos que apavorariam o mundo no dia em que fossem conhecidos, métodos graças aos quais se verificou a revelação mais espetacular do processo, quando Iagoda, depois de se declarar inocente e de receber o mesmo tratamento que Krestinski, confessou ter preparado o assassinato de Kirov por ordens de Rikov, uma vez que este invejava a ascensão meteórica do jovem.

Mas a estrela do julgamento, como seria de se esperar, foi Nicolai Bukharin, que, depois de um ano de estada nos porões da Lubianka, parecia pronto para cometer o último ato de sua autodestruição política e humana. Embora negasse ser responsável pelas atividades de terrorismo e de espionagem mais assustadoras, Liev Davidovitch julgou compreender que sua tática era aceitar o inaceitável com uma convicção e uma ênfase com que pretendia demonstrar aos observadores mais perspicazes a falsidade da instrução criminal. O velho revolucionário, no entanto, percebeu o erro de perspectiva cometido por Bukharin ao tentar lançar um grito de alarme aos alarmados, para quem (apesar do silêncio que mantinham) todas aquelas acusações seriam tão pouco críveis como as dos julgamentos anteriores. Mas a grande massa, aquela que em Moscou e no mundo seguia o decorrer dos processos, tinha tirado de suas palavras uma única conclusão que validava as acusações e destruía a estratégia do réu: Bukharin confessou, disseram, e isso era o mais importante. Fora para acabar ajoelhado e choroso, admitindo crimes fictícios, que Bukharin preferira voltar a Moscou?, Liev Davidovitch se perguntaria, recordando a carta dramática que Fiodor Dan lhe remetera há três anos.

Parecia evidente a Liev Davidovitch que, nos processos, Stalin exigia dos acusados, mais que uma verdade, a sua autodestruição humana e política. Quando executara os condenados dos julgamentos anteriores, obrigara-os a morrer com a consciência de que não só tinham escarnecido de si próprios, como, além disso, tinham condenado muitos inocentes. Por isso se admirava de que Bukharin, que sem dúvida aprendera a lição dos bolcheviques que o antecederam naquela situação, conservasse a esperança vã de salvar a vida. Numa das muitas cartas que escreveu a Stalin dos porões da Lubianka e que o Coveiro se encarregava de fazer circular em algumas esferas, Bukharin chegou a dizer-lhe que só sentia por ele, pelo Partido e pela causa, um amor grandioso e infinito, e despedia-se abraçando-o em pensamentos… Liev Davidovitch podia imaginar a satisfação de Stalin ao receber mensagens como aquela, que o transformavam num dos poucos carrascos da história a obter a veneração de suas vítimas enquanto as empurrava para a morte… Em 11 de março, os autos tinham sido conclusos para a sentença. Quatro dias depois, os condenados à morte foram executados, garantia o Pravda…

Desde que aquela encenação começou a ser exibida, Liev Davidovitch manteve-se no seu quarto porque lhe era doloroso tentar responder às perguntas que lhe colocavam jornalistas, correligionários, secretários e guarda-costas, todos à procura de uma lógica existente para além do ódio, da obsessão conspiratória e da insanidade criminosa do homem que governava um sexto da Terra e a mente de milhões de pessoas em todo o mundo. Liev Davidovitch sabia que o único objetivo possível de Stalin nesses processos era desacreditar e eliminar adversários reais e potenciais e transferir para eles as culpas por cada um de seus fracassos. O que lhes escapava era aquele descrédito ser dirigido para o interior da sociedade soviética, que, numa porcentagem sem dúvida notável, devia acreditar em tudo o que era divulgado, por mais difícil que fosse sua assimilação. Outro grande objetivo era tornar o medo extensivo e onipresente, sobretudo o medo dos que tinham alguma coisa a perder. Por isso os primeiros destinatários daqueles expurgos tinham sido, na realidade, os burocratas: seguindo essa estratégia, Stalin atingia dezenas dos seus acólitos, incluindo vários membros do Politburo e secretários do Partido nas repúblicas, stalinistas que, de um dia para o outro, tinham sido qualificados como traidores, espiões ou ineptos. Se os oposicionistas de outros tempos foram desonrados publicamente, os stalinistas, pelo contrário, costumavam ser destruídos em silêncio, sem processos abertos, da mesma forma que tinham sido dizimados os comunistas de diversos países refugiados na União Soviética, contra quem Stalin, depois de usá-los, parecia ter se encarniçado.

O mais preocupante era saber que aquelas limpezas tinham afetado toda a sociedade soviética. Como era de se esperar, num Estado de terror vertical e horizontal, a participação das massas na depuração contribuíra para sua difusão geométrica, porque não era possível desencadear uma caçada como aquela que se vivia na União Soviética sem exacerbar os instintos mais baixos das pessoas e, sobretudo, sem que cada uma delas sofresse do terror de cair em suas redes, por qualquer motivo que fosse – ou mesmo sem motivos. O terror gerara o efeito de estimular a inveja e a vingança, além de ter criado um ambiente de histeria coletiva e, pior ainda, de indiferença pelo destino dos outros. A depuração alimentava-se de si própria e, uma vez desencadeada, libertava forças infernais que a obrigavam a seguir em frente e a crescer…

Semanas antes, Liev Davidovitch constatara dramaticamente o horror vivido por seus compatriotas quando uma velha amiga, fugida milagrosamente para a Finlândia, lhe escrevera: “É terrível verificar que um sistema nascido para resgatar a dignidade humana tenha recorrido à recompensa, à glorificação, ao estímulo da denúncia, e que se apoie em tudo o que é humanamente vil. A náusea sobe-me pela garganta quando ouço as pessoas dizerem: fuzilaram M., fuzilaram P., fuzilaram, fuzilaram, fuzilaram. As palavras, de tanto as ouvirmos, perdem seu sentido. As pessoas repetem-nas com a maior tranquilidade, como se estivessem dizendo: vamos ao teatro. Eu, que vivi esses anos no medo e senti a compulsão de denunciar (confesso com pavor, mas sem sentimento de culpa), deixei de sentir na minha mente a brutalidade semântica do verbo fuzilar… Sinto que chegamos ao fim da justiça na Terra, ao limite da indignidade humana. Que morreram demasiadas pessoas em nome daquela que, prometeram-nos, seria uma sociedade melhor”…”

*

“Para a arte, a liberdade é sagrada, é a sua única salvação. Para a arte, tudo tem de ser tudo”. (Trotski)

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“Para indignação de poucos e para confirmação popular de suas boas intenções, o Grande Capitão tinha criticado os executores do expurgo, que fora acompanhado, as palavras eram suas, de “mais erros que os esperados”. Nesse caso, tudo teria corrido bem se só tivessem sido cometidos os erros esperados? Quantas pessoas podiam ser fuziladas por engano?

Na realidade, a mais dramática das certezas históricas que o Congresso revelara foi a de que o secretário-geral tinha chegado finalmente aonde desejava em sua ascensão ao céu do poder. O terror daqueles últimos anos tinha lhe permitido tirar de cena, de uma maneira ou de outra, dezoito dos vinte e sete membros do Politburo eleitos no último congresso presidido por Lenin, e poupar a cabeça de apenas um quinto dos membros do Comitê Central eleitos em 1934, quando a situação, pela última vez, esteve prestes a fugir-lhe das mãos. Stalin tinha demonstrado ser um verdadeiro gênio da trapaça: sua bem-sucedida eliminação de qualquer oposição no interior do Partido (apoiando-se no acordo sobre a ilegalidade das facções promovido por Lenin) transformou-se em sua arma política mais eficaz para acabar com a democracia e, mais tarde, instaurar o terror e levar a cabo os expurgos que lhe deram o poder absoluto. Talvez o primeiro erro do bolchevismo, deve ter pensado Liev Davidovitch, tenha sido a eliminação radical das tendências políticas que se lhe opunham. Quando essa política passou do exterior da sociedade para o interior do Partido, começou o fim da utopia. Se a liberdade de expressão fosse permitida na sociedade e dentro do Partido, o terror não teria conseguido se implantar. Por isso Stalin empreendera a depuração política e intelectual, para que ficasse tudo sob a alçada de um Estado devorado pelo Partido, de um Partido devorado pelo secretário-geral. Exatamente como Liev Davidovitch, antes da abortada revolução de 1905, disse a Lenin que aconteceria.”

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“O que mais o encorajava Trotski a dedicar-se à escrita daquela desoladora biografia de Stalin, era a convicção de que, tal como acontecera ao também deificado Nero, depois de sua morte as estátuas de Stalin seriam derrubadas e seu nome apagado de toda a parte, porque a vingança da história costuma ser mais terrível do que a do mais poderoso imperador que alguma vez existiu.”

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“Minha fama de boa pessoa, mais que a de veterinário eficiente, espalhou-se pela zona e as pessoas iam me ver com animais tão magros como elas (conseguem imaginar uma serpente magra?) e, por absurdo que pareça naqueles dias de escuridão, ofereciam-me medicamentos, linha para suturas, ataduras que por alguma razão haviam sobrado, numa prática fervorosa da solidariedade entre os fodidos, que é a única verdadeira.”

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“Embora ainda não tivesse começado a acompanhar Ana à igreja, Dany, Frank e os outros poucos amigos que via diziam que eu parecia estar trabalhando para minha candidatura à beatificação e minha ascensão incorpórea aos céus. A verdade era que, lendo e escrevendo sobre como a maior utopia que alguma vez os homens tiveram ao alcance da mão fora pervertida, mergulhando nas catacumbas de uma história que mais parecia um castigo divino que obra de homens ébrios de poder, de ânsias de controle e de pretensões de transcendência histórica, tinha aprendido que a verdadeira grandeza humana está na prática da bondade incondicional, na capacidade de dar aos que nada têm não o que nos sobra, mas uma parte do pouco que temos. Dar até doer, e não fazer política nem pretender prerrogativas com essa ação, muito menos praticar a enganosa filosofia de obrigar os outros a aceitar nossos conceitos do bem e da verdade por (acreditarmos) serem os únicos possíveis e por, além disso, deverem estar agradecidos pelo que lhes demos, mesmo que não o tivessem pedido. E, embora soubesse que a minha cosmogonia era de todo impraticável (e que merda fazemos com a economia, com o dinheiro, com a propriedade, para que tudo isso funcione? e que porra fazemos com os espíritos predestinados e com os filhos da puta de nascença?), satisfazia-me pensar que talvez um dia o ser humano pudesse cultivar essa filosofia, que me parecia tão elementar, sem sofrer as dores de um parto ou os traumas da obrigatoriedade, por pura e livre escolha, por necessidade ética de ser solidário e democrático. Masturbações mentais minhas…”

*

“Com aquele impulso, que ele sabia ser um epílogo, Trotski pôs-se a dar forma às suas últimas vontades. “Durante 43 anos da minha vida consciente fui um revolucionário”, escreveu, “e durante 42 lutei sob a bandeira do marxismo. Se tivesse de começar outra vez, tentaria evitar este ou aquele erro, mas o decurso geral da minha vida permaneceria inalterado. Morrerei sendo um revolucionário proletário, um marxista, um materialista dialético e um ateu irreconciliável. Minha fé no futuro comunista da humanidade não é hoje menos ardente (antes, mais firme) do que era nos dias de minha juventude. (...) A vida é bela, os sentidos celebram sua festa… Que as gerações futuras limpem a vida de todo o mal, de toda a opressão e violência, e desfrutem dela com plenitude”.”

*

“Ramón decidira desde o princípio, mesmo quando estava convencido de que Roquelia tinha sido enviada por seus chefes distantes, manter a mulher à margem dos pormenores mais profundos de sua relação com o mundo das trevas, porque, no meio dos ímpios de sempre, não saber é a melhor maneira de estar protegido.”

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“– Compreende agora que somos uns empestados? Você consegue se dar conta de que somos o que Stalin criou de pior e, por isso, ninguém nos quer, nem aqui na União Soviética depois de sua morte, nem no Ocidente? Que, quando aceitamos a missão mais honrosa, estávamos nos condenando para sempre, porque íamos executar uma vingança que o cérebro enfermo de Stalin julgava necessária para conservar o poder?

– Stalin não era um doente. Nenhum doente governa meio mundo durante trinta anos. Vocês mesmos diziam: Stalin sabe o que faz…

– É verdade. Mas uma parte dele estava doente. Dizem que matou cerca de 20 milhões de pessoas. Um milhão pode ter sido por necessidade, os outros 19 milhões foram por doença, eu digo… Mas já lhe disse que Stalin não era o único doente.”

*

“Stalin, pare de enviar assassinos para me liquidarem. Já apanhamos cinco. Se não parar com isso, eu enviarei pessoalmente um homem a Moscou, e não haverá necessidade de mandar outro.” (Marechal Tito, em carta datada de 1950 encontrada nos arquivos pessoais de Stalin)

*

“Pensou que o fato de ter acreditado e lutado pela maior utopia jamais concebida implicava doses necessárias de sacrifícios. Ele, Ramón Mercader, tinha sido um dos arrastados pelos rios subterrâneos daquela luta desproporcional, e não valia a pena esquivar-se de responsabilidades nem tentar atribuir suas culpas a enganos e manipulações: ele encarnava um dos frutos podres que apareciam mesmo nas melhores colheitas e, ainda que fosse verdade que outros lhe tinham aberto as portas, ele atravessara, satisfeito, o umbral do inferno, convencido de que deveria existir a morada das trevas para que houvesse um mundo de luz.”

O homem que amava os cachorros – Leonardo Padura
Editora: Boitempo
ISBN: 978-85-7559-445-2
Tradução: Helena Pitta
Páginas: 592
Fonte: http://jornalggn.com.br/blog/doney/lista-de-livros-o-homem-que-amava-os-cachorros-de-leonardo-padura

Antonio Candido: a literatura como direito do ser humano


Em seu texto Direitos humanos e Literatura, Antonio Candido defende que a literatura é, ou ao menos deveria ser, um direito básico do ser humano, pois a ficção/fabulação atua no caráter e na formação dos sujeitos.

Primeiramente, ele destaca o que são os direitos humanos, aqueles ligados a alimentação, moradia, vestuário, instrução, saúde, a liberdade individual, o amparo da justiça pública, a resistência a opressão, bem como o direito à crença, à opinião, ao lazer. Este são bens que asseguram a sobrevivência física e também a integridade espiritual. Neste gancho, Candido indaga: e por que não o direito à arte e à literatura também?

Segundo o crítico, a literatura se manifesta universalmente através do ser humano, e em todos os tempos, tem função e papel humanizador. Mas como essa humanização se dá?

De início, A. Candido destaca que chama de literatura, nesse texto, tudo aquilo que tem toque poético, ficcional ou dramático nos mais distintos níveis de uma sociedade, em todas as culturas, desde o folclore, a lenda, as anedotas e até as formas complexas de produção escritas das grandes civilizações. E defende a ideia de que não há um ser humano sequer que viva sem alguma espécie de fabulação/ficção, pois ninguém é capaz de ficar as vinte quatro horas de um dia sem momentos de entrega ao “universo fabulado”.

Se ninguém passa o dia todo sem mergulhar no universo da ficção e da poesia, a literatura (no sentido amplo dado nesse texto) “parece corresponder a uma necessidade universal, que precisa ser satisfeita e cuja satisfação constitui um direito” (CANDIDO, 1989, p. 112). A literatura é, para ele, “o sonho acordado da civilização” (p. 112), e assim como não é possível haver equilíbrio psíquico sem sonho durante o sono, “talvez não haja equilíbrio social sem a literatura” (p. 112). É por esta razão que a literatura é fator indispensável de humanização e confirma o ser humano na sua humanidade, por atuar tanto no consciente quanto no inconsciente.

A literatura tem importância equivalente às formas evidentes de inculcamento intencional, como a educação familiar, grupal ou escolar. Por isso, as sociedades criam suas manifestações literárias (ficcionais, poéticas e dramáticas) em decorrência de suas crenças, seus sentimentos e suas normas, e assim fortalecem a sua existência e atuação na sociedade. Antonio Candido salienta ainda:
[…] a literatura tem sido um instrumento poderoso de instrução e educação, entrando nos currículos, sendo proposta a cada um como equipamento intelectual e afetivo. Os valores que a sociedade preconiza, ou os que considera prejudicais, estão presentes nas diversas manifestações da ficção, da poesia e da ação dramática. A literatura confirma e nega, propõe e denuncia, apoia e combate, fornecendo a possibilidade de vivermos dialeticamente os problemas. (p. 113).
O crítico ainda chama atenção para a questão do papel formador de personalidade que a literatura tem. Não podemos vê-la como uma experiência inofensiva, mas como uma aventura que pode causar problemas psíquicos e morais, ou seja, a literatura tem papel formador de personalidade, sim, mas não segundo as convenções tradicionalistas; ela seria, na verdade, “a força indiscriminada e poderosa da própria realidade” (p. 113).

A literatura, então, não corrompe e nem edifica, mas humaniza ao trazer livremente em si o que denominamos de bem e de mal. E humaniza porque nos faz vivenciar diferentes realidades e situações. Ela atua em nós como uma espécie de conhecimento porque resulta de um aprendizado, como se fosse uma espécie de instrução. A humanização, de acordo com A. Candido, é:
“[…] o processo que confirma no homem aqueles traços que reputamos essenciais, como o exercício da reflexão, a aquisição do saber, a boa disposição para com o próximo, o afinamento das emoções, a capacidade de penetrar nos problemas da vida, o senso da beleza, a percepção da complexidade do mundo e dos seres, o cultivo do humor. A literatura desenvolve em nós a quota de humanidade na medida em que nos torna mais compreensivos e abertos à natureza, à sociedade e ao semelhante” (p. 117).
Além disso, assevera que “[…] a literatura corresponde a uma necessidade universal que deve ser satisfeita sob a pena de mutilar a personalidade, porque pelo fato de dar forma aos sentimentos e à visão do mundo ela nos organiza, nos liberta do caos e portanto nos humaniza” (p. 122). E defende o fato de que “a literatura pode ser um instrumento consciente de desmascaramento, pelo fato de focalizar as situações de restrição dos direitos, ou de negação deles, como a miséria, a servidão, a mutilação espiritual.” (p. 122), e por estas razões, a literatura está relacionada com a luta pelos direitos humanos.

Em suma, o que o renomado sociólogo e crítico literário brasileiro defende é que a luta por direitos humanos abrange um estado de coisas em que todos possam ter acesso aos diferentes níveis de cultura. É por isso, portanto, que uma sociedade que seja de fato justa “pressupõe o respeito pelos direitos humanos, e a fruição da arte e da literatura em todas modalidades e em todos os níveis é um direito inalienável” (p. 126).

Abracemos Antonio Candido!

Estela Santos

Referência: 
CANDIDO, Antonio. Direitos Humanos e literatura. In: A.C.R. Fester (Org.) Direitos humanos E… Cjp / Ed. Brasiliense, 1989.
Fonte: http://homoliteratus.com/antonio-candido-o-direito-humano-literatura/

Qual é a tolice da inteligência brasileira?


Acabo de ler o livro de Jessé Souza e vou arriscar fazer um resumo de sua tese principal.

Indo direto ao ponto, a ideia síntese do livro é que todas as sociedades modernas são iguais, uma vez que foram forjadas pelas mesmas instituições – Estado burocrático e mercado capitalista. Assim, sociedades de países como, Japão, EUA, Alemanha, França, Inglaterra, ou mesmo, Paraguai, Brasil, Argentina, México, Guatemala, etc; são, modernamente falando, idênticas.

Mas como provar que essas sociedades são iguais?

Uma forma (creio eu) seria acompanhar o desenvolvimento dos filhos das famílias mais ricas e mais pobres em todos esses países, citados como exemplo.

Após um bom período de acompanhamento, uns trinta ou quarenta anos, supõe-se que em todos os países haveria uma correlação positiva (estatisticamente significativa) entre a riqueza das famílias e a “qualidade de vida” dos filhos quando adultos. Confirmada essa hipótese, seria possível afirmar que, sob esse aspecto, todas as sociedades modernas são iguais. Ou seja, todas são reprodutoras de desigualdades socioeconômicas.

Porém, poderia haver outro resultado para o teste acima proposto. Nele, os países se dividiriam em dois grupos. Um grupo apresentaria o resultado acima e o outro, um distinto. Nesse último grupo de países, os filhos das famílias mais ricas, quando adultos, teriam as mesmas chances que aqueles das famílias mais pobres de serem, por exemplo: garçons, motoristas de ônibus, balconistas, bombeiros, jardineiros, etc. E, os filhos das famílias mais pobres teriam, estatisticamente falando, as mesmas chances de serem, por exemplo: banqueiros, CEOs, empresários, juízes, embaixadores, etc.

No caso desses países, eles seriam meritocraticamente perfeitos, isto é, a riqueza dos pais e as oportunidades oferecidas a seus filhos de estudar nas melhores universidades do mundo, frequentar certos clubes, viajar frequentemente ao exterior, aprender uma ou mais línguas estrangeiras, frequentar teatros, museus, etc., seria estatisticamente insignificante para determinar a “qualidade de vida” de seus filhos quando adultos (leia-se, para galgar uma carreira de ponta no mercado ou na burocracia estatal).

Como se pode perceber a probabilidade dessa última hipótese ser verdadeira é muito pouco provável, quiçá ocorra nos países escandinavos. Mais à frente se verá por que.

Feita essa observação e retomando a ideia de ser verdadeira a hipótese inicial, pode-se dar mais um passo na definição da igualdade entre os países modernos, afirmando que não há diferença valorativa entre suas sociedades. Todas são meritocraticamente imperfeitas. E aí está o conteúdo da definição de igualdade: a total identidade entre suas subjetividades (ou todas sociedades modernas são boas/melhores ou ruim/piores - você escolhe, mas seja coerente).

Diante dessa constatação, se deduz que todas são portadoras dos mesmos vícios que impedem o desenvolvimento pleno da meritocracia, que pressupõe um ponto de partida comum de modo que o esforço e a capacidade de cada indivíduo prevaleçam sobre os demais fatores. Esses vícios, que poderiam ser chamados de “doenças” modernas, foram cientificamente conceituados como: patrimonialismo, compadrio, personalismo, etc. Vulgarmente, eles são “denunciados” como: corrupção, jeitinho, indolência, etc.

Nessa hora, os mais apressados questionarão em tom irônico e professoral.
- Ah, então quer dizer que não há diferença entre as sociedades modernas?
- Há.
- A diferença é o tamanho da desigualdade entre a riqueza das famílias e, consequentemente, a gravidade de suas “doenças”.
E aqui vale a pena abrir um parêntese para tratar dos anteriormente mencionados países escandinavos. Nessas sociedades, devido a baixa desigualdade entre a riqueza das famílias, talvez, os méritos pessoais possam se sobrepor a todos os outros fatores (vale lembrar que, se todos nascem iguais, porque os filhos das famílias mais ricas é que teriam, em média, quando adultos, melhor “qualidade de vida”?). A partir desse ponto, se deduz também que o resultado dessa estrutura social menos desigual gera um maior aproveitamento dos recursos humanos e, consequentemente, um maior desenvolvimento dos países escandinavos em relação a outros.

Fechado o parêntese, retoma-se novamente a hipótese original para se acrescentar a ela outro fator decisivo. Segundo esse novo fator, quanto maior a incidência de famílias abaixo da “linha de pobreza” (“ralé” JS), mais estatisticamente significativa será a correlação entre a riqueza dos pais e a “qualidade de vida” dos filhos, quando adultos.

Isso ocorre porque as pessoas só conseguem desenvolver valores modernos, como por exemplo, “autocontrole, disciplina, pensamento prospectivo” (JS), se tiverem acesso a um mínimo de bens e serviços que lhes permita participar (dentro e fora das famílias) de uma vida moderna. Do contrário, estarão fadadas a não desenvolverem esses valores. E, desse modo, não poderão contribuir com o desenvolvimento de um país moderno – um Estado burocrático eficiente e um mercado capitalista dinâmico.

Pegando um gancho nesse fenômeno relativo a “ralé”, pode-se expor outro, que ocorre com a classe dos “batalhadores” (JS) – pobres que acessam a modernidade no contexto de uma sociedade extremamente desigual. A grande parcela de “batalhadores”, mesmo quando for mais capaz e dedicada que a média da sociedade moderna, por ser relativamente muito mais pobre (em relação a minoria de classe média), não é capaz de romper a imensa barreira imposta pela desigualdade socioeconômica (acesso a educação de qualidade, cultura privilegiada, viagens, exemplo dos pais bem sucedidos, etc.).

Devido a esse fator, apesar de seus méritos, os “batalhadores” não conseguem (estatisticamente falando) ocupar posições estratégicas na sociedade e, por conta disso, não contribuem à altura de seu potencial com o desenvolvimento do país.

Por fim, pode-se dizer que essa “dupla desigualdade” (uma grande “ralé” que não acessa a modernidade, e um grande número de “batalhadores” em condição de extrema desigualdade) tende a se retroalimentar, produzindo ao longo do tempo uma espiral perversa. Algo que somente poderá ser interrompido por uma ação pública, através da única instituição moderna capaz de fazer isso – o ESTADO.

Agora, a pergunta que não quer calar: onde está a tolice da inteligência?

Antes de expô-la, vale a pena recapitular. Toda sociedade moderna possui “doenças” geradoras de desigualdades. Em alguns países há uma “dupla desigualdade” que tende a se retroalimentar perpetuando-se de maneira historicamente perversa. Isso gera um Estado ineficiente e um mercado pouco dinâmico e, consequentemente, um baixo desenvolvimento socioeconômico expresso em PIB e/ou renda per capta.

Dito isso, se conclui que a tolice dos “inteligentes”, “colonizados até o osso” (JS), é ver esse problema histórico, de um desenvolvimento socioeconômico relativamente baixo, como próprio das pessoas destas sociedades e não como resultado da estrutura extremamente desigual e excludente de distribuição da riqueza (acesso a bens e serviços) entre as pessoas.

A tolice, portanto, é confundir causa (desigualdade extrema associada a “pobreza extrema”) com a consequência (reprodução crônica e ampliada das “doenças” modernas). Por conta dessa confusão, os tolos (vale a pena repetir, “colonizados até o osso”) acabam vendo subjetividade, ou seja, sociedades melhores, onde na verdade existe objetividade, isto é, sociedades estruturalmente menos desiguais.

Por fim, para aqueles que insistem em serem “colonizados até o osso”, pode-se dizer ainda que essa leitura equivocada não é privilégio dos brasileiros, trata-se de um fenômeno mundial. A maioria dos cientistas sociais vê a modernidade como uma “fábula para adultos” (JS), que pode ser descrita como fruto de uma benção divina. Desta feita, algumas sociedades, por serem abençoadas, têm pessoas boas que são recompensados com riquezas. Outras, entretanto, não são abençoadas e têm pessoas más, merecendo como castigo a pobreza.

Essa interpretação dos tolos, ou espertos (a minoria muito rica, beneficiária direta da estrutura desigual da sociedade) faz crer que o brasileiro, não abençoado, é corrupto por natureza. Além disso, faz crer também que o âmago da corrupção está no Estado (vale repetir, única instituição moderna capaz de intervir na estrutura socioeconômica a ponto torná-la menos desigual).

Como ninguém é dominado se não aceitar a dominação como algo bom ou, na melhor das hipóteses, necessário devido a sua inferioridade moral em relação ao dominador, a divulgação massiva desse conto da carochinha é de fundamental importância. Daí o papel dos meios de comunicação de massa como um instrumento imprescindível para aqueles, no topo da pirâmide social, beneficiários diretos de uma desigualdade que se reproduz de forma ampliada, fazerem a sociedade brasileira crer que ela é indolente e corrupta. Devendo, por isso, aceitar de bom grado as orientações e intervenções dos “melhores” países, ou das pessoas que lá estudaram.

Por último, o mais importante. Esses meios de comunicação são imprescindíveis também para servirem como uma espécie de alter ego da sociedade brasileira, repetindo, ad nauseam, que se deve negar a política (os políticos e seus partidos), bem como repudiar o poder do Estado – lócus de todo mal. - É lá que mora o bicho papão, ops!, a corrupção!

Diz-se isso, porque enfraquecer a participação política (especialmente da parcela intermediária da população, mais capaz de assumir o poder do Estado) é imprescindível para a existência de um poder estatal (legislativo e executivo) pouco representativo e/ou frágil, de modo que seja incapaz de alterar a estrutura desigual de apropriação das riquezas. Dessa maneira, a parcela mais rica e minoritária da população (que os donos dos grandes mídias integram) garante de modo permanente a apropriação da reprodução ampliada das desigualdades.

Em suma, somente através da repetição diuturna da ideia de que somos uma sociedade leniente e corrupta, cujo centro disseminador dessa “doença” é o Estado (o mercado só tem virtudes) é possível manter uma grande parte da população estrategicamente afastada da política e, consequentemente, do poder do Estado. Vale a pena repetir mais uma vez, a única instituição capaz alterar a estrutura de apropriação desigual e perversa da riqueza numa sociedade moderna.

Obs.:
1- Não se trata de acabar com o mercado capitalista, um dos pilares da modernidade.

2 - Dizer que todas as virtudes estão no mercado e todos os vícios no Estado, é uma forma de perpetuar os vícios de um mercado pouco competitivo, posto que, pouco aberto ao mérito. Afinal, só existe mérito quando todos partem do mesmo ponto e chegam mais longe por seus próprios esforços e não porque já nasceram quase no ponto de chegada (1%), comparativamente a grande maioria da população que está lá na rabeira, a anos luz de distância (99%).

3 - Pensar esse contexto sob o ponto de vista individual, sem abstrair para os duzentos milhões de brasileiros, é tolice (fabricada, diga-se de passagem). É querer curar a tuberculose do paciente (corrupção) sem tirá-lo de seu contexto insalubre (desigualdade extrema). Alguns indivíduos podem até ter a sorte de se curar (exceção), mas a maioria, isto é, a sociedade, continuará enferma (a regra), gerando pouca riqueza para poucos e, consequentemente, um país com baixo dinamismo socioeconômico.

por Rafael Pizzato Vier, no GGN