Olhos d’água


Uma noite, há anos, acordei bruscamente e uma estranha pergunta explodiu de minha boca. De que cor eram os olhos de minha mãe? Atordoada custei reconhecer o quarto da nova casa em que estava morando e não conseguia me lembrar como havia chegado até ali. E a insistente pergunta, martelando, martelando... De que cor eram os olhos de minha mãe? 

Aquela indagação havia surgido há dias, há meses, posso dizer. Entre um afazer e outro, eu me pegava pensando de que cor seriam os olhos de minha mãe. E o que a princípio tinha sido um mero pensamento interrogativo, naquela noite se transformou em uma dolorosa pergunta carregada de um tom acusatório. Então, eu não sabia de que cor eram os olhos de minha mãe?

Sendo a primeira de sete filhas, desde cedo, busquei dar conta de minhas próprias dificuldades, cresci rápido, passando por uma breve adolescência. Sempre ao lado de minha mãe aprendi conhecê-la. Decifrava o seu silêncio nas horas de dificuldades, como também sabia reconhecer em seus gestos, prenúncios de possíveis alegrias. Naquele momento, entretanto, me descobria cheia de culpa, por não recordar de que cor seriam os seus olhos. Eu achava tudo muito estranho, pois me lembrava nitidamente de vários detalhes do corpo dela. Da unha encravada do dedo mindinho do pé esquerdo... Da verruga que se perdia no meio da cabeleira crespa e bela... Um dia, brincando de pentear boneca, alegria que a mãe nos dava quando, deixando por uns momentos o lava-lava, o passa-passa das roupagens alheias, se tornava uma grande boneca negra para as filhas, descobrimos uma bolinha escondida bem no couro cabeludo ela. Pensamos que fosse carrapato. A mãe cochilava e uma de minhas irmãs aflita, querendo livrar a boneca-mãe daquele padecer, puxou rápido o bichinho. A mãe e nós rimos e rimos e rimos de nosso engano. A mãe riu tanto das lágrimas escorrerem. Mas, de que cor eram os olhos dela?

Eu me lembrava também de algumas histórias da infância de minha mãe. Ela havia nascido em um lugar perdido no interior de Minas. Ali, as crianças andavam nuas até bem grandinhas. As meninas, assim que os seios começavam a brotar, ganhavam roupas antes dos meninos. Às vezes, as histórias da infância de minha mãe confundiam-se com as de minha própria infância. Lembro-me de que muitas vezes, quando a mãe cozinhava, da panela subia cheiro algum. Era como se cozinhasse ali, apenas o nosso desesperado desejo de alimento. As labaredas, sob a água solitária que fervia na panela cheia de fome, pareciam debochar do vazio do nosso estômago, ignorando nossas bocas infantis em que as línguas brincavam a salivar sonho de comida. E era justamente nos dias de parco ou nenhum alimento que ela mais brincava com as filhas. Nessas ocasiões a brincadeira preferida era aquela em que a mãe era a Senhora, a Rainha. Ela se assentava em seu trono, um pequeno banquinho de madeira. Felizes colhíamos flores cultivadas em um pequeno pedaço de terra que circundava o nosso barraco. Aquelas flores eram depois solenemente distribuídas por seus cabelos, braços e colo. E diante dela fazíamos reverências à Senhora. Postávamos deitadas no chão e batíamos cabeça para a Rainha. Nós, princesas, em volta dela, cantávamos, dançávamos, sorríamos. A mãe só ria, de uma maneira triste e com um sorriso molhado... Mas de que cor eram os olhos de minha mãe? 

Eu sabia, desde aquela época, que a mãe inventava esse e outros jogos para distrair a nossa fome. E a nossa fome se distraía. Às vezes, no final da tarde, antes que a noite tomasse conta do tempo, ela se assentava na soleira da porta e juntas ficávamos contemplando as artes das nuvens no céu. Umas viravam carneirinhos; outras, cachorrinhos; algumas, gigantes adormecidos, e havia aquelas que eram só nuvens, algodão doce. A mãe, então, espichava o braço que ia até o céu, colhia aquela nuvem, repartia em pedacinhos e enfiava rápido na boca de cada uma de nós. Tudo tinha de ser muito rápido, antes que a nuvem derretesse e com ela os nossos sonhos se esvaecessem também. Mas, de que cor eram os olhos de minha mãe?

Lembro-me ainda do temor de minha mãe nos dias de fortes chuvas. Em cima da cama, agarrada a nós, ela nos protegia com seu abraço. E com os olhos alagados de pranto balbuciava rezas a Santa Bárbara, temendo que o nosso frágil barraco desabasse sobre nós. E eu não sei se o lamento-pranto de minha mãe, se o barulho da chuva... Sei que tudo me causava a sensação de que a nossa casa balançava ao vento. Nesses momentos os olhos de minha mãe se confundiam com os olhos da natureza. Chovia, chorava! Chorava, chovia! Então, porque eu não conseguia lembrar a cor dos olhos dela?

E naquela noite a pergunta continuava me atormentando. Havia anos que eu estava fora de minha cidade natal. Saíra de minha casa em busca de melhor condição de vida para mim e para minha família: ela e minhas irmãs que tinham ficado para trás. Mas eu nunca esquecera a minha mãe. Reconhecia a importância dela na minha vida, não só dela, mas de minhas tias e todas a mulheres de minha família. E também, já naquela época, eu entoava cantos de louvor a todas nossas ancestrais, que desde a África vinham arando a terra da vida com as suas próprias mãos, palavras e sangue. Não, eu não esqueço essas Senhoras, nossas Yabás, donas de tantas sabedorias. Mas de que cor eram os olhos de minha mãe?

E foi então que, tomada pelo desespero por não me lembrar de que cor seriam os olhos de minha mãe, naquele momento, resolvi deixar tudo e, no outro dia, voltar à cidade em que nasci. Eu precisava buscar o rosto de minha mãe, fixar o meu olhar no dela, para nunca mais esquecer a cor de seus olhos.

E assim fiz. Voltei, aflita, mas satisfeita. Vivia a sensação de estar cumprindo um ritual, em que a oferenda aos Orixás deveria ser descoberta da cor dos olhos de minha mãe.

E quando, após longos dias de viagem para chegar à minha terra, pude contemplar extasiada os olhos de minha mãe, sabem o que vi? Sabem o que vi?

Vi só lágrimas e lágrimas. Entretanto, ela sorria feliz. Mas, eram tantas lágrimas, que eu me perguntei se minha mãe tinha olhos ou rios caudalosos sobre a face? E só então compreendi. Minha mãe trazia, serenamente em si, águas correntezas. Por isso, prantos e prantos a enfeitar o seu rosto. A cor dos olhos de minha mãe era cor de olhos d’água. Águas de Mamãe Oxum! Rios calmos, mas profundos e enganosos para quem contempla a vida apenas pela superfície. Sim, águas de Mamãe Oxum.

Abracei a mãe, encostei meu rosto no dela e pedi proteção. Senti as lágrimas delas se misturarem às minhas.

Hoje, quando já alcancei a cor dos olhos de minha mãe, tento descobrir a cor dos olhos de minha filha. Faço a brincadeira em que os olhos de uma são o espelho dos olhos da outra. E um dia desses me surpreendi com um gesto de minha menina. Quando nós duas estávamos nesse doce jogo, ela tocou suavemente o meu rosto, me contemplando intensamente. E, enquanto jogava o olhar dela no meu, perguntou baixinho, mas tão baixinho como se fosse uma pergunta para ela mesma, ou como estivesse buscando e encontrando a revelação de um mistério ou de um grande segredo. Eu escutei, quando, sussurrando minha filha falou:

Mãe, qual é a cor tão úmida de seus olhos?

Conceição Evaristo
(In: Olhos d’água, p. 15-19)

Maher Zain - Palestine Will Be Free


 

Liderança em tempos de crise


GOODWIN, Doris, K. Liderança em tempos de crise; Tradução de Alessandra Bonrruquer. 1ª edição Rio de Janeiro: Editora Record. 2020. 560 pgs.

Liderança em tempos de crise é um estudo detalhado sobre liderança, escrito por Doris Kearns Goodwin, renomada historiadora e autora, conhecida por seus estudos sobre líderes presidenciais dos Estados Unidos, que habilmente nos transporta para os bastidores da Casa Branca, onde testemunhamos como quatro dos presidentes mais emblemáticos enfrentaram desafios monumentais e moldaram o destino de uma nação: Abraham Lincoln, Theodore Roosevelt, Franklin D. Roosevelt e Lyndon B. Johnson.

Para isso, ela examina as habilidades e traços de liderança dos quatro presidentes durante momentos considerados cruciais da história do país: para explorar como esses líderes enfrentaram e superaram crises durante seus mandatos.

Goodwin mergulha minunciosamente nas vidas e carreiras dos quatro líderes, fornecendo insights valiosos e detalhados sobre suas personalidades, estilos e qualidades de liderança ímpares, como enfrentaram desafios únicos, lidaram com momentos extraordinários e lideraram o país através de crises e durante períodos críticos, que testaram suas habilidades e resiliência.

O livro é uma exploração profunda de como a liderança eficaz pode moldar o curso da história e inspirar uma nação em tempos de turbulência.

Abraham Lincoln: Goodwin analisa como Lincoln liderou o país durante a Guerra Civil, enfrentando divisões profundas e tomando decisões difíceis para preservar a União e abolir a escravidão;

Theodore Roosevelt: Ela explora como Roosevelt liderou durante a Era Progressista, lutando contra a corrupção e promovendo reformas sociais e econômicas para lidar com os desafios da industrialização e urbanização;

Franklin D. Roosevelt: Goodwin examina o papel de Roosevelt na liderança dos Estados Unidos durante a Grande Depressão e a Segunda Guerra Mundial, destacando sua habilidade em mobilizar o país e inspirar confiança durante tempos de crise;

Lyndon B. Johnson: Por fim, ela investiga como Johnson enfrentou desafios como a luta pelos direitos civis e a Guerra do Vietnã, analisando suas habilidades políticas e seu estilo de liderança.

Liderança em Tempos de Crise é uma leitura obrigatória para qualquer pessoa interessada em história, liderança ou política. Com uma combinação ímpar de narrativa cativante, pesquisa detalhada e insights perspicazes, o livro oferece uma visão inspiradora e edificante sobre como os líderes podem enfrentar desafios e crises com coragem, sabedoria e liderança eficaz.

Você já leu esse livro?

Liderança baseada em princípios

Depois de ler Os 7 hábitos das pessoas altamente eficazes: lições poderosas para a transformação pessoal, O 8º hábito: da eficácia à grandeza e A 3ª alternativa: resolvendo os problemas mais difíceis da vida, li de “uma sentada” [lá vem digressão: na verdade de duas sentadas, pois li em 2008 e reli em 2009 e estou relendo agora em 2024] Liderança baseada em princípios de Stephen R. Covey (falecido em 16 de julho de 2012, em decorrência de uma hemorragia cerebral que sofreu após um acidente de bicicleta).


Este livro é uma obra fundamental que oferece uma abordagem transformadora para liderança pessoal e organizacional. Covey apresenta um modelo de liderança baseado em valores fundamentais e princípios éticos que promovam a eficácia, a confiança e o crescimento sustentável, este modelo se propõe a ser um guia inspirador para líderes em todos os níveis de uma organização.

A liderança é uma arte complexa (não confundir com confuso ou de difícil compreensão), que exige não apenas habilidades técnicas, mas também uma compreensão profunda dos valores e princípios que guiam as ações de um líder.

Covey argumenta que a liderança eficaz começa com uma base sólida de caráter e princípios, e faz uma anamnese de "Os sete hábitos das pessoas altamente eficazes", que foram concebidos para ajudar os líderes a desenvolverem essa base tão necessária, ao mesmo tempo que servem como um guia prático para alcançar o sucesso pessoal e profissional.

Cada hábito aborda uma área diferente do crescimento pessoal e da liderança, como autodisciplina, planejamento estratégico, priorização, empatia, comunicação eficaz, trabalho em equipe e autoaperfeiçoamento:
1. Ser proativo;
2. Começar com um fim em mente;
3. Colocar primeiro o primeiro;
4. Pensar ganha-ganha;
5. Procurar primeiro entender, depois ser entendido;
6. Criar sinergia;
7. Afiar o machado;

Covey oferece, ao longo do livro, insights profundos e exemplos práticos de como os líderes podem aplicar esses hábitos em suas vidas e organizações para alcançar resultados excepcionais. Ele destaca a importância de cultivar relacionamentos baseados em confiança, comunicação eficaz e colaboração, enfatizando que o verdadeiro sucesso não é apenas medido por resultados financeiros, mas também pela qualidade dos relacionamentos e pelo impacto positivo na comunidade.

A ênfase na liderança servidora é um ponto-chave do livro, por meio dela os líderes colocam as necessidades dos outros em primeiro lugar e trabalham para capacitar suas equipes a alcançarem seu pleno potencial. Covey argumenta que os líderes eficazes são aqueles que se dedicam ao crescimento e ao bem-estar de seus colaboradores, criando um ambiente de trabalho inspirador e motivador.

Além disso, "Liderança Baseada em Princípios" destaca a importância de se viver e liderar com integridade, ética e valores sólidos. Covey ressalta que a liderança eficaz não é apenas sobre alcançar metas e objetivos, mas também sobre fazer a coisa certa, mesmo quando é difícil.

"Liderança Baseada em Princípios" é uma leitura essencial para líderes em todos os níveis de uma organização, pois oferece uma abordagem holística e transformadora para liderança. Com sua combinação de princípios sólidos, insights práticos e exemplos inspiradores, Stephen R. Covey fornece aos líderes as ferramentas necessárias para liderar com integridade (o sentido mais estrito do termo: “inteiro”), compaixão e eficácia em um mundo cada vez mais complexo e desafiador. Este livro não é apenas um guia para alcançar o sucesso, mas também uma chamada para uma liderança que prioriza o bem-estar das pessoas (como alguns chavões corporativos: “gente que cuida de gente”). Com sua abordagem prática e inspiradora, Stephen R. Covey oferece um guia valioso para liderança autêntica, compassiva e baseada em valores, que pode transformar vidas e organizações para melhor.

A coragem para liderar


BROWN, Brené.
A coragem para liderar: trabalho duro, conversas difíceis, corações plenos; tradução Carolina Leocádio. BestSeller, Rio de Janeiro, 2020. 8ª Ed.

Não é um livro tão simples, quanto parece à primeira vista. Na verdade, é simples sim, apenas que na simplicidade da exposição e escrita que reside toda a força e importância desse livro, simplicidade aliada à franqueza e honestidade, honestidade, principalmente, consigo mesma.

A verdade é que até para andar com esse livro nas mãos, à mostra, é preciso coragem. Muita gente “experiente” pega nesse livro nas livrarias, dá uma olhada para os lados, só depois que abre e folheia.

Eu comprei esse livro em 2019 para dar de presente para minha filha, não foi para mim, que isso fique bem claro [esse comportamento por si só já é vulnerabilidade, e a Brené Brown fala disso como ninguém].

Coragem para liderar é, mesmo correndo risco de usar chavão, uma obra inspiradora que mergulha nas águas profundas e complexas da liderança autêntica e compassiva. Brené é uma pesquisadora renomada nas áreas que envolvem vulnerabilidade, coragem e resiliência, sua perspicácia acadêmica e expertise é explorar como os líderes podem cultivar conexões significativas, promover a confiança e estimular a inovação em seus ambientes de atuação.

O livro procura ir além das teorias de liderança convencionais, desafiando os leitores a olharem para dentro de si mesmos, explorar sua própria autenticidade e vulnerabilidade como pré-requisitos essenciais para a liderança eficaz. Ao longo do livro é destacada a importância de os líderes desenvolverem aquilo que Carol Dweck (Mindset: a nova psicologia do sucesso) chama de mentalidade de crescimento, aliada à filosofia de lifelong learning (aprendizagem contínua) e a melhoria pessoal como elementos-chave para o sucesso.

A contribuição mais marcante do livro talvez seja a abordagem compassiva [do latim compassionis, que significa junção de sentimentos] em relação aos desafios e fracassos que os líderes enfrentam. A autora encoraja os líderes a abraçarem a imperfeição e a praticarem a autocompaixão, reconhecendo que todos estão sujeitos a cometer erros e que o verdadeiro crescimento vem da capacidade de se levantar após as quedas (resiliência). Importante aqui é fazer um diálogo dessa habilidade com o conceito de antifrágil de Nassim Taleb.

Além disso, o livro também apresentar insights práticos sobre como os líderes podem construir culturas organizacionais inclusivas, promovendo a diversidade e a equidade em todos os níveis da hierarquia. Destaca a importância de criar espaços seguros onde todos os membros da equipe se sintam valorizados e capacitados a contribuir plenamente com seus talentos e perspectivas únicas.

Brown compartilha, ao longo do livro, uma série de histórias envolventes e inspiradoras de líderes que incorporaram os princípios da coragem e da vulnerabilidade em suas práticas diárias de liderança. Essas narrativas adicionam uma dimensão humana à discussão, ilustrando como os conceitos abstratos podem ser aplicados de maneira tangível em diversos contextos profissionais e pessoais.

Podemos resumir que Coragem para Liderar é uma leitura obrigatória para todos os líderes (sejam neófitos no ofício ou calejados pela experiência) que buscam aprimorar suas habilidades e criar ambientes de trabalho mais positivos e produtivos. Com uma abordagem empática e perspicácia acadêmica, Brené Brown oferece um guia valioso para liderar com coragem, compaixão e autenticidade em um mundo cada vez mais complexo e desafiador.

Hamas é uma organização terrorista?


Entenda por que o Brasil não trata o Hamas como organização terroristaClassificação de organizações terroristas é atribuição da ONU, diz MRE. 

Publicado em 12/10/2023 - 17:26, por Pedro Rafael Vilela - Repórter da Agência Brasil - Brasília.

Os ataques do grupo extremista islâmico Hamas em uma festa rave no último sábado (7), em Israel, deram início a um novo capítulo sangrento no histórico conflito entre esse grupo e o exército israelense. As características do ataque, com centenas de mortes de civis e outras vítimas sendo levadas como reféns, levantou a questão sobre a denominação do Hamas como um grupo terrorista.

Veículos de imprensa de todo o mundo e algumas nações classificam assim o grupo extremista que controla a Faixa de Gaza. Ao lamentar o episódio, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, pelas redes sociais, se referiu ao ataque como terrorista, mas não estendeu tal adjetivo ao Hamas. Assim, o presidente segue a linha adotada pelo governo brasileiro.

O Palácio do Itamaraty emitiu um comunicado, nesta quinta-feira (12), para informar que segue as avaliações do Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas (ONU) na designação dos grupos considerados terroristas. Pela Carta da ONU, o Conselho de Segurança é o órgão encarregado de zelar pela paz internacional.

“O Conselho de Segurança mantém listas de indivíduos e entidades qualificados como terroristas, contra os quais se aplicam sanções. Estão incluídos o Estado Islâmico e a Al-Qaeda, além de grupos menos conhecidos do grande público”, diz um trecho do comunicado.

Na nota, o Ministério das Relações Exteriores reafirma que, “em aplicação dos princípios das relações internacionais previstos no Artigo 4º da Constituição, o Brasil repudia o terrorismo em todas as suas formas e manifestações”.

Apesar da definição da ONU, países como Estados Unidos, Reino Unido, Canadá, Austrália, Japão, integrantes União Europeia e outras nações classificam o Hamas como uma organização terrorista.

Já maioria dos países-membros da ONU, incluindo países europeus como Noruega e Suíça, além de China, Rússia, nações latino-americanas, como o próprio Brasil, México, Colômbia, seguem a definição atual da ONU que não classifica o Hamas como grupo terrorista. A ideia de uma posição mais neutra também é uma forma de manter os países como mediadores de conflitos, além de ampliarem a capacidade de proteção a seus cidadãos em áreas conflagradas.

“A prática brasileira, consistente com a Carta da ONU, habilita o país a contribuir, juntamente com outros países ou individualmente, para a resolução pacífica dos conflitos e na proteção de cidadãos brasileiros em zonas de conflito – a exemplo do que ocorreu, em 2007, na Conferência de Anápolis, EUA, com relação ao Oriente Médio”, diz ainda a nota do Itamaraty, para reforçar a posição brasileira atual.

Um grupo de deputados de oposição chegou a pedir, essa semana, que o Ministério das Relações Exteriores mude a classificação brasileira sobre o Hamas.

A violência em Israel e na Palestina chegou ao sexto dia nesta quinta, com a continuidade de intensos bombardeios na Faixa de Gaza, onde vivem 2,3 milhões de palestinos. Autoridades locais já contabilizam 1,2 mil mortes e mais de 5 mil feridos. Há pelo menos 180 mil desabrigados.

Em Israel, segundo a emissora pública Kan, o número de mortos havia aumentado para 1,3 mil desde o último sábado, quando começaram os ataques violentos promovidos pelo grupo islâmico Hamas.

Quem é o Hamas
O Hamas, nome que significa, em árabe, Movimento de Resistência Islâmica, é um movimento palestino constituído de uma entidade filantrópica, um braço político e um braço armado. Foi criado em 1987, no contexto da 1ª Intifada, que foi uma das revoltas Palestinas contra a ocupação de Israel.

Em 2006, o Hamas derrotou o Fatah nas eleições legislativas para a Autoridade Nacional Palestina (ANP), conquistando o direito de formar o novo governo. Os dois partidos, no entanto, entraram em conflito. O Hamas expulsou o Fatah da Faixa de Gaza. Em resposta, o Fatah rejeitou o governo de unidade e se manteve à frente da ANP, que passou a ter uma administração política voltada para as áreas da Cisjordânia.

Segundo o cientista político Leonardo Paz, o Hamas não reconhece o Estado de Israel e briga pela independência de um Estado Palestino. “Israel, por sua vez, diz que o território é seu e não tem como oferecer qualquer tipo de soberania a esse Estado palestino porque não haveria nenhuma garantia de segurança de que esse Estado não seria um posto avançado para atacar Israel”, acrescenta.
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O Nakba e a reviravolta na política palestina

O horror israelense já dura 72 anos, mas o ataque à Sheikh Jarrah pode ter saído pela culatra. A Autoridade Palestina se mostrou fraca e impotente. Hamas ganha mais popularidade, apostando na luta unificada e resistência “mais contundente”


O bairro de Sheikh Jarrah, em Jerusalém Oriental, é o lar e o exílio de algumas famílias palestinas desde 1950, quando foram desalojados de suas casas em 1948, em decorrência dos confrontos violentos, conhecido como a Nakba (“catástrofe”). Muitos palestinos, de segunda e terceira geração, nasceram em Sheikh Jarrah. Para eles, Sheikh Jarrah sempre foi e sempre será o seu lar nacional.

A vitória israelense na guerra de 1948 determinou conquistas territoriais importantes e o deslocamento interno e externo de mais de 700 mil palestinos. Parte dos palestinos desalojados foram alocados nos Estados árabes vizinhos como a Jordânia, Síria, Líbano e Egito e outra parte para os territórios da Faixa de Gaza, Cisjordânia e Jerusalém Oriental. Se do lado israelense, 1948 foi o ano de independência do Estado de Israel, do lado palestino, 1948 é a Nakba, um período marcado pela desintegração da sociedade palestina através da dispersão humana, dos massacres e da destruição da vida em sociedade. A Nakba está enraizada na memória e na história palestina como um ponto de ruptura e de mudanças irreversíveis.

O momento, definido pelos palestinos como catástrofe, paradoxalmente, marca o nascimento do lar nacional do povo judeu, o Estado de Israel, após uma década de perseguições e de extermínios da comunidade judaica da Europa promovido pelo nazismo. A criação do Estado de Israel representa, na memória coletiva judaica, o renascimento e a ressurreição do povo judeu.

Embora a sociedade palestina seja detentora de diversas identidades étnicas, culturais, políticas e religiosas, desde antes de 1948, a Nakba unificou a memória coletiva e a identidade nacional palestina. A Nakba é frequentemente invocada durante a eclosão de novos conflitos e de ciclos de violência nos territórios ocupados, em Israel e nos campos de refugiados. Isso ocorre porque muitos conflitos registrados na história palestina, como o Setembro Negro, na Jordânia, em 1971; os massacres nos campos de refugiados de Sabra e Chatila, no Líbano, e as Intifadas (de 1987 e 2000) nos territórios ocupados, não teriam acontecido se não fossem precedidos pela Nakba.

De um modo geral, a Nakba representa um trauma constante, uma injustiça irreparável. A Nakba não é apenas uma lembrança do passado, a Nakba está presente nas condições de vida de todos os palestinos dos territórios ocupados, em Jerusalém Oriental, Cisjordânia e Faixa de Gaza; nos campos de refugiados e na diáspora. A Nakba é traduzida pelo cerceamento da locomoção dos palestinos, nos inúmeros check in points, na precariedade dos campos de refugiados no mundo árabe e na legislação discriminatória em Israel. A Lei de Nacionalidade, aprovada pelo parlamento israelense em julho de 2018, estabeleceu que o exercício do direito de autodeterminação em Israel é exclusivo do povo judeu. Essa nova lei retirou o idioma árabe da categoria de língua cooficial do Estado de Israel.


Os palestinos vivem, até hoje, o seu exílio e o seu deslocamento permanente.

Para os palestinos, os lugares do período pré-Nakba não são apenas lugares de memória, mas, acima de tudo, um símbolo de tudo que foi perdido. Muitos refugiados palestinos ainda guardam as chaves de suas propriedades perdidas durante a Nakba. Para os palestinos, nascidos nos campos de refugiados e no exílio, a Palestina se resume à memória de seus pais e avós que lutam para que esta lembrança não seja esquecida e a Palestina não desapareça. A Palestina não é apenas um território geográfico, mas a memória dos palestinos exilados.

O caso de Sheikh Jarrah, particularmente, tornou-se dramático porque no mesmo mês em que os palestinos estavam sendo ameaçados de perderem suas casas para alguns israelenses que reclamavam na justiça o direito de posse de propriedade, perdida em 1948, aconteciam duas importantes celebrações do calendário religioso judaico e islâmico, o Iyyar e o Ramadã.

No início desse ano de 2021, a Suprema Corte israelense decidiu a favor de alguns colonos reaverem suas propriedades em Sheikh Jarrah, e outorgou até o dia 2 de maio para que as famílias palestinas de Sheikh Jarrah negociassem um acordo com esses colonos israelenses sobre a propriedade de suas casas. Diante do impasse, o Poder Judiciário israelense propôs um acordo, requereu que as famílias palestinas despejadas pagassem aluguel aos colonos pelas residências até que o título de propriedade fosse transferido aos cidadãos israelenses e não exatamente aos herdeiros, desalojados em 1948. O que é ilegal, de acordo com a lei internacional.

Ainda, no dia 10 de maio, aconteceu a controversa marcha anual do “Dia de Jerusalém”, que celebra a “reunificação” da cidade de Jerusalém, em decorrência da vitória israelense na guerra de Junho de 1967. Nessa manifestação, grupos nacionalistas israelenses costumam percorrerem os territórios palestinos, localizados na cidade velha de Jerusalém. Foi nesse mesmo dia que muitos muçulmanos palestinos celebravam o fim do mês sagrado do Ramadã, o Eid al-Fitr, no Haram al-Sharif, nos arredores da mesquita de Al-Aqsa, conhecido pelos judeus como o Monte do Templo.

Em meio às celebrações religiosas do calendário judaico e islâmico, foi deflagrado uma guerra entre jovens palestinos e israelenses no bairro de Sheikh Jarrah. Os ataques à mesquita de Al-Aqsa, durante as celebrações do fim do mês sagrado do Ramadã, provocaram a fúria dos grupos de resistência palestina. Os foguetes do Hamas, dessa vez, alcançaram cidades importantes de Israel, chegando a atingir os arredores de Jerusalém e de Tel Aviv, provocando medo entre a população israelense, além de pôr em cheque o sistema de defesa aérea, o Iron Dome.

A decisão de retaliação aos ataques do Hamas em Israel deu projeção ao premiê israelense, Benjamin Netanyahu, que, até então, vivia um momento político conturbado. Netanyahu fracassou na formação de um governo em Israel, além de, atualmente, enfrentar alguns processos judiciais por corrupção, fraude e abuso de poder. Do lado palestino, o presidente da autoridade palestina, Mahmoud Abbas, cada vez mais impotente e enfraquecido e que se perpetua no poder há mais de 12 anos, adiou mais uma vez as eleições palestinas, diante da nova crise instalada.

O novo ciclo de violência, deflagrado em Jerusalém Oriental e na Faixa de Gaza, fortaleceram os dois extremos: o ministro Benjamin Netanyahu e o grupo Hamas. Os projetos políticos de ambos se sobrepõem à existência e à narrativa do outro.

Benjamin Netanyahu nunca reconheceu o Estado palestino. Ao longo de sua gestão, em Israel, Netanyahu anexou territórios palestinos por intermédio de construção de assentamentos na Cisjordânia e em Jerusalém Oriental. Em dezembro de 2017, em apoio ao atual premiê israelense, o então presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, anunciou a transferência da embaixada dos Estados Unidos, da cidade de Tel Aviv para Jerusalém, de modo a reconhecer oficialmente Jerusalém como a capital indivisível do Estado de Israel e, assim, inviabilizar o projeto de tornar Jerusalém Oriental a capital de um futuro Estado palestino. O gesto do governo americano influenciou outros Estados, como a Sérvia e a Guatemala, a transferirem suas embaixadas.

O grupo Hamas (Movimento de Resistência Islâmica), por outra parte, é cada vez mais popular entre os palestinos, sobretudo na Faixa de Gaza. A gradual popularidade do Hamas ocorre basicamente por duas razões. O grupo islamita mantém inúmeros programas sociais, culturais e religiosos, capazes de aproximar os palestinos, sobretudo os mais pobres, de sua ideologia. Além disso, o fracasso dos Acordos de Paz de Oslo (1993), combinado com a progressiva brutalidade da ocupação israelense provocou, ao longo do tempo, o ceticismo de muitos palestinos pelas iniciativas de diálogos com o governo de Israel.

A permanência da Nakba, refletida nos contínuos ataques em Gaza e nos últimos acontecimentos em Sheikh Jarrah, sequestraram o movimento nacional e secular palestino. O Hamas passou a ser reconhecido como o “campeão” da resistência palestina, ao enfrentar arduamente o inimigo israelense. Diante de uma autoridade palestina extremamente impopular e enfraquecida, o Hamas passou a controlar a narrativa palestina e a garantir a sua popularidade frente ao partido al-Fatah, de Mahmoud Abbas, e, do mesmo modo, entre as comunidades da Cisjordânia e de Jerusalém Oriental. Muitos estudiosos, como o professor de Ciências Políticas da Universidade de Bar Ilan, Ariel Zellman, acredita, inclusive, que o cancelamento das eleições na palestina se deveu ao receio da autoridade palestina pelas chances reais de vitória do Hamas.

Além da sobreposição de narrativas, os últimos confrontos comprovaram que o Hamas está belicamente mais forte. Os foguetes lançados contra Israel são mais potentes e sofisticados. Mesmo assim, os 11 dias de pesados bombardeios israelenses deixou 232 palestinos mortos, entre as vítimas fatais haviam 65 crianças, 39 mulheres e 17 idosos. O número de vítimas palestinas escancara publicamente a força militar desproporcional de Israel frente ao seu adversário palestino.


O fortalecimento de dois adversários que não se reconhecem mutuamente é especialmente trágico, pois tende a sinalizar para mais confrontos violentos. Os eventos em Sheikh Jarrah e na Faixa de Gaza refletem a fragmentação da sociedade palestina desde a Nakba e reafirma a face cruel e desumana de Israel, representada pelo atual governo. Além disso, os interesses políticos dos governos israelense e palestino abafam as inúmeras tentativas de aproximação e de diálogo entre as sociedades civis israelense e palestina. A ocupação da Palestina, desde a Nakba, impediu e ainda impede o encontro de muitos palestinos e israelenses que se recusam a ser inimigos. Contudo, apesar das dificuldades, durante os eventos violentos em Sheikh Jarrah houve manifestações conjuntas em 30 cidades israelenses. “A luta é política, entre os que querem a ocupação e a supremacia e aqueles que desejam a paz e a igualdade”, afirmou publicamente o deputado palestino Ayman Odeh, em uma grande manifestação na cidade de Tel Aviv. A conciliação acontecerá entre palestinos e israelenses quando os palestinos passarem a viver com dignidade. Enquanto houver Nakba a paz estará longe de ser alcançada...

Luciana Garcia de Oliveira é mestre no Programa de Estudos Judaicos e Árabes do Departamento de Letras Orientais da Universidade de São Paulo (DLO-USP) e uma das responsáveis pela tradução da coletânea Escritos Judaicos, de Hannah Arendt, publicado pelo selo Amarilys (2016).

A ideia fracassou

Este poema acaba de chegar de Gaza, uma mensagem enviada para o mundo em meio à barbárie. Bassman Addirawi é escritor e poeta da cidade de Gaza, nascido em 1988. É também um dos 17 jovens poetas do livro Gaza, terra da poesia (org. Muhammad Taysir), em que assina os poemas: “Filhos desobedientes” (أبناء عاقون) e “O estandarte da ira” (راية الغيظ).

O poema árabe foi publicado originalmente no site da revista Arablit Quarterly e a tradução do árabe ao português é de Beatriz Gemignani.      

Todo nosso apoio ao povo palestino.


por Bassman Addirawi

Fecho com Deus.
Também meu coração está decepcionado.
Se eu pudesse agora me sentava com Ele,
fumaríamos um cigarro e daria tapinhas no Seu ombro,
choraríamos juntos até cair uma chuvinha fina
que lavasse Gaza dessa nuvem de fumaça, que não é do céu,
e estancasse o estrondo que mata outra criança em Gaza
então meu sangue pararia de fluir das mãos e da boca do mundo,
a vida sopraria no peito de Gaza e uma nova ressurreição se daria
sem feridas, sem gemidos.
Mas o gemido, meu Deus, não morre. 
Escuto Deus soluçar: “Um bilhão de calados, um milhão de assassinos”.
O choro se adensa.
Apesar do meu jeito, servo desobediente, eu rezo
e lembro o rosto de todas as famílias e amigos,
lembro as ruas, as cidades, o rosto do mar,
o rosto de todos que passaram por mim em Gaza.
Rezo e escuto a voz de Deus em cada explosão e em cada corpo decepado que grita:
A ideia fracassou.
A ideia fracassou.

O pentecostalismo sionista “made in USA”

O pentecostalismo sionista “made in USA” e o apoio às ilegalidades de Israel
"Derrotar o imperialismo em todas as suas formas é uma exigência da humanidade pelo respeito ao direito internacional e a pertença inalienável dos povos originários ao seu território ancestral", escreve Bruno Beaklini (Bruno Lima Rocha Beaklini), editor dos canais do Estratégia & Análise e militante socialista libertário de origem árabe-brasileiro, em artigo originalmente publicado por Monitor do Oriente Médio, 23-11-2020.

* * *

Existe uma conta de chegada na política doméstica dos EUA que se dá na vitória ou derrota em alguns colégios eleitorais, a partir do chamado “cinturão bíblico”. Quase sempre a pregação moral, a mesma que alinha votos à direita do sistema político da Superpotência, aponta para a chamada “direita cristã”. Como cientista político de formação, considero mais preciso denominar “direita pentecostal” e, no tema desse artigo, mais especificamente “sionismo pentecostal”.

Não é apropriado associar diretamente um sistema de crenças de tipo religioso com um determinado posicionamento político. Isso seria algo próximo da apostasia e como tal é crime, combato esse tipo de afirmação com toda a veemência. Tampouco é correto relacionar toda a pregação protestante nos Estados Unidos com posições mais reacionárias. Durante os anos da grande industrialização, do início do sindicalismo massivo na década de 1880 até a consolidação do New Deal na segunda metade dos anos 1930, não foram poucos os pastores, ministros e ministras que se alinharam junto à classe trabalhadora e lutaram ombro a ombro por melhores condições de vida e direitos sociais. Talvez o exemplo mais evidente seja a luta dos mineiros do carvão e suas famílias, combinando um sindicalismo classista de resistência e a congregação religiosa como abrigo e guarida para uma vida, ou mesmo uma sobrevivência mais coletiva, e muito solidária.

O exemplo ganha contornos épicos com a Congregação das Igrejas Batistas do Sul e o papel de destaque das lideranças religiosas afro-americanas, a começar pelo próprio Dr. Martin Luther King Jr, à frente da Conferência de Lideranças Cristãs do Sul (SCLC). Ele, junto ao islamizado Malcolm X, são as maiores referências de intelectuais e pregadores afro-americanos dos EUA no século XX. Infelizmente, os supremacistas brancos profanam a cruz do profeta Issa (Jesus Cristo, portanto, o crucificado) e se utilizam de simbologia “cristã” para pregar justamente o oposto do realizado pelo Messias, quando enfrentou o imperialismo de seu tempo e de peito aberto. O mau exemplo é abundante.

Fundado no ano de 2015, o museu dos “cristãos sionistas” – Friends of Zion foi fruto de uma aliança entre o republicano Mike David Evans e a elite dirigente do Estado de Israel, incluindo Menahem Begin (o próprio), o terrorista da Irgun que virou primeiro ministro do Estado Colonial. Evans foi um dos proeminentes “assessores pentecostais” do derrotado Donald Trump. Mas não para por aí.


A poderosa rede International Fellowship of Christians and Jews envia um volume considerável de recursos para Israel, assim como promove imigração de famílias judaicas, sempre contrapondo o permanente desequilíbrio demográfico. Nas partes mais importantes do portal, não se observa nada da tradição humanista da esquerda judaica (não sionista), tampouco abordam o problema da extrema direita que sempre flerta com o nazi-fascismo. Outra “curiosa” coincidência.

Segundo o canal Vice, o alinhamento das congregações do chamado “cinturão bíblico” com Israel é de hegemonia absoluta, o que inclui um volume importante de recursos destinados aos assentamentos na Cisjordânia. Ou seja, em nome de algum tipo de leitura fundamentalista do Velho Testamento, empresas cujo negócio é arrecadar recursos em espécie de pessoas necessitadas, destinam parte desta verba para construções que são ilegais, perante o direito internacional, e vão de encontro a várias resoluções da ONU, a começar pela Resolução 242 que, em “tese”, obrigaria Tel Aviv a devolver os Territórios Ocupados na Naksa, em 1967. Alguém viu uma “expedição de capacetes azuis” desembarcando no litoral da Palestina Ocupada em 1948? Alguém foi informado de um “bloqueio econômico” de vulto ou uma “ação conjunta” sequer parecida com as condenações da África do Sul no período do Apartheid? Suponho que não, pois isso jamais existiu.


E tem mais. John Hagee é um pastor que coordena excursões para Israel e apoia os assentamentos ilegais na Cisjordânia. Também é líder da congregação protestante de teleevangelistas e ganhador de uma medalha dos “Friends of Zion” - inclusive afirma, na seção de “sistema de crenças”, um compromisso com Israel. A razão alegada é milenarista, como afirmado abaixo através de ampla pesquisa. Hagee diz que: “Cremos na promessa de Gênesis 12: 3 a respeito do povo judeu e da nação de Israel. Acreditamos que os cristãos devem abençoar e confortar Israel e o povo judeu. Os crentes têm um mandato bíblico para combater o anti-semitismo e falar em defesa de Israel e dos escolhidos.”


Suponho que para tais cidadãos estadunidenses, essa interpretação do Velho Testamento tenha mais “validade” do que as 850 mil pessoas que foram deportadas, expulsas de suas terras onde residem a tanto ou mais tempo do que a frase no Gênesis. Além da Nakba, como se fosse pouco, os cerca de 13% de árabes-palestinos de fé cristã, resultando em distintas comunidades simplesmente seriam simplesmente “irrelevantes”.

Curioso que um pouco mais abaixo do mesmo texto, afirma-se em Genesis 12:6: “E passou Abrão por aquela terra até ao lugar de Siquém, até ao carvalho de Moré; e estavam então os cananeus na terra.” Não entro no mérito dos sistemas de crenças e valores religiosos, mas tomando em conta o fenômeno histórico, o povo palestino sempre esteve lá e combateu o mesmo imperialismo. Enfim, nada justifica, a não ser que a propaganda milenarista ultrapasse o direito internacional. Daí para uma teoria “globalista” ou outras extravagâncias ao estilo de Steve Bannon e Alexander Dugin não falta nada.


É importante observar esta interpretação do historiador Walker Robins:
“Os Batistas do Sul viam amplamente a Palestina com olhos orientalistas, associando o movimento sionista à civilização ocidental, modernidade e progresso contra os árabes da Palestina, que eles viam como incivilizados, pré-modernos e atrasados. Essa visão era compartilhada por viajantes batistas, por missionários, por pré-milenaristas e por seus oponentes.”
Infelizmente, nada disso é “novidade” e é uma evidência na relação para-estatal de diplomacia pública, que realiza uma aliança direta através de enlaces do Ministério de Assuntos Estratégicos de Israel e as maiores congregações do cinturão bíblico. O jornal israelense Haaretz fez uma boa investigação a respeito, assim como a Al Jazeera, em inglês, corretamente afirma que:
“Como resultado de tais crenças, os sionistas cristãos apoiam o empreendimento de colonatos ilegais de Israel na Cisjordânia e, de facto, qualquer outra política - israelense, americana ou outra - que assegure a soberania judaica israelense sobre a terra desde o Mar Mediterrâneo até ao rio Jordão e mesmo mais além, até à margem oriental da Jordânia”. E termina reiterando que “Os sionistas cristãos geralmente ignoram as violações dos direitos palestinos por Israel, mesmo dos palestinos cristãos, ou as veem como um meio necessário para um fim.” (no mesmo link acima).
Considerando que 80% dos chamados evangélicos dos EUA (de um total de 70 milhões), com especial ênfase os pentecostais teleevangelistas, apoiam incondicionalmente o Estado de Israel, ignoram o Apartheid Colonial e a invasão de territórios soberanos dos países vizinhos, para além do lobby do AIPAC, existe uma demanda doméstica bem à direita, com crenças milenaristas e motivações imperiais para seu aliado estratégico.


Não me espanta. As Treze Colônias, quando unificadas, formadas por convencionais escravagistas, autoproclamaram o Destino Manifesto. Assim, romperam seguidos acordos e tratados com nações indígenas, forçaram duas guerras contra o México e terminaram por roubar metade do território do país vizinho. Era de se supor que a hegemonia da direita milenarista defenda quem faça no Oriente Médio o que os Estados Unidos fizeram no continente americano: expansionismo territorial, genocídio indígena, apartheid ou segregação e conquistas imperialistas como em Porto Rico, Filipinas e Havaí.

Derrotar o imperialismo em todas as suas formas é uma exigência da humanidade pelo respeito ao direito internacional e a pertença inalienável dos povos originários ao seu território ancestral.


Israel: 70 anos de brutalidade

Desde a criação do Estado hebreu, palestinos são expulsos de suas casas, presos, torturados, mortos e submetidos a violência econômica grosseira. É a “nakba”. Poderia ser a “solução final” de Hitler.


Por Greg Shupak, no Jacobin | Tradução: Mauro Lopes

Em 14 de maio de 1948, setenta anos atrás, Israel lançou sua “declaração de independência”. Desde então, todo dia 15 de maio tem sido o Dia Nakba quando os palestinos marcam a limpeza étnica sofrida por seu povo depois da criação de Israel. [Nakba é uma palavra árabe que significa “desastre” ou “catástrofe”, termo similar a shoá em hebraico, que os judeus utilizam para designar o massacre nazista – nota OP]. Este Dia Nakba foi marcado pela Grande Marcha de Retorno, uma grande mobilização em massa até a cerca que Israel ergueu para separar Gaza e Israel, para manifestar seu desejo de passar pela barreira. Até o momento, Israel já matou pelo menos 52 manifestantes palestinos, no que a Anistia Internacional chamou de “uma violação repugnante da lei internacional”, envolvendo “o que parecem ser assassinatos intencionais, que constituem crimes de guerra”.

Como outros estados coloniais, Israel pretende asfixiar a vida social das populações dos territórios ocupados que procura dominar. Esse imperativo é particularmente urgente no caso de Israel, onde as populações judias e não-judias são de tamanho equivalente e a terra em questão é relativamente pequena. A negação discriminatória de direitos estende-se aos palestinos em outros países -são cidadãos de segunda classe em Israel, sob ocupação, na diáspora ou em campos de refugiados. Todos são impedidos de retornar às suas casas através do uso da violência e com a ajuda decisiva dos EUA.

A mensagem inconfundível para os palestinos de todas as gerações, desde antes da Nakba até a Grande Marcha de Retorno, é que a menor resistência ao etnoestado erigido em sua terra natal será combatido com prisões e mortes.

Anatomia da repressão
A violência israelense permeia todos os aspectos da vida dos palestinos, com estratégias de controle que assumiram uma variedade de formas ao longo do tempo. Para criar o Estado em 1948, as forças sionistas expulsaram 750.000 palestinos de suas casas. No processo, realizaram cerca de dez massacres em grande escala, cada um com pelo menos cinquenta vítimas, juntamente com cerca de cem massacres menores. As forças dos paramilitares israelenses mataram palestinos em quase todas as suas aldeias, despejando repetidamente os corpos das vítimas em covas, antes da oficialização do Estado de Israel. Em várias ocasiões, milícias sionistas mataram crianças e estupraram mulheres palestinas.

Atrocidades semelhantes continuaram nos primeiros anos do Estado de Israel. Em 1953, as forças israelenses massacraram 69 aldeões palestinos em Qibya, depois de alegarem “infiltração” do território israelense por refugiados palestinos. Durante o conflito de Suez, três anos depois, eles mataram 48 trabalhadores palestinos em Kafr Kassim; 275 civis palestinos em Khan Yunis e num campo de refugiados próximo; em seguida, mais 111 palestinos no campo de refugiados de Rafah.

Depois de 1967, com o estado de Israel consolidado, o governo começou a perseguir o que Tariq Dana e Ali Jarbawi chamam de “sonho de uma ‘Grande Israel’ com o máximo de terra e o mínimo de árabes”. Mais de 350.000 palestinos foram expulsos de suas casas, enquanto Israel ocupava a Cisjordânia, Gaza e Jerusalém Oriental (assim como as Colinas de Golan da Síria e o Sinai do Egito). Quase 600.000 colonos adentraram ilegalmente nos territórios ocupados com o apoio do Estado. E os massacres de palestinos em Israel continuaram desde então: no verão de 2014, Israel matou 2.251 palestinos – incluindo 1.462 civis e 556 crianças – durante a fúria assassina chamada Operação Margem Protetora. Como observou o estudioso canadense Nahla Abdo, a violência dos palestinos deve ser vista no contexto dessa “relação assimétrica” entre os dois lados.

Enquanto isso, aos palestinos nos territórios ocupados é sistematicamente negado o devido a processo legal: mantidos sem julgamento em detenções administrativas ou submetidos a processos militares e rotineiramente torturados. Tal tratamento estende-se às crianças palestinas, sujeitas a práticas que, nas palavras da UNICEF, “resultam em tratamento ou punição cruel, desumano ou degradante, de acordo com a Convenção sobre os Direitos da Criança e a Convenção contra a Tortura”, incluindo ameaças de “morte, violência física, confinamento solitário e agressão sexual, contra si mesmos ou um membro da família”. Atualmente, existem mais de 6.000 presos políticos palestinos em prisões israelenses.

Quando os palestinos não estão sendo algemados, torturados, bombardeados ou abatidos, eles vivem sob a ameaça contínua de tais ações. Depois da guerra de 1967, Israel estabeleceu um regime para examinar tudo, desde oficinas palestinas que fabricam móveis, sabão, tecidos, produtos de azeitonas e doces, até listar quantos televisores, refrigeradores, fogões a gás, pomares, animais e tratores os palestinos possuem, muitas vezes censurando livros, romances, filmes, jornais e panfletos políticos.

Expropriação econômica
A violência econômica – a expropriação da riqueza palestina e a destruição da capacidade dos palestinos de se sustentarem – marcou o tratamento de Israel aos palestinos desde o início do Estado israelense. Nos anos imediatamente posteriores a 1948, Israel adotou políticas destinadas a confiscar e controlar a terra palestina, destacadamente com a Lei da Propriedade Desocupada de 1950, pela qual Israel garantiu para si 90% da terra, designando como “desocupada” toda terra que os palestinos tivessem sido obrigados a abandoar devido repartição conduzida pelas Nações Unidas em 1947.

Os assentamentos israelenses são construídos em áreas ricas em recursos, projetados para explorar a água palestina e a terra arável – uma política que aumenta os recursos de Israel e priva os palestinos de desenvolvimento econômico. Após a ocupação de 1967, Israel construiu um regime econômico destinado a incorporar a economia palestina à economia de Israel, tornando seu governo colonial um empreendimento barato e, ao mesmo tempo, frustrando o desenvolvimento econômico palestino. Entre as medidas adotadas estavam o fechamento de instituições financeiras e monetárias árabes, a imposição da moeda israelense, a proibição de exportações e importações, exceto através de fronteiras controladas por Israel, a imposição de altos impostos (alfândega, imposto de renda, IVA), quase nenhum investimento em infraestrutura nas áreas palestinas, licenciamento restrito para atividades industriais e controle sobre comunicações, recursos de eletricidade, água e recursos naturais. As políticas israelenses transformaram o mercado palestino num mercado cativo, que se tornou um conveniente lixão para produtos industriais israelenses de má qualidade que não podiam competir com os fabricantes dos países industrializados da Europa e EUA. Isso não só trouxe grande lucro para a economia israelense, mas igualmente formou uma nova classe de capitalistas israelenses, cujas principais atividades industriais foram projetadas para os territórios ocupados.

Assim, as políticas israelenses provocaram uma deterioração da base econômica palestina e criaram uma dependência estrutural à economia de Israel, na medida em que o Estado ocupante controla os principais pontos nodais da atividade econômica, como fronteiras, terras, recursos naturais, comércio, movimentação de mão-de-obra, gestão fiscal e zoneamento industrial. Por mais de uma década, além disso, um brutal cerco militar combinado entre EUA e Israel e o Egito dizimou Gaza, a ponto de em breve a região ser inabitável. Militares e colonos de Israel arrancaram centenas de milhares de oliveiras palestinas na Cisjordânia e na Faixa de Gaza e nos primeiros anos do milênio o exército israelense arrasou quatro milhões de metros quadrados de terra cultivada.

A Grande Marcha do Retorno

Desde o início da Grande Marcha do Retorno, em 30 de março, Israel matou dezenas de palestinos e feriu quase 4.000. Nenhum israelenses foi morto ou ferido. O poder da Marcha é que ela chama a atenção para a ilegitimidade de manter artificialmente uma maioria demográfica judaica na Palestina histórica. Enquanto massas de palestinos aproximam-se da cerca entre Gaza e Israel, os manifestantes personificam a “ameaça” de palestinos retornando a seus lares e vivendo em uma Palestina-Israel que não pode ter como premissa manter os palestinos fora e perpetuamente apátridas -como refugiados ou como uma minoria oprimida dentro de Israel.

Os manifestantes estão, em suma, tentando afirmar, pelo menos temporária e simbolicamente, seu direito à sua terra, identidade, nacionalidade, liberdade -o que as negociações com Israel e seu patrono norte-americano não produziram até hoje.

Greg Shupak é professor de mídias na Universidade de Guelph, Canadá. É autor de “A história equivocada: Palestina, Israel e a Media (OR Books)

Fontehttps://outraspalavras.net/sem-categoria/israel-70-anos-de-brutalidade/ - Publicado originalmente em 16/05/2018. 



Sionismo cristão e dispensacionalismo

 

O dispensacionalismo do sionismo cristão estadunidense
 A fim de compreender como se deu a fundação e fortalecimento do sionismo cristão norte-americano e suas diretas implicações na construção do movimento evangélico brasileiro – em especial, pentecostal e neopentecostal -, faz-se necessário analisar o papel central do dispensacionalismo. Charles C. Ryrie, importante teólogo norte-americano, busca em um de seus livros definir essa corrente. De início, é necessário compreender o que é uma dispensação. O autor parte de uma definição superficial adotada por muitos críticos e, também, adeptos ao dispensacionalismo; dispensação seria um período de tempo no qual Deus testa a obediência do Homem em relação a alguma revelação. O autor, entretanto, discorda que a concepção de uma dispensação deva ser atrelada a uma era, ou a um período de tempo determinado. No lugar, deve ser entendido como um acordo em que a administração da obra divina – a Terra, um reino, uma locação específica - é dada ao Homem com um objetivo, com a intenção de gerar uma revelação. Tempo e acordo coincidem cronologicamente, mas o que constitui a dispensação é o tipo e objetivo do acordo, e não sua periodicidade. O autor cita, ainda, que a descrição de uma dispensação envolve: uma revelação distinta, a responsabilidade dada ao Homem, os teste aplicados, o fracasso humano e o julgamento divino. Todas as dispensações da Bíblia possuem essas características (RYRIE, 1995). 

Essa hermenêutica bíblica entende que há sete dispensações na Bíblia: (1) a da Inocência, na qual Adão falha em suas tarefas de manter o Jardim do Éden, livre de pecado, e cede ao comer o fruto proibido; (2) a da Consciência, no qual o Homem deveria se comunicar com Deus por meio de sacrifícios de sangue, que não foram cumpridos por Caim (e outros) e trouxeram o homicídio ao mundo; (3) a do Governo Civil, no qual os humanos fracassaram em seguir a ordem divina de espalhar a população pelo planeta após o Dilúvio e decidiram, no lugar, construir a Torre de Babel; (4) a da Promessa, no qual o povo de Abraão deveria permanecer na Terra Prometida; (5) a do Quadro Legal, no qual o Homem era responsável por manter uma ordem jurídica justa, mas acabou levando à Crucificação injusta de Jesus Cristo; (6) a da Graça, na qual o Homem deve aceitar o caminho da Graça Divina e aqueles que o rejeitarem serão julgados com a segunda vinda de Cristo; e, por fim, (7) a dispensação do Milênio, na qual Jesus Cristo governará um reino de paz por mil anos, enquanto o Satanás permanece amarrado e a desobediência eliminada (RYRIE, 1995). Apesar de ser possível encontrar autores que discordem dessa divisão de sete dispensações, a tese de Ryrie é vastamente predominante. 

Ryrie (1995) exalta o caráter literal da hermenêutica bíblica proposta pelos dispensacionalistas. O autor ressalta como outras teorias, como a Teologia da Aliança (que será abordada em seções posteriores), se valem de interpretações não literais, marcadas por entendimentos subjetivos, que fogem à gramática. O autor defende que o dispensacionalismo é a única teologia que fornece um quadro consistente e objetivo de análise e leitura da Bíblia, por meio de sua interpretação literal; isso já prenuncia o caráter restritivo e limitante oferecido pelo dispensacionalismo para interpretação da realidade, dado que o texto bíblico deve ser interpretado sempre em sua literalidade. À luz desse entendimento, um dispensacionalista entende que Jerusalém e, por consequência, Israel são os lugares dos quais Jesus Cristo governará seu reino de mil anos de paz após seu retorno e, em razão disso, devem ser protegidos, para que essa visão teológica profética possa concretizar-se. 

O dispensacionalismo forma o sionismo cristão norte-americano. Wachholz e Reinke (2020) compreendem que o processo de formação do sionismo cristão alimentado pelo dispensacionalismo tem forte impulso nos Estados Unidos da América por algumas razões: 
“É bastante possível que o dispensacionalismo tenha tido ampla aceitação [...] justamente pela sua defesa da Bíblia em uma época em que sua autoridade era questionada pelo modernismo teológico. Além disso, os dispensacionalistas defendiam que qualquer cristão podia ler e interpretar as Escrituras sem a necessidade dos especialistas da academia teológica (WEBER, 2005, p.36- 39). [...] Blackstone criou o mito fundador do sionismo cristão dos Estados Unidos da América ao combinar a crença messiânica com a história nacional no seu mais profundo senso patriótico: para ele, o Estado norte-americano deveria desempenhar papel que Ciro teve na restauração dos judeus a Sião, pois Deus teria escolhido os puritanos pela sua superioridade moral.” (WACHHOLZ; REINKE, 2020) 

A tese defendida no trecho pelos autores reforça o caráter político que sionismo cristão e, especialmente, o dispensacionalismo possuem. A doutrina dispensacionalista ganha seu primeiro forte impulso com a criação do Estado de Israel em 1948, tendo sua completa popularização alcançada após a vitória israelense na Guerra dos Seis Dias. A cultura norteamericana começou a propagar uma espécie de discurso sobrenatural e profético, que atingiu inúmeros setores da sociedade e disseminou as concepções dispensacionalistas. Desde então, houve uma mobilização política de teólogos, religiosos e escritores para que o Estado de Israel fosse protegido e benquisto por aqueles que governam os EUA (WACHHOLZ; REINKE, 2020). 

Apesar do foco primário da literatura sobre sionismo cristão ressaltar o papel do dispensacionalismo, existem outras correntes. Em seu trabalho de mapeamento da expansão do capital político e social do evangélicos no Estados Unidos da América, Amstutz (2013) mapeia pelo menos outras duas narrativas evangélicas de apoio ao povo judeu. A primeira narrativa, a Teologia da Substituição (Replacement Theology), defende que a partir do advento de Jesus Cristo o povo judeu deixa de ser a prioridade e o povo a ser protegido nos planos divinos – substituídos pelo povo cristão. Originada por Santo Agostinho, não é tão relevante atualmente. As críticas contemporâneas se concentram no fato de que essa teologia é exacerbadamente focada na vida e morte de Jesus Cristo, sem considerar as bases morais judaicas do Cristianismo. Com foco em Cristo, a narrativa também perde força ao negligenciar ensinamentos presentes no Velho Testamento (AMSTUTZ, 2013, p. 121). 

A segunda narrativa a ser abordada é a Teologia da Aliança (Covenant Theology). Com origem com João Calvino, teólogo fundador do Calvinismo e central no Protestantismo, essa narrativa entende que há duas alianças distintas, mas interdependentes: a do Velho Testamento, conhecida como “Aliança da Lei”; a segunda, presente no Novo Testamento, conhecida como “Aliança da Graça”. Judeus e cristãos são partes plenas no plano de Deus, estando ambos dentro da Salvação (AMSTUTZ, 2013, p. 122). 

Por fim, o Dispensacionalismo. O autor defende que esta corrente não é a predominante entre os líderes evangélicos, diferente de outras literaturas sobre o tema. Ainda assim, reconhece o papel que esta corrente ocupa na mídia e seu impacto na interpretação evangélica sobre política internacional. O autor ressalta que sob o Dispensacionalismo, a Bíblia deve ser lida literalmente: a defesa do Estado de Israel é necessária dado que a criação deste é uma das etapas para a volta de Jesus Cristo à Terra. Sua crítica reside no fato de que essa leitura literal é simplista e não permite análises complexas sobre os conflitos atuais no Oriente Médio (AMSTUTZ, 2013, p. 123). 

Diante do exposto, entende-se que, para o cenário brasileiro – enraizado no estadunidense – sionismo cristão e dispensacionalismo são conceitos inseparáveis. Se nos EUA o dispensacionalismo teve força ao ser associado à crença de um povo prometido, bem próximo dos valores do Destino Manifesto, no Brasil sua tração se origina nas visões proféticas e apocalípticas adotadas pelas igrejas protestantes. A hermenêutica literal do dispensacionalismo fornece aos crentes e intérpretes um framework rígido, em que as respostas já estão dadas e possuem tanta simbologia subjetiva. Essa característica estimula que o apoio ao Estado de Israel se dê por razões puramente religiosas, sem levar em consideração outros fatores implicados no Oriente Médio.

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In: Miguel Filizola PizaSionismo cristão e dispensacionalismo: como estes fenômenos norteiam as relações entre grupos evangélicos, o governo de Jair Bolsonaro e política externa brasileira (2022)
Fonte: https://bdta.abcd.usp.br/directbitstream/7d8de9fb-aa21-4b10-b096-0222ae4c0dd0/TCC%20-%20Miguel%20Filizola%20Piz...

Antissionismo não é antissemitismo

 

José Welmowicki e Soraya Misleh

Uma confusão sempre à espreita e que ganha corpo nos últimos dias é que antissionismo seria uma forma de antissemitismo. Nada mais falso. Entendemos que há três tipos de confusões em relação a isso: a primeira é deliberada e, portanto, criminosa, como faz o Estado racista de Israel e suas organizações; a segunda é por desonestidade ou oportunismo, e geralmente está atrelada à primeira; e a terceira é por equívoco ou desconhecimento, fruto das ideologias que permeiam frequentemente os meios de comunicação de massa e estão na boca dos políticos e outras personalidades. A proposta deste artigo é explicar a diferença entre antissionismo e antissemitismo, que é grande.

Antissemitismo esteve presente nas falas do apresentador Bruno Aiub (Monark), durante a edição do Flow Podcast no último dia 7 de fevereiro, e do deputado federal Kim Kataguiri (DEM-SP) no mesmo programa, o que é absolutamente condenável. Nosso repúdio veemente à ideia absurda que propagaram de que o nazismo não deveria ser tratado como crime e que, como afirmou Aiub, “tudo bem ser antijudeu”. Não está nada bem defender o racismo e discriminação e a opressão. Não está, portanto, nada bem ser antissemita. Isso significa naturalizar o ódio a determinadas etnias ou raças.

O nazismo, com sua abominável ficha de atrocidades cometidas durante o Holocausto contra judeus (6 milhões de mortos), e também contra ciganos, comunistas e anarquistas, LGBTs e deficientes físicos, todos os que não seriam parte da “raça ariana”, durante o século XX, foi um crime contra a humanidade. Defender a legalização de um partido nazista é inaceitável. Infelizmente Aiub e Kataguiri não são os únicos. O vereador paulistano capitão-do-mato Fernando Holiday (Novo), que disse antes que racismo contra negros no Brasil não existe, é outro que, do alto de sua idiotia sem tamanho, defendeu a “descriminalização do nazismo”, sob a lógica distorcida de “liberdade de expressão”.

O direito democrático à liberdade de expressão não significa direito a incitar racismo, sob quaisquer formas. Não pode ser usado como muleta para se propagar livremente crimes contra a humanidade e discursos de ódio. As consequências, e isso não é de hoje, são amplamente conhecidas.

Ao mesmo tempo, no seu ridículo pedido de desculpas, tentando justificar o injustificável, Kim Kataguiri trouxe a máxima, em vídeo nas suas redes sociais, que não poderia ser antissemita porque “não tem ninguém mais pró-Israel dentro do Parlamento do que eu”, para emendar dizendo que considera “até engraçado pessoas anti-Israel me chamando agora de antissemita, de nazista”.

Essa ideologia não é à toa. Atende à confusão deliberada feita pelo Estado racista de Israel, que coloca um sinal de igual no que não tem absolutamente nada a ver, uma chantagem que merece também repúdio veemente, para silenciar os críticos do projeto colonial sionista. E que não é de hoje.

Mas o que é antissemitismo e quais suas origens?
O racismo contra os judeus, o antissemitismo, teve origem na Idade Média europeia. Os reis, nobres e sacerdotes, exploravam os servos em seus feudos na Europa medieval; na sociedade feudal, as transações comerciais e financeiras e atividades como a usura eram vistas como pecaminosas, proibidas aos cristãos. Um não cristão tinha que fazê-las. Na verdade, fazê-las a serviço da nobreza e do clero, que eram a classe dominante. Os judeus cumpriram esse papel de comerciantes, artesãos, ourives etc. e também de agiotas, tarefa que estava vetada aos cristãos. Faziam isso sob o controle dos reis do clero e dos nobres, e quando surgiam as catástrofes como a fome, as pestes, a cada período desse sistema feudal, as classes dominantes viam como necessário um bode expiatório. Por seu papel na sociedade, o de mercadores que comerciam as mercadorias e de emprestadores de dinheiro e que cobram juros, os judeus eram um alvo fácil, daí as lendas divulgadas pela Igreja cristã, como o mito de que “os judeus mataram Cristo”, eram utilizadas pelos nobres para jogar a culpa de todos os infortúnios da população nos judeus.

A revolução francesa, com seus três lemas – liberdade, igualdade e fraternidade – colocou a questão de considerar os seres humanos iguais perante a lei. Mas, como sabemos hoje, a nova sociedade capitalista foi incapaz de dar verdadeira igualdade às mulheres e às etnias e raças perseguidas. Foi a revolução russa de 1917 que trouxe a libertação dos povos de todo o antigo Império russo, o fim da discriminação a todas as etnias, incluindo os judeus de seu território.

E em sua fase imperialista, o capitalismo acirrou a exploração e as guerras de colonização de povos: e a perseguição racial tomou uma forma ainda mais assassina. Foi nessa fase imperialista que surgiram o fascismo e o nazismo; uma ideologia que justificava o genocídio e a eliminação de raças como única forma de avanço para o povo alemão. O antissemitismo foi transformado em uma política industrial de genocídio, de eliminação dos judeus.

Surgimento do sionismo
O sionismo, surgido no fim do século XIX, com Theodor Herzl, defendeu que o problema da discriminação dos judeus só seria resolvido se os judeus tivessem um estado exclusivo deles. O sionismo aceitava, assim, um pressuposto que os racistas antissemitas vinham pregando – era impossível a convivência sem discriminação entre diferentes raças e etnias, entre judeus e não judeus. Sua própria constituição racial impediria isso. E Herzl e a Organização Sionista mundial (OSM) trataram de procurar os dirigentes das potências imperialistas e ministros do império czarista da Rússia para negociar seu apoio a esse projeto, entre outros argumentos, lembrando-os que poderiam livrar-se dos judeus de seu território. Durante a Primeira Guerra Mundial (1914-1918), através de Chaim Weizmann, liderança sionista, a OSM obteve uma declaração do governo imperialista inglês, a Declaração Balfour de 1917, comprometendo-se a permitir a instalação de um Lar Nacional Judeu no território da Palestina. Ou seja, era um compromisso da autoridade colonial inglesa em permitir que a Palestina, agora colonizada por eles, fosse utilizada pelos sionistas para instalar novos colonos judeus lá. Mas isso só seria possível expulsando a população palestina existente.

O dirigente sionista “revisionista” Jabotinsky (do qual derivaram as organizações de ultradireita Irgun e Likud de Begin e de Netanyahu, primeiro-ministro por mais de uma década de Israel), levariam essa visão às últimas consequências, pregando uma “muralha de ferro” entre judeus e os árabes habitantes da Palestina, e nenhuma “mistura de sangue” entre eles, ou seja, Israel deveria ser um estado abertamente racista, exclusivamente dos judeus. Esse foi o projeto implantado e que deu origem ao Estado de Israel, às custas da expulsão da população palestina. Como revela o historiador israelense Avi Shlaim em seu livro “A muralha de ferro – Israel e o mundo árabe” (Editora Fissus, 2004), esse era também o pressuposto não declarado do denominado sionismo trabalhista – e sua liderança David Ben-Gurion – que, de fato, levou a cabo a limpeza étnica em 1948.