Mostrando postagens com marcador Cultura. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Cultura. Mostrar todas as postagens

Era uma vez...

Se alguma música pudesse definir minha personalidade ou minha própria vida em toda sua totalidade, esta seria C’era una volta il West de autoria do italiano Ennio Morricone (tema do filme de faroeste Once upon a time in the West, versão brasileira: Era uma vez no Oeste), revelo isto com temor de ser linchado pelos fundamentalistas modernos, já que a música que mais me fala à alma é uma música secular e não uma música sacra, além disso ela não tem letra e fala mais que muitas músicas que só tem palavrório sem melodia e harmonia. É triste e bela, tão triste quanto bela, triste ainda que bela, bela ainda que triste. Só aqueles que associam a beleza apenas às coisas alegres, pensamento fruto da pós-modernidade vaga e de modismos efêmeros, não conseguirão entender isto que eu estou apregoando, posso até parecer um arauto louco ou bêbado em cima de um telhado, mas pelo menos tenho a coragem de gritar o que penso sem fazer coro com a massa.



O início suave, quase imperceptível da música, a leveza do trinado das cordas, o piano que parece ter vida própria e querer falar, a harmonia da orquestra, a coesão dos instrumentos, a sensação de que nada é inadequado ou que está fora do lugar, o êxtase qual onda que quebra na praia, o sentimento de paz que se instala após a passagem do turbilhão avassalador e aquele solfejo triste da solista, qual Polimnia a musa grega do canto solene, encantam minha alma, com a mesma intensidade que a entristecem, o único ato propício, como uma liturgia recomendada por meio de rubrica, para ouvir adequadamente é fechar os olhos e calar, só assim, desligando alguns periféricos é possível ouvir com a alma, os olhos abertos podem distrair, as palavras ditas, por mais belas que sejam se mostram inadequadas.

Se compararmos essa “universidade” musical com a superficialidade das músicas gospel de hoje de pouca letra e menos acordes ainda, não fica difícil entender a minha preferência por ela, as músicas contemporâneas parecem mantras, versos repetidos à exaustão, vãs repetições já dizia o evangelho. Quando a música acaba fica uma sensação de vazio que só passa quando eu volto e a ouço novamente, hoje com comodidade graças ao controle remoto, santa tecnologia! Antes tinha que fazer um esforço físico grande para mover o braço mecânico da radiola e posicionar no começo da faixa do disco de vinil. Sei que quando a ouço eu fico triste, mas a ouço exatamente para isso. Quando quero ficar reflexivo, pensativo, sondar minha própria alma, eu me sento e vou ouvi-la, não há saída, ao ouvir alimento minha alma, às vezes de uma tristeza profunda e de sentimentos inexplicáveis, sou tomado de uma sensação, que não sei definir, e não consigo fugir disso.

Já devo ter ouvido esta música pelo menos umas 5.000 vezes, ainda pretendo ouvir mais umas 10.000, mormente depois que eu me aposentar, mas a sensação é de que estou ouvindo pela primeira vez, os sentimentos se renovam ao primeiro acorde. Parece estranho este fato, principalmente para alguém que se sente inadequado quando tem que cantar o mesmo estribilho 10 ou quinze vezes só porque um ministro de louvor, que tem vontade de parecer com André Valadão, quer, tem alguns que até a flanela põe no bolso para ficarem mais caricatos, seria risível, se não fosse tão ridículo.

 Quando tinha uns 10 anos de idade eu era apaixonado por filmes de faroeste, ainda sou, mesmo hoje com 52 anos de idade, e a TV do Grande Irmão, que à época era apenas o braço direito na área de comunicação da ditadura militar, gostava de passar filmes que não permitiam a reflexão social, era para entreter, hoje é para “emburrecer” mesmo. Um dos que mais repetiu foi o citado Era uma vez no Oeste, com toda a poesia da direção do italiano criador de metáforas Sérgio Leone, a fotografia impecável, a capacidade de dar a uma cena de uma goteira uma dimensão inigualável e fazer de uma mosca uma atriz coadjuvante, o latinismo visceral, a atuação de grandes atores (como o novato Charles Bronson, o já veterano Henry Fonda e o expressivo e assustador Jason Robards) e a trilha sonora assinada pelo mestre Ennio Morricone, muito embora esta à época me passasse despercebida. Eu adorava assoviar a música de “O Bom, o Mal e o Feio”, mas não me lembro de ter sentido nenhum êxtase ao ouvir C’era una volta il West quando Cláudia Cardinale (seria Melpômene a musa grega da tragédia?) descia na estação do trem e o crescente melodioso até o âmago na chegada à fazenda e encontrar seu marido e os filhos deste todos mortos pondo um aparente fim à possibilidade de uma vida decente para uma prostituta em recuperação.

 Quando eu tinha uns dezesseis anos tentei entrar para o seminário, tinha pressa em cursar teologia o quanto antes possível para exercer o sacerdócio, quanto antes eu estivesse pronto mais rápido o mundo seria consertado, era mais ou menos o que eu pensava, não me deixaram entrar, o mundo deve ter agradecido, porém a “salvação” do mesmo foi adiada um pouco, era muito novo, como prêmio de consolação me colocaram num grupo teatral, composto em sua maioria de alunos do seminário, que tinha como missão despertar vocações nas igrejas da região.

Uma das minhas participações era como soldado comunista, eu vestia uma farda de verdade e junto com outros seminaristas (o hoje Rev. Alexandre da Igreja Episcopal Carismática e o também Rev. Marco Cosmo da Igreja Anglicana) representávamos soldados do então regime comunista que torturavam pastores, missionários e até mesmo leigos cristãos, era época da Guerra Fria e “Torturado por amor a Cristo”, “Ivan”, “Perdoa Natasha” e “Torturado por sua fé” estavam em evidência, eu já os tinha lido várias vezes e tinha uma grande vontade de ser missionário no leste europeu, porém na peça eu é que estava por trás do gatilho, recebíamos então ordens do “General” Zózomo Malta (isso mesmo, não escrevi errado o nome do sujeito é esse mesmo, Zózomo, irmão do Senador Magno Malta) para arrancar as unhas dos cristãos.

Os que representavam os missionários colocavam unhas feitas com pedaços de plástico de carretel de linha de costura, que eram presas com sabão, fingíamos então que cada unha era arrancada com alicate, o sangue de “brincadeira” escorria pelos braços e os gritos convincentes deixavam a plateia em prantos e depois atirávamos neles com revólveres de espoleta, que nem sempre davam tiros com qualidade, parecia que “a bala pinava”, os nossos missionários portavam por baixo da roupa um “saquinho” com suco de uva que ao ser apertado vazava parecendo sangue, o que dava um tom de realismo às cenas. Quantas crianças não fizemos chorar de medo, tínhamos que mostrar depois que era de brincadeira e que ninguém tinha morrido. 

A música que fazia fundo musical para a cena era essa, confesso que não associava a música ao filme, não fazia essa ilação. Um dia ao ouvir intencionalmente na casa de um parente essa música me dei conta das duas épocas de minha vida que ela tinha marcado e desde então eu passei a ouvi-la cada vez mais intensamente. 

Um dia estava fazendo terapia em grupo, não sei quanto ao grupo, mas eu num aprendi nada daquilo tudo e nem aproveitei uma linha sequer de caderno pequeno, quando a psicóloga colocou essa música eu travei, ela tinha invadido meu santuário particular, pois a música falava demais ao meu coração e o que ela falava não combinava com o momento, foi desde então que eu a “canonizei”, só a ouço em momentos especiais e que eu mesmo tenha escolhido ouvir, não gosto de intromissão. Até hoje não perdoei àquela psicóloga por tamanha heresia. 

Muito tempo depois, não sei se foi sonho ou realidade, estava deitado numa praça bastante arborizada pensando na vida, sempre que não estamos fazendo nada, dizemos que estamos pensando na vida, até parece um contrassenso ou que a vida não vale nada para nós, já estava meio sonolento e quase dormindo, quando de repente ouvi esta música tocando, no começo tocava baixo, depois foi aumentando, ainda sem acreditar me ergui sobressaltado, a sensação que tenho hoje é que senti pânico (o sentimento trazido pelo mítico Pã), e vi que era um carro de som que havia parado próximo à praça e que tocava a música, tocava e repetia sem parar, achei que estava morrendo com minha cabeça repousada no colo de uma ninfa do bosque ou de uma náiade e que os anjos do céu ou as fortes e doces valquírias nórdicas tinham vindo me buscar tocando a música de minha preferência.

Seria uma ótima forma de se despedir da vida e entrar na eternidade, provavelmente não sentiria medo, tal era o êxtase, mas justamente por conta deste que eu queria permanecer vivo, a sensação de paz era maior que eu mesmo. A melhor definição do que senti naquele momento é o que disse o Leone sobre a película: “O ritmo do filme pretendeu criar a sensação dos últimos suspiros que uma pessoa exala antes de morrer. Era uma vez no Oeste é do começo ao fim, uma dança da morte...”. Na hora de partir da vida, tendo como fundo musical esta música, nada melhor que tirar a morte para uma dança. Ela vai gostar, há muito que não se diverte, trabalha demais e a área de atuação dela é muito sombria. 

Desde este dia decidi que se eu não morrer ouvindo esta música, pelo menos que a toquem em meu velório, tenho certeza que ela, naquele momento, não me poderá deixar triste, será vez de ouvi-la e sorrir, será a vez de mudar a história, será o momento de cantar definitivamente “era uma vez...

Os Testamentos

Image result for ostestamentos

"O Hológrafo de Árdua Hall

Apenas os mortos têm permissão para ter estátuas, mas eu ganhei uma ainda em vida. Eu já estou petrificada.

Aquela estátua era um pequeno sinal de agradecimento por minhas várias contribuições, dizia o discurso, que foi lido pela Tia Vidala. Ela fora incumbida dessa tarefa pelos nossos superiores e estava longe de transmitir entusiasmo. Agradeci-lhe com o máximo de modéstia que pude e puxei a corda que desatava o manto que me encobria; ele flutuou morosamente ao chão, e lá estava eu. Aqui em Ardua Hall não se ovaciona ninguém, mas ouviu-se uma discreta salva de palmas. Inclinei minha cabeça em agradecimento.

A minha estátua é algo descomunal, como tende a ser toda estátua, e me retrata mais jovem, mais magra e em melhor forma do que tenho estado há tempos. Estou ereta, ombros para trás, meus lábios curvos num sorriso firme, mas benevolente. Meus olhos se fixam em algum ponto de referência cósmico que se presume representar meu idealismo, meu compromisso inabalável com o dever, minha determinação em seguir em frente a despeito de qualquer obstáculo. Não que qualquer parte do céu esteja à vista da minha estátua, plantada onde está, naquele melancólico aglomerado de árvores e arbustos ao lado da trilha de pedestres que passa em frente do Ardua Hall. Nós, as Tias, não podemos ter grandes pretensões, mesmo em forma de pedra.

Agarrada à minha mão esquerda há uma menina de sete ou oito anos, mirando-me cheia de confiança. Minha mão direita está apoiada na cabeça de uma mulher agachada a meu lado, de cabelos cobertos, seus olhos voltados para cima em uma expressão que poderia ser lida tanto como amedrontada quanto como grata – uma de nossas Aias –, e atrás de mim há uma de minhas Pérolas, pronta para partir em seu trabalho missionário. Pendendo do cinto que contorna minha cintura está minha arma de choque. Esta arma me lembra de minhas limitações: se eu tivesse sido mais eficiente, não teria necessitado desse acessório. A persuasão da minha voz teria sido suficiente.

Como grupo estatuário, não somos um grande sucesso: há elementos demais. Eu preferiria uma maior ênfase na minha pessoa. Mas pelo menos eu pareço estar em meu perfeito juízo. Poderia ter sido bem outro o caso, dado que a escultora idosa – uma crente fervorosa que veio a falecer – tendia a esbugalhar os olhos das modelos para sinalizar devoção. O busto que ela fez da Tia Helena tem ares de hidrofobia, o de Tia Vidala está com hipertireoidismo, e o de Tia Elizabeth parece prestes a explodir.

Na inauguração, a escultora estava nervosa. Será que havia me adulado o suficiente com sua escultura? Eu a aprovava? As pessoas iam entender que aprovei? Cogitei franzir a testa assim que o manto caísse, mas achei melhor não: não sou totalmente destituída de compaixão.

– Ficou muito realista – falei.

Isso foi há nove anos. Desde esse dia minha estátua vem se deteriorando: pombos me adornaram, musgo brotou nas minhas dobras mais úmidas. Devotos adquiriram o hábito de deixar oferendas a meus pés: ovos pela fertilidade, laranjas para sugerir a corpulência da gravidez, croissants em referência à lua. Ignoro os artigos de padaria – geralmente eles pegaram chuva –, mas embolso as laranjas. Laranjas são muito refrescantes.

Escrevo essas palavras no meu gabinete particular dentro da biblioteca do Ardua Hall – uma das poucas bibliotecas restantes após as animadas fogueiras de livros que têm ocorrido em nossa terra. As digitais pútridas e ensanguentadas do passado precisam ser expurgadas para deixar uma tábula rasa para a geração moralmente pura que com certeza vai nos suceder. Em teoria, pelo menos, é isso.

Mas entre estas digitais sangrentas estão as que nós mesmos deixamos, e estas não são tão fáceis de apagar. Com o passar dos anos enterrei muitos ossos; agora minha vontade é de exumá-los – nem que seja só para te edificar, meu leitor desconhecido. Se você estiver lendo isso, pelo menos este manuscrito terá sobrevivido. Embora talvez eu esteja fantasiando: talvez eu nunca venha a ter um leitor. Talvez eu só esteja falando com as paredes, ou muros, em todos os sentidos.

Chega de escrevinhar por hoje. Minha mão está doendo, minhas costas ardendo, e meu copo noturno de leite morno me aguarda. Vou guardar essa arenga no seu devido esconderijo, evitando as câmeras de vigilância – que sei bem onde estão, já que eu mesma as instalei. Apesar dessas precauções, estou ciente do risco que corro: escrever pode ser perigoso. Que traições, e então que acusações, podem estar à minha espera? Há muita gente em Ardua Hall que adoraria se apoderar dessas páginas.

Aguardem, aconselho-os silenciosamente: pois vai ficar pior."
____________________________
'Os Testamentos', continuação de 'O Conto da Aia', escrita por Margaret Atwood

Way Down We Go

Father tell me, do we get what we deserve?
We get what we deserve?

And way down we go-o-o-o-o
Way down we go-o-o-o-o
Say way down we go
Way down we go

You let your feet run wild
Time has come as we all oh, go down
Yeah but for the fall oh, my
Do you dare to look him right in the eyes?

'Cause they will run you down, down til the dark
Yes and they will run you down, down til you fall
And they will run you down, down til you go
Yeah so you can't crawl no more

And way down we go-o-o-o-o
Way down we go
Say way down we go
'Cause they will run you down, down til you fall
Way down we go

Oh bab-bab-yeah
Wow baby-a-aha
Baby
Bab, down we go
Yeah

And way down we go-o-o-o-o
Way down we go
Say way down we go
Way down we go




Padre diga me, nós recebemos o que merecemos?
Nós recebemos o que merecemos?

E para baixo nós vamos
Para baixo nós vamos
Diga, para baixo nós vamos
Para baixo nós vamos

Você deixa seus pés correrem livresO tempo chegou assim como todos nós oh, cairmos
Sim mas, para a queda oh, meu
Você tem coragem de olhá-lo bem nos olhos?
Porque eles vão te derrubar, derrubar até a escuridão
Sim e eles vão te derrubar, derrubar até você cair
E eles vão te derrubar, derrubar até você partir
Sim, então você não pode rastrear mais

E para baixo nós vamos
Para baixo nós vamos
Diga, para baixo nós vamos
Porque eles vão te derrubar, derrubar até você cair
Para baixo nós vamos

Oh-bab bab-yeah
Wow baby-a-aha
Baby
Bab, para baixo nós vamos
Sim

E para baixo nós vamos
Para baixo nós vamos
Diga, para baixo nós vamos
Para baixo nós vamos.
[Kaleo - Compositor: Jökull Júlíusson]

Excelsior!



Henry Wadsworth Longfellow
(Ballads and Other Poems, 1842)

The shades of night were falling fast,
As through an Alpine village passed
A youth, who bore, ‘mid snow and ice,
A banner with the strange device,
Excelsior!

His brow was sad; his eye beneath,
Flashed like a falchion from its sheath,
And like a silver clarion rung
The accents of that unknown tongue,
Excelsior!

In happy homes he saw the light
Of household fires gleam warm and bright;
Above, the spectral glaciers shone,
And from his lips escaped a groan,
Excelsior!

“Try not the Pass!” the old man said;
“Dark lowers the tempest overhead,
The roaring torrent is deep and wide!
And loud that clarion voice replied,
Excelsior!

“Oh stay,” the maiden said, “and rest
Thy weary head upon this breast!”
A tear stood in his bright blue eye,
But still he answered, with a sigh,
Excelsior!

“Beware the pine-tree’s withered branch!
Beware the awful avalanche!”
This was the peasant’s last Good-night,
A voice replied, far up the height,
Excelsior!

At break of day, as heavenward
The pious monks of Saint Bernard
Uttered the oft-repeated prayer,
A voice cried through the startled air,
Excelsior!

A traveler, by the faithful hound,
Half-buried in the snow was found,
Still grasping in his hand of ice
That banner with the strange device,
Excelsior!

There in the twilight cold and gray,
Lifeless, but beautiful, he lay,
And from the sky, serene and far,
A voice fell, like a falling star,
Excelsior!


A noite com suas sombras cai depressa;
A aldeia alpina aos poucos atravessa
Um jovem, que ergue, em meio à neve em sanha,
Uma bandeira com a divisa estranha:
Excelsior!

Sua cor é triste, mas, sua vista alçada
Lembra uma espada desembainhada,
E a sua voz, qual clarim de prata erguida,
Lança os sons de uma língua nunca ouvida:
Excelsior!

Casas felizes ele vê brilhando
Ao fogo quente, familiar e brando;
Mais ao alto espectral geleira ao vento,
E de seus lábios escapa um lamento:
Excelsior!

“Não tentes a Passagem”, diz-lhe um velho,
“Já ergue a tormenta o seu manto vermelho,
Rugem as águas sem olhar que as sonde!”
E a alta voz de clarim só lhe responde:
Excelsior!

“Oh!, fica”, diz-lhe a virgem, “e em meu seio
Deita a fronte cansada sem receio!”
Nubla-lhe um pranto o olhar azul erguido,
Mas, ele ainda responde, com um gemido:
Excelsior!

“Teme os galhos na treva borrascosa!
Teme a uivante avalanche pavorosa!”
É o último boa-noite de quem fica,
E uma voz, longe, no alto, lhes replica:
Excelsior!

Nascido o Sol, no divino resguardo
Dos santos ermitões de São Bernardo,
Quando o salmo de sempre é repetido,
Uma voz grita no ar estremecido:
Excelsior!

Na neve, um viajor semi-enterrado,
Pela matilha fiel é encontrado,
Tendo em sua mão de gelo branca e lisa
A bandeira, com a estranha divisa:
Excelsior!

Lá, onde a noite fria e cinza pousa,
Sem vida, mas, tão belo ele repousa,
E do céu, sereníssima e clemente,
Desce uma voz, como estrela cadente:
Excelsior!

[Tradução para o português de Alexei Bueno]

Primeira carta: livros e leituras



Jaboatão dos Guararapes, primavera de 2018.

Prezado e estimado Nilton,

Primeiramente sente-se em algum lugar sossegado, pode ser aquele banco de pedra no quintal ou nos degraus da escada, leia esta carta devagar, calmamente. Eu sei que você está assustado em recebê-la, na verdade é a primeira carta que você receberá na vida e ela foi enviada por alguém que tem o mesmo nome que o teu e está com a data de um futuro tão longe (vou logo te adiantar: o mundo não vai se acabar no ano 2.000, aquela teoria do pastor Oliveira que o mundo terminará ao fim desse milênio é um erro de interpretação da parte dele, não adianta você dizer-lhe isso, vai te perguntar como você sabe, se disser que alguém do futuro te contou, vão dizer que você ficou louco, mais ainda!), mas, não se assuste. O nome que está no envelope é o seu mesmo, não há engano algum, espero que tenha recebido essa carta das mãos do Assis, o carteiro, não se admire com o que vou dizer: um dia você será colega dele de profissão e sentirá saudades da época em que ele passava na frente de tua casa e gritava: - Corrêêêêêiô! Mas a farda que você vai usar será uma outra, não é essa toda amarela, não cairia muito bem você, creio que nisso nós dois concordamos.

Você também precisa se acostumar com o tipo de linguagem com a qual esta carta foi escrita. Ela é uma carta do futuro, foi escrita quase 45 anos depois desse momento em que você está vivendo, não se espante com essa questão temporal e nem com as outras cartas que chegarão depois, algumas em ocasiões banais e outras nem tão banais assim, depois você entenderá e até esperará ansioso para que cheguem. No tempo certo todas que foram escritas chegarão as tuas mãos, apenas leia, somente isso: leia!

Você está com quase seis anos, essa carta foi escrita para chegar no momento em que aprendeu a ler, antes não faria sentido e elas não são para serem lidas pelos outros, mas sim apenas por você, foram escritas por você e para você.

Você ainda pensa em como foi perceber que sabia ler, foi uma experiência e tanto, de repente abrir um Almanaque do Tio Patinhas e entender todas as narrativas e diálogos, você nunca esquecerá, absolutamente nunca, repetirá sempre extasiado esse momento tão marcante. Mesmo aos 50 anos ainda lembrará daquele dia, logo, não precisa ficar acordado a noite toda com medo de dormir e acordar e descobrir que foi um sonho, não é um sonho, você sabe ler.

No futuro você não lerá com tanta frequência gibis, portanto aproveite e leia os que puder, desde os de Tio Patinhas, Donald, Zagor, Ken Parker, Tex Willer, Universo Marvel, Super Homem, Aquaman, Vingadores, Luluzinha, Bolinha, Homem-Aranha, Batman, Homem de Ferro e todos os outros que tiver acesso. Seja generoso com as leituras, em algum momento você vai se lembrar de cada um deles quando estiver no cinema assistindo filmes com sua filha. Sim, você terá uma filha, mas não é momento de falar disso agora.

Você vai roubar livros da biblioteca da escola para poder ler mais, já que só poderá pegar um livro de cada vez e isso será pouco para você. Não cultive sentimento de culpas, no futuro vão fazer um filme de sucesso sobre uma menina que também gostava de livros e como não podia pagar por eles, roubava-os sem constrangimento. O filme será um sucesso e ninguém chama a menina de ladra, ela é bem mais bonita que você (sinto dizer isso), mas ninguém vai te condenar quando disser um dia que roubava livros. Roubar livros é mais perdoável até do que roubar comida, pode apostar nisso, quem rouba livros para ler, rouba para alimentar a alma. Não há como julgar alguém que faz isso. Não se preocupe, você não continuará roubando livros, vai ganhar muitos e vai comprar mais ainda, até mesmo mais do que a capacidade de lê-los (você terá um emprego de “consultor” numa livraria no qual você ganhará uns 50 livros todo mês, alguns ficarão no plástico durante anos, até você conseguir ler). Em média você comprará 70 ou 80 livros por ano e lerá sempre uma média de 100 ou 120, não se preocupe, você terá onde guardá-los, você terá uma biblioteca na sua casa, algumas vezes você se trancará no quarto e ficará olhando para cada livro, resgatando a emoção que sentiu ao ler o livro pela primeira vez.

Sim, você lerá alguns livros mais de uma vez, alguns serão lidos até 06 vezes, esse será um hábito que você alimentará e terá o costume de ler 10 ou 15 livros ao mesmo tempo, se acostumará com isso e não conseguirá ler apenas um. Portanto leia todos os clássicos antes dos 15 anos, a quantidade de livros que terá que ler depois dos 30 não permite que você pense em ler os 03 mosqueteiros ou 20.000 légua submarinas com quase 40 anos, leia todos, leia com sofreguidão, você não sabe o que é isso ainda: leia como se a sua vida dependesse disso. Leia Júlio Verne, Victor Hugo, C.S. Lewis, Tolkien, Charles Dickens, Alexandre Dumas, Machado de Assis (eu sei que você vai achar chato, te garanto que no futuro vai considerá-lo o maior escritor brasileiro), Cecília Meireles, Raquel de Queiroz, José Lins do Rego e tantos outros. Se você pegar algum livro de Clarice Lispector, grave bem esse nome, não leia, você não vai entender tão fácil, mesmo aos 50 você não julga que a entende tão bem. A mesma coisa para Nietzsche, Søren Kierkegaard, Kafka e Gabriel Garcia Márquez. No futuro você vai amar Tolstoi, Dostoiévski, Mia Couto, José Saramago e Amós Oz, todos chegarão até você no devido tempo, não se preocupe em decorar esses nomes, você lembrará dessa nossa conversa quando estiver com algum exemplar deles em mãos.

Acostume-se a ser olhado de forma esquisita, mesmo aos 50 anos você ainda lerá andando. Isso mesmo, você estará tão acostumado a ler que não escolherá lugar para fazer isso: fila de banco (um dia eu te explicarei o que é um banco e porque deverá ficar na fila), ônibus (eu sei que você vomita quando anda de ônibus), no futuro você andará de ônibus para poder ler, mesmo tendo carro e sabendo dirigir (sim, você terá carro e deixará na garagem para poder andar de ônibus e metrô – com o devido tempo eu explicarei o que é isso – e ler alguns livros). Não se incomode quando for desprezado por teus colegas de escola ou vizinhos, você não tem culpa por ter duas pernas esquerdas e não possuir coordenação motora suficiente para jogar futebol com desenvoltura (no futuro você saberá o que cada palavra dessa significa, as que não souber, anote e procure no dicionário Aurélio da biblioteca da escola, você não vai acreditar quando eu te falar de um negócio chamado “Google”, mas esquece, você não compreenderá tão fácil assim!), teus amigos e colegas não são maus, eles são apenas crianças sendo crianças, não são culpados por você ter a cabeça no mundo da fantasia e da ficção, tenha paciência com eles, você vai precisar se acostumar com pessoas que não têm as mesmas prioridades que você. Para não ser tão esquisito, aprenda a contar piadas, procure ser engraçado, decore todas que puder e conte-as como se tivessem acontecido com você, as pessoas te acharão um cara legal e nem notarão que você não costuma sorrir.

Você vai cair numa ladeira por causa desse costume de ler andando, não se preocupe antecipadamente, alguns arranhões nos joelhos não causam tanto estrago assim. Terá um transtorno maior quando cair da bicicleta com o Rui, ele vai balançar a bicicleta sentado no bagageiro, ele acha que ela estará sem freios, não adianta você dizer que sabe o que está fazendo, o pânico vai dominá-lo e ele vai provocar a queda de vocês. Você precisa perdoar esta fraqueza dele, num futuro razoavelmente distante, algumas dores não curadas dentro dele vão levá-lo a cometer alguns equívocos e por causa desses equívocos ele vai encerrar a jornada aqui nesta dimensão. Você sequer lembrará dessa queda quando souber que ele foi embora, por isso, valorize o que é de fato importante e ele será o teu primeiro amigo de verdade e por muito tempo, teu único amigo. A queda vai te deixar de cama, porém uma coisa boa acontecerá: você terá tempo de sobra para ler mais livros. Outra coisa: devolva os livros de faroeste de Tio Chico, você lerá uns 500 ou 600 (vai desistir de contar depois de passar de 300), cuidado para não perdê-los, ele certamente nem perceberá se você perder, mas ele troca os que já leu por livros novos, por isso cuidado, do contrário não vai ter mais o que ler.

O costume que você vai adquirir de ler à noite pela réstia de luz da lua que entra no teu quarto através da telha de vidro vai te deixar míope, você não conseguirá ler na cozinha e nem no banheiro, tua mãe não deixará, não se pergunte porque alguém impediria um garoto de ler tanto, aos 50 anos você ainda não entenderá, logo, gaste seus neurônios (uns negócios que você tem no cérebro que está dentro da cabeça, vai descobrir depois para que serve, te ajuda a pensar, nem sempre você vai dar atenção devida ao que eles dizem, mas eles estão aí para isso), não se preocupe com a miopia, você vai usar óculos com lentes grossas para poder ler, mas não sentirá desconforto, eles te ajudarão a ser proteger das pessoas, verá que não é tão ruim assim quanto parece.

Cada carta que receberá abordará um tema, por isso não vamos tratar de outro assunto desta vez, não fique ansioso para receber a próxima carta, ela vai chegar no momento exato. Você só saberá que é o momento exato quando ele acontecer, confie em mim, eu sei quando será esse momento.

Por ora era só isso, aproveite a infância, deixe tua imaginação fluir, nunca tenha vergonha de ser um sonhador, você conhecerá pessoas e visitará lugares antes dos 10 anos que a maioria das pessoas não visitará a vida toda, portanto, você já sabe que ler não dá sono, ler dá sonhos, leia muito, leia tudo, leia a vida.

Até breve garoto, cuide bem de minha mente, cuide bem de meus olhos, cuide bem de minha alma.

Eu,

Gente boa da roça


Além da expressão neutra que ela carregava quando estava sozinha, a Senhora Freeman tinha outras duas, uma afirmativa e outra retroativa, que ela usava para todas as suas relações humanas. Sua expressão afirmativa era firme e forte como a de um caminhão pesado. Seus olhos nunca desviavam para a esquerda ou direita, mas viravam de acordo com o rumo da estória como se seguissem uma linha amarela bem no centro da estória. Ela raramente usava a outra expressão porque muitas vezes não era necessário retirar uma declaração, mas quando usava, seu rosto parava completamente, havia um movimento quase imperceptível em seus olhos negros, enquanto eles pareciam retroceder, e então o observador via que a Senhora Freeman, embora estivesse lá, tão real quanto sacos de grão jogados em cima uns dos outros, não estava mais lá em espírito. Fazê-la entender qualquer coisa quando isso acontecia era impossível, a Senhora Hopewell havia desistido. Ela poderia falar até morrer. A Senhora Freeman nunca seria convencida a admitir seu erro em qualquer aspecto. Ela permaneceria lá e, se a pudessem convencer a falar qualquer coisa, seria algo como: “Bem, eu não diria que sim ou não diria que não” ou, ao direcionar seu olhar vago para a prateleira de cima da cozinha onde havia várias garrafas empoeiradas, ela poderia mencionar: “Eu vejo que você não comeu muitos dos figos das conservas que você fez no verão passado”.

Elas cuidavam de seus assuntos mais importantes na cozinha durante o café da manhã. Todas as manhãs a Senhora Hopewell se levantava às sete e ligava seu aquecedor à gás e o de Joy. Esta era sua filha, uma moça loira e alta que tinha uma prótese na perna. A Senhora Hopewell ainda via Joy como uma criança mesmo que ela tivesse trinta e dois anos e alto nível de formação. Joy se levantava enquanto sua mãe estivesse comendo e arrastava-se para o banheiro, batendo a porta, e logo a Senhora Freeman chegava à porta dos fundos. Joy ouvia sua mãe dizer: “Entre”, e então as senhoras conversavam por um tempo em voz baixa, inaudível no banheiro. No momento em que Joy entrava, elas já haviam terminado o relatório da previsão do tempo e estavam falando sobre uma das filhas da Senhora Freeman, Glynese ou Carramae. Joy as chamava de Glicerina e Caramelo. Glynese, uma moça ruiva, tinha dezoito anos e muitos admiradores; Carramae, uma moça loira, tinha apenas quinze, mas já estava casada e grávida. Ela não conseguia manter qualquer coisa em seu estômago. Todas as manhãs a Senhora Freeman contava à Senhora Hopewell quantas vezes Carramae havia vomitado desde o último relatório.

A Senhora Hopewell gostava de dizer para as pessoas que Glynese e Carramae eram duas das moças mais finas que ela conhecia, que a Senhora Freeman era uma lady e que ela nunca teria vergonha de levar a Senhora Freeman a qualquer lugar ou apresentá-la a qualquer pessoa que elas pudessem encontrar. Então ela contava como havia contratado os Freeman em primeiro lugar, como eles eram uma benção de Deus para ela e como estavam junto dela há quatro anos. A razão para mantê-los por tanto tempo era que eles não eram lixo. Eram boa gente do interior. Ela havia telefonado para o homem cujo nome havia sido dado como referência e ele contou para ela que o Senhor Freeman era um bom agricultor, mas que a Senhora Freeman era a mulher mais barulhenta a caminhar pela terra. “Ela tem que estar em tudo”, disse o homem. “Se ela não chegar lá antes que a poeira assente, pode apostar que ela está morta, só isso. “Ela vai querer saber de toda a sua vida. Eu o considero muito”, ele disse, “mas nem eu nem minha esposa conseguiríamos aguentar aquela mulher mais um minuto”. Isso desencorajou a Senhora Hopewell por alguns dias.

Por fim ela os contratou porque não houve outros candidatos, mas decidiu de antemão como lidaria com a mulher. Já que a Senhora Freeman era do tipo de se meter em tudo, a Senhora Hopewell decidiu que ela não apenas seria incluída em tudo, mas providenciaria para que ela estivesse em tudo, ela seria a pessoa encarregada. A Senhora Hopewell não tinha defeitos, mas tinha a habilidade de usar os defeitos de outras pessoas de maneira tão construtiva que ela já tinha os Freeman há quatro anos.

Nada é perfeito. Este era um dos ditados favoritos da Senhora Hopewell. O outro era: é a vida! E ainda mais um, o mais importante, era: bem, outras pessoas têm suas opiniões também. Ela diria essas expressões geralmente à mesa, em tom de insistência gentil, como se ninguém soubesse deles além dela, e a grande desajeitada Joy, cujo ultraje constante havia apagado qualquer expressão em seu rosto, apenas direcionaria um pouco seu olhar para o lado, seus frios olhos azuis, com o jeito de alguém que havia ficado cego por vontade própria e se manteve assim.

Quando a Senhora Hopewell dizia à Senhora Freeman que a vida era assim, esta dizia: “Eu sempre digo isso”. Nada acontecia sem que a Senhora Freeman soubesse primeiro. Ela era mais rápida que o Senhor Freeman. Quando a Senhora Hopewell disse a ela, após certo tempo da chegada deles: “Sabe, você é a comandante deste navio” e deu uma piscadela, a Senhora Freeman respondeu: “Eu sei. Sempre fui rápida. Há sempre aqueles que são mais rápidos que os outros”.

“Todos são diferentes”, disse a Senhora Hopewell.

“Sim, a maioria é”, respondeu a Senhora Freeman.

“É preciso gente de todos os tipos para formar o mundo”.

“Eu sempre disse isso”.

A menina estava acostumada com esse tipo de diálogo no café da manhã e também no jantar; de vez em quando elas conversavam no lanche também. Quando não tinham visitas, elas comiam na cozinha porque era mais fácil. A Senhora Freeman se esforçava para chegar durante a refeição e assisti-las terminar. Ela ficava na porta se fosse verão, mas no inverno ela apoiava um cotovelo em cima da geladeira e olhava para elas de cima, ou ficava ao lado do aquecedor a gás, levantando um pouco a parte de trás da saia. Ocasionalmente ela se apoiava na parede e rolava a cabeça de um lado para o outro. Ela nunca tinha pressa de ir embora. Tudo isso era muito penoso para a Senhora Hopewell, mas esta era uma mulher de grande paciência. Ela havia percebido que nada é perfeito, que os Freeman eram boa gente do interior e que, se em tempos presentes há boa gente no interior, era melhor segurá-la.

Ela teve muita experiência com lixo. Antes dos Freeman, ela tivera em média uma família de caseiros por ano. As mulheres desses agricultores não eram do tipo que você gostaria por perto por muito tempo. A Senhora Hopewell, que havia se divorciado do marido há anos, precisava de alguém que tocasse a plantação para ela; e quando Joy tinha de ser mandada a fazer esses serviços, as coisas que ela fazia eram geralmente tão malfeitas e sua expressão tão carrancuda que a Senhora Hopewell dizia: “Se você não faz de boa vontade, eu não quero”, ao que a moça, firme, com os ombros rígidos e o pescoço um pouco jogado para a frente, respondia: “Se você me quer, aqui estou – COMO SOU”.

Não há outro caminho!

"I have a dream!"

“Estou feliz em me unir a vocês hoje naquela que ficará para a história como a maior manifestação pela liberdade na história de nossa nação.



Cem anos atrás um grande americano, em cuja sombra simbólica nos encontramos hoje, assinou a proclamação da emancipação [dos escravos]. Este decreto momentoso chegou como grande farol de esperança para milhões de escravos negros queimados nas chamas da injustiça abrasadora. Chegou como o raiar de um dia de alegria, pondo fim à longa noite de cativeiro.

Mas, cem anos mais tarde, o negro ainda não está livre. Cem anos mais tarde, a vida do negro ainda é duramente tolhida pelas algemas da segregação e os grilhões da discriminação. Cem anos mais tarde, o negro habita uma ilha solitária de pobreza, em meio ao vasto oceano de prosperidade material. Cem anos mais tarde, o negro continua a mofar nos cantos da sociedade americana, como exilado em sua própria terra. Então viemos aqui hoje para dramatizar uma situação hedionda.

Em certo sentido, viemos à capital de nossa nação para sacar um cheque. Quando os arquitetos de nossa república redigiram as magníficas palavras da Constituição e da Declaração de Independência, assinaram uma nota promissória de que todo americano seria herdeiro. Essa nota era a promessa de que todos os homens, negros ou brancos, teriam garantidos os direitos inalienáveis à vida, à liberdade e à busca pela felicidade.

É evidente hoje que a América não pagou esta nota promissória no que diz respeito a seus cidadãos de cor. Em lugar de honrar essa obrigação sagrada, a América deu ao povo negro um cheque que voltou marcado “sem fundos”.

Mas nós nos recusamos a acreditar que o Banco da Justiça esteja falido. Nos recusamos a acreditar que não haja fundos suficientes nos grandes depósitos de oportunidade desta nação. Por isso voltamos aqui para cobrar este cheque –um cheque que nos garantirá, a pedido, as riquezas da liberdade e a segurança da justiça.

Também viemos para este lugar santificado para lembrar à América da urgência ferrenha do agora. Não é hora de dar-se ao luxo de esfriar os ânimos ou tomar a droga tranquilizante do gradualismo. Agora é a hora de fazermos promessas reais de democracia. Agora é a hora de sairmos do vale escuro e desolado da segregação para o caminho ensolarado da justiça racial. É hora de arrancar nossa nação da areia movediça da injustiça racial e levá-la para a rocha sólida da fraternidade. Agora é a hora de fazer da justiça uma realidade para todos os filhos de Deus.

Seria fatal para a nação passar por cima da urgência do momento e subestimar a determinação do negro. Este verão sufocante da insatisfação legítima do negro não passará enquanto não chegar um outono revigorante de liberdade e igualdade. Mil novecentos e sessenta e três não é um fim, mas um começo.

Os que esperam que o negro precisasse apenas extravasar e agora ficará contente terão um despertar rude se a nação voltar à normalidade de sempre. Não haverá descanso nem tranquilidade na América até que o negro receba seus direitos de cidadania. Os turbilhões da revolta continuarão a abalar as fundações de nossa nação até raiar o dia iluminado da justiça.

Mas há algo que preciso dizer a meu povo posicionado no morno liminar que conduz ao palácio da justiça. No processo de conquistar nosso lugar de direito, não devemos ser culpados de atos errados. Não tentemos saciar nossa sede de liberdade bebendo do cálice da amargura e do ódio.

Temos de conduzir nossa luta para sempre no alto plano da dignidade e da disciplina. Não devemos deixar nosso protesto criativo degenerar em violência física. Precisamos nos erguer sempre e mais uma vez à altura majestosa de combater a força física com a força da alma.

A nova e maravilhosa militância que tomou conta da comunidade negra não deve nos levar a suspeitar de todas as pessoas brancas, pois muitos de nossos irmãos, conforme evidenciado por sua presença aqui hoje, acabaram por entender que seu destino está vinculado ao nosso destino e que a liberdade deles está vinculada indissociavelmente à nossa liberdade.

Não podemos caminhar sozinhos.

E, enquanto caminhamos, precisamos fazer a promessa de que caminharemos para frente. Não podemos retroceder. Há quem esteja perguntando aos devotos dos direitos civis ‘quando vocês ficarão satisfeitos?’. Jamais estaremos satisfeitos enquanto o negro for vítima dos desprezíveis horrores da brutalidade policial.

Jamais estaremos satisfeitos enquanto nossos corpos, pesados da fadiga de viagem, não puderem hospedar-se nos hotéis de beira de estrada e nos hotéis das cidades. Não estaremos satisfeitos enquanto a mobilidade básica do negro for apenas de um gueto menor para um maior. Jamais estaremos satisfeitos enquanto nossas crianças tiverem suas individualidades e dignidades roubadas por cartazes que dizem ‘exclusivo para brancos’.

Jamais estaremos satisfeitos enquanto um negro no Mississippi não puder votar e um negro em Nova York acreditar que não tem nada em que votar.

Não, não estamos satisfeitos e só ficaremos satisfeitos quando a justiça rolar como água e a retidão correr como um rio poderoso.

Sei que alguns de vocês aqui estão, vindos de grandes provações e atribulações. Alguns vieram diretamente de celas estreitas. Alguns vieram de áreas onde sua busca pela liberdade os deixou feridos pelas tempestades da perseguição e marcados pelos ventos da brutalidade policial. Vocês têm sido os veteranos do sofrimento criativo. Continuem a trabalhar com a fé de que o sofrimento imerecido é redentor.

Voltem ao Mississippi, voltem ao Alabama, voltem à Carolina do Sul, voltem a Geórgia, voltem a Louisiana, voltem aos guetos e favelas de nossas cidades do norte, cientes de que de alguma maneira a situação pode ser mudada e o será. Não nos deixemos atolar no vale do desespero.

Digo a vocês hoje, meus amigos, que, apesar das dificuldades de hoje e de amanhã, ainda tenho um sonho.

É um sonho profundamente enraizado no sonho americano.

Tenho um sonho de que um dia esta nação se erguerá e corresponderá em realidade o verdadeiro significado de seu credo: ‘Consideramos essas verdades manifestas: que todos os homens são criados iguais’.

Tenho um sonho de que um dia, nas colinas vermelhas da Geórgia, os filhos de ex-escravos e os filhos de ex-donos de escravos poderão sentar-se juntos à mesa da irmandade.

Tenho um sonho de que um dia até o Estado do Mississippi, um Estado desértico que sufoca no calor da injustiça e da opressão, será transformado em um oásis de liberdade e de justiça.

Tenho um sonho de que meus quatro filhos viverão um dia em uma nação onde não serão julgados pela cor de sua pele, mas pelo teor de seu caráter.

Tenho um sonho hoje.

Tenho um sonho de que um dia o Estado do Alabama, cujo governador hoje tem os lábios pingando palavras de rejeição e anulação, será transformado numa situação em que meninos negros e meninas negras poderão dar as mãos a meninos brancos e meninas brancas e caminharem juntos, como irmãs e irmãos.

Tenho um sonho hoje.

Tenho um sonho de que um dia cada vale será elevado, cada colina e montanha será nivelada, os lugares acidentados serão aplainados, os lugares tortos serão endireitados, a glória do Senhor será revelada e todos os seres a enxergarão juntos.

Essa é nossa esperança. Essa é a fé com a qual retorno ao Sul. Com esta fé poderemos talhar da montanha do desespero uma pedra de esperança. Com esta fé poderemos transformar os acordes dissonantes de nossa nação numa bela sinfonia de fraternidade. Com esta fé podemos trabalhar juntos, orar juntos, lutar juntos, ir à cadeia juntos, defender a liberdade juntos, conscientes de que seremos livres um dia.

Esse será o dia em que todos os filhos de Deus poderão cantar com novo significado: “Meu país, é de ti, doce terra da liberdade, é de ti que canto. Terra em que morreram meus pais, terra do orgulho do peregrino, que a liberdade ressoe de cada encosta de montanha”.

E, se quisermos que a América seja uma grande nação, isso precisa se tornar realidade.

Então que a liberdade ressoe dos prodigiosos picos de New Hampshire.

Que a liberdade ecoe das majestosas montanhas de Nova York!

Que a liberdade ecoe dos elevados Alleghenies da Pensilvânia!

Que a liberdade ecoe das nevadas Rochosas do Colorado!

Que a liberdade ecoe das suaves encostas da Califórnia!

Mas não só isso – que a liberdade ecoe da Montanha de Pedra da Geórgia!

Que a liberdade ecoe da Montanha Sentinela do Tennessee!”

Que a liberdade ecoe de cada monte e montículo do Mississippi. De cada encosta de montanha, que a liberdade ecoe.

E quando isso acontecer, quando deixarmos a liberdade ecoar, quando a deixarmos ressoar em cada vila e vilarejo, em cada Estado e cada cidade, poderemos trazer para mais perto o dia que todos os filhos de Deus, negros e brancos, judeus e gentios, protestante e católicos, poderão se dar as mãos e cantar, nas palavras da velha canção negra, “livres, enfim! Livres, enfim! Louvado seja Deus Todo-Poderoso. Estamos livres, enfim!”.

Fonte do texto: Discurso de Martin Luther King
__________________________________
Em 28 de agosto de 1963, o pastor e líder do movimento contra a segregação racial nos Estados Unidos Martin Luther King discursou sobre seu sonho de uma América (e um mundo) com igualdade entre negros e brancos. O discurso foi proferido em Washington, durante uma marcha que reuniu cerca de 250 mil pessoas contra as políticas racistas e pelos direitos civis dos negros nos Estados Unidos. Suas palavras ecoaram em um contexto de divisão e segregação racial no país que se colocava como moderno e como liderança mundial. Enquanto os norte-americanos possuíam as mais avançadas tecnologias e armas, negros eram impedidos de dividir espaços com brancos, o casamento entre negros e brancos era proibido e jovens afrodescendentes tinham acesso limitado à educação. Na Guerra Fria, os Estados Unidos faziam a propaganda de que aquele era o regime e o país onde todos gostariam de viver – exceto os negros, que tinham de se limitar aos assentos reservados nos ônibus. Desde que o pastor proferiu seu discurso há 50 anos, muitas leis segregacionistas foram derrubadas no país e muitos direitos foram garantidos aos negros. Ainda assim, as palavras do homem que virou símbolo da luta por vias não-violentas ainda têm a mesma força e urgência das décadas passadas.
A tradução é de Clara Allain.

All Boundaries are Conventions


"I understand now that boundaries between noise and sound are conventions. All boundaries are conventions, waiting to be transcended. One may transcend any convention if only one can first conceive of doing so.” 

David Mitchell, Cloud Atlas

A arcaica lavoura de Nassar


Uma impressão similar à que tive ao ler Um copo de cólera tive também ao ler Lavoura arcaica: a narrativa de Nassar a todo o tempo parecia me remeter à prosa rascante de Franz Kafka. Essa percepção, sobre a qual já falei na resenha que escrevi sobre o primeiro livro, foi redimensionada no segundo livro, pois a história ali contada é de tal maneira límpida e solene, que a catarse, a tragédia, aparece como um golpe desferido após uma longa gestação de prazeres sinestésicos. Não à toa é tão fulminante e desconcertante, é “um machado para quebrar o ar de gelo que há dentro de nós.”

Mas, antes de me fiar em recursos investigativos dos quais já me utilizei outrora ou de querer fruir a obra de um autor através de obras de outros autores, ao invés de partir da sua singularidade, deixem-me discorrer um pouco sobre o enredo, a estrutura e os personagens de Lavoura arcaicaO romance foi publicado em 1975 e conta a história de André, filho de uma família camponesa, que deixou a casa paterna após constatar que não conseguiria continuar sob a égide da mentalidade tradicionalista e conservadora que imperava sobre o sítio em que habitavam. Entre outras razões. A sequência que abre o livro é justamente aquela em que Pedro, irmão de André, chega ao quarto de pensão do irmão, e busca convencê-lo a voltar para casa.

As feições psicológicas dos personagens vão se desenhando com riqueza apesar de Nassar ser preciso e econômico em sua escritura. Pedro é um tipo mais calmo, de espírito mais brando, que busca reconciliar as pontas soltas da família e reconstituir o tecido existencial dos tempos de outrora, nos quais imperava a harmonia. André é o espírito flamejante, sedento de liberdade e constantemente propenso a entregar-se com ardor as suas paixões e arroubos. O pai representa a típica vontade férrea e o pulso firme daqueles cujas rédeas da família e do sítio repousam à mão, decidido, direto, bruto e sistemático. A mãe vive em constante estado de tensão, esticada sobre os dilemas familiares entre dois pólos de atitude: a obediência ao rígido patriarca e a candura maternal para com os filhos. Ana é a filha, a mulher a florescer, confusa, ardorosa, sensível e propensa a assumir posturas extremas diante das invectivas dos pais. Lula é o caçula, o caçula que parece ter aprendido com os irmãos a atitude gauche daqueles que não se conformam com as normatizações cotidianas de uma vida sob um estigma.

A trama do livro decorre em torno do amor proibido que André sente por Ana, assim como sua reciprocidade. O contraste entre essa polêmica relação e o pano de fundo de tradições conservadoras clássicas do campo dá o tom com o qual a trama se move. Nassar consegue delinear traços típicos da mentalidade e da visão de mundo da “lavoura arcaica” através de pinceladas apuradas, traduzindo nos atos e palavras do pai, por exemplo, todo um constructo de valores e elementos históricos, assim como na postura da mãe, a partir da qual o tecido existencial da questão da posição da mulher no mundo da lavoura arcaica é trazido a lume.

O romance incestuoso que põe em questão o suposto arcaísmo da lavoura não passa despercebido como algo chocante aos olhos do autor. Ele não quer nos levar a relativizar de maneira absoluta o fato de que se trata de um tabu profundamente arraigado, mas conduzir nosso olhar para uma perspectiva perturbadoramente interessante: o de como a transgressão amorosa de André e Ana se encontra incrustada dentro de um cosmos particular, o modo de vida rural.

Para que esse conflito tenha profundidade e seja cotejado em sua complexidade, Nassar faz o movimento de urdir a tessitura sentimental e moral do cosmos da lavoura arcaica. Para tal ele busca nos personagens e nas situações recursos através dos quais essa ambiência (ambiência no sentido de extrapolar o espaço e transformá-lo em arranjo e experiência humanos) venha à tona. A postura rígida do pai, por exemplo, é um dos elementos que compõem a vida nos domínios da lavoura arcaica, assim como ela é, também, um dos elementos que indispõem André a esse mundo. A moralidade estrita, o trabalho duro e estafante, a aridez existencial que esse mundo costuma cobrar de seus habitantes são outros dos elementos que ajudam a compor o panorama espiritual e humano da vida na lavoura.

É assim que o leitor, ciente da textura humana desse modo vida, consegue enxergar as várias dimensões do ato de André bem como a beleza rústica dessa experiência existencial. Nassar não quer nos conduzir a julgamentos fechados, mas chamar nossa atenção para a complexidade da questão, apesar da moralidade polarizante nela imbricada. Não moralismo, moralidade.

Creio que seja por conta dessa intencionalidade velada que ele faz sua narrativa ter algo de parábola bíblica. O retorno de André ao sítio tem em torno de si uma aura estarrecedoramente similar à bíblica volta do filho pródigo. A dança profana de Ana, celebrando de forma ousada a volta do irmão amado, tem algo que lembra as descrições da mulheres pecaminosas que perambulam pelas páginas da Bíblia, entre elas a famosa – e controversa – Maria Madalena. A atitude extremada do pai tem algo daquele ranger de dentes que não raro espoca em algumas das histórias bíblicas. O próprio patriarcado parece ser um outro ponto de semelhança entre uma e outra narrativa.

Com poucos elementos e personagens, Raduan Nassar cria uma bela história. A riqueza psicológica dos personagens dá conta de expressar o espírito e a essência dos conflitos da lavoura arcaica e de suas dinâmicas humanas. Os objetos e os eventos são revestidos de tal poder simbólicos que prescindem da existência de mais deles: o sono fingido de Lula como a cumplicidade confusa de dois deslocados naquele mundo; os acessórios de Ana como a coroação ritualística da dança catalisadora da catarse; o arroubo do pai como a tragédia do homem que quer preservar sua rigidez patriarcal a todo o custo.

Costurando sentimentos, personagens e situações, a prosa poética de Nassar consegue dar conta de explorar algumas das várias dimensões que, entretecidas na trama da vida e da existência humana, formam a “geometria barroca do destino”. Com uma expressividade muito bem trabalhada e alocada, Lavoura arcaica consegue ir além de suas imediações históricas e suas circunscrições específicas, sendo um clássico no sentido universal, isto é, que lida com dramas que pertencem ao domínio da assim chamada natureza humana, e não somente daqueles personagens ou dos sujeitos que os inspiraram.



O homem que amava os cachorros


“A dor e a miséria figuram entre aquelas poucas coisas que, quando repartidas, tornam-se sempre maiores.”

*

“O ódio é uma doença incontrolável.”

*

“O olhar de Liev Davidovitch, no entanto, tentava ver para lá dos edifícios, das igrejas pontiagudas, das mesquitas arredondadas: tentava ver a si próprio naquela cidade (turca) onde não tinha um único amigo, um único seguidor de confiança. E não se encontrou. Sentiu que, naquele preciso instante, começava o seu exílio: verdadeiro, total, sem ter onde se agarrar. Para além da família e de alguns poucos amigos que lhe tinham reiterado a sua solidariedade, era um homem aflitivamente só. Seus únicos aliados úteis numa luta que devia iniciar (como?, por onde?) continuavam isolados em campos de trabalho ou já tinham claudicado, mas permaneciam todos dentro das fronteiras da União Soviética, e a relação com eles ia se apagando com a distância, a repressão e o medo.

Ao evocar aquela manhã de aspecto tão agradável, Liev Davidovitch recordaria sempre da urgência que experimentara de apertar a mão de Natália Sedova para sentir algum calor humano ao seu lado, para não asfixiar de tanta angústia diante da sensação de abandono que o acossava. Mas recordaria também que nesse momento tinha fortalecido a sua decisão de que, embora só, o seu dever seria lutar. Se a Revolução pela qual tinha combatido se prostituía na ditadura de um czar vestido de bolchevique, seria necessário nesse caso arrancá-la com raiz e tudo e semeá-la de novo, porque o mundo precisava de revoluções verdadeiras. Aquela decisão, estava ciente, o aproximaria ainda mais da morte que já o vigiava das torres do Kremlin. A morte, no entanto, podia ser considerada apenas uma contingência inevitável: Liev Davidovitch sempre pensara que as vidas de um, de dez, de cem, de mil homens podem e até devem ser devoradas se o turbilhão social assim o exigir para atingir seus fins transformadores, pois o sacrifício individual é muitas vezes a lenha que se queima na pira da revolução. Por isso lhe dava vontade de rir quando certos jornais insistiam em mencionar a sua “tragédia pessoal”. De que tragédia falavam?, escreveria. No processo sobre-humano da revolução não tinha cabimento pensar em tragédias pessoais. Sua tragédia, quando muito, era saber que para se lançar na luta não tinha à mão correligionários forjados no forno da revolução, nem meios econômicos e muito menos um partido. Mas restava-lhe aquela que sempre fora a sua melhor arma: a pena, a mesma que difundira as suas ideias nas colaborações entregues ao Iskrae que, já no seu primeiro desterro, o conduzira ao coração da luta, desde aquela noite de 1901 em que recebera a mensagem capaz de situar a sua vida de lutador no vórtice da história; a pena fora convocada para a sede do Iskra, em Londres, onde o esperava Vladimir Ilitch Ulianov, já conhecido como Lenin.”

*

“O verdadeiro revolucionário começa a sê-lo quando subordina sua ambição pessoal a um ideal. Os revolucionários podem ser cultos ou ignorantes, inteligentes ou limitados, mas não podem existir sem vontade, sem devoção, sem espírito de sacrifício.” (L. D. Trotski)

*

“Em Prínkipo, a presença de Trotski não provocava sobressaltos, e essa evidência o fez compreender que, se seu nome ainda gerava confusões na Europa, não se devia ao que ele pudesse originar mas àquilo que seus inimigos exigiam que lhe fosse entregue em pagamento dos seus atos: hostilidade, repressão, rejeição. O ódio de Stalin, transformado em razão de Estado, tinha posto em marcha a mais potente engrenagem de marginalização jamais dirigida contra um indivíduo solitário. Mais ainda, tinha se entronizado como estratégia universal do comunismo, controlado a partir de Moscou, e até como política editorial de dezenas de jornais. Por isso, engolindo os vestígios do seu orgulho, teve de admitir que, enquanto no Kremlin não decidissem quando a sua vida deixaria de ser útil, manteriam-no preso num ostracismo inflexível justamente até se decretar a queda do pano e o fim da palhaçada. E, pela primeira vez, atreveu-se a pensar em sua vida em termos de tragédia: a clássica, a grega, sem oportunidade para apelações.”

*

“Olha, Ramón, entre as muitas coisas que você tem de aprender estão a ter paciência e a saber que não se atacam os inimigos quando estão de pé, mas quando estão de joelhos. E atacam-se sem piedade, caralho!”

*

“A morte é tão definitiva e irreversível que quase não deixa margem para outros temores.”

*

“Aquela jogada sórdida permitiu que Liev Davidovitch percebesse uma coisa que lhe escapara durante os julgamentos anteriores: Stalin também se propusera a transformar as poucas figuras do passado que ainda o acompanhavam já não em comparsas submissos de suas mentiras, mas em cúmplices diretos de sua fúria criminosa. Quem não fosse vítima seria cúmplice e, mais ainda, carrasco. O terror e a repressão estabeleciam-se como política de um governo que adotava a perseguição e a mentira como recursos de Estado e estilo de vida para o conjunto da sociedade.”

*

“A primeira conclusão de Trotski foi que, de acordo com o governo stalinista, todos os membros do bureau político que levaram a revolução ao triunfo, que acompanharam Lenin nos dias mais difíceis da guerra e da fome e colocaram o país em marcha, homens que sofreram a cadeia, o desterro e inúmeras repressões, na realidade tinham sido desde sempre traidores dos seus ideais e, mais ainda, agentes a serviço de potências estrangeiras desejosas de destruir o que eles próprios tinham construído. Não seria um paradoxo os líderes de Outubro, todos eles, acabarem sendo traidores? Será que o traidor não era um só e se chamava Stalin?”

*

“Há várias semanas, um grupo de escritores e ativistas políticos que se diziam próximos das posições do velho revolucionário tinham se obstinado, no calor dos vinte anos de Outubro, em procurar os defeitos do sistema bolchevique que proporcionaram a entronização do stalinismo. Para isso, quiseram desenterrar, com particular insistência, a repressão sangrenta da revolta dos marinheiros de Kronstadt e, invocando a pureza da verdade histórica, decidiram tornar pública a responsabilidade do exilado nos acontecimentos. O argumento mais utilizado fora de que aquela repressão podia ser considerada o primeiro ato do “terror stalinista” inerente ao bolchevismo no poder, e equiparavam a resposta militar e o fuzilamento de reféns aos expurgos de Stalin. Devido à sua responsabilidade à frente do exército, consideravam o então comissário da Guerra o progenitor daqueles métodos de repressão e de terror.

Fora doloroso para Liev Davidovitch saber que homens como Eastman, Victor Serge ou Souvarine sustentavam aquelas opiniões acerca de uma responsabilidade que o acossava há anos, mas incomodava-o, sobretudo, que tivessem retirado do seu contexto um motim militar, verificado no tempo da guerra civil, e o tivessem colocado ao lado de processos fabricados e fuzilamentos sumários de civis em tempos de paz.

Durante semanas, Liev Davidovitch se embrenharia naquela disputa histórica. Para começar a rebatê-los, o exilado teve de aceitar a responsabilidade que lhe correspondia como membro do Politburo, por ter aprovado, ele também, a repressão daquela estranha sublevação, mas recusou-se a aceitar a acusação de que ele pessoalmente favorecera a repressão e incentivara a crueldade com que tinha se manifestado. “Estou disposto a considerar que a guerra civil não é precisamente uma escola de conduta humanitária e que, de um lado e de outro, se cometem excessos imperdoáveis”, escreveu. “É verdade que em Kronstadt houve vítimas inocentes, e o pior excesso foi o fuzilamento de um grupo de reféns. Mas, mesmo tendo morrido inocentes, o que é inadmissível em qualquer tempo e lugar, e mesmo tendo sido eu, como chefe do exército, o derradeiro responsável pelo que aconteceu ali, não posso admitir uma equiparação entre o esmagamento de uma rebelião armada contra um governo frágil e em guerra com 21 exércitos inimigos e o assassinato frio e premeditado de camaradas cujo único crime foi pensar e, quando muito, dizer que Stalin não era a única nem a melhor opção para a revolução proletária.”

Mas Liev Davidovitch sabia que Kronstadt ficaria eternamente marcado como um capítulo negro da Revolução e que ele próprio, cheio de vergonha e de dor, carregaria para sempre essa culpa. Também sabia que, se em Kronstadt os bolcheviques (e incluía-se a si próprio e a Lenin) não tivessem reprimido sem piedade a rebelião, talvez tivessem aberto as portas à restauração. Assim, simples, terrível e cruel, podem ser a revolução e suas opções, pensou nessa altura e continuaria a pensar até o fim, sem que nada o fizesse mudar de opinião.”

*

“A jogada de mestre da procuradoria era acusar Iagoda de ter agido como um instrumento das agressões trotskistas. Em consequência disso, durante os dez anos em que perseguira, prendera e torturara os camaradas de Liev Davidovitch e confinara milhares de pessoas aos campos da morte, seus excessos criminosos deviam-se a ordens contrarrevolucionárias justamente de Trotski, e não a disposições de Stalin…

Sentindo como aquela agressão à verdade lhe devolvia as forças, o exilado escreveu que Stalin, o Coveiro da Revolução, conseguia superar toda a sua experiência anterior, além de ultrapassar os receptáculos da credulidade mais militante. A irracionalidade das acusações era tanta que lhe era quase impossível conceber um contra-ataque, embora inicialmente tenha decidido responder usando a ironia: é tamanho o meu poder, escreveu, que por ordens minhas, dadas a partir da França, da Noruega ou do México, dezenas de funcionários e de embaixadores com quem nunca falei se transformam em agentes de potências estrangeiras e me enviam dinheiro, muito dinheiro, para apoiar minha organização terrorista; chefes de indústrias tornam-se sabotadores; médicos respeitáveis dedicam-se a envenenar seus pacientes. O único problema, comentaria, era aqueles homens terem sido dirigentes escolhidos pelo próprio Stalin, pois há muitos anos ele não nomeava ninguém na União Soviética.

As confissões inacreditáveis ouvidas durante os dez dias que durou o processo e a forma como foram obrigados a humilhar-se homens repletos de história como Bukharin e Rikov não surpreenderam Liev Davidovitch. Mas provocou-lhe uma enorme tristeza, pelo contrário, ler as autoincriminações de um lutador como o radical Rakovski (tão perto da morte que lhe fora permitido prestar declarações sentado), que reconheceu ter se deixado levar pelas aventureiras teorias trotskistas, apesar de Trotski ter lhe confessado em 1926 sua condição de agente britânico. A que extremos teriam chegado as pressões para quebrar a dignidade de um homem que resistira a anos de deportações e de prisão sem renunciar às suas convicções e que sabia, além disso, estar no fim da vida? Será que algum deles acreditava que, com a sua confissão, prestava um serviço à União Soviética, como eram obrigados a repetir? Liev Davidovitch teve de reconhecer ser incapaz de compreender aquelas exibições de submissão e covardia.

Um primeiro contratempo do processo revelou as costuras da sua montagem. Foi protagonizado por Krestinski, que, durante uma tarde inteira, se atreveu a afirmar que suas confissões, feitas à polícia secreta, eram falsas e se declarou inocente de todas as acusações. Mas, na manhã seguinte, quando subiu ao estrado, Krestinski admitiu serem verdadeiras as acusações anteriores, além de mais algumas, certamente elaboradas a toda a pressa. Com que argumentos teriam quebrado um homem já convencido de que ia ser fuzilado? A nova GPU estava desenvolvendo métodos que apavorariam o mundo no dia em que fossem conhecidos, métodos graças aos quais se verificou a revelação mais espetacular do processo, quando Iagoda, depois de se declarar inocente e de receber o mesmo tratamento que Krestinski, confessou ter preparado o assassinato de Kirov por ordens de Rikov, uma vez que este invejava a ascensão meteórica do jovem.

Mas a estrela do julgamento, como seria de se esperar, foi Nicolai Bukharin, que, depois de um ano de estada nos porões da Lubianka, parecia pronto para cometer o último ato de sua autodestruição política e humana. Embora negasse ser responsável pelas atividades de terrorismo e de espionagem mais assustadoras, Liev Davidovitch julgou compreender que sua tática era aceitar o inaceitável com uma convicção e uma ênfase com que pretendia demonstrar aos observadores mais perspicazes a falsidade da instrução criminal. O velho revolucionário, no entanto, percebeu o erro de perspectiva cometido por Bukharin ao tentar lançar um grito de alarme aos alarmados, para quem (apesar do silêncio que mantinham) todas aquelas acusações seriam tão pouco críveis como as dos julgamentos anteriores. Mas a grande massa, aquela que em Moscou e no mundo seguia o decorrer dos processos, tinha tirado de suas palavras uma única conclusão que validava as acusações e destruía a estratégia do réu: Bukharin confessou, disseram, e isso era o mais importante. Fora para acabar ajoelhado e choroso, admitindo crimes fictícios, que Bukharin preferira voltar a Moscou?, Liev Davidovitch se perguntaria, recordando a carta dramática que Fiodor Dan lhe remetera há três anos.

Parecia evidente a Liev Davidovitch que, nos processos, Stalin exigia dos acusados, mais que uma verdade, a sua autodestruição humana e política. Quando executara os condenados dos julgamentos anteriores, obrigara-os a morrer com a consciência de que não só tinham escarnecido de si próprios, como, além disso, tinham condenado muitos inocentes. Por isso se admirava de que Bukharin, que sem dúvida aprendera a lição dos bolcheviques que o antecederam naquela situação, conservasse a esperança vã de salvar a vida. Numa das muitas cartas que escreveu a Stalin dos porões da Lubianka e que o Coveiro se encarregava de fazer circular em algumas esferas, Bukharin chegou a dizer-lhe que só sentia por ele, pelo Partido e pela causa, um amor grandioso e infinito, e despedia-se abraçando-o em pensamentos… Liev Davidovitch podia imaginar a satisfação de Stalin ao receber mensagens como aquela, que o transformavam num dos poucos carrascos da história a obter a veneração de suas vítimas enquanto as empurrava para a morte… Em 11 de março, os autos tinham sido conclusos para a sentença. Quatro dias depois, os condenados à morte foram executados, garantia o Pravda…

Desde que aquela encenação começou a ser exibida, Liev Davidovitch manteve-se no seu quarto porque lhe era doloroso tentar responder às perguntas que lhe colocavam jornalistas, correligionários, secretários e guarda-costas, todos à procura de uma lógica existente para além do ódio, da obsessão conspiratória e da insanidade criminosa do homem que governava um sexto da Terra e a mente de milhões de pessoas em todo o mundo. Liev Davidovitch sabia que o único objetivo possível de Stalin nesses processos era desacreditar e eliminar adversários reais e potenciais e transferir para eles as culpas por cada um de seus fracassos. O que lhes escapava era aquele descrédito ser dirigido para o interior da sociedade soviética, que, numa porcentagem sem dúvida notável, devia acreditar em tudo o que era divulgado, por mais difícil que fosse sua assimilação. Outro grande objetivo era tornar o medo extensivo e onipresente, sobretudo o medo dos que tinham alguma coisa a perder. Por isso os primeiros destinatários daqueles expurgos tinham sido, na realidade, os burocratas: seguindo essa estratégia, Stalin atingia dezenas dos seus acólitos, incluindo vários membros do Politburo e secretários do Partido nas repúblicas, stalinistas que, de um dia para o outro, tinham sido qualificados como traidores, espiões ou ineptos. Se os oposicionistas de outros tempos foram desonrados publicamente, os stalinistas, pelo contrário, costumavam ser destruídos em silêncio, sem processos abertos, da mesma forma que tinham sido dizimados os comunistas de diversos países refugiados na União Soviética, contra quem Stalin, depois de usá-los, parecia ter se encarniçado.

O mais preocupante era saber que aquelas limpezas tinham afetado toda a sociedade soviética. Como era de se esperar, num Estado de terror vertical e horizontal, a participação das massas na depuração contribuíra para sua difusão geométrica, porque não era possível desencadear uma caçada como aquela que se vivia na União Soviética sem exacerbar os instintos mais baixos das pessoas e, sobretudo, sem que cada uma delas sofresse do terror de cair em suas redes, por qualquer motivo que fosse – ou mesmo sem motivos. O terror gerara o efeito de estimular a inveja e a vingança, além de ter criado um ambiente de histeria coletiva e, pior ainda, de indiferença pelo destino dos outros. A depuração alimentava-se de si própria e, uma vez desencadeada, libertava forças infernais que a obrigavam a seguir em frente e a crescer…

Semanas antes, Liev Davidovitch constatara dramaticamente o horror vivido por seus compatriotas quando uma velha amiga, fugida milagrosamente para a Finlândia, lhe escrevera: “É terrível verificar que um sistema nascido para resgatar a dignidade humana tenha recorrido à recompensa, à glorificação, ao estímulo da denúncia, e que se apoie em tudo o que é humanamente vil. A náusea sobe-me pela garganta quando ouço as pessoas dizerem: fuzilaram M., fuzilaram P., fuzilaram, fuzilaram, fuzilaram. As palavras, de tanto as ouvirmos, perdem seu sentido. As pessoas repetem-nas com a maior tranquilidade, como se estivessem dizendo: vamos ao teatro. Eu, que vivi esses anos no medo e senti a compulsão de denunciar (confesso com pavor, mas sem sentimento de culpa), deixei de sentir na minha mente a brutalidade semântica do verbo fuzilar… Sinto que chegamos ao fim da justiça na Terra, ao limite da indignidade humana. Que morreram demasiadas pessoas em nome daquela que, prometeram-nos, seria uma sociedade melhor”…”

*

“Para a arte, a liberdade é sagrada, é a sua única salvação. Para a arte, tudo tem de ser tudo”. (Trotski)

*

“Para indignação de poucos e para confirmação popular de suas boas intenções, o Grande Capitão tinha criticado os executores do expurgo, que fora acompanhado, as palavras eram suas, de “mais erros que os esperados”. Nesse caso, tudo teria corrido bem se só tivessem sido cometidos os erros esperados? Quantas pessoas podiam ser fuziladas por engano?

Na realidade, a mais dramática das certezas históricas que o Congresso revelara foi a de que o secretário-geral tinha chegado finalmente aonde desejava em sua ascensão ao céu do poder. O terror daqueles últimos anos tinha lhe permitido tirar de cena, de uma maneira ou de outra, dezoito dos vinte e sete membros do Politburo eleitos no último congresso presidido por Lenin, e poupar a cabeça de apenas um quinto dos membros do Comitê Central eleitos em 1934, quando a situação, pela última vez, esteve prestes a fugir-lhe das mãos. Stalin tinha demonstrado ser um verdadeiro gênio da trapaça: sua bem-sucedida eliminação de qualquer oposição no interior do Partido (apoiando-se no acordo sobre a ilegalidade das facções promovido por Lenin) transformou-se em sua arma política mais eficaz para acabar com a democracia e, mais tarde, instaurar o terror e levar a cabo os expurgos que lhe deram o poder absoluto. Talvez o primeiro erro do bolchevismo, deve ter pensado Liev Davidovitch, tenha sido a eliminação radical das tendências políticas que se lhe opunham. Quando essa política passou do exterior da sociedade para o interior do Partido, começou o fim da utopia. Se a liberdade de expressão fosse permitida na sociedade e dentro do Partido, o terror não teria conseguido se implantar. Por isso Stalin empreendera a depuração política e intelectual, para que ficasse tudo sob a alçada de um Estado devorado pelo Partido, de um Partido devorado pelo secretário-geral. Exatamente como Liev Davidovitch, antes da abortada revolução de 1905, disse a Lenin que aconteceria.”

*

“O que mais o encorajava Trotski a dedicar-se à escrita daquela desoladora biografia de Stalin, era a convicção de que, tal como acontecera ao também deificado Nero, depois de sua morte as estátuas de Stalin seriam derrubadas e seu nome apagado de toda a parte, porque a vingança da história costuma ser mais terrível do que a do mais poderoso imperador que alguma vez existiu.”

*

“Minha fama de boa pessoa, mais que a de veterinário eficiente, espalhou-se pela zona e as pessoas iam me ver com animais tão magros como elas (conseguem imaginar uma serpente magra?) e, por absurdo que pareça naqueles dias de escuridão, ofereciam-me medicamentos, linha para suturas, ataduras que por alguma razão haviam sobrado, numa prática fervorosa da solidariedade entre os fodidos, que é a única verdadeira.”

*

“Embora ainda não tivesse começado a acompanhar Ana à igreja, Dany, Frank e os outros poucos amigos que via diziam que eu parecia estar trabalhando para minha candidatura à beatificação e minha ascensão incorpórea aos céus. A verdade era que, lendo e escrevendo sobre como a maior utopia que alguma vez os homens tiveram ao alcance da mão fora pervertida, mergulhando nas catacumbas de uma história que mais parecia um castigo divino que obra de homens ébrios de poder, de ânsias de controle e de pretensões de transcendência histórica, tinha aprendido que a verdadeira grandeza humana está na prática da bondade incondicional, na capacidade de dar aos que nada têm não o que nos sobra, mas uma parte do pouco que temos. Dar até doer, e não fazer política nem pretender prerrogativas com essa ação, muito menos praticar a enganosa filosofia de obrigar os outros a aceitar nossos conceitos do bem e da verdade por (acreditarmos) serem os únicos possíveis e por, além disso, deverem estar agradecidos pelo que lhes demos, mesmo que não o tivessem pedido. E, embora soubesse que a minha cosmogonia era de todo impraticável (e que merda fazemos com a economia, com o dinheiro, com a propriedade, para que tudo isso funcione? e que porra fazemos com os espíritos predestinados e com os filhos da puta de nascença?), satisfazia-me pensar que talvez um dia o ser humano pudesse cultivar essa filosofia, que me parecia tão elementar, sem sofrer as dores de um parto ou os traumas da obrigatoriedade, por pura e livre escolha, por necessidade ética de ser solidário e democrático. Masturbações mentais minhas…”

*

“Com aquele impulso, que ele sabia ser um epílogo, Trotski pôs-se a dar forma às suas últimas vontades. “Durante 43 anos da minha vida consciente fui um revolucionário”, escreveu, “e durante 42 lutei sob a bandeira do marxismo. Se tivesse de começar outra vez, tentaria evitar este ou aquele erro, mas o decurso geral da minha vida permaneceria inalterado. Morrerei sendo um revolucionário proletário, um marxista, um materialista dialético e um ateu irreconciliável. Minha fé no futuro comunista da humanidade não é hoje menos ardente (antes, mais firme) do que era nos dias de minha juventude. (...) A vida é bela, os sentidos celebram sua festa… Que as gerações futuras limpem a vida de todo o mal, de toda a opressão e violência, e desfrutem dela com plenitude”.”

*

“Ramón decidira desde o princípio, mesmo quando estava convencido de que Roquelia tinha sido enviada por seus chefes distantes, manter a mulher à margem dos pormenores mais profundos de sua relação com o mundo das trevas, porque, no meio dos ímpios de sempre, não saber é a melhor maneira de estar protegido.”

*

“– Compreende agora que somos uns empestados? Você consegue se dar conta de que somos o que Stalin criou de pior e, por isso, ninguém nos quer, nem aqui na União Soviética depois de sua morte, nem no Ocidente? Que, quando aceitamos a missão mais honrosa, estávamos nos condenando para sempre, porque íamos executar uma vingança que o cérebro enfermo de Stalin julgava necessária para conservar o poder?

– Stalin não era um doente. Nenhum doente governa meio mundo durante trinta anos. Vocês mesmos diziam: Stalin sabe o que faz…

– É verdade. Mas uma parte dele estava doente. Dizem que matou cerca de 20 milhões de pessoas. Um milhão pode ter sido por necessidade, os outros 19 milhões foram por doença, eu digo… Mas já lhe disse que Stalin não era o único doente.”

*

“Stalin, pare de enviar assassinos para me liquidarem. Já apanhamos cinco. Se não parar com isso, eu enviarei pessoalmente um homem a Moscou, e não haverá necessidade de mandar outro.” (Marechal Tito, em carta datada de 1950 encontrada nos arquivos pessoais de Stalin)

*

“Pensou que o fato de ter acreditado e lutado pela maior utopia jamais concebida implicava doses necessárias de sacrifícios. Ele, Ramón Mercader, tinha sido um dos arrastados pelos rios subterrâneos daquela luta desproporcional, e não valia a pena esquivar-se de responsabilidades nem tentar atribuir suas culpas a enganos e manipulações: ele encarnava um dos frutos podres que apareciam mesmo nas melhores colheitas e, ainda que fosse verdade que outros lhe tinham aberto as portas, ele atravessara, satisfeito, o umbral do inferno, convencido de que deveria existir a morada das trevas para que houvesse um mundo de luz.”

O homem que amava os cachorros – Leonardo Padura
Editora: Boitempo
ISBN: 978-85-7559-445-2
Tradução: Helena Pitta
Páginas: 592
Fonte: http://jornalggn.com.br/blog/doney/lista-de-livros-o-homem-que-amava-os-cachorros-de-leonardo-padura