Mostrando postagens com marcador Pobreza. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Pobreza. Mostrar todas as postagens

Alívio após uma doença


Jair acordou a meio da noite. Mandara colocar uma cama dentro do closet e era ali que dormia. Durante o dia tirava a cama, instalava uma secretária e recebia os filhos, os ministros e os assessores militares mais próximos.

Alguns estranhavam. Entravam tensos e desconfiados no armário, esforçando-se para que os seus gestos não traíssem nenhum nervosismo. Interrogado a respeito pela Folha de São Paulo, o deputado Major Olímpio, que chegou a ser muito próximo de Jair, tentou brincar: “Não estou sabendo, mas não vou entrar em armário nenhum. Isso não é hétero.” Michelle, que também se recusava a entrar no armário, fosse de dia ou de noite, optou por dormir num outro quarto do Palácio da Alvorada.

Aliás, o edifício já não se chamava mais Palácio da Alvorada. Jair oficializara a mudança de nome: “Alvorada é coisa de comunista!” — Esbravejara: “Certamente foi ideia desse Niemeyer, um esquerdopata sem vergonha.”

O edifício passara então a chamar-se Palácio do Crepúsculo. O Presidente tinha certa dificuldade em pronunciar a palavra, umas vezes saía-lhe grupúsculo, outras prepúcio, mas achava-a sólida, máscula, marcial. Ninguém se opôs.

Naquela noite, pois, Jair Messias Bolsonaro despertou dentro de um closet, no Palácio do Crepúsculo, com uma gargalhada escura rompendo das sombras. Sentou-se na cama e com as mãos trêmulas procurou a glock 19, que sempre deixava sob o travesseiro.

— Largue a pistola, não vale a pena!

A voz era rouca, trocista, com um leve sotaque baiano. Jair segurou a glock com ambas as mãos, apontando-a para o intenso abismo à sua frente:

— Quem está aí?

Viu então surgir um imenso veado albino, com uma armação incandescente e uns largos olhos vermelhos, que se fixaram nos dele como uma condenação. Jair fechou os olhos. Malditos pesadelos.

Vinha tendo pesadelos há meses, embora fosse a primeira vez que lhe aparecia um veado com os cornos em brasa. Voltou a abrir os olhos. O veado desaparecera. Agora estava um índio velho à sua frente, com os mesmos olhos vermelhos e acusadores:

— Porra! Quem é você?

— Tenho muitos nomes. — Disse o velho. — Mas pode me chamar Anhangá.

— Você não é real!

— Não?

— Não! É a porra de um sonho! Um sonho mau!

O índio sorriu. Era um sorriso bonito, porém nada tranquilizador. Havia tristeza nele. Mas também ira. Uma luz escura escapava-lhe pelas comissuras dos lábios:

— Em todo o caso, sou seu sonho mau. Vim para levar você.

— Levar para onde, ô paraíba? Não saio daqui, não vou para lugar nenhum.

— Vou levar você para a floresta.

— Já entendi. Michelle me explicou esse negócio dos pesadelos. Você é meu inconsciente querendo me sacanear. Quer saber mesmo o que acho da Amazônia?! Quero que aquela merda arda toda! Aquilo é só árvore inútil, não tem serventia. Mas no subsolo há muito nióbio. Você sabe o que é nióbio? Não sabe porque você é índio, e índio é burro, é preguiçoso. O pessoal faz cordãozinho de nióbio. As vantagens em relação ao ouro são as cores, e não tem reação alérgica. Nióbio é muito mais valioso que o ouro.

O índio sacudiu a cabeça, e agora já não era um índio, não era um veado — era uma onça enfurecida, lançando-se contra o presidente:

— Acabou!

Anhangá colocou um laço no pescoço de Jair, e no instante seguinte estavam ambos sobre uma pedra larga, cercados pelo alto clamor da floresta em chamas. Jair ergueu-se, aterrorizado, os piscos olhos incrédulos, enquanto o incêndio avançava sobre a pedra:

— Você não pode me deixar aqui. Sou o presidente do Brasil!

— Era. — Rugiu Anhangá, e foi-se embora.

Na manhã seguinte, o ajudante de ordens entrou no closet e não encontrou o presidente. Não havia sinais dele. “Cheira a onça”, assegurou um capitão, que nascera e crescera numa fazenda do Pantanal. Ninguém o levou a sério.

Ao saber do misterioso desaparecimento do marido, Michelle soltou um fundo suspiro de alívio.

Os generais soltaram um fundo suspiro de alívio. Os políticos (quase todos) soltaram um fundo suspiro de alívio.

Os artistas e escritores soltaram um fundo suspiro de alívio. Os gramáticos e outros zeladores do idioma, na solidão dos respetivos escritórios, soltaram um fundo suspiro de alívio.

Os cientistas soltaram um fundo suspiro de alívio. Os grandes fazendeiros soltaram um fundo suspiro de alívio.

Os pobres, nos morros do Rio de Janeiro, nas ruas cruéis de São Paulo, nas palafitas do Recife, soltaram um fundo suspiro de alívio.

As mães de santo, nos terreiros, soltaram um fundo suspiro de alívio.

Os gays, em toda a parte, soltaram um fundo suspiro de alívio.

Os índios, nas florestas, soltaram um fundo suspiro de alívio.

As aves, nas matas, e os peixes, nos rios e no mar, soltaram um fundo suspiro de alívio.

O Brasil, enfim, soltou um fundo suspiro de alívio — e a vida recomeçou, como se nunca, à superfície do planeta Terra, tivesse existido uma doença chamada Jair Messias Bolsonaro.

_____________________________________
Publicado originalmente na revista “Visão” de Portugal. Reproduzido no blog do Juca Kfouri.
Por José Eduardo Agualusa

Fonte: https://www.brasil247.com/cultura/escritor-angolano-descreve-o-triste-fim-de-jair-messias-bolsonaro?fbclid=IwAR3SKBlHl6s4WL5xjFvLRxpGvrN7u8GoLC_ZKDmUX3E3JchB5kZX5gMX1js

Empreendedorismo social: atual configuração, perspectivas e desafios


No presente artigo, procuramos apresentar os principais elementos introdutórios ao tema empreendedorismo, tomando como exemplo a realidade brasileira. Partimos da constatação de que o empreendedorismo social emerge no cenário dos anos 1990, ante a crescente problematização social, a redução dos investimentos públicos no campo social, o crescimento das organizações do terceiro setor e da participação das empresas no investimento e nas ações sociais. Atualmente, o empreendedorismo social se apresenta como um conceito em desenvolvimento, mas com características teóricas, metodológicas e estratégicas próprias, sinalizando diferenças entre uma gestão social tradicional e uma empreendedora. É o que procuramos apresentar, mesmo que sinteticamente e de forma introdutória, a partir dos principais conceitos, nacionais e internacionais, e de um exemplo típico brasileiro e de impacto global: as sensíveis diferenças entre empreendedorismo social e outros conceitos, como responsabilidade social empresarial e empreendedorismo privado. Finalizando, apontamos algumas características de entendimento do empreendedorismo social no Brasil, bem como alguns elementos sobre os desafios e possibilidades dessa nova forma e paradigma de gestão social que se apresenta como emergente e de grande poder de transformação social no cenário de um Brasil paradoxal, com muitos problemas, mas repleto de possibilidades. 

Autor: Edson Marques Oliveira

Palavras-chave 
Empreendedorismo social. Gestão social. Terceiro setor

Texto completo: Clique aqui


Brasil: o grande salto para trás


Com o título “Crise brasileira e humor negro”, o jornal francês Le Monde publica um artigo sobre o documentário “Brasil: o grande salto para trás”, das francesas Frédérique Zingaro e Mathilde Bonnassieux, que será transmitido pela TV franco-alemã ARTE nessa terça-feira (18 de abril de 2017).

A correspondente do jornal Le Monde no Brasil, Claire Gatinois, escreve que em uma certa segunda-feira, no dia 17 de abril de 2016, o Brasil descobriu o rosto dos políticos que representavam a população na Câmara dos Deputados: conservadores, grandes fazendeiros, evangélicos loucos por Deus, homens apegados aos valores tradicionais e até saudosistas dos tempos da ditadura militar.

Na maioria, pessoas corrompidas.

O artigo informa que durante a sessão de votação, que entrou madrugada adentro, esses deputados selariam o destino da então presidente Dilma Rousseff, reeleita em 2014, desencadeando o impeachment.

Este é o momento histórico do documentário “Brasil: o grande salto para trás”, um momento-chave em que nosso país, numa crise vertiginosa, viu o seu futuro balançar.

“É como o fim de um parênteses encantado aberto por Lula da Silva em 2003, legando prosperidade e permitindo que milhares de brasileiros saíssem da miséria, sem falar na projeção na cena diplomática internacional, tornando-se um ator relevante dos BRICS”, escreve a jornalista, explicando que a indignação popular diante da corrupção de um Partido dos Trabalhadores desgastado pelo poder — corrupção que se alastra pelos partidos da direita e da esquerda — serviu de pano de fundo para o impeachment.

“Desse instante nascerá o confronto, muitas vezes maniqueísta, entre os pró e os contra a destituição, opondo uma esquerda progressista e uma direita agarrada aos seus privilégios”, analisa Claire Gatinois.

O documentário das cineastas francesas optou pela descrição desta fratura, centrando a narrativa em Gregório Duvivier, jovem humorista da esquerda, que fez a maioria das entrevistas, incluindo a própria ex-presidente Dilma.

Le Monde analisa que o telespectador é levado a seguir a interpretação muito pessoal do cômico, que serve de referência para se compreender a complexidade do Brasil.

O percurso é revelador do sentimento de uma parte dos brasileiros: depois do impeachment, os militantes e simpatizantes da esquerda denunciam um complô anti-PT por parte de uma justiça enviezada e das mídias mais fortes, dando à destituição de Dilma ares de “um golpe de Estado parlamentar.”

Como será o futuro agora? — indaga o documentário, colocando em foco a perspectiva de um triste destino para a esquerda nacional, a exemplo do que ocorreu em diversos países da América Latina.

Le Monde constata que a conclusão do documentário é que, sem negar os erros do PT, a atual política de Michel Temer, marcada pelo rigor e pelas reformas que seduzem os mercados financeiros, compromete, com seus cortes, as despesas destinadas à saúde, educação e ajuda aos desfavorecidos.

Fonte: https://www.viomundo.com.br/voce-escreve/brasil-o-grande-salto-para-tras-o-que-os-franceses-viram-sobre-o-impeachment-assista.html

"Quem se Importa?"

'Quem se Importa?' mostra pessoas que tentam mudar o mundo.

Documentário de Mara Mourão, filmado em sete países, retrata o trabalho de 18 empreendedores sociais



São Paulo - O bangladeshiano Muhammad Yunus, criador do primeiro banco comunitário do mundo; o peruano Joaquin Leguia, que procura destinar 1% da terra de seu país às crianças para o cultivo sustentável; o brasileiro Eugênio Scanavino, que levou um barco-hospital a navegar pelas águas da Amazônia paraense, atendendo a comunidades ribeirinhas. São estes alguns dos 18 empreendedores sociais retratados no documentário Quem se Importa?. Contando histórias de pessoas que desenvolveram projetos transformadores de realidades sociais no Brasil e no mundo, o filme aponta o sentido do empreendedorismo social, também chamado de setor cidadão ou setor social. Com locução de Rodrigo Santoro, o documentário é dirigido por Mara Mourão.

Mara dirigiu centenas de comerciais de televisão. Em 1998 fez Alo? e em 2002 dirigiu Avassaladoras, ambas comédias. Seu terceiro longa-metragem, o documentário Doutores da Alegria, de 2005, exibe o trabalho da organização de mesmo nome que tem buscado humanizar o sistema de saúde brasileiro, com palhaços que divertem e ajudam crianças em recuperação. O trabalho do Doutores da Alegria também compõe o painel do empreendedorismo social montado por Mara, em Quem se Importa?.

Com cenas gravadas em mais de sete países, o documentário difunde um movimento mundial de empreendedorismo social. O termo foi criado por Bill Drayton, entrevistado no filme. Ele, que diz desejar erradicar com todos os problemas sociais do mundo, é o fundador da Ashoka, uma organização sem fins lucrativos que auxilia empreendedores sociais em mais de 70 países. As pessoas entrevistadas no filme realizam trabalhos cujo objetivo é o bem-estar social, percebem problemas sociais, na maioria das vezes causados pela pobreza, e procuram soluções.

Confira entrevista com Mara Mourão

Quem é o empreendedor social?
O empreendedor social é aquele que tem as mesmas características de um empreendedor de negócios, só que aplicadas para o setor social. Enquanto o empreendedor de negócios visa ao lucro – geralmente este lucro é para um grupo pequeno de acionistas –, o empreendedor social visa o bem-estar social. E se ele visa ao lucro, sim, é para revertê-lo ao bem-estar social. Ele tem as mesmas características de liderança, visão, persistência. É um sonhador, mas é prático e consegue viabilizar e implementar o que deseja. No entanto, como Bill Drayton diz no filme, somente ter essas características não fazem de alguém um empreendedor social. O que o empreendedor social faz é ter a capacidade de saber o que a sociedade precisa em um determinado momento. E ele não descansa enquanto não conquistar seus objetivos. Esse é o verdadeiro empreendedor social.

O empreendedor seria aquele que desenvolve grandes projetos sociais e consegue provocar mudanças na sociedade?
Tem empreendedores de vários níveis. Se a pessoa faz um trabalho em grande escala e afeta milhões de vidas, ela é chamada de empreendedor social. Se faz em escala menor, é chamada de transformador ou agente de mudança. Tem vários nomes, mas acho uma bobagem, todos são nomes diferentes, para um espírito comum, o espírito de arregaçar as mangas e não se conformar com uma realidade que não deve existir.

Você é uma empreendedora social?
Tem gente dizendo que eu sou, mas acho que não. Sou uma cineasta que está causando impacto social com os filmes. Quem sabe se eu fizer mais filmes assim, já não possa ser chamada de empreendedora social. Mas, por enquanto, sou só uma cineasta causando impacto, aliás, não é nem isso: estou causando inspiração, porque os filmes não mudam o mundo, quem o muda são as pessoas que assistem aos filmes.

Quem se importa? pretende ser mais do que um filme? Ele é um movimento?
É um movimento de inspiração. Ele inspira as pessoas a tomarem consciência de seu poder de transformação. É plantar a semente do “eu também posso fazer”, principalmente nos jovens. Nas redes sociais, na internet já temos milhares de pessoas divulgando o filme e compartilhando e discutindo os ideais dele. E eu sinto que tem muita gente que se importa e que faz questão de passar essa mensagem do filme adiante.

No documentário, o apelo à conscientização dos jovens é constante. O jovem pode ser um transformador social?
O Bill Drayton acredita que se 3% das crianças nas escolas fossem transformadoras, mudávamos o sistema num instante. Como ele comenta no filme, os pais vão ficar preocupados se o filho estiver indo mal em matemática, mas será que eles notam se o filho está sendo um provocador de mudanças? Os pais estão preocupados em formar cidadãos proativos, pessoas que realmente lutam pelos direitos dos outros? Não, estão preocupados se o filho vai bem nas matérias. Queremos mostrar que empreendedorismo social é tão importante quanto a matemática. Já exibimos o filme em escolas. Somos parceiros do programa Cinema para Todos do governo do Rio de Janeiro, que o levará para muitas escolas de periferia no estado. E já estamos falando com fundações para tentar levá-lo para escolas públicas em todo o Brasil.

O que você pensa da crítica de que a existência de ONGs e do terceiro setor é uma forma de privatizar serviços que o Estado deveria garantir?
A princípio você pode pensar que o empreendedor social está aqui para tapar o buraco do que o governo não conseguiu fazer. Obviamente, em países mais ricos, como a Dinamarca e a Suíça, tem menos empreendedores sociais do que na Índia ou no Brasil. É óbvio que os países com mais questões sociais vão ter mais empreendedores sociais. Porém, nem sempre o governo pode fazer o que o empreendedores sociais fazem, e vice-versa, porque eles têm características diferentes. O governo vive de eleições, e o político eleito não pode errar, porque ele não tem o direito ao erro. Não tem esse luxo, porque o erro é considerado um escândalo e não reelege ninguém. Já no empreendedorismo social, o erro e a experimentação são permitidos. E o setor social é muito mais ágil e menos burocrático que o setor governamental. Tem coisa que não dá pra tornar política pública, tem coisa que precisa ser feita por ONG, assim como tem coisa que precisa ser feita pela iniciativa privada. E eu acho que o filme transmite a ideia de que casamento entre esses três setores pode dar certo. O empreendedorismo social vai dar certo quando ele estiver misturado em todos os setores da sociedade e quando as pessoas de todas as esferas começarem a agir.

O empreendedorismo social, então, não é característico só do terceiro setor?
Não, ele pode estar na iniciativa privada ou no governo. O empreendedor social é um cara que muda um padrão na sociedade, uma situação, mas não importa a esfera em que atua. A política é uma forma de transformação social, mas quando um político cria uma lei que muda a sociedade em algum aspecto, ele está fazendo tanta transformação social quanto um empreendedor social. Só são nomes diferentes. Esse espírito do setor cidadão atuante deve permear toda a sociedade e todos os setores dela. O setor social cresceu muito nas duas últimas três décadas, por várias razões. Primeiro, porque mais de 200 países passaram a ter sistemas democráticos, e antes eram sistemas ditatoriais, absolutistas e  de apartheid. Depois, houve um aumento da classe média. E houve o advento da internet. Isso tudo fez com que o setor cidadão tivesse esse boom. Mas creio que no futuro não vai ter essa divisão de quem é empreendedor social e quem é cidadão. Todos seremos cidadãos mais ativos. É esse momento que Bill Drayton chama de combinação da democracia: quando todos os cidadãos são ativos.

Quem se Importa? retrata o trabalho de 18 empreendedores sociais de vários lugares do mundo. Como você chegou a esses nomes?
Com esse painel de empreendedores do arredor do mundo, com empreendedores de diversos países, quis mostrar que é um movimento mundial. Escolhi esses 18 nomes, depois de uma pesquisa extensa, na qual eu fui buscando pessoas de continentes diferentes e de áreas de atuação diferentes, que soubessem se comunicar bem e cujos trabalhos teriam imagens às quais eu teria acesso. Foi com muita dor no coração, porque deixei milhares de pessoas que eu conheço e que eu não conheço. Não caberia mais do que isso. É por isso que estou pensando em fazer uma série de televisão, para justamente apresentar as várias pessoas que tem trabalhos muito bacanas. Busquei em livros, internet e na rede Ashoka, um grande celeiro de empreendedores sociais. Cheguei a 50 nomes e fui afunilando até chegar nesses 18. Eu tentei buscar uma diversidade para justamente mostrar a riqueza do empreendedorismo social. Com o filme, você passa a entender que eles podem estar na área da educação, da saúde, do meio ambiente, dos direitos humanos, da economia, em qualquer área. O filme passa a mensagem de que todo mundo pode mudar o mundo não importa em que setor. Seja ele privado, governamental ou social. Qualquer pessoa pode fazer a diferença.

Você dirigiu comerciais para televisão antes de dirigir as comédias Alô? Avassaladoras. Como mudou para as temáticas sociais?
É fácil de entender. Eu já conhecia o trabalho do Doutores da Alegria porque o fundador, Wellington Nogueira, é meu marido. Eu sempre achei que daria um filme, mas o próprio trabalho ainda estava em crescimento, ainda estava em formatação. Mas quando acabei de fazer Avassaladoras, o Doutores da Alegria já estava solidificado, já tinha livros escritos, teses defendidas, centro de estudos, já estava um projeto absolutamente solidificado. Percebi que havia chegado a hora de mostrar para o público o que acontece dentro dos hospitais e que as pessoas não conseguem ver. E a resposta ao filme foi completamente diferente do que eu tinha com as minhas comédias, porque com elas era muito bacana, mas ficava naquela história de “eu ri muito e me diverti muito”, mas com o Doutores da Alegria, as pessoas me diziam que o filme havia mudado a vida delas. Fiquei chocada com o impacto do filme. Teve professores que mudaram o jeito de ensinar e jovens que mudaram o rumo de suas carreiras. Resolvi fazer um filme na mesma linha que o Doutores da Alegria, só que mais abrangente. Fiquei muito tocada com a reação do público e com o impacto que um filme pode causar. 

Mas há uma diferença entre fazer filmes de entretenimento e documentários?
A diferença é entre ficção e documentário. A ficção é mais simples. De um certo modo, você segue um roteiro, e na hora da edição, é muito mais simples, pois edita aquele o roteiro. Num documentário você tem um roteiro e depois você o refaz na edição. Fiquei um ano editando o Quem se Importa? porque havia milhões de possibilidades, com o material todo que tinha nas mãos. Mas tudo é cinema, tudo é audiovisual. Gosto de fazer os dois e vou continuar a fazer os dois. O que você não vai me ver fazendo é um filme que só tenha tiros e nenhuma mensagem. Minha ideia é fazer ficção que tenha alguma mensagem e documentário que tenha impacto social.

Em Quem se Importa?, Wellington Nogueira, entrevistado, comenta que, quando começou o trabalho do Doutores da Alegria percebeu o poder social que a arte pode ter. Você teve uma percepção semelhante?
Total. O impacto social que um filme pode causar não passa pela bilheteria. É uma outra métrica que se usa, e é uma métrica invisível mesmo, é a frase de Albert Einstein: “Nem tudo o que conta pode ser contado, e nem tudo que pode ser contado conta”. Você começa um filme e começa a influenciar e a inspirar a própria equipe que fez o filme, e vai como uma onda. O filme Uma Verdade Inconveniente,  do Al Gore, por exemplo, levantou a questão climática, e me lembro que via muitas pessoas discutindo a questão mesmo antes de terem visto o filme. O documentário Super Size, do Morgan Spurlock, também teve uma bilheteria pequena e acabou mudando o cardápio do McDonald's. O impacto social do cinema é muito forte. Gosto muito disso e vou usar o cinema como uma arte que impacta as pessoas para uma mudança positiva. 

Quem se importa? 
Direção: Mara Mourão
Locução: Rodrigo Santoro
Duração: 91 minutos

Fonte: https://www.redebrasilatual.com.br/entretenimento/2012/04/quem-se-importa-mostra-pessoas-que-tentam-mudar-o-mundo

A Avó Grilo - O Mito da Dona da Água



Esta é uma história que é contada milenarmente pelo povo Ayoreo, da Bolívia. Dizem eles que no principio havia uma avó, que era um grilo chamado Direjná. Esta avozinha era a dona da água e por onde quer que ela passasse com seu canto de amor, a água brotava. Um dia, os netos pediram que ela fosse embora e ela partiu, triste. Mas, na medida em que ia sumindo, também a água ia embora. Neste vídeo, a história se atualiza e na sua viagem para lugar nenhum a avó é encontrada pelos empresários que a aprisionam e fazem com que ela faça a água cair apenas nos seus caminhões pipa. Então, eles vendem a água. O povo passa necessidade e sofre. A avozinha também sofre. Até que um dia, o povo entende que é preciso lutar. Então…

Vale a pena ver essa beleza de desenho animado, que representa a poderosa luta dos povos originários contra a mercantilização da natureza.

A produção foi feita na Dinamarca, por The Animation Workshop, Nicobis, Escorzo, e pela Comunidade de Animadores Bolivianos. O trabalho de desenho foi realizado por oito animadores bolivianos, dirigido por um francês, com música da embaixadora da Bolívia na França, e a ajuda de um mexicano e uma alemã. Todo juntos na defesa dos recursos naturais.

Quarenta anos da Teologia da Libertação


Teologia da Libertação celebra neste ano de 2011 40 anos de existência. Em 1971 Gustavo Gutiérrez publicava no Peru seu livro fundador “Teologia da Libertação.Perspectivas”. Eu publicava também em 1971 em forma de artigos, numa revista de religiosas – Grande Sinal – para escapar da repressão militar o meu Jesus Cristo Libertador, depois lançado em livro. Ninguém sabia um do outro. Mas estávamos no mesmo espírito. Desde então surgiram três gerações de teólogos e teólogas que se inscrevem dentro da Teologia da Libertação. Hoje ela está em todos os continentes e representa um modo diferente de fazer teologia, a partir dos condenados da Terra e da periferia do mundo.Aqui vai um pequeno balanço destes 40 anos de prática e de reflexão libertadoras.

**************

A Teologia da Libertação participa da profecia de Simeão a respeito do menino (Jesus): ela será motivo de queda e de elevação, será um sinal de contradição (Lc 2,34). Efetivamente a Teologia da Libertação é uma teologia incomprendida, difamada, perseguida e condenada pelos poderes deste mundo. E com razão. Os poderes da economia e do mercado a condenam porque cometeu um crime para eles intolerável: optou por aqueles que estão fora do mercado e são zeros econômicos. Os poderes eclesiásticos a condenaram por cair numa “heresia” prática ao afirmar que o pobre pode ser construtor de uma nova sociedade e também de outro modelo de Igreja. Antes de ser pobre, ele é um oprimido ao qual a Igreja deveria sempre se associar em seu processo de libertação. Isso não é politizar a fé mas praticar uma evangelilzação que inclui também o político. Consequentemente, quem toma partido pelo pobre-oprimido sofre acusações e marginalizações por parte dos poderosos seja civis, seja religiosos.

Por outro lado, a Teologia da Libertação representa uma benção e uma boa nova para os pobres. Sentem que não estão sós, encontraram aliados que assumiram sua causa e suas lutas. Lamentam que o Vaticano e boa parte dos bispos e padres construam no canteiro de seus opressores e se esquecem que Jesus foi um operário e pobre e que morreu em consequência de suas opções libertárias a partir de sua relação para com o Deus da vida que sempre escuta o grito dos oprimidos.

De qualquer forma, numa perspectiva espiritual, é para um teólogo e uma teóloga comprometidos e perseguidos uma honra participar um pouco da paixão dos maltratados deste mundo.

1. A centralidade do pobre e do oprimido
O punctum stantis et cadentis da Teologia da Libertação é o pobre concreto, suas opressões, a degradação de suas vidas e os padecimentos sem conta que sofre. Sem o pobre e o oprimido não há Teologia da Libertação. Toda opressão clama por uma libertação. Por isso, onde há opressão concreta e real que toca a pele e faz sofrer o corpo e o espírito ai tem sentido lutar pela libertação. Herdeiros de um oprimido e de um executado na cruz, Jesus, os cristãos encontram em sua fé mil razões por estarem do lado dos oprimidos e junto com eles buscar a libertação. Por isso a marca registrada da Teologia da Libertação é agora e será até o juizo final: a opção pelos pobres contra sua pobreza e a favor de sua vida e liberdade.

A questão crucial e sempre aberta é esta: como anunciar que Deus é Pai e Mãe de bondade num mundo de miseráveis? Este anúncio só ganhará credibilidade se a fé cristã ajudar na libertação da miséria e da pobreza. Então tem sentido dizer que Deus é realmente Pai e Mãe de todos mas especialmente de seus filhos e filhas flagelados.

Como tirar os pobres-oprimidos da pobreza, não na direção da riqueza, mas da justiça? Esta é uma questão prática de ordem pedagógico-política. Identificamos três estratégias.

A primeira interpreta o pobre como aquele que não tem. Então faz-se mister mobilizar aqueles que têm para aliviar a vida dos que não têm. Desta estratégia nasceu o assistencialismo e o paternalismo. Ajuda mas mantém o pobre dependente e à mercê da boa vontade dos outros. A solução tem respiração curta.

A segunda interpreta o pobre como aquele que tem: tem força de trabalho, capacidade de aprendizado e habilidades. Importa formá-lo para que possa ingressar no mercado de trabalho e ganhar sua vida. Enquandra o pobre no processo produtivo, mas sem fazer uma crítica ao sistema social que explora sua força de trabalho e devasta a natureza, criando uma sociedade de desiguais, portanto, injusta. É uma solução que ajuda favorece o pobre, mas é insuficiente porque o mantém refém do sistema, sem libertá-lo de verdade.

A terceira interpreta o pobre como aquele que tem força histórica mas força para mudar o sistema de dominação por um outro mais igualitário, participativo e justo, onde o amor não seja tão difícil. Esta estratégia é libertária. Faz do pobre sujeito de sua libertação. A Teologia da Libertação, na esteira de Paulo Freire, assumiu e ajudou a formular esta estratégia. É uma solução adequada à superação da pobreza. Esse é o sentido de pobre da Teologia da Libertação.

Só podemos falar de libertação quando seu sujeito principal é o próprio oprimido; os demais entram como aliados, importantes, sem dúvida, para alargar as bases da libertação. E a Teologia da Libertação surge do momento em que se faz uma reflexão crítica à luz da mensagem da revelação desta libertação histórico-social.

2.Teologia da Libertação e movimentos por libertação
Entretanto, só entenderemos adequadamente a Teologia de Libertação se a situarmos para além do espaço eclesial e dentro do movimento histórico maior que varreu as sociedades ocidentais no final dos anos 60 do século passado. Um clamor por liberdade e libertação tomou conta dos jovens europeus, depois norte-americanos e por fim dos latino-americanos.

Em todos os âmbitos, na cultura, na política, nos hábitos na vida cotidiana derrubaram-se esquemas tidos por opressivos. Como as igrejas estão dentro do mundo, membros numerosos delas foram tomados por este Weltgeist. Trouxeram para dentro das Igrejas tais anseios por libertação. Começaram a se perguntar: que contribuição nós cristãos e cristãs podemos dar a partir do capital específico da fé cristã, da mensagem de Jesus que se mostrou, segundo os evangelhos, libertador? Esta questão era colocada por cristãos e cristãs que já militavam politicamente nos meios populares e nos partidos que queriam a transformação da sociedade.

Acresce ainda o fato de que muitas Igrejas traduziram os apelos do Concilio Vaticano II de abertura ao mundo, para o contexto latino-americano, como abertura para o sub-mundo e uma entrada no mundo dos pobres-oprimidos. Deste impulso, surgiram figuras proféticas, nasceram as CEBs, as pastorais sociais e o engajamento direto de grupos cristãos em movimentos políticos de libertação. Para muitos destes cristãos e cristãs e mesmo para uma significativa porção de pastores não se tratava mais de buscar o desenvolvimento. Este era entenddo como desenvolvimento do subdsenvolvimento, portanto, como uma opressão. Demandava, portanto, um projeto de libertação.

Portanto, a Teologia da Libertação não caiu do céu nem foi inventada por algum teólogo inspirado. Mas emergiu do bojo desse movimento maior mundial e latino-americano, por um lado político e por outro eclesial. Ela se propôs pensar as práticas eclesiais e políticas em curso à luz da Palavra da Revelação. Ela comparecia como palavra segunda, crítica e regrada, que remetia à palavra primeira que é a prática real junto e com os oprimidos. Alguns nomes seminais merecem ser aqui destacados que, por primeiro, captaram a relevância do momento histórico e souberam encontrar-lhe a fórmula adequada, Teologia da Libertação: Gustavo Gutiérrez do Peru, Juan Luiz Segundo do Uruguai, Hugo Asmann do Brasil e Enrique Dussel e Miguez Bonino, ambos da Argentina. Esta foi a primeira geração. Seguiram-se outras.

3. Os muitos rostos dos pobres e oprimidos
A Teologia da Libertação partiu diretamente dos pobres materiais, das classes oprimidas, dos povos desprezados como os indígenas, negros marginalizados, mulheres submetidas ao machismo, das religiões difamadas e outros portadores de estigmas sociais. Mas logo se deu conta de que pobres-oprimidos possuem muitos rostos e suas opressões são, cada vez, específicas. Não se pode falar de opressão-libertação de forma generalizada. Importa qualificar cada grupo e tomar a sério o tipo de opressão sofrida e sua correspondente libertação ansiada.

Desmascarou-se o sistema que subjaz a todas estas opressões, construído sobre o submetimento dos outros e da depredação da natureza. Dai a importância do diálogo que a Teologia da Libertação conduziu com a economia políica capitalista. De grande relevância crítica foi a releitura da história da América Latina a partir das vítimas, desocultando a perversidade de um projeto de invasão coletivo no qual o colono ou o militar vinha de braço dado com o missionário. Esse casamento incestuoso produziu, segundo o historiador Oswald Spengler, o maior genocídio da história. Até hoje nem as potências outrora coloniais nem a Igreja institucional tiveram a honradez de reconhecer esse crime histórico, muito menos de fazer qualquer gesto de reparação.

Sem entrar em detalhes, surgiram várias tendências dentro da mesma e única Teologia da Libertação: a feminista, a indígena, a negra, a das religiões, a da cultura, a da história e da ecologia. Logicamente, cada tendência se deu ao trabalho de conhecer de forma crítica e científica seu objeto, para poder retamente avaliá-lo e atuar sobre ele de forma libertadora à luz da fé.

4. Como fazer uma teologia de libertação
Aqui cabe uma palavra sobre o como fazer uma teologia que seja libertadora, quer dizer, cabe abordar o método da Teologia da Libertação. O método seja talvez uma de suas contribuições mais notáveis que este modo de fazer teologia trouxe ao quefazer teológico universal. Parte-se antes de mais nada de baixo, da realidade, a mais crua e dura possível, não de doutrinas, documentos pontifícios ou de textos bíblicos. Estes possuem a função de iluminação mas não de geração de pensamento e de práticas.

Face à pobreza e à miséria, a primeira reação foi, tipicamente, jesuânica, a do miserior super turbas, de compaixão que implica transportar-se à realidade do outro e sentir sua paixão. É aqui que se dá uma verdadeira experiência espiritual de encontro com aqueles que Bartolomeu de las Casas no México e Guamán Poma de Ayala no Peru chamavam de os Cristos flagelados da história. Há um encontro de puro espírito com o Cristo crucificado que quer ser baixado da cruz. Esta experiência espiritual de compaixão só é verdadeira se der origem a um segundo sentimento o de iracúndia sagrada que se expressa: “isso não pode ser, é inaceitável e condenável; deve ser superado”.

Destes sentimentos surge imediatamente a vontade de fazer alguma coisa. É nesse momento que entra a racionalidade que nos ajuda a evitar enganos, fruto da boa vontade mas sem crítica. Sem análise corre-se o risco do assistencialismo e do mero reformismo que acabam por reforçar o sistema. O conhecimento dos mecanismos produtores da pobreza-opressão nos mostra a necesidade de uma transformação e libertação, portanto de algo novo e alternativo. Em seguida, buscam-se as mediações concretas que viabilizam a libertação, sempre tendo como protagonista principal o próprio pobre. Aqui entra a funcionar outra lógica, aquela das metas, das táticas e estratégias para alcançá-las, das alianças com outros grupos de apoio e da avaliação da correlação de forças, do juizo prudencial acerca da reação do sistema e de seus agentes e da possibilidade real de avanço. Alcançada a meta, vale a celebração e a festa que congraçam as pessoas, lhes conferem sentimento de pertença e do reconhecimento da própria força transformadora. Então constatam empiricamente que um fraco mais um fraco não são dois fracos, mas um forte, porque a união faz a força histórica transformadora.

Resumindo: estes são os passos metodológicos da Teologia a Libertação: (1) um encontro espiritual, vale dizer, uma experiência do Crucificado sofrendo nos crucificados. (2) uma indignação ética pela qual se condena e rejeita tal situação como desumana que reclama superação;(3) um ver atento que implica uma análise estrutural dos mecanismos produtores de pobreza-opressão; (4)um julgar crítico seja aos olhos da fé seja aos olhos da sã razão sobre o tipo de sociedade que temos, marcada por tantas injustiças e a urgência de transformá-la; (5) um agir eficaz que faz avançar o processo de libertação a partir dos oprimidos; (5) um celebrar que é um festejar coletivo das vitórias alcançadas.

Esse método é usado na linguagem do cotidiano seja pelos meios populares que se organizam para resistir e se libertar, seja pelos grupos intermediários dos agentes de pastoral, de padres, bispos, religiosos e religiosas e leigos e leigas cujo discurso é mais elaborado, seja pelos próprios teólogos que buscam rigor e severidade no discurso.

5. Contribuições da Teologia da Libertação para a teologia universal
A Teologia da Libertação, por causa da perspectiva dos pobres que assumiu, revelou dimensões diferentes e até novas da mensagem da revelação. Em primeiro lugar, ela propiciou a reapropriação da Palavra de Deus pelos pobres. Em suas comunidades e círculos bíblicos aprenderam comparar página da Bíblia com a página da vida e dai tirar consequências para sua prática cotidiana. Lendo os Evangelhos e se confrontando com o Jesus de Nazaré, artesão, factotum e campones mediterrâno, perceberam a contradição entre a condição pobre de Jesus e a riqueza da grande instituição Igreja. Esta está mais próxima do palácio de Herodes do que da gruta de Belém. Com respeito aprenderam a fazer suas críticas ao exercício centralizado do poder na Igreja e ao fechamento doutrinal face a questões importantes para a sociedade como é a moral familiar e sexual.

A Teologia da Libertação nos fez descobrir Deus como o Deus da vida, o Pai e Padrinho dos pobres e humildes. A partir de sua essência, como vida, se sente atraido pelos que menos vida têm. Deixa sua transcendência e se curva para dizer:”ouvi a opressão de meu povo…desci para libertá-lo”(Ex 3,7). A opção pelos pobres encontra seu fundamento na própria natureza de Deus-vida.

Revelou-nos também a Jesus como libertador. Ele é libertador, não porque assim o chamam os teólogos da libertação, mas por causa do testemunho dos Apóstolos. Ele libertou do pecado mas também da doença, da fome e da morte. Jesus não morreu. Foi assassinado porque viveu uma prática libertária que ofendia as convenções e tradições da época. Anunciou uma proposta – o Reino de Deus – que implicava uma revolução em todas as relações; não apenas entre Deus e os seres humanos, mas também na sociedade e nos cosmos. O Reino de Deus se contrapunha ao Reino de César, o que representava um ato político de lesa-majestade. O Imperador revindicava para si o título de Deus e até de “Deus de Deus”, coisa que o credo cristão mais tarde atribuirá a Cristo. A ressurreição, ao lado de outros significados, emerge como a inauguração do “novissimus Adam”(1Cor 15,45), como uma “revolução na evolução”.

Permitiu-nos identificar em Maria, não apenas aquela humilde serva do Senhor que diz fiat mas a profetiza que clama pelo Deus Go’El, o vingador dos injustiçados, aquele que derruba dos tronos os poderosos e eleva os humildes (Lc 1, 51-52). Ela clarificou também a missão da Igreja que é atualizar permanentemente, para os tempos e lugares diferentes, a gesta libertadora de Jesus e manter vivo seu sonho de um Reino de Deus que começa pelos últimos, os pobres e excluidos e que se estende até à criação inteira será finalmente resgatada, onde vige a justiça, o amor incondicional, o perdão e a paz perene.

6. A Teologia da Libertação como revolução espiritual
As reflexões que acabamos de fazer nos permitem dizer: a Teologia da Libertação produziu uma revolução teológico-espiritual. Não houve muitas revoluções espirituais no Cristianismo. Mas sempre que elas ocorrem, se resignificam os principais conteúdos da fé, como assinalamos acima, emerge uma nova vitalidade e a mensagem cristã libera dimensões insuspeitadas, gerando vida e santidade.

É a primeira teologia histórica que nasceu na periferia do cristianismo e distante dos centros metropolitanos de pensamento. Ela denota uma maturação inegável das Igrejas-filhas que conseguem articular, com sua linguagem própria, a mensagem cristã, sem romper a unidade de fé e a comunhão com as Igrejas-mães.

Nunca na história do cristianismo os pobres ganharam tanta centralidade. Eles sempre estiveram ai na Igreja e foram destinatários dos cuidados da caridade cristã. Mas aqui se trata de um pobre diferente, que não quer apenas receber mas dar de sua fé e inteligência. Trata-se do pobre que pensa, que fala, que se organiza e que ajuda a construir um novo modelo de Igreja-rede-de-comunidades. Os pastores de estilo autoritário não temem o pobre que silencia e obedece. Mas tremem diante do pobre que pensa, fala e participa na definição de novos rumos para a comunidade. São cristãos com consciência de sua cidadania eclesial.

A irradiação da Teologia da Libertação alcançou o aparelho central da Igreja Católica, o Vaticano. Influenciadas pelos setores mais conservadores da própria Igreja latinoamericana e das elites políticas conservadoras, as instâncias doutrinárias sob o então Card. Joseph Ratzinger reagiram, em 1984 e 1986, com críticas contra a Teologia da Libertação.

Mas se bem repararmos, não se fazem condenações cerradas. Tais autoridades chamam a atenção para dois perigos que acossam este tipo de teologia: a redução da fé à política e o uso não-crítico de categorias marxistas. Perigos não são erros. Evitados, eles deixam o caminho aberto e nunca invalidam a coragem do pensamento criativo. Apesar das suspeitas e manipulações que se fizeram destes dois documentos oficiais, a Teologia da Libertação pôde continuar com sua obra.

Por esta razão entendemos que o Papa João Paulo II, com mais espírito pastoral que doutrinal, tenha enviado uma Mensagem ao Episcopado do Brasil no dia 6 de abril de 1986 na qual declara que esta a Teologia da Libertação, em condições de opressão, “não é somente útil mas também necessária”.

Mas sobre a figura do então Card. Joseph Ratzinger pesa uma acusação irremissível, que seguramente passará negativamente para a história da teologia: a de ter-se revelado inimigo da inteligência dos pobres e de seus aliados e de ter condenado a primeira teologia surgida na periferia da Igreja e do mundo que conferia centralidade à dignidade dos oprimidos.

Efetivamente, proibiu que mais de cem teólogos de todo o Continente elaborassem uma coleção de 53 tomos- Teologia e Libertação – como subsídio a estudantes e a agentes de pastoral que atuavam na perspectiva dos pobres. Mais que um erro de governo, foi um delito contra a eclesialidade e um escárneo aos pobres pelos quais deverá responder diante de Deus. Também para ele vale o dito: na tarde sua vida, os pobres serão seus juízes dos quais esperamos que tenham para com o Cardeal mais misericórdia que severidade, diante de tanta ignorância e arrogância de quem se poderia esperar apoio entusiasmado e acompanhamento diligente.

Ao contrário, muitos teólogos foram postos por ele sob vigilância, advertidos, marginalizados em suas comunidades, acusados, proibidos de exercer o ministério da palavra, afastados de suas cátedras ou submetidos a processos doutrinários com “silêncio obsequioso”. Esta rigidez não dminuiu ao fazer-se Papa, mas continuou com renovado fervor. Et est videre miseriam.

A Teologia da Libertação devolveu dignidade e relevância à tarefa da Teologia. Conferiu-lhe um inegável caráter ético. Os teólogos desta corrente, sem renunciar ao estudo e à pesquisa, se associaram à vida e a causa dos condenados da Terra. No apoio a seus movimentos correram riscos. Muitos conheceram a prisão, a tortura e outros o martírio. Ousamos dizer que a Teologia da Libertação junto com a Igreja da Libertação que lhe subjaz é um dos poucos movimentos eclesiais que no século XX conheceu o martírio, curiosamente praticados por cristãos repressores, atingindo leigos e leigas, religiosas e religiosos, pastores, teólogos e teólogas não poupando mesmo bispos como Dom Angelelli da Argentina e Dom Oscar Arnulfo Romero de El Salvador. É o sinal da verdade desta opção pelos pobres.

Por fim, a Teologia da Libertação chama as demais teologias à sua responsabilidade social no sentido de colaborarem na gestação de um mundo mais justo e fraterno. Sua missão não se esgota numa diligência ad intra, ao espaço eclesial. Se ela não quiser escapar da indiferença e do cinismo deve se deixar mover pelo grito dos oprimidos que sobe das entranhas da Terra. Poucos são os que escutam esse clamor. Uma teologia que silencia diante do tragédia dos milhões de famélicos e condenados a morrer antes do tempo, não tem nada a dizer sobre Deus ao mundo.

7. A Teologia da Libertação como revolução cultural
Por fim, a Teologia não representou apenas uma revolução espiritual. Ela significou também uma revolução cultural. Contribuiu para que os pobres ganhassem visibilidade e consciência de suas opressões. Gestou cristãos que se fazeram cidadãos ativos e a partir de sua fé se empenharam em movimentos sociais, em sindicatos e em partidos no propósito de dar corpo a um sonho, que tem a ver com o sonho de Jesus, o de construir uma convivência social na qual o maior número possa participar e todos juntos possam forjar um futuro bom para a humanidade e para a natureza.

É mérito da Igreja da Libertação com sua Teologia da Libertação subjacente ter contribuído decididamente na construção do Partido dos Trabalhadores, do Movimento dos Sem Terra, do Conselho Indigenista Missionário, da Comissão da Pastoral da Terra, da Pastoral da Criança, dos Hansenianos e dos portadores do vírus HIV que foram os instrumentos para praticar a libertação e assim realizar os bens do Reino. Aqui o cristianismo mostrou e mostra a primazia da ortopraxia sobre a ortodoxia e a importância maior das práticas sobre as prédicas.

Nascida na América Latina, esta teologia se expandiu por todo o terceiro mundo, na Africa, na Asia, especialmente naquelas Igrejas particulares que penetraram no universo dos pobres e oprimidos e em movimentos dos países centrais ligados à solidariedade internacional e ao apoio às lutas dos oprimidos, na Europa e nos Estados Unidos. De forma natural, ela se associou ao Fórum Social Mundial e encontrou lá visibilidade e espaço de contribuição às grandes causas vinculadas ao um outro mundo possível e necessário, articulando o discurso social com o discurso da fé.

Em todas as questões abordadas, a preocupação é sempre essa: como vai a caminhada dos pobres e dos oprimidos no mundo? Como avança o Reino com seus bens e que obstáculos encontra pela frente, vindos da própria instituição eclesial, não raro tardia em tomar posições e insensível aos problemas do homem da rua e aqueles derivados principalmente das estratégias dos poderosos, decididos em manter invisíveis e silenciados os oprimidos para continuarem sua perversa obra de acumulação e dominação.

8. O futuro da Teologia da Libertação
Que futuro tem e terá a Teologia da Libertação? Muitos pensam e lhe interessa pensar assim que ela é coisa dos anos 70 do século passado e que já perdeu atualidade e relevância. Só mentalidades cínicas podem alimentar tais desejos, totalmente alienadas com o que passa com o planeta Terra e com o destino dos pobres no mundo. O desafio central para o pensamento humanitário e para a Teologia da Libertação é exatamente o crescente aumento do número de pobres e o acelerado aquecimento global e a opressão dos pobres. Lamentavelmente, cada vez menos pessoas, grupos e igrejas estão dispostos a ouvir seu clamor canino que se dirige ao céu. Uma Igreja e uma teologia que se mostram insensíveis a esta paixão se colocam a quilômetros luz da herança de Jesus e da libertação que ele anunciou e antecipou.

A Teologia da Libertação não morreu. Ela é atualmente mais urgente do que quando surgiu no final dos anos 60 do século XX. Apenas ficou mais invisível pois saiu do foco das polêmicas que interessam a opinião pública. Enquanto existirem neste mundo pobres e oprimidos haverá pessoas, cristãos e Igrejas que farão suas as dores que afligem a pele dos pobres, suas as angústias que lhes entristecem a alma e seus os golpes que lhes atingem o coração. Estes atualizarão os sentimentos que Jesus teve para com a humanidade sofredora.

No contexto atual de degradação da Mãe Terra e da devastação continuada do sistema-vida, a Teologia da Libertação entendeu que dentro da opção pelos pobres deve incluir maximamente a opção pelo grande pobre que é o Planeta Terra.

Ele é vítima da mesma lógica que explora as pessoas, subjuga as classes, domina as nações e devasta a natureza. Ou nos libertamos desta lógica perversa ou ela nos poderá levar a uma catástrofe social e ecológica de dimensões apocalípticas, não excluída a possibilidade até da extinção da espécie humana. A inclusão desta problemática, quiça, a mais desafiante de nosso tempo, fez nascer uma vigorosa Ecoteologia da Libertação. Ela se soma a todas as demais iniciativas que se empenham por um outro paradigma de relação para com a natureza, com outro tipo de produção e com formas mais sóbrias e solidárias de consumo.

Que futuro tem a Teologia da Libertação? Ela tem o futuro que está reservado aos pobres e oprimidos. Enquanto estes persistirem há mil razões para que haja um pensamento rebelde, indignado e compassivo que se recusa aceitar tal crueldade e impiedade e se empenhará pela libertação integral.

Ela não terá lugar dentro do atual sistema capitalista, máquina produtora de pobreza e de opressão. Ela só poderá existir na forma de resistência, sob perseguições, difamações e martírios. Mesmo assim, porque nenhum sistema é absolutamente fechado, ela poderá colocar cunhas por onde o pobre e o oprimido construirão espaços de liberdade. Por isso, a Teologia da Libertação possui uma clara dimensão política: ela quer a mudança da sociedade para que nela se possam realizar os bens do Reino e os seres humanos possam conviver como cidadãos livre e participantes.

Que futuro tem a Teologia da Libertação dentro do tipo de Igreja-instituição que possuímos? Mantido o atual sistema, cujo eixo estruturador é a sacra potestas, o poder sagrado, centralizado somente na hierarquia, ela só poderá ser uma teologia no cativeiro e relegada à marginalidade. Ela é disfuncional ao pensamento oficial e ao modo como a Igreja se organiza hierarquicamente: de um lado o corpo clerical que detém o poder sagrado, a palavra e a direção, e do outro, o corpo laical, sem poder, obrigado a ouvir e a obedecer. Na esteira do Concílio Vaticano II, a Teologia da Libertação se baseia num conceito de Igreja comunhão, rede de comunidades Povo de Deus e poder sagrado como serviço.

Esta visão de Igreja foi nos últimos decênios praticamente anulada por uma política curial de volta à grande disciplina e pelo reforço à estrutura hierárquica de organização eclesial.

Assim se fecharam as portas à conciliação tentada pelo Concílio Vaticano II entre Igreja Povo de Deus e Igreja Hierárquica, entre Igreja-poder e Igreja-comunhão. O difícil equilíbrio alcançado foi logo rompido ao se entender a comunhão como comunhão hierárquica, o que anula o conteúdo inovador deste conceito que supõe a participação equânime de todos e a hierarquia funcional de serviços e não a hiierarquia ontológica de poderes. A burocracia vaticana e os Papas Wojtyla e Ratzinger interpretaram o Vaticano II à luz do Vaticano I centralizando novamente a Igreja ao redor do poder do Papa e esvaziando os poucos órgãos de colegialidade e participação.

Não devemos ocultar o fato de que ao optar pelo poder a Igreja instituição optou pelos que também têm poder, numa palavra, os ricos. Os pobres perderam centralidade. A eles está reservada a assistência e a caridade que nunca faltaram. Mas quem opta pelo poder fecha as portas e as janelas ao amor e à misericórdia. Lamentavelmente ocorreu com o atual modelo de Igreja, burocrático, frio e nas questões concernentes à sexualidade, a homoafetividade, à AIDS e ao divórcio, sem misericórdia e humanidade.

Nestas condições, não há como fazer uma Teologia da Libertação como um bem da Igreja local e universal que toma a sério a questão dos pobres e da justiça social. Ela subverte a ordem estabelecida das coisas. Seu destino será a deslegitimação e a perseguição. Não será exagero dizer que ela vive e viveu o seu mistério pascal: sempre rejeitada, sempre sepultada e também sempre de novo ressuscitada porque o clamor dos pobres não permite que ela morra.

Mas na Igreja instituição, apesar de suas graves limitações, sempre há pessoas, homens e mulheres, padres, religiosos e religiosas e bispos que se deixam tocar pelos crucificados da história e se abrem ao chamado do Cristo libertador. Não apenas socorrem os pobres mas se colocam do lado deles e com eles caminham buscando formas alternativas de viver e de expressar a fé.

Qual o futuro da Teologia da Libertação? Ecumênica desde seus inícios, ela vicejará naquelas Igrejas que se remetem ao Jesus dos evangelhos, àquele que proclamou benaventurados os pobres e que se encheu de compaixão pelo povo faminto e que, num gesto de libertação, multiplicou os pães e os peixes. Estas Igrejas ou porções delas, ousadamente mantem a opção pelos pobres contra a sua pobreza. Entenderão esta opção como um imperativo evangélico e a forma, talvez a mais convincente, de preservar o legado de Jesus e de atualizá-lo para os nossos tempos.

9.Onde encontrar hoje a Teologia da Libertação
Qual será o futuro da Teologia da Libertação? Está em seu presente. Ela continua viva e cresce, com caráter ecumênico, na leitura popular da Bíblia, nos círculos bíblicos, nas comunidades eclesiais de base, nas pastorais sociais, no movimento fé e política e nos trabalhos pastorais nas periferias das cidades e nos interiores do paises. Neste nível e por sua natureza ecumênica e popular esta teologia, de certa forma, escapa da vigilância das autoridades doutrinárias.

Ela é a teologia adequada àquelas práticas que visam a transformação social e a gestação de um outro modo de habitar a Terra. Se alguém quiser encontrar a Teologia a Libertação não vá às faculdades e institutos de teologia. Ai encontrará fragmentos e poucos representantes. Mas vá às bases populares. Ai é seu lugar natural e ai viceja vigorosamente. Ela está reforçando o surgimento de um outro modelo de Igreja mais comunitário, evangélico, participativo, simples, dialogante, espiritual e encarnado nas culturas locais que lhe conferem um rosto da cor da população, em nosso caso, indio-negro-latino-americano.

Alçando a vista numa perspectiva universal, tenho uma como que visão. Vejo a multidão de pobres, de mutilados, aqueles que o Apocalipse chama “de sobreviventes da grande tribulação” (7,14) cujas lágrimas são enxugadas pelo Cordeiro, organizados em pequenos grupos erguendo a bandeira do Evangelho eterno, da vida e da libertação. Seguidores do Servo sofredor e do Profeta perseguido e ressuscitado a eles está confiado o futuro do Cristianismo, disseminado no mundo globalizado em redes de comunidades, enraizado nas distintas culturas locais e com os rostos dos seres humanos concretos. Deixando para trás a pretensão de excepcionalidade que tantas separações trouxe, se associarão a outras igrejas, religiões e caminhos espirituais no esforço de manter viva a chama sagrada da espiritualidade presente em cada pessoa humana.

Dentro deste tipo comunional e de mútua aceitação das diferentes igrejas, a Teologia da Libertação terá um lugar natural. Ela recolherá reflexivamente os esforços dos cristãos pelo resgate da dignidade dos pobres e da dignidade e dos direitos da Terra e animará a caminhada da humanidade rumo a um mundo que ainda não conhecemos mas que cremos estar alinhado àquele que Jesus sonhou.

Então, Teologia da Libertação terá cumprido a sua missão. Comprenderá que no binômio Teologia da Libertação, o decisivo não é a Teologia mas a Libertação real e histórica, porque esta e não aquela é um dos bens do Reino de Deus.

Leonardo Boff
Leonardo Boff, 1938, doutorado em teologia e filosofia, foi durante mais de 20 anos professor de teologia sistemática no Instituto Teológico Franciscano de Petrópolis e depois professor de ética, filosofia da religião e de ecologia filosófica na Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Foi professor visitante em várias universidades estrangeiras e galardoado com vários dr.h.c. Escreveu mais de 80 livros nas várias áreas teológicas e humanísticas e sempre se entendeu no âmbito da Teologia da Libertação.

Fonte: https://leonardoboff.wordpress.com/2011/08/09/quarenta-anos-da-teologia-da-libertacao/

Atirando pedras no ônibus do Google


Como crescimento se tornou inimigo da prosperidade

Pedro Demo (2016)

Rushkoff (2016) (R) publicou livro que pretende mostrar ter-se o crescimento tornado inimigo da prosperidade – por isso estamos atirando pedras no ônibus do Google. O que haveria de tão errado neste cenário? O crescimento econômico capitalista sempre foi questionado, em especial na obra de Marx, que foi em parte deixada de lado por muitos pesquisadores, mas continua ecoando como “espectro” (tal qual dizia no Manifesto Comunista de 1848). As argumentações vão variando no tempo – o que Marx dizia ainda vale relativamente, mas estamos em outro contexto muito diferente, tendo-se entrementes também invalidade alguma previsões, enquanto outras se tornaram ainda mais evidentes. Hoje, imersos em tecnologias de alto a baixo que prometem revolucionar a produtividade/competitividade, inclusive eliminando o fator do trabalho humano – peça chave da crítica marxista – assistimos a cenários tétricos, marcados por concentração sem precedentes de renda (uma ínfima minoria, e que se torna cada dia mais ínfima, tem quase tudo e o “resto” quase nada) (Noys, 2014), insustentabilidade gritante, em especial nos exemplos americano e chinês, inviabilidade de estender o bem-estar eurocêntrico para o planeta etc. A velha estória das crises recrudesceram, de certa forma comprometendo um percurso razoável ocorrido no pós-guerra com a proliferação da classe média (o igualitarismo máximo que o capitalismo faculta), mas, na outra ponta, o pensamento único galopa impávido, como se mercado liberal fosse a ordem das coisas...

I. GOOGLE VISADO
Lembra Rushkoff que numa manhã de dezembro de 2013, moradores do Mission District de San Francisco se deitaram ao chão à frente de um veículo para impedir sua passagem. Embora atos de protesto não sejam inusitados na Califórnia, este tinha objetivo improvável: os ônibus do Google usado para transportar empregado de suas casas na cidade para o campus da empresa em Mountain View, a quase 50 km. Enquanto fotos e tomadas ao vivo chegavam na mídia social usada pelo A, não sabia bem como reagir. Afinal, Google era, sob muitos ângulos, a estória mais recente de sucesso da internet – um experimento elaborado em quarto de residência estudantil que virou um dos maiores gigantes de tecnologia e cria milhares de empregos – enquanto alega não fazer qualquer mal a ninguém. Seu crescimento exponencial também reavivou muitos setores econômicos e alguns bairros. Parecia que, até ao momento, todos estavam felizes como o andar das coisas. Todos usam busca gratuita e email. Blogueiros são pagos por colocarem advertisings em seus sites, crianças recebem alguma remuneração pelos vídeos no YouTube e Mission District ficou um pouco mais gentil e seguro, à medida que gente da última moda e profissionais tecnológicos chegaram, novas lojas de café e livraria abriram, apartamentos foram construídos e valores imobiliários subiram.

Assim parece – crescimento é bom. Pelo menos para quem o maneja. Mas in influxo de “googlers” nos bairros mais históricos de San Francisco elevou alugueis, forçando residentes de longa data e pequenos negócios a se deslocarem, não aproveitando nada deste crescimento. Os ônibus com ar condicionado do Google eram a prova da invasão – como transporte espacial levando alienígenas. Acrescentando insulto à injúria, Google estava agora usando paradas de ônibus público para embarcar em seu sistema. Aluguéis por perto subiram 20%, cujos preços continuavam subindo, acomodando não só novos empregados do Google, mas também de Facebook, Twitter e outras preciosidades do Vale do Silício (Gumbel, 2014). No mesmo dia, para ironia maior ainda, as ações do Google estavam nas altura de novo em Wall Street, o que levou uma dezenas de manifestantes dispersos e vestindo amarelo a paralisarem um dos ônibus do gigante tecnológico.

Apresentavam um banner plastificado amigável para Instagram que dizia “Gentifrication & Eviction Technologies” (Tecnologias da Elitização e Despejo) em fonte perfeita e multicolorida do Google. Apontando para o ceticismo crescente em torno dos benefícios desigualmente distribuídos do boom tecnológico, a imagem se espalhou como fogo selvagem. Rushkoff diz que se sentiu, pelo menos em parte, solidário com esta crítica. Semanas depois, não havia nada mais de divertido nisso. Manifestantes em Oakland estavam agora atirando pedras nos ônibus do Google, quebrando uma janela e aterrorizando os empregados. Claro, Rushkoff diz-se preocupado com as práticas da empresa e frustrado pelo crescimento rápido do Vale do Silício que parecia deslocar, não enriquecer o povo de San Francisco e redondezas. Mas tinha amigos nos ônibus, tentando ganhar a vida a seu modo com suas habilidade de codificação. Poderiam estar ganhando $100 mil anuais, mas sentiam estressados, perpetuamente monitoradas e dolorosamente alertas de sua vulnerabilidade. “Sprints” (arrancos) – explosões cronometradas de codificação para atingir metas fatais – estavam mais frequentes, à medida que objetivos novos, mais ambiciosos de crescimento substituíam a última rodada.

Aqui podemos todos estar do mesmo lado. Os trabalhadores do Google são bem menos que beneficiários de empresa em expansão do que recursos rapidamente consumidos. O trabalhador médio deixa a firma em um ano (Giang, 2013) – alguns para galgar posições melhores em outras empresas, mas a maioria simplesmente para fugir da pressão insuportável produtiva. Tomar ônibus lhes oferece mais tempo para trabalhar ou para relaxar ao invés de dirigir. Afinal são “seres humanos” (R:2). Por sua parte, Google está aliviando as rodovias e o ambiente das circunvizinhanças; ao contrário de muitas outras empresas na Bay Area, que fazem de conta nesta parte, ou no máximo organizam caronas sistemáticas, Google oferece programa de transporte coletivo que pouca mais de 29 mil toneladas métricas de CO2 por ano – estaria fazendo a coisa certa tornando a coisa errada? Há preocupações gritantes sobre como Google está impactando o mundo, mas nem seus ônibus, nem seus trabalhadores dentro deles são o problema central; são apenas o alvo mais fácil. Esses trabalhadores não esquecem da pobreza aí fora, quando viajam para o trabalho – o que acaba aguçando o temor também de um dia estarem desempregados. Também gostariam de virar milionários, mas não para viver só de luxo.

Num país sem rede maior segurança social, trabalhadores sempre são bombardeados com a balela de que devem tornar-se milionários ou vão ficar na rua da amargura na aposentadoria ou se adoecerem gravemente. O atuário da previdência calcula que quem ganha $50 mil anuais precisará de pelo menos $1.5 milhão para aposentar-se com 65 anos, sendo que uma conta inesperada médica pode nos tornar no 1.7 milhão de aposentados em bancarrota. Nem mesmo investidores, oficiais do Google ou o 1% infame deveriam – para Rushkoff – ser culpados pelas desigualdades crescentes da economia digital. Executivos e capitalistas de risco do Vale do Silício estão apenas praticando capitalismo como aprender na escola/universidade, em grande dando conta de sua obrigação legal aos acionistas das empresas. Certo, estão ficando mais ricos do que resto, e há dano colateral associado com crescimento desgarrado de suas empresas e ações. Mas, segundo Rushkoff, está presos a este destino como todos; muitos diretos executivos entendem que atingir crescimento de curto prazo não é o interesse melhor de longo prazo das empresas ou clientes, mas estão enrolados numa corrida na qual vencedores abocanham tudo (winner-takes-all) por domínio contra todos os outros mamutes digitais. É crescer ou morrer (R:3).

Embora nos Estados Unidos, mercado liberal seja visto como a ordem das coisas, a alavanca evolucionária em si, inclemente e objetiva, do que surgiu o “pensamento único” (é ideologia ser contra!), está cada dia mais claro que é uma praga para o planeta e seus habitantes, porque é uma engrenagem que, longe ser objetiva, natural, evolucionária, está completamente a serviço de interesses privados. O que mais incomoda no Google não é sua pujança tecnológica, riqueza gerada, inovações constantes, mas que tudo esteja nas mãos de dois proprietários. A maior mentira do mercado liberal é que, seguindo consequentemente o autointeresse, o mercado serve ao bem comum, orientado pela mão invisível. Embora a argumentação marxista esteja um pouco fora de moda, Marx captou ostensivamente esta contradição: não é viável compor o autointeresse com o bem comum via mercado liberal. No entanto, o mercado liberal tem “suas virtudes”, a começar pela capacidade de crescer, mesmo porcamente. Nenhum outro tipo de mercado tem se mostrado tão efetivo, muito menos os socialistas. Ocorre que o preço pago é demasiado, porque destrói tudo, planeta e seus habitantes, em nome de alguns poucos  - cada vez menos – locupletados. Na penumbra dessa miséria está a noção fortemente veiculada, em especial no Fórum Econômico de Davos, que os ricaços são tão ricos por “mérito”, porque são espécimes superiores evolucionários, muito acima dos mortais – seria pois um castigo tresloucado puni-los com tributações, impostos, restrições. De certa forma, a evolução assim procede: coloca o planeta a seus pés. Ponto.

II. CRESCER A QUALQUER PREÇO
A pressão de crescer a qualquer preço pode ser vista mais claramente num país como a China que, mesmo dizendo-se comunista, promove a economia mais “liberal” do mundo, também a mais suja e desigual, porque considera que só pode conquistar um lugar ao sol, para depois dominar o cenário, via crescimento a qualquer preço. Sabe que, para ter recursos para o lado social, precisa de uma economia pujante, crescendo freneticamente, mesmo que isto tenha um preço fatal para a sociedade. O exemplo da China vale para todos os países, a ponto de hoje não se poder tocar na prática nenhuma economia de esquerda – está fadada ao fracasso, como foram os exemplos já clássicos da União Soviética e Cuba. Por isso China saiu desta expectativa – seu mercado é encardidamente liberal e assim será, para crescer tudo que pode (e não pode!).

Voltando ao Google, toda firma de tecnologia precisa tornar-se intrusiva, extrativa, divisionista, consumidora de tempo, gastadora, cara, matadora de postos de trabalho, espoliativa e manipulativa como todas (R:3). Quanto aos acionistas impacientes, são como todos: a começar pelo fato de que são mantidos pelos clientes... Mas, para Rushkoff, não há limiar claro para quem pode atirar pedras. É porque o conflito não propriamente entre residentes de San Francisco e empregados do Google ou os 99% e 1%. Nem mesmo os estressados empregados contra as firmas onde trabalham, ou os desempregados contra Wall Street, tanto quanto não cada um – a própria humanidade – contra um programa que promove crescimento acima de tudo. “Estamos aprisionados na arapuca do crescimento” (Ib.). Este é o problema para questões que não parecem ter face ou nome, parecendo inevitáveis e normais. É a lógica empurrando a recuperação sem emprego, a economia que rebaixa remunerações, a postura inescrupulosa do Uber e as invasões privadas do Facebook. É o mecanismo que solapa negócio e investidores, forçando a competir contra jogadores com chips digitalmente inflados de pôquer. É a pressão de tornar diretores executivos sem condições de priorizar a sustentabilidade de seus empreendimentos sobre os interesses de acionistas açodados. É o bode expiatório não identificado por trás das notícias das crises da economia desde o paradigma grego até as dívidas estudantis que se exponencializam. É a força que exacerba disparidade de riqueza, aumentando o hiato de paga entre empregados e executivos, e gerando as dinâmicas de power-law (efeito estatístico de curvas de concentração) separando vencedores e perdedores. É a caixa-preta extraindo valor do mercado de ações antes que comerciantes humanos saibam o que aconteceu e o momento irreflexivo expandindo a bolha tecnológica a proporções perigosamente explosivas.

“Para usar a metáfora de nossa era, estamos tocando um sistema econômico operativo extrativo e turbinado pelo crescimento que chegou a seus limites da habilidade de servir a todos, ricos ou pobres, humanos ou corporativos” (R:3). Mais, estamos tocando isso em supercomputadores e redes digitais que aceleram e amplificam todos os efeitos. Crescimento é o credo intocável, o comando fatal da economia digital. Economistas clássicos e expertos em negócio não ajudam muito; é porque tendem a aceitar que economia com base em crescimento como condição pré-existente da natureza. Mas não é! “As regras de nossa economia foram inventadas por seres humanos particulares, em momentos particulares da história, com objetivos e agendas particulares” (R:5). A normalização desta desgraça está no fundo desta “fatalidade”, que aparece na proposta econômica comum de que economia segue seu rumo implacável, tal qual a evolução. É também o que se conta para os países, em especial aos em desenvolvimento: se quiserem avanças, só via mercado liberal consequente. Assim nos tornamos marionetes do sistema.

É fundamental escavar as assunções do mercado digitalizado e nos perguntar o que é mesmo relevante para a vida no planeta. Ironicamente, apenas pensando como programadores podemos adaptar a economia para servir a seres humanos, ao invés da balela do crescimento a qualquer custo. Usando uma expressão freireana, é preciso “ler a realidade”, para, escavando por baixo, sacar seus pressupostos maquiavélicos aí embutidos perversamente. Caso contrário, vamos repetindo velhos equívocos, como papagaios adestrados. Agora está cada vez mais claro que, graças à velocidade e escala nas quais os negócios digitais operam, nossos erros ameaçam descarrilar não apenas a capacidade inovadora de nossas indústrias, mas também a sustentabilidade da sociedade inteira. Jogar pedra nos ônibus do Google são como o tremor antes do terremoto. Ou temos juízo e seguimos outra rota, ou adentramos para o precipício. Estamos no lucro de uma catástrofe anunciada. A humanidade precisa decidir. Precisamos pegar a oportunidade de reprogramar a economia – e empresas – a partir de dentro. Daí podem prover modos novos e mais distribuídos de criação de valor e permuta – tipos de geração de riqueza em sites de comércio, em redes de empréstimo entre pares, e plataformas de usuários ou mesmo em jogos e aplicativos programadas por colegiais em laptops e trazidos ao mercado. É a economia que nos 1980 era acenada por muitos de nós, mas no início dos 1990, esta economia centrada no humano foi substituída pela visão do negócio digital – pelos fundadores libertários e primeiros escritores da revista Wired e futuristas patrocinados por empresas de Cambridge (Massachusetts), muitos dos quais eram os mesmos. Viam a tecnologia digital de modo a reavivar os mercados securitários sob risco, bem como a restaurar a fé na noção da economia se expandindo infinitamente. Após o crash biotecnológico de 1987, muitos temeram que o meio século de crescimento sem paralelos do pós-guerra poderia se extinguir; mas agora a tecnologia digital iria fazer NASDAQ retornar à sua glória anterior. Logo quando parecia termos atingido os limites do mundo físico, descobria-se mundo virtual aparentemente inesgotável. Conforme os novos sabichões, esta nova economia digital prometia “longo boom” (Schwartz & Leyden, 1997) de crescimento econômico: uma economia digitalmente amplificada, especulativa que podia literalmente expandir-se para sempre (R:6). Otimizamos nossas plataformas não para as pessoas ou mesmo valor, mas para crescimento. Ao invés de obter mais tempo livre, virou menos; ao invés de mais variedades de expressão humana e interação, guinamos para previsibilidade amigável ao mercado e automação. Tecnologias foram glorificadas mais por sua habilidade de extrair valor das pessoas em termos de “horas oculares” e dados que podiam ser derivadas daí. Como resultado, acabamos em paisagem digital de conexão obsessiva, com atualizações frenéticas e interrupção perpétua de emergência – que Rushkoff chama de “choque presente” – previamente conhecido apenas para operadores de 911 e controladores de tráfego.

III. ECONOMIA PRIVADA COMO RAZÃO COMUM!
Desenvolvemos as novas tecnologias não para a melhoria da humanidade ou mesmo dos negócios, mas para maximizar crescimento do mercado especulativo. Não são objetivos parecidos ou complementares. No lado brilhante da coisa, bilionários emergem, não o suficiente para compensar os milhões desempregados ou desconectados da prosperidade pelos mesmos mecanismos, mas, para Rushkoff, são inspiradores, surgindo a cada nova onda, com manchete em Wall Street Journal. Cada vez alguma novidade no perfil: bilionários de “papéis”, cuja riqueza é medida em ações, não lucros. Na verdade, a maioria das empresas da internet não têm lucros – certamente não aqueles da capitalização de mercado; tornam-se estórias de sucesso apenas quando seus fundadores e investidores saem de cena – vendem sua parte por dinheiro real. É o jogo que hoje chamamos de economia digital. É aceita sem contestação, pois turbina as chamas do crescimento – mesmo artificialmente. Empresas com novas tecnologias são livres para romper qualquer indústria que escolherem – jornalismo, TV, música, manufatura – desde que não rompam o sistema financeiro operativo subjacente. Por incrível que pareça, a maioria dos fundadores das firmas digitais sequer sacam que este sistema existe. Estão felizes por desafiar uma “vertical” ou outra, mas a última coisa que fazem quando se tornam vencedores é desafiar as regras de banco de investimento, seu valor astronômico ou o lançamento inicial de ações que embolsam. Ganhar o crescimento digital é menos novo topo de prosperidade do que modo novo de executar negócio com usual: velho vinho em garrafa nova. Não é que fazer dinheiro seja tão errado; é que as premissas do capital de risco e o mercado de ações – bem como seus efeitos reais – não são nunca questionados. Os ganhadores têm sido, de modo bem substancial, enganados.

Assim viu Rushkoff o cofundador do Twitter, Evan Williams, na página frontal de Wall Street Journal em foto no dia do lançamento das ações – de um lado, feliz, de outro, entristecido um pouco. Sob seu queixo, constava o valor de $4.3 bilhões – o dinheiro que fizera no dia – a pessoa mais rica que Rushkoff conhecia pessoalmente (Demos et alii, 2013). Era o adolescente que começara Blogger, lutou para manter no ar e depois fez seu primeiro milhão vendendo para o Google; estava agora aqui – como o rapaz premiado por ter feito uma abóbora inconcebivelmente gigante – um dos homens mais ricos do mundo. A que custo? Evan rompeu jornalismo com o blog e a indústria da notícia com o tuite, mas agora estava entregando toda esta disrupção à indústria maior e pior de todas. Quando se está na primeira página do Wall Street Journal, aplaudido por aquela gente engravatada, não é por ter feito algo extraordinário; é porque ajudou a confirmar a centralidade do capital financeiro como regulador da vida no planeta. Evan e seus parceiros exitosamente tornaram Twitter empresa lançada na bolsa e multibilionária e o processo sacrificou um aplicativo potencialmente capaz de mudar o mundo numa persecução singular de crescimento. Eis aí talvez a ferramenta de mídia social mais poderosa jamais desenvolvida – desde organizar ativistas na Primavera Árabe a movimentos Occupy Wall Street, ou a propiciar plataforma global para jornalistas cidadãos e candidatos presidenciais igualmente. Não teria sido muito caro criar ou manter; não iria exigir montanha de dólares para funcionar. Agora, Twitter precisa produzir, crescer; os $43 milhões lucrados nos últimos três meses são vistos como fracasso redondo por Wall Street.

Em 2015, os investidores no Twitter queixaram-se de que a empresa estava ainda muito distante de atingir seu potencial de crescimento de “100x” e forçaram o diretor executivo a ir-se. Acionistas estão exigindo que Twitter ache melhores vias de monetização dos tuites dos usuários, ou injetando anúncios nos feeds das pessoas, ou minerando dados para inteligência de marketing, ou, por outra, degradando a utilidade do aplicativo ou a integridade da empresa. Twitter tem êxito, mas não tanto esperado financeiramente. Já houve ingresso suficiente para os empregados estarem felizes, os usuários bem servidos e mesmo os investidores originais para serem bem recompensados. Mas nunca há suficiente para os acionistas, que esperam lucros 100x maiores. Busca-se relação desproporcional entre capital e valor – ou dinheiro investido vs entrada real – como marca da economia digital dominante. Ao final, as firmas continuam crescendo, mesmo sem criar valor novo. Isto não é novo – nos últimos 70 anos ou mais, conforme economistas do Deloitte Center for the Edge (Hagel et alii, 2013), lucros corporativos sobre valor líquido estão sempre caindo; empresas acumulam dinheiro e recursos mais rápido que os pode utilizar. Continuam ricas, mas não sabem aplicar – cresceram demais para seu tamanho e desenvoltura. 

IV. ACELERAÇÃO CAPITALISTA
O que é novo nesta discussão é que, aplicando nossas inovações tecnológicas ao crescimento acima de tudo, deslanchamos forma poderosamente desestabilizadora de capitalismo acelerado. Piora a disparidade entre rico e pobre, punindo os que realmente trabalham para ganhar a vida, perdendo controle humano sobre os mercados de capital e deixando investidores de visão curta endurecer inovação de longo prazo. Para muitos, tecnologia digital é apenas convite ao jogo dos mercados de modos novos, criando crescentemente instrumentos abstratos e ultrarrápidos de bater o sistema, ao invés de criar valor. Há achegas melhores para realizar prosperidade na paisagem digital dos negócios. Se pudéssemos nos livrar do vício do crescimento, temos potencial para avançar sistema econômico mais funcional e mesmo compassivo que favorece o fluxo de dinheiro sobre acumulação e remunera as pessoas por criarem valor, ao invés de apenas extrair. Antes, porém, há que mudar a rota radicalmente, flagrando o suicídio organizado no sistema atual.

Como o sistema tem um centro próspero, mesmo com alguns beneficiários ensandecidos e em número cada vez menor, parece temerário virar a mesa. Ficaríamos com o quê? Melhor uma canoa furada do que nenhuma? Será? Funciona também o fascínio da prosperidade, como no caso Chinês, que conseguiu deslanchar um processo incrível de crescimento frenético, acumulando riqueza, ainda que extremamente concentrando, à revelia de qualquer fundamento “comunista”. Todos os países querem chegar lá, mesmo que matematicamente seja inviável, porque não há recursos para isso, ambientalmente falando. Como sempre – a evolução usada no argumento indica isso – o êxito é de quem chega antes, custe o que custar. Como as distâncias são grandes, todos querem correr, provocando acelerações do crescimento de toda sorte. Até mesmo certas esquerdas assim querem, no embalo da argumentação marxista de que o socialismo só viria após o esgotamento do capitalismo. Há, pois, que esgotar o capitalismo, fazê-lo correr na velocidade possível e impossível. Enquanto isso estamos todos nos suicidando.

CONCLUSÃO
São tempos kafkianos. Quanto mais crescemos, mais nos suicidamos, porque a insustentabilidade se potencializa desesperadamente. Não podemos ficar sem crescimento, porque sem riqueza gerada, nada há a distribuir. Este argumento é fraco, naturalmente, porque geral riqueza é uma coisa, distribuir ou redistribuir é outra. O autointeresse leva ao bolso do interessado, não ao bem comum. Assim, o conflito entre autointeresse e interesse comum se exacerba, tornando inacreditável a tese do pensamento único, patrimônio maior de instituições economicistas com Davos. Questionar o mercado liberal é insanidade, desinformação, ou jogo sujo. Um passo à frente e vamos encontrar a tese mais ainda inacreditável de que as grandes fortunas, sendo mérito dos afortunados, não podem ser coibidas, constritas, tributadas, castigadas. O mundo sempre foi uma hierarquia, mas agora ela ficou rarefeita aos bilionários.

Como o projeto é suicida, algo será feito – assim se espera. O mercado liberal como regulador da sociedade é aberração que vai custar caro, porque move uma sociedade totalmente dilacerada entre um poucos que têm quase tudo e os muitos que não têm quase nada. Uma sociedade global impossível.

REFERÊNCIAS
DEMOS, T., DIETRICH, C., KOH, Y. 2013. “Twitter Shares Take Wing with Smooth Trading Debut,” Wall Street Journal, November 6, 2013.
GIANG, V. 2013. “A New Report Ranks America’s Biggest Companies Based on How Quickly Employees Jump Ship,” businessinsider.com, July 25, 2013.
GUMBEL, A. 2014.  “San Francisco’s Guerrilla Protest at Google Buses Swells into Revolt,” Guardian, January 25, 2014.
HAGEL, J. et alii. 2013. Foreword, “The Shift Index 2013: The 2013 Shift Index Series,” Deloitte, 2013.
NOYS, B. 2014. Malign Velocities: Acceleration and capitalism. Zero Books, N.Y.
RUSHKOFF, D. 2016. Throwing rocks at the Google bus: How growth became the enemy of prosperity. Portfolio, N.Y.
SCHWARTZ, P. & LEYDEN, P. 1997. “The Long Boom: A History of the Future, 1980–2020,” Wired, July 1997.

Fonte: https://docs.google.com/document/d/1lkYX00aMV0lE3Uu4oUnql0655Pf1z9IczDD0PyzwTOs/pub