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Trotsky na Netflix


Acaba de chegar aos telespectadores brasileiros a série Trotsky, exibida pela Netflix. Ela é original da Rússia, foi produzida pela TV Pevry Kanal sob a direção-geral de Konstantin Ernst e tem a produção de Alexandre Tsekalo. No momento que soube da notícia que a Netflix iria exibir a série, como admirador da figura política e intelectual, sobretudo por que o biografado desempenhou um importante papel junto com Lênin na condução da primeira revolução operária/camponesa duradoura, fiquei entusiasmado. Mas, fui advertido por colegas e pessoas que conhecem a história do processo revolucionário e também a vida e obra do criador do Exército Vermelho.

Mesmo com as advertências, fiz questão de assisti-la e comprovar o quanto é problemática do ponto de vista histórico e político, tanto no que se refere à biografia do personagem principal, como também à ambientação na qual lhe fez ser conhecido internacionalmente: a revolução russa. Portanto, confirmei que o enredo da série não é só reacionário politicamente, como também pratica indigência teórica e histórica do co-líder da revolução russa e o processo da revolução, ou seja, nem fatos históricos a série teve a dignidade de respeitar. Acredito que os erros sucessivos que aparecem ao longo dos episódios se dão por questão de escolha, e não por falta de conhecimento da produção do seriado. Basta uma pequena olhada na produção cinematográfica para perceber que teve um alto investimento e não foi feita com baixo orçamento. Sendo assim, seria muito tranquilo a produção contratar uma consultoria de historiadores sérios que não cometessem equívocos. Mas, como se trata deliberadamente de falsificar a história da revolução russa e, com isso, produzir grosserias, eles não se preocuparam nem um pouco com os fatos históricos.

O tamanho do absurdo que aparece ao longo da série faz inveja à grande maioria das produções anticomunistas de Hollywood durante a guerra fria. O fato é que trata-se da narrativa oficial do Governo Putin e daqueles que na derrocada da URSS espoliaram os meios de produção. O objetivo é a reescritura da história recente da Rússia.

Portanto, antes de relatar e desmentir algumas passagens da série (sim, algumas, pois se eu fosse tentar desfazer todas as mentiras e falsificações que existem nela, certamente este texto seria longo e cansativo para os leitores) queria elencar alguns pontos que considerei importante que a narrativa da série tenta inculcar naqueles que a assistem.

A primeira é a maneira como é retratada a vida e a personalidade de um dos principais dirigentes da revolução de Outubro. Trotsky é mostrado como um homem egoísta, ambicioso financeiramente, machista, tirano e sanguinário.

O segundo alvo das inverdades contidas no enredo da série localiza-se sobre o movimento socialista russo, sobretudo sobre o partido bolchevique, que é tratado como uma facção criminosa que só pensa em iludir o povo em beneficio dos seus dirigentes – especialmente Lênin, que é colocado como o chefe da máfia –, mostrando os debates dentro do partido não como embates de ideias e princípios socialistas, mas como uma disputa de egos para ver quem comandaria a facção. Em suma, a intenção é desmoralizar ao máximo o partido bolchevique, que liderou a revolução de Outubro.

A terceira e, para mim, o elemento principal do enredo reacionário da série, foi mostrar que a revolução russa foi um grande erro que só gerou violência e barbárie, indo ao ponto da série demonstrar que a atitude do partido que dirigiu a revolução foi motivada por dinheiro, e não pelo princípio da emancipação humana, que foi o significado maior daquele outubro de 1917. O fato é que a revolução não foi produzida pelo partido bolchevique, e não foi financiada pelo governo alemão (como mostra a série), mas, sim, pelos operários e camponeses que viram nas Teses de Abril de Lênin um programa de sua emancipação, e que atendiam suas reivindicações mais básicas e imediatas.

A primeira cena da série mostra a famosa imagem do trem blindado no qual Trotsky foi “morador” durante os tempos difíceis da guerra civil, quando foi comissário de guerra, organizador e comandante do Exército Vermelho. Assim, era imprescindível o transporte sob trilhos para coordenar essas tarefas. Em seguida, as câmeras focam o interior do Trem, com um Trotsky conversando com uma moça charmosa, vestida de modo pomposo, e fumando no interior do vagão. Seguem-se algumas palavras, beijos e sexo. Parece uma cena inocente, retratando um caso de extra-conjugal, porém é uma cena lastimável quando olhamos com mais rigor. A primeira observação é a de que o biógrafo de Trotsky mais gabaritado, Isaac Deutscher, não apresenta em nenhum momento que ele teve algum caso com uma moça chamada Larissa Reissnerque teria nascido na Polônia em 1895, se tornando socialista na Alemanha e que finalmente vai para a Rússia em 1917 acompanhar o processo revolucionário russo ao lado dos bolcheviques. Na invasão dos exércitos estrangeiros na Rússia, ela aceitou de prontidão se alistar nas fileiras do partido para defender a revolução dos ataques estrangeiros, e foi nesta tarefa que foi convidada a acompanhar e auxiliar Leon Trotsky na coordenação do Exército Vermelho. Mas a série a retrata como uma espécie de concubina de Trotsky, cujas atenções negligenciavam as tarefas principais do conflito,enquanto o mundo soviético desabava sob a guerra civil. Ou seja, mostra o co-líder da revolução como uma pessoa sem escrúpulos.

Posteriormente, a série dá uma guinada temporal para o México, país de seu último exílio. A cena que acabamos de descrever foi construída como uma espécie de memória do comandante do Exército Vermelho. A série então se desloca temporalmente para a apresentação do então namorado de sua secretária, de pseudônimo Jacson, que na realidade se chamava Ramón Mercader. Ao conhecer Trotsky (isto é, depois do atentado à sua vida pelos agentes stalinistas), Mercader começa a fazer uma série de entrevistas na casa do líder soviético. Porém, esta informação também não consta nas biografias sobre vida e a obra do líder revolucionário. Mas o processo de falsificação não para por aí. O enredo da série começa a mostrar que Jacson era um ferrenho defensor de Stálin, colocando-o em constante conflito com Trotsky. E ainda pior: com Trotsky sempre provocando-o, dando a ideia que Ramón assassinou-o não por motivos políticos, mas por questões pessoais. Se Jacson já se apresentou como um stalinista, então por que Trostsky iria manter amizade com ele, uma vez que Stálin já tinha mandado lhe assassinar? O fato é que o afã de desmoralizar Trotsky e o partido bolchevique foi tão grande, que até elementos de ficção foram utilizados.

A propósito da ficção,  um episódio que me chamou muita atenção: os encontros que Leon Trotsky teve com Sigmund Freud, o pai da psicanálise.Mas a ficção vai além.  também uma cena em que Freud entra em debate com o co-líder da revolução russa. Aquele lhe faz um diagnóstico de um homem obcecado pela revolução comunista a ponto de passar por cima de tudo e todos para atingir este objetivo. E, diga-se, que este objetivo é um projeto pessoal de Trotsky, e não o projeto de uma emancipação dos trabalhadores russos.

Para além das mentiras do diagnóstico de Trotsky feito por Freud nas cenas mencionadas, nunca houve um tal encontro entre os dois – nenhuma biografia minimamente séria sobre a vida e a obra do revolucionário russo menciona tal encontro. O problema não é utilizar-se de ficção. Basta que se anuncie que trata-se de uma obra de tal gênero. Porém, em entrevista ao site de O Globo, o produtor diz: “É difícil ser objetivo cem anos depois, mas tentamos produzir uma série fundamentada em acontecimentos reais”.

Na segunda e última parte deste texto, mostrarei as outras deformações do enredo referente à biografia de Trotsky e à revolução russa, concatenando uma resposta para os supostos motivos por detrás das falsificações grosseiras que a série produz, tanto contra Trotsky como contra a revolução de Outubro.

Jefferson Lopesmestre em História pela UFCG.

O homem que amava os cachorros


“A dor e a miséria figuram entre aquelas poucas coisas que, quando repartidas, tornam-se sempre maiores.”

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“O ódio é uma doença incontrolável.”

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“O olhar de Liev Davidovitch, no entanto, tentava ver para lá dos edifícios, das igrejas pontiagudas, das mesquitas arredondadas: tentava ver a si próprio naquela cidade (turca) onde não tinha um único amigo, um único seguidor de confiança. E não se encontrou. Sentiu que, naquele preciso instante, começava o seu exílio: verdadeiro, total, sem ter onde se agarrar. Para além da família e de alguns poucos amigos que lhe tinham reiterado a sua solidariedade, era um homem aflitivamente só. Seus únicos aliados úteis numa luta que devia iniciar (como?, por onde?) continuavam isolados em campos de trabalho ou já tinham claudicado, mas permaneciam todos dentro das fronteiras da União Soviética, e a relação com eles ia se apagando com a distância, a repressão e o medo.

Ao evocar aquela manhã de aspecto tão agradável, Liev Davidovitch recordaria sempre da urgência que experimentara de apertar a mão de Natália Sedova para sentir algum calor humano ao seu lado, para não asfixiar de tanta angústia diante da sensação de abandono que o acossava. Mas recordaria também que nesse momento tinha fortalecido a sua decisão de que, embora só, o seu dever seria lutar. Se a Revolução pela qual tinha combatido se prostituía na ditadura de um czar vestido de bolchevique, seria necessário nesse caso arrancá-la com raiz e tudo e semeá-la de novo, porque o mundo precisava de revoluções verdadeiras. Aquela decisão, estava ciente, o aproximaria ainda mais da morte que já o vigiava das torres do Kremlin. A morte, no entanto, podia ser considerada apenas uma contingência inevitável: Liev Davidovitch sempre pensara que as vidas de um, de dez, de cem, de mil homens podem e até devem ser devoradas se o turbilhão social assim o exigir para atingir seus fins transformadores, pois o sacrifício individual é muitas vezes a lenha que se queima na pira da revolução. Por isso lhe dava vontade de rir quando certos jornais insistiam em mencionar a sua “tragédia pessoal”. De que tragédia falavam?, escreveria. No processo sobre-humano da revolução não tinha cabimento pensar em tragédias pessoais. Sua tragédia, quando muito, era saber que para se lançar na luta não tinha à mão correligionários forjados no forno da revolução, nem meios econômicos e muito menos um partido. Mas restava-lhe aquela que sempre fora a sua melhor arma: a pena, a mesma que difundira as suas ideias nas colaborações entregues ao Iskrae que, já no seu primeiro desterro, o conduzira ao coração da luta, desde aquela noite de 1901 em que recebera a mensagem capaz de situar a sua vida de lutador no vórtice da história; a pena fora convocada para a sede do Iskra, em Londres, onde o esperava Vladimir Ilitch Ulianov, já conhecido como Lenin.”

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“O verdadeiro revolucionário começa a sê-lo quando subordina sua ambição pessoal a um ideal. Os revolucionários podem ser cultos ou ignorantes, inteligentes ou limitados, mas não podem existir sem vontade, sem devoção, sem espírito de sacrifício.” (L. D. Trotski)

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“Em Prínkipo, a presença de Trotski não provocava sobressaltos, e essa evidência o fez compreender que, se seu nome ainda gerava confusões na Europa, não se devia ao que ele pudesse originar mas àquilo que seus inimigos exigiam que lhe fosse entregue em pagamento dos seus atos: hostilidade, repressão, rejeição. O ódio de Stalin, transformado em razão de Estado, tinha posto em marcha a mais potente engrenagem de marginalização jamais dirigida contra um indivíduo solitário. Mais ainda, tinha se entronizado como estratégia universal do comunismo, controlado a partir de Moscou, e até como política editorial de dezenas de jornais. Por isso, engolindo os vestígios do seu orgulho, teve de admitir que, enquanto no Kremlin não decidissem quando a sua vida deixaria de ser útil, manteriam-no preso num ostracismo inflexível justamente até se decretar a queda do pano e o fim da palhaçada. E, pela primeira vez, atreveu-se a pensar em sua vida em termos de tragédia: a clássica, a grega, sem oportunidade para apelações.”

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“Olha, Ramón, entre as muitas coisas que você tem de aprender estão a ter paciência e a saber que não se atacam os inimigos quando estão de pé, mas quando estão de joelhos. E atacam-se sem piedade, caralho!”

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“A morte é tão definitiva e irreversível que quase não deixa margem para outros temores.”

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“Aquela jogada sórdida permitiu que Liev Davidovitch percebesse uma coisa que lhe escapara durante os julgamentos anteriores: Stalin também se propusera a transformar as poucas figuras do passado que ainda o acompanhavam já não em comparsas submissos de suas mentiras, mas em cúmplices diretos de sua fúria criminosa. Quem não fosse vítima seria cúmplice e, mais ainda, carrasco. O terror e a repressão estabeleciam-se como política de um governo que adotava a perseguição e a mentira como recursos de Estado e estilo de vida para o conjunto da sociedade.”

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“A primeira conclusão de Trotski foi que, de acordo com o governo stalinista, todos os membros do bureau político que levaram a revolução ao triunfo, que acompanharam Lenin nos dias mais difíceis da guerra e da fome e colocaram o país em marcha, homens que sofreram a cadeia, o desterro e inúmeras repressões, na realidade tinham sido desde sempre traidores dos seus ideais e, mais ainda, agentes a serviço de potências estrangeiras desejosas de destruir o que eles próprios tinham construído. Não seria um paradoxo os líderes de Outubro, todos eles, acabarem sendo traidores? Será que o traidor não era um só e se chamava Stalin?”

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“Há várias semanas, um grupo de escritores e ativistas políticos que se diziam próximos das posições do velho revolucionário tinham se obstinado, no calor dos vinte anos de Outubro, em procurar os defeitos do sistema bolchevique que proporcionaram a entronização do stalinismo. Para isso, quiseram desenterrar, com particular insistência, a repressão sangrenta da revolta dos marinheiros de Kronstadt e, invocando a pureza da verdade histórica, decidiram tornar pública a responsabilidade do exilado nos acontecimentos. O argumento mais utilizado fora de que aquela repressão podia ser considerada o primeiro ato do “terror stalinista” inerente ao bolchevismo no poder, e equiparavam a resposta militar e o fuzilamento de reféns aos expurgos de Stalin. Devido à sua responsabilidade à frente do exército, consideravam o então comissário da Guerra o progenitor daqueles métodos de repressão e de terror.

Fora doloroso para Liev Davidovitch saber que homens como Eastman, Victor Serge ou Souvarine sustentavam aquelas opiniões acerca de uma responsabilidade que o acossava há anos, mas incomodava-o, sobretudo, que tivessem retirado do seu contexto um motim militar, verificado no tempo da guerra civil, e o tivessem colocado ao lado de processos fabricados e fuzilamentos sumários de civis em tempos de paz.

Durante semanas, Liev Davidovitch se embrenharia naquela disputa histórica. Para começar a rebatê-los, o exilado teve de aceitar a responsabilidade que lhe correspondia como membro do Politburo, por ter aprovado, ele também, a repressão daquela estranha sublevação, mas recusou-se a aceitar a acusação de que ele pessoalmente favorecera a repressão e incentivara a crueldade com que tinha se manifestado. “Estou disposto a considerar que a guerra civil não é precisamente uma escola de conduta humanitária e que, de um lado e de outro, se cometem excessos imperdoáveis”, escreveu. “É verdade que em Kronstadt houve vítimas inocentes, e o pior excesso foi o fuzilamento de um grupo de reféns. Mas, mesmo tendo morrido inocentes, o que é inadmissível em qualquer tempo e lugar, e mesmo tendo sido eu, como chefe do exército, o derradeiro responsável pelo que aconteceu ali, não posso admitir uma equiparação entre o esmagamento de uma rebelião armada contra um governo frágil e em guerra com 21 exércitos inimigos e o assassinato frio e premeditado de camaradas cujo único crime foi pensar e, quando muito, dizer que Stalin não era a única nem a melhor opção para a revolução proletária.”

Mas Liev Davidovitch sabia que Kronstadt ficaria eternamente marcado como um capítulo negro da Revolução e que ele próprio, cheio de vergonha e de dor, carregaria para sempre essa culpa. Também sabia que, se em Kronstadt os bolcheviques (e incluía-se a si próprio e a Lenin) não tivessem reprimido sem piedade a rebelião, talvez tivessem aberto as portas à restauração. Assim, simples, terrível e cruel, podem ser a revolução e suas opções, pensou nessa altura e continuaria a pensar até o fim, sem que nada o fizesse mudar de opinião.”

*

“A jogada de mestre da procuradoria era acusar Iagoda de ter agido como um instrumento das agressões trotskistas. Em consequência disso, durante os dez anos em que perseguira, prendera e torturara os camaradas de Liev Davidovitch e confinara milhares de pessoas aos campos da morte, seus excessos criminosos deviam-se a ordens contrarrevolucionárias justamente de Trotski, e não a disposições de Stalin…

Sentindo como aquela agressão à verdade lhe devolvia as forças, o exilado escreveu que Stalin, o Coveiro da Revolução, conseguia superar toda a sua experiência anterior, além de ultrapassar os receptáculos da credulidade mais militante. A irracionalidade das acusações era tanta que lhe era quase impossível conceber um contra-ataque, embora inicialmente tenha decidido responder usando a ironia: é tamanho o meu poder, escreveu, que por ordens minhas, dadas a partir da França, da Noruega ou do México, dezenas de funcionários e de embaixadores com quem nunca falei se transformam em agentes de potências estrangeiras e me enviam dinheiro, muito dinheiro, para apoiar minha organização terrorista; chefes de indústrias tornam-se sabotadores; médicos respeitáveis dedicam-se a envenenar seus pacientes. O único problema, comentaria, era aqueles homens terem sido dirigentes escolhidos pelo próprio Stalin, pois há muitos anos ele não nomeava ninguém na União Soviética.

As confissões inacreditáveis ouvidas durante os dez dias que durou o processo e a forma como foram obrigados a humilhar-se homens repletos de história como Bukharin e Rikov não surpreenderam Liev Davidovitch. Mas provocou-lhe uma enorme tristeza, pelo contrário, ler as autoincriminações de um lutador como o radical Rakovski (tão perto da morte que lhe fora permitido prestar declarações sentado), que reconheceu ter se deixado levar pelas aventureiras teorias trotskistas, apesar de Trotski ter lhe confessado em 1926 sua condição de agente britânico. A que extremos teriam chegado as pressões para quebrar a dignidade de um homem que resistira a anos de deportações e de prisão sem renunciar às suas convicções e que sabia, além disso, estar no fim da vida? Será que algum deles acreditava que, com a sua confissão, prestava um serviço à União Soviética, como eram obrigados a repetir? Liev Davidovitch teve de reconhecer ser incapaz de compreender aquelas exibições de submissão e covardia.

Um primeiro contratempo do processo revelou as costuras da sua montagem. Foi protagonizado por Krestinski, que, durante uma tarde inteira, se atreveu a afirmar que suas confissões, feitas à polícia secreta, eram falsas e se declarou inocente de todas as acusações. Mas, na manhã seguinte, quando subiu ao estrado, Krestinski admitiu serem verdadeiras as acusações anteriores, além de mais algumas, certamente elaboradas a toda a pressa. Com que argumentos teriam quebrado um homem já convencido de que ia ser fuzilado? A nova GPU estava desenvolvendo métodos que apavorariam o mundo no dia em que fossem conhecidos, métodos graças aos quais se verificou a revelação mais espetacular do processo, quando Iagoda, depois de se declarar inocente e de receber o mesmo tratamento que Krestinski, confessou ter preparado o assassinato de Kirov por ordens de Rikov, uma vez que este invejava a ascensão meteórica do jovem.

Mas a estrela do julgamento, como seria de se esperar, foi Nicolai Bukharin, que, depois de um ano de estada nos porões da Lubianka, parecia pronto para cometer o último ato de sua autodestruição política e humana. Embora negasse ser responsável pelas atividades de terrorismo e de espionagem mais assustadoras, Liev Davidovitch julgou compreender que sua tática era aceitar o inaceitável com uma convicção e uma ênfase com que pretendia demonstrar aos observadores mais perspicazes a falsidade da instrução criminal. O velho revolucionário, no entanto, percebeu o erro de perspectiva cometido por Bukharin ao tentar lançar um grito de alarme aos alarmados, para quem (apesar do silêncio que mantinham) todas aquelas acusações seriam tão pouco críveis como as dos julgamentos anteriores. Mas a grande massa, aquela que em Moscou e no mundo seguia o decorrer dos processos, tinha tirado de suas palavras uma única conclusão que validava as acusações e destruía a estratégia do réu: Bukharin confessou, disseram, e isso era o mais importante. Fora para acabar ajoelhado e choroso, admitindo crimes fictícios, que Bukharin preferira voltar a Moscou?, Liev Davidovitch se perguntaria, recordando a carta dramática que Fiodor Dan lhe remetera há três anos.

Parecia evidente a Liev Davidovitch que, nos processos, Stalin exigia dos acusados, mais que uma verdade, a sua autodestruição humana e política. Quando executara os condenados dos julgamentos anteriores, obrigara-os a morrer com a consciência de que não só tinham escarnecido de si próprios, como, além disso, tinham condenado muitos inocentes. Por isso se admirava de que Bukharin, que sem dúvida aprendera a lição dos bolcheviques que o antecederam naquela situação, conservasse a esperança vã de salvar a vida. Numa das muitas cartas que escreveu a Stalin dos porões da Lubianka e que o Coveiro se encarregava de fazer circular em algumas esferas, Bukharin chegou a dizer-lhe que só sentia por ele, pelo Partido e pela causa, um amor grandioso e infinito, e despedia-se abraçando-o em pensamentos… Liev Davidovitch podia imaginar a satisfação de Stalin ao receber mensagens como aquela, que o transformavam num dos poucos carrascos da história a obter a veneração de suas vítimas enquanto as empurrava para a morte… Em 11 de março, os autos tinham sido conclusos para a sentença. Quatro dias depois, os condenados à morte foram executados, garantia o Pravda…

Desde que aquela encenação começou a ser exibida, Liev Davidovitch manteve-se no seu quarto porque lhe era doloroso tentar responder às perguntas que lhe colocavam jornalistas, correligionários, secretários e guarda-costas, todos à procura de uma lógica existente para além do ódio, da obsessão conspiratória e da insanidade criminosa do homem que governava um sexto da Terra e a mente de milhões de pessoas em todo o mundo. Liev Davidovitch sabia que o único objetivo possível de Stalin nesses processos era desacreditar e eliminar adversários reais e potenciais e transferir para eles as culpas por cada um de seus fracassos. O que lhes escapava era aquele descrédito ser dirigido para o interior da sociedade soviética, que, numa porcentagem sem dúvida notável, devia acreditar em tudo o que era divulgado, por mais difícil que fosse sua assimilação. Outro grande objetivo era tornar o medo extensivo e onipresente, sobretudo o medo dos que tinham alguma coisa a perder. Por isso os primeiros destinatários daqueles expurgos tinham sido, na realidade, os burocratas: seguindo essa estratégia, Stalin atingia dezenas dos seus acólitos, incluindo vários membros do Politburo e secretários do Partido nas repúblicas, stalinistas que, de um dia para o outro, tinham sido qualificados como traidores, espiões ou ineptos. Se os oposicionistas de outros tempos foram desonrados publicamente, os stalinistas, pelo contrário, costumavam ser destruídos em silêncio, sem processos abertos, da mesma forma que tinham sido dizimados os comunistas de diversos países refugiados na União Soviética, contra quem Stalin, depois de usá-los, parecia ter se encarniçado.

O mais preocupante era saber que aquelas limpezas tinham afetado toda a sociedade soviética. Como era de se esperar, num Estado de terror vertical e horizontal, a participação das massas na depuração contribuíra para sua difusão geométrica, porque não era possível desencadear uma caçada como aquela que se vivia na União Soviética sem exacerbar os instintos mais baixos das pessoas e, sobretudo, sem que cada uma delas sofresse do terror de cair em suas redes, por qualquer motivo que fosse – ou mesmo sem motivos. O terror gerara o efeito de estimular a inveja e a vingança, além de ter criado um ambiente de histeria coletiva e, pior ainda, de indiferença pelo destino dos outros. A depuração alimentava-se de si própria e, uma vez desencadeada, libertava forças infernais que a obrigavam a seguir em frente e a crescer…

Semanas antes, Liev Davidovitch constatara dramaticamente o horror vivido por seus compatriotas quando uma velha amiga, fugida milagrosamente para a Finlândia, lhe escrevera: “É terrível verificar que um sistema nascido para resgatar a dignidade humana tenha recorrido à recompensa, à glorificação, ao estímulo da denúncia, e que se apoie em tudo o que é humanamente vil. A náusea sobe-me pela garganta quando ouço as pessoas dizerem: fuzilaram M., fuzilaram P., fuzilaram, fuzilaram, fuzilaram. As palavras, de tanto as ouvirmos, perdem seu sentido. As pessoas repetem-nas com a maior tranquilidade, como se estivessem dizendo: vamos ao teatro. Eu, que vivi esses anos no medo e senti a compulsão de denunciar (confesso com pavor, mas sem sentimento de culpa), deixei de sentir na minha mente a brutalidade semântica do verbo fuzilar… Sinto que chegamos ao fim da justiça na Terra, ao limite da indignidade humana. Que morreram demasiadas pessoas em nome daquela que, prometeram-nos, seria uma sociedade melhor”…”

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“Para a arte, a liberdade é sagrada, é a sua única salvação. Para a arte, tudo tem de ser tudo”. (Trotski)

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“Para indignação de poucos e para confirmação popular de suas boas intenções, o Grande Capitão tinha criticado os executores do expurgo, que fora acompanhado, as palavras eram suas, de “mais erros que os esperados”. Nesse caso, tudo teria corrido bem se só tivessem sido cometidos os erros esperados? Quantas pessoas podiam ser fuziladas por engano?

Na realidade, a mais dramática das certezas históricas que o Congresso revelara foi a de que o secretário-geral tinha chegado finalmente aonde desejava em sua ascensão ao céu do poder. O terror daqueles últimos anos tinha lhe permitido tirar de cena, de uma maneira ou de outra, dezoito dos vinte e sete membros do Politburo eleitos no último congresso presidido por Lenin, e poupar a cabeça de apenas um quinto dos membros do Comitê Central eleitos em 1934, quando a situação, pela última vez, esteve prestes a fugir-lhe das mãos. Stalin tinha demonstrado ser um verdadeiro gênio da trapaça: sua bem-sucedida eliminação de qualquer oposição no interior do Partido (apoiando-se no acordo sobre a ilegalidade das facções promovido por Lenin) transformou-se em sua arma política mais eficaz para acabar com a democracia e, mais tarde, instaurar o terror e levar a cabo os expurgos que lhe deram o poder absoluto. Talvez o primeiro erro do bolchevismo, deve ter pensado Liev Davidovitch, tenha sido a eliminação radical das tendências políticas que se lhe opunham. Quando essa política passou do exterior da sociedade para o interior do Partido, começou o fim da utopia. Se a liberdade de expressão fosse permitida na sociedade e dentro do Partido, o terror não teria conseguido se implantar. Por isso Stalin empreendera a depuração política e intelectual, para que ficasse tudo sob a alçada de um Estado devorado pelo Partido, de um Partido devorado pelo secretário-geral. Exatamente como Liev Davidovitch, antes da abortada revolução de 1905, disse a Lenin que aconteceria.”

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“O que mais o encorajava Trotski a dedicar-se à escrita daquela desoladora biografia de Stalin, era a convicção de que, tal como acontecera ao também deificado Nero, depois de sua morte as estátuas de Stalin seriam derrubadas e seu nome apagado de toda a parte, porque a vingança da história costuma ser mais terrível do que a do mais poderoso imperador que alguma vez existiu.”

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“Minha fama de boa pessoa, mais que a de veterinário eficiente, espalhou-se pela zona e as pessoas iam me ver com animais tão magros como elas (conseguem imaginar uma serpente magra?) e, por absurdo que pareça naqueles dias de escuridão, ofereciam-me medicamentos, linha para suturas, ataduras que por alguma razão haviam sobrado, numa prática fervorosa da solidariedade entre os fodidos, que é a única verdadeira.”

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“Embora ainda não tivesse começado a acompanhar Ana à igreja, Dany, Frank e os outros poucos amigos que via diziam que eu parecia estar trabalhando para minha candidatura à beatificação e minha ascensão incorpórea aos céus. A verdade era que, lendo e escrevendo sobre como a maior utopia que alguma vez os homens tiveram ao alcance da mão fora pervertida, mergulhando nas catacumbas de uma história que mais parecia um castigo divino que obra de homens ébrios de poder, de ânsias de controle e de pretensões de transcendência histórica, tinha aprendido que a verdadeira grandeza humana está na prática da bondade incondicional, na capacidade de dar aos que nada têm não o que nos sobra, mas uma parte do pouco que temos. Dar até doer, e não fazer política nem pretender prerrogativas com essa ação, muito menos praticar a enganosa filosofia de obrigar os outros a aceitar nossos conceitos do bem e da verdade por (acreditarmos) serem os únicos possíveis e por, além disso, deverem estar agradecidos pelo que lhes demos, mesmo que não o tivessem pedido. E, embora soubesse que a minha cosmogonia era de todo impraticável (e que merda fazemos com a economia, com o dinheiro, com a propriedade, para que tudo isso funcione? e que porra fazemos com os espíritos predestinados e com os filhos da puta de nascença?), satisfazia-me pensar que talvez um dia o ser humano pudesse cultivar essa filosofia, que me parecia tão elementar, sem sofrer as dores de um parto ou os traumas da obrigatoriedade, por pura e livre escolha, por necessidade ética de ser solidário e democrático. Masturbações mentais minhas…”

*

“Com aquele impulso, que ele sabia ser um epílogo, Trotski pôs-se a dar forma às suas últimas vontades. “Durante 43 anos da minha vida consciente fui um revolucionário”, escreveu, “e durante 42 lutei sob a bandeira do marxismo. Se tivesse de começar outra vez, tentaria evitar este ou aquele erro, mas o decurso geral da minha vida permaneceria inalterado. Morrerei sendo um revolucionário proletário, um marxista, um materialista dialético e um ateu irreconciliável. Minha fé no futuro comunista da humanidade não é hoje menos ardente (antes, mais firme) do que era nos dias de minha juventude. (...) A vida é bela, os sentidos celebram sua festa… Que as gerações futuras limpem a vida de todo o mal, de toda a opressão e violência, e desfrutem dela com plenitude”.”

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“Ramón decidira desde o princípio, mesmo quando estava convencido de que Roquelia tinha sido enviada por seus chefes distantes, manter a mulher à margem dos pormenores mais profundos de sua relação com o mundo das trevas, porque, no meio dos ímpios de sempre, não saber é a melhor maneira de estar protegido.”

*

“– Compreende agora que somos uns empestados? Você consegue se dar conta de que somos o que Stalin criou de pior e, por isso, ninguém nos quer, nem aqui na União Soviética depois de sua morte, nem no Ocidente? Que, quando aceitamos a missão mais honrosa, estávamos nos condenando para sempre, porque íamos executar uma vingança que o cérebro enfermo de Stalin julgava necessária para conservar o poder?

– Stalin não era um doente. Nenhum doente governa meio mundo durante trinta anos. Vocês mesmos diziam: Stalin sabe o que faz…

– É verdade. Mas uma parte dele estava doente. Dizem que matou cerca de 20 milhões de pessoas. Um milhão pode ter sido por necessidade, os outros 19 milhões foram por doença, eu digo… Mas já lhe disse que Stalin não era o único doente.”

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“Stalin, pare de enviar assassinos para me liquidarem. Já apanhamos cinco. Se não parar com isso, eu enviarei pessoalmente um homem a Moscou, e não haverá necessidade de mandar outro.” (Marechal Tito, em carta datada de 1950 encontrada nos arquivos pessoais de Stalin)

*

“Pensou que o fato de ter acreditado e lutado pela maior utopia jamais concebida implicava doses necessárias de sacrifícios. Ele, Ramón Mercader, tinha sido um dos arrastados pelos rios subterrâneos daquela luta desproporcional, e não valia a pena esquivar-se de responsabilidades nem tentar atribuir suas culpas a enganos e manipulações: ele encarnava um dos frutos podres que apareciam mesmo nas melhores colheitas e, ainda que fosse verdade que outros lhe tinham aberto as portas, ele atravessara, satisfeito, o umbral do inferno, convencido de que deveria existir a morada das trevas para que houvesse um mundo de luz.”

O homem que amava os cachorros – Leonardo Padura
Editora: Boitempo
ISBN: 978-85-7559-445-2
Tradução: Helena Pitta
Páginas: 592
Fonte: http://jornalggn.com.br/blog/doney/lista-de-livros-o-homem-que-amava-os-cachorros-de-leonardo-padura

O recorrente “problema Trotski”


Mauricio Gonçalves, graduado e pós-graduado em Sociologia e Ciências Sociais.
Trótski: exílio e assassinato de um revolucionário
Bertrand M. Patenaude
Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2014, 403p.

I
O filme The assassination of Trotsky (1972), de Joseph Losey, com Richard Burton e Alain Delon, mostra os últimos dias do revolucionário russo em Coyoacán (México). Com um roteiro que privilegia a sequência cronológica dos eventos, a película busca aproximar-se da personalidade e das ideias de Trotski a partir de sua rotina na prisão domiciliar da Avenida Viena, ao mesmo tempo em que tenta retratar a tensão psicológica de Ramón Mercader até o desfecho de seu crime em 20 de agosto de 1940. Há alguns anos o autor cubano Leonardo Padura com o seu O homem que amava os cachorros (2009) intentou algo parecido, mas acrescentou um elemento que enriqueceu e deu à obra “meio ficcional” uma repercussão mais geral e duradoura: as viagens de ida e volta entre as histórias pessoais dos protagonistas (Trotski, Mercader e Ivan) relacionam-se aos dilemas da época e nos levam a uma reflexão profunda sobre os caminhos e descaminhos da luta pela “égaliberté” [2] e pelo socialismo, e consequentemente sobre o próprio século 20 de conjunto.

Bertrand M. Patenaude, professor na Universidade de Stanford (EUA), revisita ainda uma vez mais com o seu Trótski: exílio e assassinato de um revolucionário (2009) os últimos anos de vida de Lev Bronstein, mas o faz com uma estrutura narrativa que poderia posicioná-lo entre o filme de Losey e o livro de Padura. Aproxima-se do filme de Losey ao centrar-se nos últimos anos de Trotski no México – a película trabalha os últimos meses. E do livro de Padura pelo fato de realizar tanto as remissões históricas a partir dessa primeira camada quanto de assemelhar-se a um gênero que poderíamos chamar de “thriller policial” ou “romance de suspense”. Trata-se de uma biografia dos derradeiros anos de exílio de Trotski no país de Emiliano Zapata – de sua chegada ao porto mexicano de Tampico a bordo do petroleiro norueguês Ruth ao seu último dia: entre 9 de janeiro de 1937 e 21 de agosto de 1940.

II
A biografia de Patenaude inscreve-se em uma sequência relativamente extensa de obras do gênero sobre Trotski: de sua autobiografia, Minha vida (1930), passando pela trilogia de Isaac Deutscher – O profeta armadoO profeta desarmado e O profeta banido (1954, 1959, 1963); Victor Serge –Trotsky: vida e morte (1951); Paulo Leminski – Trótski, a paixão segundo a revolução (1986); Pierre Broué – Trotsky (1988); Dmitri Volkogonov –Trotski: o eterno revolucionário (1996); Jean-Jacques Marie – Trotsky (1998) e Trotsky: revolucionário sem fronteiras (2006); entre várias outras. Em suma, da década de 1940 aos dias de hoje parece haver um ininterrupto interesse pela “tragédia de Trotski”. Em algumas vezes tal interesse tem o objetivo de esconjurar um fantasma que teima em permanecer por perto, à espreita e pronto para entrar em ação. É o que acontece com a biografia em tela. O autor é atraído pelo drama histórico do fundador do Exército Vermelho. Atração que pode ser entendida a partir do “problema Trotski”, adequadamente resumido por Mendonça:
Como líder político, Trotsky entraria para a história, fundamentalmente, como o grande opositor do stalinismo; no entanto, tal oposição a Stalin, em vez de traduzir-se numa rejeição do bolchevismo e na elaboração de uma interpretação mais ou menos alternativa do marxismo, fez-se, pelo contrário, em nome de uma reabilitação do bolchevismo e do leninismo. Diferentemente do “marxismo ocidental” da Escola de Frankfurt, Karl Korsch e Gramsci, que, ao elaborarem suas interpretações alternativas de Marx, o faziam de forma a rejeitar em alguma medida o valor histórico da Revolução Russa, em Trotsky, tudo gira em torno da defesa do valor universal da experiência russa de 1917. Mas, diferentemente também de outros marxistas ocidentais, como Lukács e Althusser, para os quais a defesa do leninismo estava associada à defesa do regime soviético efetivamente existente como portador, em alguma medida, da tradição revolucionária de Outubro, para Trotsky, a defesa da Revolução de Outubro exigia a rejeição completa e total do stalinismo. O resultado é a posição sui generis da obra trotskista: contra o stalinismo – mas herdeira do marxismo “oriental”; pelo bolchevismo – e também contra o regime soviético efetivamente existente. O resultado seria que Trotsky seria rejeitado por ambas as tradições marxistas – a “ocidental” assim como a “oriental” [3].
Patenaude vai então tentar responder a esses incômodos vinculando a trajetória de Trotski aos seus ataques ao “boneco de palha” (“espantalho”) marxiano/marxista: a teoria social de Marx (e dos marxistas) é um determinismo econômico (p.246), sua concepção de história é teleológica, progressista, otimista e fechada (p.65) e sua doutrina política é incompatível com os valores democráticos – a revolução de Outubro foi um “golpe de Estado” (p.33, p.90, p.243, p.316), e sua filosofia pretensamente materialista é de fato mobilizada por valores absolutos e idealistas (p.65 e p.343).

Ou seja, ainda que Trotski seja para o autor uma figura interessante e enigmática – uma vez que nele convivem vários: o intransigente opositor político de Stalin; o autor de livros marxistas “não ortodoxos” como Literatura e revolução e História da revolução russa; o líder e organizador de um exército e defensor do “Terror Vermelho” durante a guerra civil; o intelectual orgânico que defende um “militantismo cultural” que tenha o cotidiano popular (família, religião, entretenimento, trabalho, etc.) como objeto de conhecimento e transformação consciente, indicador efetivo da construção de uma nova cultura e sociabilidade (Questões do modo de vida); etc. –, apesar da complexidade da personalidade do biografado, e mesmo admirando alguns de seus traços, o retrato que nos aparece ao fim da tela pintada por Patenaude é o de um revolucionário (certamente um dos mais exemplares) que como tantos outros do século 20 acreditaram, lutaram e morreram por uma miragem: Trotski foi uma daquelas criaturas com grande capacidade para sacrifícios, mas que desprezava as conquistas civilizatório-democráticas do Ocidente e que se aferrou a verdades (e a uma fé) transcendentais, ilusórias e utópicas (irrealizáveis). As últimas páginas do livro são dedicadas à exposição de depoimentos de ex-militantes trotskistas que abandonaram suas crenças políticas anteriores, e que são tomados como representativos do esclarecimento político adquirido pelo “realismo pragmático” do presente, uma vez que perceberam (finalmente!) de que maneira as ações de Trotski “(...) como líder bolchevique o transformaram num prisioneiro do mito de Outubro como uma revolução dos trabalhadores e de que maneira em seu último exílio ele transformara seus seguidores em prisioneiros desse mito também. (...) Otimismo era a única coisa que ele tinha de verdade” (p.343).

A temporalidade com que Patenaude trabalha é portanto retrospectiva e “acabada”. A morte de Trotski em 1940 e o sentido de sua vida nada têm a nos dizer sobre o presente, sendo seus descaminhos objeto de mera curiosidade histórica.

III
Talvez os aspectos mais válidos do livro, e onde ele mais foi beneficiado pelas novas fontes historiográficas e bibliográficas disponíveis a partir da década de 1990, sejam as descrições e os detalhes que apresenta sobre o plano orquestrado pelo serviço secreto staliniano, com a participação direta do “guia genial dos povos” (sic!), para assassinar Trotski: a Operação Utka (Pato). Neste ponto, Patenaude se valeu principalmente de materiais russos e estadunidenses, muitos deles relacionados a pesquisas e depoimentos de e sobre espiões e ex-funcionários da polícia política soviética (KGB e depois NKVD): Kolpadiki e Prokhorov [4], Andrew e Mitrokhin [5], Nikandrov [6], Kern [7], Sudoplatov [8], entre outros.

É aqui que podemos perceber como a vida e o destino de Trotski superam a ficção: as personagens envolvidas e mobilizadas para eliminar “o Pato” fazem parte de uma intrincada e complexa rede internacional, uma guerra de um Estado-nação contra um homem e seu pequeno núcleo de ativistas, que partia do próprio Josef Stalin, seguia com o chefe do NKVD Lavrenti Beria, continuava com Pavel Sudoplatov, designado o chefe da missão para eliminar Trotski, passava ainda por Iosif Grigulevitch e Leonid Eitingon em solo mexicano e finalmente findava com Caridad e Ramón Mercader, por um lado (ramificação da Operação Pato conhecida como “A mãe”), e David Alfaro Siqueiros, por outro (a outra ramificação, denominada “Cavalo”). Havia ainda bases europeias e estadunidenses que conseguiram infiltrar agentes – Mark Zborowski, conhecido como “Étienne” ou “Tulip” e Robert Sheldon Harte, ambos tidos como militantes trotskistas – nos círculos pessoais de convivência e militância respectivamente de Leon Sedov na Europa (o filho de Trotski que cuidava das tarefas organizativas da IV Internacional por lá) e do “Velho” em Coyoacán.

Além deles, informações, provas materiais e memórias de oficiais desertores do NKVD também servem de base para a produção do livro, como as de Walter Krivitski e Alexander Orlov, por exemplo.

IV
Esses elementos, indispensáveis para um bom “thriller policial”, todavia, não são acompanhados de uma satisfatória análise histórica e social. A inteligibilidade da práxis e da vida de Trotski é mais ou menos deduzida do “tipo psicológico” que é produzido pela ligação incondicional e dogmática às características teóricas e filosóficas atribuídas ao marxismo – descritas mais acima. Aqui ele não poderia estar mais distante da biografia exemplar de Deutscher, ou de O homem que amava os cachorros, de Padura.

A camada literária policial mais superficial que cobre toda a trama não é internamente nucleada por interações sociais que a ponham em perspectiva adequada e não se apoia numa interpretação histórica, sociológica ou política mais ou menos sólida. Além disso, o método pelo qual ele apresenta a trajetória de Trotski é deficiente: são os seus traços de personalidade – o mesmo acontecendo com Stalin, fundamental ou redutoramente mobilizado por “inveja, ódio e vingança” (p.199) em seu intento de assassinar seu mais intransigente opositor – que dão forma até para explicações de ordem mais abrangente. Uma espécie de prioridade explicativa para as dimensões individuais sobre a história e a política em transformação.

Assim, qual a contribuição da obra para as ciências sociais e/ou humanas? Trótski: exílio e assassinato de um revolucionário tem pouco a oferecer: privilegiando os aspectos subjetivo-individuais do autor de A revolução desfigurada, é incapaz de proporcionar uma narrativa que atribua sentido global à sua tragédia. O livro de Patenaude pode ter algum apelo como um gênero de suspense, centrado nos últimos anos e na operação para assassinar Trotski, e mesmo como mais uma peça no mercado editorial, mas não consegue produzir uma explicação que realize uma interação dialética entre o destino pessoal de Trotski e os destinos mais amplos da luta pelo socialismo. Ou seja, não conseguimos perceber como o individual se articula com o social em uma inteligibilidade para a totalidade da narrativa. A Operação Pato não é relacionada, ou o é de maneira bastante deficiente, com o seu contexto histórico de fundo, que é o que finalmente a determina. Diferentemente, este fazer teórico dialético é perceptível em Deutscher, por exemplo, exatamente quando mostra que:
Deve mais uma vez ser enfatizado, que até o final, tanto a fraqueza como a força de Trotski estavam enraizadas no marxismo clássico. Suas derrotas sintetizaram o predicamento básico pelo qual o marxismo clássico foi atacado como doutrina e movimento: a discrepância e o divórcio entre a visão marxista do desenvolvimento revolucionário e o curso real da luta de classes e da revolução [9].

Slavoj Zizek escreveu sobre a necessidade de repetir Lenin em Às portas da revolução (2002) [10]. Repetir não é exatamente mimetizar mecanicamente o que foi historicamente feito. Repetir um autor ou acontecimento é captar o seu “núcleo racional” e atualizá-lo para os dias de hoje como alternativa à barbárie do capital em crescimento, como tarefas que foram iniciadas, mas que não puderam ser “completadas” ou desenvolvidas positivamente (e que continuam “pendentes” no presente). Há algo de historicamente representativo na trajetória e morte de Lev Davidovitch Bronstein que se vincula aos dilemas da construção socialista e humanista na “Era dos extremos”. Patenaude parece ter escrito sua biografia com o objetivo implícito de acreditar (e nos fazer acreditar) que a vida e o sentido da luta de Trotski, por mais interessante e trágico que tenha sido, permaneceram irrevogavelmente no passado e que ele não deve, mas mais importante, não pode “ser repetido”.

Se o século 20 deu início a questionamentos estruturais e práticos ao domínio do capital, e se Trotski os percebeu e os materializou em sua práxis revolucionária tanto antes –  Balanço e perspectivas – quanto durante a Revolução Russa – A revolução permanente e O que é e para onde vai a URSS –, interpretando e desvelando em presença a realidade histórica cambiante, ele se configura como um clássico do marxismo no século 20. Por isso, o legado que deixou contém um elemento de “vitória na derrota” (Deutscher).

Certamente não é possível criar soluções para os difíceis e quase impeditivos problemas derivados da entrada na época de crise estrutural do capital (Mészáros) apenas com Trotski. Mas já que esta crise abre um período histórico de transição onde “(...) não há mais lugar para reformas sociais sistemáticas nem para a elevação do nível de vida das massas; quando cada reivindicação séria do proletariado, e mesmo cada reivindicação progressiva da pequena burguesia, conduzem invariavelmente para além dos limites da propriedade capitalista e do Estado burguês (...)” [11], desenvolve-se a tendência de superação do divórcio entre uma revolução em sentido totalizante – civilizatória, mundial e superadora da pré-história da humanidade (Marx) – e toda uma época. Então, “repeti-lo” se converterá numa operação provavelmente inescapável, pois ao expor as principais linhas de força do desenvolvimento do capitalismo no século 20 – através de uma abordagem dialética original (internacionalismo analítico, desenvolvimento desigual e combinado, revolução permanente, etc.) e de uma metodologia política inovadora (mediações de um programa político transitório) –, ele se mostrou em seu tempo como um teórico da transição por excelência. São razões como essas que nos ajudam a entender que Bertrand M. Patenaude não poderia ter feito uma análise mais equivocada – e mesmo bastante superficial – acerca do “problema Trotski”.

Fonte: http://www.blogsintese.com.br/2016/07/o-recorrente-problema-trotski.html#more
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Notas
Publicada pela primeira vez na Revista História & Luta de Classes, ano 11,n.21, março/2016. Na web, inicialmente apareceu em https://lavrapalavra.com/
[2] Neologismo ou junção das palavras francesas égalite e liberté, respectivamente igualdade e liberdade.
[3] Mendonça, Carlos Eduardo Rebello de. Trotsky e a revolução permanente. Rio de Janeiro: Garamond, 2014, p.17-8.
[4] Kolpadiki, Aleksandr e Prokhorov, Dmitri. KGB: Spetsoperatsii soveskoi razvedki. Moscou: Olimp-Astrel, 2000.[5] Andrew, Christopher e Mitrokhin, Vasili. The sword and the shield: the Mitrokhin archive and the secret history of the KGB. Nova York: Basic Books, 2001.
[6] Nikandrov, Nil. GrilevitchRazvedchik, “kotoromu vezlo”. Moscou: Molodaya Gvardia, 2005.
[7] Kern, Gary. A death in Washington: Walter G. Krivitsky and the Stalin terror. Nova York: Enigma Books, 2003.
[8] Sudoplatov, Pavel e Sudoplatov, Anatoli. Special tasks: the memoires of an unwanted witness – a soviet spymaster. Nova York: Little, Brown and Company, 1994.
[9] Deutscher, IsaacTrotski – O profeta banido (1929-1940)Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1984, p.527.
[10] Zizek, Slavoj. Às portas da revolução. Boitempo: São Paulo, 2005.
[11] Trotsky, Leon. O programa de transição para a revolução socialista. São Paulo: Sundermann, 2008, p.16-18.