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O pentecostalismo sionista “made in USA”

O pentecostalismo sionista “made in USA” e o apoio às ilegalidades de Israel
"Derrotar o imperialismo em todas as suas formas é uma exigência da humanidade pelo respeito ao direito internacional e a pertença inalienável dos povos originários ao seu território ancestral", escreve Bruno Beaklini (Bruno Lima Rocha Beaklini), editor dos canais do Estratégia & Análise e militante socialista libertário de origem árabe-brasileiro, em artigo originalmente publicado por Monitor do Oriente Médio, 23-11-2020.

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Existe uma conta de chegada na política doméstica dos EUA que se dá na vitória ou derrota em alguns colégios eleitorais, a partir do chamado “cinturão bíblico”. Quase sempre a pregação moral, a mesma que alinha votos à direita do sistema político da Superpotência, aponta para a chamada “direita cristã”. Como cientista político de formação, considero mais preciso denominar “direita pentecostal” e, no tema desse artigo, mais especificamente “sionismo pentecostal”.

Não é apropriado associar diretamente um sistema de crenças de tipo religioso com um determinado posicionamento político. Isso seria algo próximo da apostasia e como tal é crime, combato esse tipo de afirmação com toda a veemência. Tampouco é correto relacionar toda a pregação protestante nos Estados Unidos com posições mais reacionárias. Durante os anos da grande industrialização, do início do sindicalismo massivo na década de 1880 até a consolidação do New Deal na segunda metade dos anos 1930, não foram poucos os pastores, ministros e ministras que se alinharam junto à classe trabalhadora e lutaram ombro a ombro por melhores condições de vida e direitos sociais. Talvez o exemplo mais evidente seja a luta dos mineiros do carvão e suas famílias, combinando um sindicalismo classista de resistência e a congregação religiosa como abrigo e guarida para uma vida, ou mesmo uma sobrevivência mais coletiva, e muito solidária.

O exemplo ganha contornos épicos com a Congregação das Igrejas Batistas do Sul e o papel de destaque das lideranças religiosas afro-americanas, a começar pelo próprio Dr. Martin Luther King Jr, à frente da Conferência de Lideranças Cristãs do Sul (SCLC). Ele, junto ao islamizado Malcolm X, são as maiores referências de intelectuais e pregadores afro-americanos dos EUA no século XX. Infelizmente, os supremacistas brancos profanam a cruz do profeta Issa (Jesus Cristo, portanto, o crucificado) e se utilizam de simbologia “cristã” para pregar justamente o oposto do realizado pelo Messias, quando enfrentou o imperialismo de seu tempo e de peito aberto. O mau exemplo é abundante.

Fundado no ano de 2015, o museu dos “cristãos sionistas” – Friends of Zion foi fruto de uma aliança entre o republicano Mike David Evans e a elite dirigente do Estado de Israel, incluindo Menahem Begin (o próprio), o terrorista da Irgun que virou primeiro ministro do Estado Colonial. Evans foi um dos proeminentes “assessores pentecostais” do derrotado Donald Trump. Mas não para por aí.


A poderosa rede International Fellowship of Christians and Jews envia um volume considerável de recursos para Israel, assim como promove imigração de famílias judaicas, sempre contrapondo o permanente desequilíbrio demográfico. Nas partes mais importantes do portal, não se observa nada da tradição humanista da esquerda judaica (não sionista), tampouco abordam o problema da extrema direita que sempre flerta com o nazi-fascismo. Outra “curiosa” coincidência.

Segundo o canal Vice, o alinhamento das congregações do chamado “cinturão bíblico” com Israel é de hegemonia absoluta, o que inclui um volume importante de recursos destinados aos assentamentos na Cisjordânia. Ou seja, em nome de algum tipo de leitura fundamentalista do Velho Testamento, empresas cujo negócio é arrecadar recursos em espécie de pessoas necessitadas, destinam parte desta verba para construções que são ilegais, perante o direito internacional, e vão de encontro a várias resoluções da ONU, a começar pela Resolução 242 que, em “tese”, obrigaria Tel Aviv a devolver os Territórios Ocupados na Naksa, em 1967. Alguém viu uma “expedição de capacetes azuis” desembarcando no litoral da Palestina Ocupada em 1948? Alguém foi informado de um “bloqueio econômico” de vulto ou uma “ação conjunta” sequer parecida com as condenações da África do Sul no período do Apartheid? Suponho que não, pois isso jamais existiu.


E tem mais. John Hagee é um pastor que coordena excursões para Israel e apoia os assentamentos ilegais na Cisjordânia. Também é líder da congregação protestante de teleevangelistas e ganhador de uma medalha dos “Friends of Zion” - inclusive afirma, na seção de “sistema de crenças”, um compromisso com Israel. A razão alegada é milenarista, como afirmado abaixo através de ampla pesquisa. Hagee diz que: “Cremos na promessa de Gênesis 12: 3 a respeito do povo judeu e da nação de Israel. Acreditamos que os cristãos devem abençoar e confortar Israel e o povo judeu. Os crentes têm um mandato bíblico para combater o anti-semitismo e falar em defesa de Israel e dos escolhidos.”


Suponho que para tais cidadãos estadunidenses, essa interpretação do Velho Testamento tenha mais “validade” do que as 850 mil pessoas que foram deportadas, expulsas de suas terras onde residem a tanto ou mais tempo do que a frase no Gênesis. Além da Nakba, como se fosse pouco, os cerca de 13% de árabes-palestinos de fé cristã, resultando em distintas comunidades simplesmente seriam simplesmente “irrelevantes”.

Curioso que um pouco mais abaixo do mesmo texto, afirma-se em Genesis 12:6: “E passou Abrão por aquela terra até ao lugar de Siquém, até ao carvalho de Moré; e estavam então os cananeus na terra.” Não entro no mérito dos sistemas de crenças e valores religiosos, mas tomando em conta o fenômeno histórico, o povo palestino sempre esteve lá e combateu o mesmo imperialismo. Enfim, nada justifica, a não ser que a propaganda milenarista ultrapasse o direito internacional. Daí para uma teoria “globalista” ou outras extravagâncias ao estilo de Steve Bannon e Alexander Dugin não falta nada.


É importante observar esta interpretação do historiador Walker Robins:
“Os Batistas do Sul viam amplamente a Palestina com olhos orientalistas, associando o movimento sionista à civilização ocidental, modernidade e progresso contra os árabes da Palestina, que eles viam como incivilizados, pré-modernos e atrasados. Essa visão era compartilhada por viajantes batistas, por missionários, por pré-milenaristas e por seus oponentes.”
Infelizmente, nada disso é “novidade” e é uma evidência na relação para-estatal de diplomacia pública, que realiza uma aliança direta através de enlaces do Ministério de Assuntos Estratégicos de Israel e as maiores congregações do cinturão bíblico. O jornal israelense Haaretz fez uma boa investigação a respeito, assim como a Al Jazeera, em inglês, corretamente afirma que:
“Como resultado de tais crenças, os sionistas cristãos apoiam o empreendimento de colonatos ilegais de Israel na Cisjordânia e, de facto, qualquer outra política - israelense, americana ou outra - que assegure a soberania judaica israelense sobre a terra desde o Mar Mediterrâneo até ao rio Jordão e mesmo mais além, até à margem oriental da Jordânia”. E termina reiterando que “Os sionistas cristãos geralmente ignoram as violações dos direitos palestinos por Israel, mesmo dos palestinos cristãos, ou as veem como um meio necessário para um fim.” (no mesmo link acima).
Considerando que 80% dos chamados evangélicos dos EUA (de um total de 70 milhões), com especial ênfase os pentecostais teleevangelistas, apoiam incondicionalmente o Estado de Israel, ignoram o Apartheid Colonial e a invasão de territórios soberanos dos países vizinhos, para além do lobby do AIPAC, existe uma demanda doméstica bem à direita, com crenças milenaristas e motivações imperiais para seu aliado estratégico.


Não me espanta. As Treze Colônias, quando unificadas, formadas por convencionais escravagistas, autoproclamaram o Destino Manifesto. Assim, romperam seguidos acordos e tratados com nações indígenas, forçaram duas guerras contra o México e terminaram por roubar metade do território do país vizinho. Era de se supor que a hegemonia da direita milenarista defenda quem faça no Oriente Médio o que os Estados Unidos fizeram no continente americano: expansionismo territorial, genocídio indígena, apartheid ou segregação e conquistas imperialistas como em Porto Rico, Filipinas e Havaí.

Derrotar o imperialismo em todas as suas formas é uma exigência da humanidade pelo respeito ao direito internacional e a pertença inalienável dos povos originários ao seu território ancestral.


Sionismo cristão e dispensacionalismo

 

O dispensacionalismo do sionismo cristão estadunidense
 A fim de compreender como se deu a fundação e fortalecimento do sionismo cristão norte-americano e suas diretas implicações na construção do movimento evangélico brasileiro – em especial, pentecostal e neopentecostal -, faz-se necessário analisar o papel central do dispensacionalismo. Charles C. Ryrie, importante teólogo norte-americano, busca em um de seus livros definir essa corrente. De início, é necessário compreender o que é uma dispensação. O autor parte de uma definição superficial adotada por muitos críticos e, também, adeptos ao dispensacionalismo; dispensação seria um período de tempo no qual Deus testa a obediência do Homem em relação a alguma revelação. O autor, entretanto, discorda que a concepção de uma dispensação deva ser atrelada a uma era, ou a um período de tempo determinado. No lugar, deve ser entendido como um acordo em que a administração da obra divina – a Terra, um reino, uma locação específica - é dada ao Homem com um objetivo, com a intenção de gerar uma revelação. Tempo e acordo coincidem cronologicamente, mas o que constitui a dispensação é o tipo e objetivo do acordo, e não sua periodicidade. O autor cita, ainda, que a descrição de uma dispensação envolve: uma revelação distinta, a responsabilidade dada ao Homem, os teste aplicados, o fracasso humano e o julgamento divino. Todas as dispensações da Bíblia possuem essas características (RYRIE, 1995). 

Essa hermenêutica bíblica entende que há sete dispensações na Bíblia: (1) a da Inocência, na qual Adão falha em suas tarefas de manter o Jardim do Éden, livre de pecado, e cede ao comer o fruto proibido; (2) a da Consciência, no qual o Homem deveria se comunicar com Deus por meio de sacrifícios de sangue, que não foram cumpridos por Caim (e outros) e trouxeram o homicídio ao mundo; (3) a do Governo Civil, no qual os humanos fracassaram em seguir a ordem divina de espalhar a população pelo planeta após o Dilúvio e decidiram, no lugar, construir a Torre de Babel; (4) a da Promessa, no qual o povo de Abraão deveria permanecer na Terra Prometida; (5) a do Quadro Legal, no qual o Homem era responsável por manter uma ordem jurídica justa, mas acabou levando à Crucificação injusta de Jesus Cristo; (6) a da Graça, na qual o Homem deve aceitar o caminho da Graça Divina e aqueles que o rejeitarem serão julgados com a segunda vinda de Cristo; e, por fim, (7) a dispensação do Milênio, na qual Jesus Cristo governará um reino de paz por mil anos, enquanto o Satanás permanece amarrado e a desobediência eliminada (RYRIE, 1995). Apesar de ser possível encontrar autores que discordem dessa divisão de sete dispensações, a tese de Ryrie é vastamente predominante. 

Ryrie (1995) exalta o caráter literal da hermenêutica bíblica proposta pelos dispensacionalistas. O autor ressalta como outras teorias, como a Teologia da Aliança (que será abordada em seções posteriores), se valem de interpretações não literais, marcadas por entendimentos subjetivos, que fogem à gramática. O autor defende que o dispensacionalismo é a única teologia que fornece um quadro consistente e objetivo de análise e leitura da Bíblia, por meio de sua interpretação literal; isso já prenuncia o caráter restritivo e limitante oferecido pelo dispensacionalismo para interpretação da realidade, dado que o texto bíblico deve ser interpretado sempre em sua literalidade. À luz desse entendimento, um dispensacionalista entende que Jerusalém e, por consequência, Israel são os lugares dos quais Jesus Cristo governará seu reino de mil anos de paz após seu retorno e, em razão disso, devem ser protegidos, para que essa visão teológica profética possa concretizar-se. 

O dispensacionalismo forma o sionismo cristão norte-americano. Wachholz e Reinke (2020) compreendem que o processo de formação do sionismo cristão alimentado pelo dispensacionalismo tem forte impulso nos Estados Unidos da América por algumas razões: 
“É bastante possível que o dispensacionalismo tenha tido ampla aceitação [...] justamente pela sua defesa da Bíblia em uma época em que sua autoridade era questionada pelo modernismo teológico. Além disso, os dispensacionalistas defendiam que qualquer cristão podia ler e interpretar as Escrituras sem a necessidade dos especialistas da academia teológica (WEBER, 2005, p.36- 39). [...] Blackstone criou o mito fundador do sionismo cristão dos Estados Unidos da América ao combinar a crença messiânica com a história nacional no seu mais profundo senso patriótico: para ele, o Estado norte-americano deveria desempenhar papel que Ciro teve na restauração dos judeus a Sião, pois Deus teria escolhido os puritanos pela sua superioridade moral.” (WACHHOLZ; REINKE, 2020) 

A tese defendida no trecho pelos autores reforça o caráter político que sionismo cristão e, especialmente, o dispensacionalismo possuem. A doutrina dispensacionalista ganha seu primeiro forte impulso com a criação do Estado de Israel em 1948, tendo sua completa popularização alcançada após a vitória israelense na Guerra dos Seis Dias. A cultura norteamericana começou a propagar uma espécie de discurso sobrenatural e profético, que atingiu inúmeros setores da sociedade e disseminou as concepções dispensacionalistas. Desde então, houve uma mobilização política de teólogos, religiosos e escritores para que o Estado de Israel fosse protegido e benquisto por aqueles que governam os EUA (WACHHOLZ; REINKE, 2020). 

Apesar do foco primário da literatura sobre sionismo cristão ressaltar o papel do dispensacionalismo, existem outras correntes. Em seu trabalho de mapeamento da expansão do capital político e social do evangélicos no Estados Unidos da América, Amstutz (2013) mapeia pelo menos outras duas narrativas evangélicas de apoio ao povo judeu. A primeira narrativa, a Teologia da Substituição (Replacement Theology), defende que a partir do advento de Jesus Cristo o povo judeu deixa de ser a prioridade e o povo a ser protegido nos planos divinos – substituídos pelo povo cristão. Originada por Santo Agostinho, não é tão relevante atualmente. As críticas contemporâneas se concentram no fato de que essa teologia é exacerbadamente focada na vida e morte de Jesus Cristo, sem considerar as bases morais judaicas do Cristianismo. Com foco em Cristo, a narrativa também perde força ao negligenciar ensinamentos presentes no Velho Testamento (AMSTUTZ, 2013, p. 121). 

A segunda narrativa a ser abordada é a Teologia da Aliança (Covenant Theology). Com origem com João Calvino, teólogo fundador do Calvinismo e central no Protestantismo, essa narrativa entende que há duas alianças distintas, mas interdependentes: a do Velho Testamento, conhecida como “Aliança da Lei”; a segunda, presente no Novo Testamento, conhecida como “Aliança da Graça”. Judeus e cristãos são partes plenas no plano de Deus, estando ambos dentro da Salvação (AMSTUTZ, 2013, p. 122). 

Por fim, o Dispensacionalismo. O autor defende que esta corrente não é a predominante entre os líderes evangélicos, diferente de outras literaturas sobre o tema. Ainda assim, reconhece o papel que esta corrente ocupa na mídia e seu impacto na interpretação evangélica sobre política internacional. O autor ressalta que sob o Dispensacionalismo, a Bíblia deve ser lida literalmente: a defesa do Estado de Israel é necessária dado que a criação deste é uma das etapas para a volta de Jesus Cristo à Terra. Sua crítica reside no fato de que essa leitura literal é simplista e não permite análises complexas sobre os conflitos atuais no Oriente Médio (AMSTUTZ, 2013, p. 123). 

Diante do exposto, entende-se que, para o cenário brasileiro – enraizado no estadunidense – sionismo cristão e dispensacionalismo são conceitos inseparáveis. Se nos EUA o dispensacionalismo teve força ao ser associado à crença de um povo prometido, bem próximo dos valores do Destino Manifesto, no Brasil sua tração se origina nas visões proféticas e apocalípticas adotadas pelas igrejas protestantes. A hermenêutica literal do dispensacionalismo fornece aos crentes e intérpretes um framework rígido, em que as respostas já estão dadas e possuem tanta simbologia subjetiva. Essa característica estimula que o apoio ao Estado de Israel se dê por razões puramente religiosas, sem levar em consideração outros fatores implicados no Oriente Médio.

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In: Miguel Filizola PizaSionismo cristão e dispensacionalismo: como estes fenômenos norteiam as relações entre grupos evangélicos, o governo de Jair Bolsonaro e política externa brasileira (2022)
Fonte: https://bdta.abcd.usp.br/directbitstream/7d8de9fb-aa21-4b10-b096-0222ae4c0dd0/TCC%20-%20Miguel%20Filizola%20Piz...

Árabes, Israel e os prejuízos do dispensacionalismo cristão

As ramificações do pensamento dispensacionalista e a ausência de paz no Oriente Médio


O dispensacionalismo é um sistema teológico bastante criticado pelos que não o aceitam. Não obstante muitos evangélicos, especialmente nos Estados Unidos, mas também no Brasil e em outras partes do mundo, ou são dispensacionalistas ou são influenciados por suas vertentes, mesmo que não conheçam a palavra ou o seu conceito.

Este artigo não é escrito com a intenção de analisar se o dispensacionalismo é ou não resultado de uma hermenêutica correta, nem defender a perspectiva no outro extremo do espectro teológico, a saber, a Teologia da Aliança. Nem espero que os dispensacionalistas mudem suas convicções. Afinal, trata-se de uma escola de pensamento, uma entre muitas. O que pretendo apresentar são os efeitos da teologia dispensacional e seus subprodutos: (a) na política do mundo e do Oriente Médio, (b) na vida da Igreja no Oriente Médio e (c) no pensamento e prática missiológica da Igreja Ocidental, de modo que os que têm um ponto de vista influenciado pelo dispensacionalismo possam minimamente considerar se não há uma maneira bíblica de evitar a dor que, direta ou indiretamente, está sendo causada a milhões de pessoas no Oriente Médio e nos seus arredores.

Minha esperança também é a de que este artigo influencie, mesmo que de forma modesta, a Igreja Brasileira e seu esforço missionário no mundo muçulmano em geral, e no Oriente Médio em particular.

Todavia, é necessário apresentar uma ressalva importante antes de desenvolver o tema. Veremos, na sequência, alguns fatos lamentáveis que aconteceram nas últimas décadas por conta da iniciativa de evangélicos com influências dispensacionalistas, especialmente nos Estados Unidos. É de suma importância levar em conta que a popularização e ampla disseminação do dispensacionalismo se apoia em um forte sistema, que envolve um grande número de pessoas e da mídia. Seu avanço tomou proporções gigantescas. Tornou-se quase impossível falar a respeito de uma única versão de dispensacionalismo. Como consequência, nem todos os dispensacionalistas clássicos estão necessariamente de acordo com tudo que se desenvolveu ao redor desse sistema teológico, nem com tudo que tem sido dito e feito como resultado de convicções escatológicas encontradas em ambientes teológicos influenciados por essa abordagem.

Outrossim, é importante ressaltar que nem sempre é clara a distinção feita entre os diferentes conceitos (dispensacionalismo pré-milenista e pré-tribulacionista, restauracionismo, sionismo cristão, dispensacionalismo radical e até mesmo o cristianismo evangélico). Nas próximas linhas os termos podem ser usados de modo intercambiável.

Também vale dizer, já de início, que eu estou totalmente de acordo com o direito de o povo judeu ter o seu lar na Palestina, apesar de não concordar com a forma que o moderno Estado de Israel tem atuado em relação ao povo árabe palestino, que habita há mais de mil anos na “Terra Prometida”. Finalmente, é importante esclarecer que as opiniões expressadas neste artigo são de minha responsabilidade, e não representam, necessariamente, a opinião das organizações cristãs com as quais estou envolvido.

DEFININDO O DISPENSACIONALISMO
As principais características do que veio a ser definido como dispensacionalismo clássico, ou normativo1 (que inclui as posições pré-milenista e pré-tribulacionista2) desenvolveram-se no decorrer de anos, e ainda que haja discordâncias, o conceito pode ser sumarizado da seguinte maneira:

1. Deus em sua soberania decidiu que a revelação e a execução de seu plano para a humanidade aconteceriam através de diferentes dispensações, introduzidas por Deus mesmo, em diferentes épocas. Uma dispensação pode ser concisamente definida como “uma economia3 discernível na execução do plano de Deus”4 que pode “prevalecer em uma época especial”, mas “não necessariamente em outra”5. Os dispensacionalistas nem sempre estão de acordo sobre quantas são as dispensações, mas a maioria parece crer em sete.6 7 Eles entendem que o alvo da história é “o estabelecimento do reino milenar na terra […]”.8

2. Os judeus continuam sendo entendidos como o povo escolhido de Deus que irá desfrutar na terra as promessas ainda não cumpridas do Antigo Testamento9. Por conseguinte, a primeira das três condições sine qua non (ou a primeira das “pedras angulares”) do dispensacionalismo é a descontinuidade clara entre Israel e a Igreja. A Igreja está limitada apenas à presente era. Os judeus, enquanto nação, não pertencem ao mesmo grupo em que está a igreja, ou os gentios. Os que pertencem à igreja são diferentes dos santos que morreram antes de Cristo ou dos de uma dispensação futura. A Igreja do Novo Testamento não é o “Israel nacional”. Logo, não é o cumprimento das promessas dadas a esta nação. Deus tem seu povo redimido no decorrer das eras. Entretanto, o dispensacionalismo nega fortemente que isto constitui um mesmo povo. Eles creem nos “povos” de Deus.10 Para os dispensacionalistas, “a doutrina dos dois povos… deve ser sustentada eternamente […]”.11 Conforme Chafer, um grande defensor do dispensacionalismo,

É tão ilógico e enganoso argumentar que o judaísmo e o cristianismo irão se fundir como discutir que o céu e a terra deixarão de existir como esferas separadas. O dispensacionalismo tem sua base e é entendido na distinção entre judaísmo e cristianismo.12

O dispensacionalista crê que através das eras Deus está executando dois propósitos distintos: um relacionado à terra com pessoas terrenas e pautados por objetivos terrenos, que é o judaísmo, enquanto o outro está relacionado ao céu com pessoas celestiais e está envolvido com objetivos celestiais, que é o cristianismo […].13

3. Quando a atual dispensação (conhecida como Dispensação da Graça ou Era da Igreja) acabar, o “arrebatamento”14 irá acontecer. Jesus chamará os crentes, o que incluirá os santos ressuscitados de dispensações passadas e os vivos da dispensação presente, para o encontro com ele nos ares15. Eles adquirirão um corpo celestial e viverão no céu com Jesus.

4. O arrebatamento marcará o início da Grande Tribulação, um período de sete anos no qual o anticristo se manifestará e “conseguirá estabelecer-se firmemente na Palestina como um líder religioso e politico”.16 Durante esse tempo o terceiro templo será reconstruído em Jerusalém e o povo judeu mais uma vez viverá de acordo com a Lei Mosaica17.

5. Ao final dos sete anos da tribulação haverá a grande batalha do Armagedom, quando as nações se reunirão para combater Israel.

6. Nesse momento Jesus voltará para defender Israel, derrotar o anticristo e amarrar Satanás por mil anos.

7. É aí então que a última dispensação, o Milênio, terá lugar:

a) Será um período que durará literalmente mil anos e Jesus reinará sobre toda a terra18. Seu trono será em Jerusalém.

b) Imediatamente antes do início deste período os judeus de todos os cantos do mundo serão regenerados e restaurados, e retornarão à terra de Israel 19 20. Judeus e gentios serão “julgados para assegurar que apenas os que creem entrarão no reino.”21

c) De acordo com alguns dispensacionalistas, durante esse tempo os que foram arrebatados antes do início da Grande Tribulação terão retornado com Jesus em corpos glorificados e reinarão com ele. Assim, de acordo com essa perspectiva dispensacionalista, durante o Milênio haverá na terra pessoas com corpos celestiais e aqueles (judeus e gentios que sobreviveram à Grande Tribulação) com corpos terrestres 22 23. Outros, como Dwight Pentecost, são da opinião que durante o Milênio apenas os sobreviventes da Grande Tribulação estarão na terra, com seus corpos físicos, e viverão sob o senhorio de Jesus.24

d) Devido ao fato que os dispensacionalistas enfatizam grandemente a necessidade de utilizar uma interpretação da Bíblia que seja “literal, plena, normal ou histórico-gramatical”25 26 e para que a “igreja não roube as bênçãos de Israel”27, será durante o Milênio que as promessas parcialmente cumpridas ou ainda não cumpridas do Antigo Testamento (especialmente aquelas concernentes à Aliança Davídica, a posse incondicional e permanente da terra e suas fronteiras geográficas) serão completamente cumpridas e a nação de Israel finalmente terá sua plena extensão,28 que será “[…] do rio do Egito ao grande rio, o rio Eufrates […].”29 30. Outra promessa a ser cumprida durante o Milênio é Jeremias 31.31-34, que menciona que a lei de Deus será gravada nos corações dos judeus.

e) No final do Milênio Satanás será liberto por pouco tempo e haverá um tempo de rebelião31. Entretanto, Jesus triunfará.

f) Quando o Milênio acabar haverá um novo céu e uma nova terra. Não haverá necessidade de um templo, porque Deus mesmo será o santuário.

Se formos resumir esse sumário em poucas palavras provavelmente não haverá melhor maneira que citar Hal Lindsay, um dos mais importantes popularizadores do dispensacionalismo do século 20:
“Crucial para uma leitura dispensacionalista da profecia bíblica é a convicção que o período da tribulação é iminente, juntamente com o arrebatamento secreto da igreja e a reconstrução do templo judeu no lugar do, ou ao lado do Domo da Rocha. Isto assinalará o retorno do Senhor para restaurar o reino a Israel, centrado em Jerusalém. Esse evento pivotal também é entendido como o gatilho para o início da Guerra do Armagedom, na qual grande parte da população do mundo, juntamente com muitos judeus, irão sofrer e morrer”.32

Os evangélicos e o Estado de Israel


Desde o recrudescimento dos ataques do Estado de Israel a Gaza, no dia 7 de outubro, sob a justificativa de retaliação à ação de resistência armada contra a ocupação, chama a atenção, inclusive no Brasil, a defesa do Estado sionista por amplos setores evangélicos. Por que segmentos cristãos que, do ponto de vista religioso, em tese, compartilham de uma visão mais próxima do islamismo (o Islã, ao contrário do judaísmo, reconhece e reverencia a figura de Jesus Cristo como profeta), se alinham de forma tão incondicional ao Estado israelense?

Trata-se de uma história ao mesmo tempo antiga e recente. Uma construção ideológica de séculos que ganhou força e uma nova roupagem com o fortalecimento da extrema direita nos últimos anos. E que de “espiritual”, como veremos, não tem absolutamente nada.

Cristianismo e sionismo
A identificação entre protestantismo e o que viria a ser o sionismo, ou seja, a ideia de que o povo judeu deveria retornar à Palestina histórica, remonta ainda aos primeiros anos da Reforma Protestante. Um clérigo inglês do século XVI, Thomas Brightman, afirmava que os judeus deveriam “retornar a Jerusalém outra vez”, já que “os profetas de todos os cantos confirmam e falam sobre isso”.

Por trás dessa ideia estava uma leitura peculiar do evangelho, especificamente da escatologia cristã, que previa o retorno dos judeus à terra prometida, a reconstrução do Templo de Salomão (destruído pelos babilônicos e romanos), preparando a segunda vinda de Cristo e finalmente a conversão dos judeus ao cristianismo. Essa doutrina seria chamada mais tarde de “dispensacionalismo”. Trata-se de uma visão que pressupõe o abandono da fé judaica para o cumprimento das profecias, o que muitos judeus, não sem razão, tacham de antissemitismo.

Essa ideia se tornou uma força prática no século XIX com o movimento Templo Alemão Pietista, originado do luteranismo. Dois clérigos alemães, Christoph Hoffman e Georg David Hardegg, fundaram a Sociedade de Templer em 1861, com a ideia de colonizar a Palestina por meio de assentamentos. Com o apoio da Corte na Prússia e de teólogos anglicanos da Grã-Bretanha, instalaram o primeiro assentamento em Haifa ainda em 1866, espalhando-se pela região. Bem antes, portanto, de Theodor Herzl lançar o sionismo como corrente política e ideológica no congresso de 1897.

Os “templadores”, que acabariam sendo expulsos após a fundação do Estado de Israel, em 1948, tiveram seus métodos de instalação de assentamentos de povoação imitados pelas primeiras levas de sionistas, entre o final do século XIX e o começo do século XX, com forte apoio britânico. Para a Inglaterra, era estratégico fortalecer sua posição na região, ainda sob domínio Otomano.

Evidentemente, os primeiros sionistas não eram motivados por essa doutrina oriunda do protestantismo. Aliás, se o sionismo no século XIX, enquanto ideologia que advogava a construção de uma nação judaica, não era uma força majoritária entre os judeus – rivalizando com os que defendiam a completa integração dos judeus a seus respectivos países (ainda que mantendo certas tradições e a religiosidade) –, mesmo entre os sionistas, o sionismo religioso que defendia a volta a Jerusalém, tampouco predominava. Tanto que se cogitavam regiões como Bariloche, na Argentina, ou Uganda, na África.

A escolha pela Palestina e a construção do mito do retorno dos judeus à terra que teria sido prometida a eles teve como objetivo cerrar fileiras com Estados e atrair a simpatia e a defesa de amplos segmentos religiosos cristãos mundo afora. Para isso, tornou-se essencial a consolidação de outro mito: o de que os atuais judeus descendem diretamente do povo hebreu do Velho Testamento (ou da Torá).

Um mito funcional
Há muitos estudos e debates sobre a origem dos povos que se autointitulam judeus, principalmente após a publicação da obra de Shlomo Sand, A invenção do povo judeu (2008). O autor retoma estudos de Arthur Koestler que, em 1976, publicou o livro A décima terceira tribo, no qual afirma que os judeus são, na verdade, descendentes dos tzares, do Cáucaso, convertidos no século VIII. Essa versão é aceita por muitos pesquisadores sérios.

O historiador israelense Illan Pappé relativiza esse debate afirmando que “os povos têm o direito de se inventarem, como fizeram tantos movimentos nacionais em seu momento de concepção, mas alertando que “o problema se agrava quando a narrativa de gênese engendra projetos políticos como genocídio, limpeza étnica e opressão”.

E foi justamente isso o que aconteceu. Os diversos segmentos do sionismo, do religioso ao de “esquerda”, confluíram a essa interpretação bíblica de que seriam os judeus (os atuais) os legítimos descendentes do antigo povo hebreu. Essa autoridade histórica, moral e ancestral, garantiria a justificativa para ocupar a Palestina e expulsar os “invasores”, no caso, os palestinos. Ainda que ironicamente não sejam poucos os que afirmam que os atuais palestinos, os povos originários daquela terra, carreguem mais DNA dos antigos hebreus do que os atuais judeus.

Contudo, para muitos sionistas, pouco importa se essa justificativa era falsa ou não. Até porque ela foi empregada por sionistas “socialistas”, ateus etc. O importante era colonizar a Palestina, expulsar quem lá vivia e instaurar um Estado judeu. E até hoje esse mito é empregado para a crescente ocupação de Gaza e Cisjordânia e os massacres perpetrados pelo Estado sionista há sete décadas. E principalmente para justificar a manutenção de Israel como um enclave militar, se antes da Inglaterra, agora dos EUA, numa região estratégica.

Israel e a extrema direita
Voltemos aos atuais evangélicos. O que essa trajetória tortuosa tem a ver com o pastor da esquina de um bairro de periferia que convoca seus fieis a uma “vigília por Israel” no exato momento em que o país lança toneladas de mísseis nas cabeças de crianças e bebês em Gaza?

O protestantismo teve um crescimento significativo no Brasi no século passado, principalmente por meio de movimentos pentecostais, mas ainda num contexto de um Brasil majoritariamente católico. A proliferação das igrejas neopentecostais, num quadro de crise, abissal desigualdade social e as promessas oferecidas pela Teologia da Prosperidade, vem mudando o placar religioso no país e, em breve, os evangélicos devem ultrapassar os católicos.

Sempre houve uma “natural” associação entre protestantismo e os judeus, mas essencialmente simbólica e religiosa. Jesus é o “Leão da Tribo da Judá”, a “esperança de Israel”. Mas era praticamente consenso que a “Israel” agora não se referia mais aos antigos judeus, mas à totalidade dos fiéis. A “lei” foi substituída pelo sacrifício de Jesus no calvário. Alguns segmentos inclusive resvalam no antissemitismo responsabilizando os judeus por “terem matado Jesus”.

Percebe-se, porém, uma profunda mudança nos últimos anos. As referências a Israel vão deixando de ser simbólicas e tornam-se quase literais. O milenarismo, ainda que não seja estudado em praticamente nenhuma igreja, é assimilado de forma acrítica. As igrejas vão se “judaizando”, e os próprios crentes se identificam como parte da diáspora judaica. Tornou-se frequente o uso de bandeiras de Israel, pastores ministrando cultos com quipás e, maior expressão desse processo, o enorme Tempo de Salomão construído pela Igreja Universal na capital paulista.

Trata-se de um movimento sincronizado com a radicalização do público evangélico à extrema direita e, mais recentemente, com o bolsonarismo. Essa é a razão pela qual muitos estranham a atual hipervalorização do Antigo Testamento. Lá, temos uma divindade guerreira, que destrói seus inimigos de forma impiedosa, não aceita o culto a qualquer outra divindade e se impõe à força. Uma narrativa mais fácil de ser absorvida e moldada a um projeto político de ditadura e de perseguição a opositores do que seria, por exemplo, uma divindade que pregasse amor ao próximo, protegesse prostituas e dissesse que “é mais fácil um camelo passar pelo buraco de uma agulha que um rico entrar no reino dos céus”.

Nesse sentido, assim como Bolsonaro e Trump seriam homens enviados por Deus para proteger os valores morais tradicionais (ou a tão propalada cultura judaico-cristã), ameaçados pelo avanço dos direitos de mulheres, negros e LGBTI+, o Estado de Israel seria o Estado “ungido” para barrar os “selvagens islâmicos” e o “terrorismo”. Uma visão não só distorcida, como profundamente racista e xenófoba.

Junte-se a isso interesses que passam ao longe de ideologia. Há alguns anos, prolifera-se uma verdadeira indústria do turismo a Jerusalém, comando por pastores midiáticos e empresas voltadas ao público religioso. Ironicamente, os mais pomposos tratam de dar uma esticadinha na luxuosa Dubai, que tem tanto a ver com a bíblia quanto Osasco, aqui em São Paulo.

Massacre não tem nada a ver com religião
É comum pastores e igrejas apresentarem a questão como uma espécie de “batalha espiritual”. Porém o que ocorre de fato é a ação de um Estado, criado de forma artificial pelo império britânico e apoiado hoje pelos EUA, que o tem como seu enclave militar. Os palestinos, assim, são um “problema” a ser eliminado. O discurso religioso é usado de forma cínica para esse objetivo.

Muitos operários são evangélicos, e respeitamos suas crenças. No entanto, a luta contra o genocídio palestino não é uma luta contra a religião, mas sim contra um projeto de colonização, limpeza étnica e genocídio a serviço do imperialismo. Tanto que existem evangélicos que se posicionam contra isso, a exemplo de inúmeros grupos judeus antissionistas. Convidamos as companheiras e os companheiros evangélicos a se unirem a nós nesta luta.

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Diego Cruz