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Tecnologia pode criar elite de super-humanos e massa de 'inúteis'


"A desigualdade existe há no mínimo 30 mil anos. Os caçadores-coletores eram mais igualitários do que as sociedades subsequentes. Eles tinham poucas propriedades, e propriedade é um pré-requisito para desigualdade de longo prazo. Mas até eles tinham hierarquias. 

Nos séculos 19 e 20, porém, algo mudou. Igualdade tornou-se um valor dominante na cultura humana em quase todo o mundo. Por quê?

Foi em parte devido à ascensão de novas ideologias como o humanismo, o liberalismo e o socialismo.

Mas também se tratava de mudanças tecnológicas e econômicas - que estavam ligadas a essas novas ideologias, claro.

De repente, a elite começou a precisar de um grande número de pessoas saudáveis e educadas para servir como soldados nos exércitos e como trabalhadores nas fábricas.

Os governos não forneciam educação e vacinação porque eram bondosos. Eles precisavam que as massas fossem úteis. Mas agora isso está mudando novamente.

Os melhores exércitos da atualidade demandam poucos soldados, mas altamente treinados e com equipamentos de alta tecnologia.

As fábricas também estão cada vez mais automatizadas.

Esse é um dos motivos pelos quais poderemos - num futuro não tão distante - ver a criação das sociedades mais desiguais que já existiram na história humana. E há outros motivos para temer esse futuro.

Com rápidos avanços em biotecnologia e bioengenharia, nós podemos chegar a um ponto em que, pela primeira vez na história, desigualdade econômica se torne desigualdade biológica.

Até agora, humanos tinham controle sobre o mundo ao seu redor. Eles podiam controlar rios, florestas, animais e plantas. Mas eles tinham muito pouco controle do mundo dentro deles.

Eles tinham capacidade limitada de manipular seus próprios corpos, cérebros e mentes. Eles não podiam evitar a morte. Talvez esse não seja sempre o caso.

Há duas maneiras principais de aprimorar humanos: ou você altera algo em sua estrutura biológica por meio de alteração de seu DNA, ou - o jeito mais radical - você combina partes orgânicas e inorgânicas, talvez conectando diretamente cérebros e computadores.

Os ricos - ao adquirir tais melhorias biológicas - poderiam se tornar literalmente melhores que os demais: mais inteligentes, saudáveis e com vidas mais longas.

Nesse ponto, será fácil que essa classe "aprimorada" tenha poder. Pense desta forma: no passado, a nobreza tentou convencer as massas que eles eram superiores a todos os outros e que deveriam deter o poder. No futuro que estou descrevendo, eles realmente serão superiores às massas.

E como eles serão melhores que nós, fará mais sentido ceder a eles o poder e a prerrogativa de tomada de decisões.

Podemos também constatar que a ascensão da inteligência artificial - e não apenas automação - pode significar que grandes contingentes de pessoas, em todos os tipos de emprego, simplesmente perderão sua utilidade econômica.

Os dois processos casados - aprimoramento humano e ascensão de inteligência artificial - podem resultar na separação da humanidade em uma pequena classe de super-humanos e uma gigantesca subclasse de pessoas "inúteis".

Eis um exemplo concreto: pense no mercado de transporte.

Há centenas de motoristas de caminhões, táxis e ônibus no Reino Unido. Cada um deles comanda uma pequena parte do mercado de transporte, e todos ganham poder político em função disso. Eles podem se sindicalizar e, se o governo faz algo que não gostam, eles podem fazer uma greve e travar todo o sistema.

Agora, avance 30 anos no tempo. Todos os veículos conduzem a si próprios e uma corporação controla o algoritmo que comanda todo o mercado de transporte.

Todo o poder econômico e político previamente compartilhado por milhares agora está nas mãos de uma única corporação.

Depois que você perde sua importância econômica, o Estado perde ao menos um pouco do incentivo de investir em saúde, educação e bem-estar.

Seu futuro dependeria da boa vontade de uma pequena elite.

Talvez haja boa vontade mas, em tempo de de crise - como uma catástrofe climática -, seria muito fácil te descartar.

Tecnologia não é determinista. Ainda podemos fazer algo para lidar com tudo isso. Mas acho que deveríamos estar cientes de que descrevo um futuro possível. Se não gostamos dessa possibilidade, precisamos agir antes que seja tarde.

Existe mais um passo possível no caminho rumo à desigualdade previamente inimaginável.

A curto prazo, a autoridade pode se centrar em uma pequena elite que detenha e controle os algoritmos e os dados que os alimentam. A longo prazo, porém, a autoridade poderá se transferir completamente dos humanos aos algoritmos.

Quando uma inteligência artificial for mais inteligente que nós, toda a humanidade poderá se tornar inútil.

O que aconteceria depois disso? Não temos nenhuma ideia - literalmente não podemos imaginar. Como poderíamos? Estamos falando de uma inteligência muito maior do que a que a humanidade possui."

Yuval Noah Harari é professor de História na Universidade Hebraica de Jerusalém, ele estuda o passado para olhar para o futuro. Autor de dois best-sellers, Sapiens: Uma breve história da humanidade (editora L&PM) e Homo Deus: Uma breve história do amanhã (editora Companhia das Letras), Harari foi entrevistado pelo programa The Inquiry, da BBC, sobre a possibilidade de a tecnologia alterar o mundo e a espécie humana.

Sapiens: Breve História da humanidade (II) A Árvore do Conhecimento


Neste segundo remix da obra de Harari (2015) (H) sobre Sapiens (Breve história da humanidade), vamos estudar o segundo capítulo da primeira parte (A árvore do conhecimento). Há 150 mil anos, Sapiens ocupava a África oriental, mas passou a colonizar o planeta e exterminar outras espécies humanas há 70 mil anos; nos milênios pelo meio, mesmo que parecesse conosco (os cérebros eram grandes como os nossos), não desfrutavam de vantagens marcantes, não tinham ferramentas propriamente superiores, nem outros feitos notáveis.

I. CONVIVÊNCIAS
Consta que no primeiro encontro entre Sapiens e Neandertals, estes venceram. Há 100 mil anos, alguns grupos Sapiens migraram para o norte, rumo ao Levante, que era território dos Neandertals, mas não se firmaram, talvez devido a nativos agressivos, clima inclemente e parasitas não familiares locais. Sapiens eventualmente recuou. Este desempenho decepcionante levou pesquisadores a especular que a estrutura interna dos cérebros desses Sapiens era provavelmente diferente da nossa; pareciam-se conosco, mas as habilidades cognitivas – aprender, lembrar, comunicar-se – eram limitadas. “Ensinar a tais Sapiens antigos inglês, persuadi-lo da verdade do dogma cristão ou conseguir que entendesse a teoria da evolução seria provavelmente inciativa sem viabilidade” (H:20). Vale o reverso também: difícil para nós entender sua linguagem e entendimento. Mas, desde 70 mil anos, Sapiens passou a fazer coisas bem especiais. Deixou a África pela segunda vez, e agora varreram os Neandertals e outras espécies da face da terra. Em período curto, alcançou a Europa e Ásia oriental; há 45 mil anos, chegaram à Austrália (continente até então intocado por humanos) – este período (70 mil a 30 mil anos atrás) testemunhou a invenção de barcos, lâmpadas a óleo, arcos e flechas, além de agulhas (para fazer roupas quentes). Os primeiros objetos podem chamados arte dessa era; aparecem os primeiros vestígios de religião, comércio e estratificação social. A maioria dos pesquisadores crê que tais feitos sem precedentes foram produto de revolução nas habilidades cognitivas. Mantém que gente que levou Neandertals à extinção, colonizou a Austrália e esculpiu o homem-leão (da caverna em Stadel, Alemanha, cerca de 32 mil anos atrás) eram tão inteligentes quanto nós, criativos e sensíveis – poderíamos nos comunicar com eles plenamente, também em questões de cognição sofisticada. O aparecimento de novos modos de pensar e comunicar-se, entre 70 mil e 30 mil anos atrás, constitui a Revolução Cognitiva (H:21). O que causou isso é incerto (ainda) – a teoria mais comum sugeres que mutações genéticas acidentais mudaram a formatação interna do cérebro, capacitando pensar de modos sem precedentes e comunicar-se usando novo tipo de linguagem – podemos chamar de mutação da Árvore do Conhecimento. Por que teria ocorrido no DNA do Sapiens, não no Neandertal? Teria sido acaso puro, parece. Será mais importante trabalhar as consequências desta mutação da Árvore do Conhecimento do que suas causas. O que foi tão especial nesta linguagem que facultou conquistar o mundo?

Não foi a primeira linguagem. Todo animal tem um tipo de linguagem, até mesmo insetos: comunicam-se de modo sofisticado, informa-se entre si sobre alimento ao redor; nem foi a primeira linguagem vocal; muitos animais, também espécies de macacos, possuem isso; por exemplo, macacos verdes usam chamados de vários tipos para se comunicarem; zoólogos identificaram um chamado que significa “cuidado, águia!”; chamado um pouco diferente diz “cuidado, um leão!”. Quando pesquisadores tocaram uma gravação do primeiro chamado para um grupo de macacos, eles pararam o que estavam fazendo, olhando para cima com medo. Ouvindo a segunda gravação, logo subiram em árvores. Sapiens faz muito mais que isso; no entanto, baleias e elefantes possuem habilidades impressionantes; um papagaio imita sons notavelmente. O que seria especial em nossa linguagem? Resposta comum é que nossa linguagem é flexível – podemos conectar número limitado de sons e sinais para produzir número infinito de sentenças, cada uma com significado próprio. Podemos, então, ingerir, estocar e comunicar montante prodigioso de informação sobre o mundo à volta. Humanos podem criar uma narrativa sobre os leões, indicando local exato, observações feitas, expectativas etc. Com esta informação, os membros do bando podem reunir-se e discutir como abordar o problema, talvez caçar o leão.

Uma segunda teoria concorda que nossa linguagem única evoluiu como meio de partilhar informação sobre o mundo. Mas a informação mais importante que se transmitia era sobre humanos, não leões. A linguagem evoluiu como modo de fofocar, por sermos animais sociais, cooperativos e reprodutivos. Não basta saber o que há por aí, pois é bem mais importante conversar sobre si mesmos, suas desavenças e amizades, como se dorme, como se cria criança, quem engana a quem... O montante de informação que precisamos obter e estocar para dar conta das relações sempre mutantes de algumas dúzias de indivíduos já é enorme (Num bando de 50 indivíduos, há 1.225 relações um-a-um e infinitas combinações sociais mais complexas) (H:23). Todos os macacos mostram interesse afiado em tal informação social, mas não fofocam propriamente, embora seja essencial para a convivência em bandos maiores (Dunbar, 1998). A teoria da fofoca parece gozação, mas muita pesquisa a suporta. Até hoje, grande parte da comunicação humana, também na forma de emails, chamadas telefônicas e colunas de jornais, é fofoca. É tão natural que parece ter a linguagem evoluído para este propósito.

Harari brinca então com cientistas que, num seminário mortalmente sério, quando se encontram para comer ou pausar, não falam sobre quarks, mas provavelmente sobre o colega traído pela esposa ou sobre a briga com o diretor do departamento. Em geral fofoca é sobre malfeitos. Rumores são especialidade do quarto poder, dos jornalistas... Provavelmente ambas as teorias – da fofoca e da informação sobre o leão por perto – têm seu lugar. No entanto, a marca única da linguagem não é a habilidade de transmitir informação sobre homens e leões; mas de transmitir informação sobre coisas que não existem. Só humanos falam sem parar sobre o que nunca viram, tocaram ou cheiraram. Lendas, mitos, deuses e religiões apareceram primeiro com a Revolução Cognitiva – por exemplo, dizer que o leão é o espírito vigilante da tribo. Não será viável convencer a um macaco que nos dê sua banana, com a promessa de que vai ter muitas outras após a morte. E isto se fez coletivamente – em mitos comuns como na estória da criação bíblica, nos mitos nacionalistas. Isto deu a habilidade sem precedentes de cooperar flexivelmente em sociedades maiores – podemos cooperar de modos bem mais flexíveis.

II. LENDA DA PEUGEOT
Os primos chimpanzés em geral vivem em grupos pequenos (algumas dúzias) – fazem amizades, caçam e lutam juntos; sua estrutura social tende a ser hierárquica; o membro dominante, quase sempre um macho, chama-se “macho alfa” e os outros machos e fêmeas mostram sua submissão curvando-se para ele, enquanto fazem grunhidos, não muito diferente dos humanos. O alfa procura manter harmonia social na tropa; quando dois brigam, intervém; de modo menos benevolente, pode monopolizar comida e impedir que indivíduos inferiores copulem com as fêmeas. Quando dois contestam o alfa, foram coalizões extensivas de asseclas, machos e fêmeas, do grupo; laços entre membros da coalizão se baseiam em contato diário íntimo – abraço, toque, beijo, coçar e favores mútuos. Assim como políticos humanos em campanhas eleitorais andam à volta apertando mãos e beijando bebês, assim aspirantes ao poder gastam tempo abraçando, dando palmadinhas e beijando bebês. O alfa em geral ganha a posição não por ser mais forte fisicamente, mas porque lidera coalizão maior e mais estável. Esta é estratégica não para disputas, mas também para atividades cotidianas – os membros passam mais tempo juntos, partilham comida e se ajudam em apertos. Há limites claros de tamanho dos grupos que podem ser formados e mantidos – todos precisam conhecer-se intimamente; dois chimpanzés que nunca se haviam encontrado, lutado ou se coçado juntos, não sabem se podem confiar-se, se vale a pena ajudar-se, e quem está acima. Em condições naturais, uma tropa típica tem 25 indivíduos; ao aumentar, a ordem social se desestabiliza, levando a eventuais rupturas e formação de nova tropa. Raramente houve casos de grupos com mais de 100 em estudos zoológicos; grupos separados quase não cooperam, tendem a competir por território e comida. Pesquisadores documentaram guerra prolongada entre grupos e mesmo um caso de atividade de genocídio na qual uma tropa sistematicamente matou a maioria dos membros do outro bando (Waal, 2000; 2005. Wilson; Wrangham, 2003. Symington, 1990:49. Chapman; Chapman, 2000:26).

Possivelmente, tais padrões comportamentais dominaram as vidas sociais de humanos primitivos, incluindo Sapiens arcaico. Como macacos, humanos têm instintos sociais que possibilitavam a nossos ancestrais a formar amizades e hierarquias e a caçar ou lugar juntos. Mas isto valia para grupos pequenos íntimos; com maiores, a ordem social se esfacela e o bando cinde. Mesmo que um vale fértil pudesse alimentar 500 Sapiens, não havia como viverem juntos – como se estabeleceria liderança, quem iria caçar e onde, e quem se acasala com quem? Na esteira da Revolução Cognitiva, fofoca ajudava o Sapiens a formar bandos maiores e mais estáveis; mas mesmo isto tem limite. Pesquisa sociológica mostrou que o tamanho natural máximo de um grupo unido por fofoca está em 150. A maioria não pode conhecer intimamente, nem fofocar efetivamente com mais. Mesmo hoje, limiar crítico nas organizações humanas está em torno desse número mágico. Abaixo disso, comunidades, empresas, redes sociais e unidades militares podem manter-se com base maior em relações íntimas e fofoca. Não se precisa de rankings formais, títulos e leis para manter a ordem (Dunbar, 1998. Aiello; Dunbar, 1993:189. McCarty et alii, 2001:32. Hill; Dunbar, 2003:65).

Então, como humanos chegaram a formar cidades enormes? O segredo esteve provavelmente no aparecimento da ficção. Estranhos em grande número pode cooperar acreditando em mitos comuns. Igrejas se baseiam em mitos religiosos comuns; dois católicos que nunca se encontraram podem lutar juntos ou construir hospital, porque ambos têm a mesma crença. Nada disso existe fora das estórias inventadas e contadas. Não há deuses no universo, nem nações, nem dinheiro, nem direitos humanos, nem leis, nem justiça, fora da imaginação comum humana. Primitivos mantinham a ordem crendo em espíritos e fantasmas, e dançando na noite de lua cheia em torno do fogo. Mas não percebemos que ainda funcionamos assim. Veja-se exemplo das empresas – empresários e advogados são, de fato, feiticeiros incisivos – a diferença principal entre eles e xamãs tribais é que advogados modernos conta estórias bem mais estranhas. A lenda da Peugeot é boa referência. Um ícone que se assemelha ao leão-homem está nos carros, caminhões e motos em todo o mundo, em geral no capô. Peugeot começou como empresa familiar em Valentigney, a 320 km da Caverna Stadel – hoje emprega 200 mil pessoas no mundo, a maioria estranha entre si, mas cooperam tão efetivamente que em 2008 Peugeot produziu mais de 1.5 milhão de carros, com ingressos de $55 bilhões de euros. O cerne da empresa é sua marca imaginária, distinta das bases físicas e das pessoas envolvidas. Se um juiz decretasse falência, desapareceria a marca, mas os prédios e carros continuam. Advogados chamam a isso de “ficção legal” – existe como entidade legal. Está ligada a leis dos países onde opera; podem abrir contas bancarias e ter propriedade; paga impostos e pode ser processada, também em separado dos donos. Pertence ao gênero particular de ficções legais chamado “empresas de responsabilidade limitada” – a ideia por trás é uma das invenções mais engenhosas. Sapiens viveu milhões de anos sem isso. Durante a maior parte da história registrada, propriedade podia ser possuída por gente de carne e osso. Na França do século XIII, quem tinha um negócio, era ele mesmo o tocador, era o negócio. Se o produto fosse ruim, seria processado em pessoa. Se tomasse mil moedas de ouro emprestadas para montar seu negócio e este falisse, teria como pagar, vendendo a propriedade – sua casa, vaca, terra. Talvez viesse mesmo a vender seus filhos em servidão. Se não cobrisse a dívida, poderia ficar na cadeia ou ser escravizado pelos credores. Era responsável plenamente. Era mesmo difícil ser empresário. E por isso passou-se a imaginar empresas de responsabilidade limitada – legalmente independentes das pessoas que as organizam ou onde investem dinheiro ou as gerem.

Nos séculos recentes, tais empresas viraram atores principais da arena econômica e somos tão acostumados com elas que esquecemos ser imaginárias. Nos Estados Unidos, o termo técnico usado é “corporação”, que é irônico, pois o termo deriva de “corpus” (corpo em latim) – o que precisamente tais corporações não têm. Mesmo não tendo corpos reais, o sistema legal trata como pessoas legais, também o sistema legam francês desde 1896, quando Armand Peugeot, que havia herdado dos pais uma loja de metais que produzia molas, serras e bicicletas, decidiu entrar na produção de veículos. Foi uma companhia de responsabilidade limitada, com seu nome, mas era independente. Se um dos carros quebrasse, o comprador pode processar a Peugeot, mas não o Sr. Peugeot. Este morreu em 1915, mas não a empresa. Criou a empresa de modo similar a sacerdotes e feiticeiros ao criarem deuses e demônios, ou como padres franceses criam o corpo de Cristo na missa dominical. Contam-se estórias e as pessoas se convencem delas. Harari parodia a missa católica, um pouco inclementemente. No caso de Peugeot a estória crucial era o código legal, constitucional. Seguindo liturgia e ritos, e com devidas vestimentas e ornamentos, mais juramentos aqui e ali, surge empresa. Quando em 1896, Peugeot quis criar sua empresa, pagou a um advogado para vencer todos os rituais e procedimentos exigidos; milhões de franceses creram que a empresa existia mesmo.

Mas, contar boa estória não é fácil (H:30). Contar até é fácil, difícil é persuadir a crer em deuses, nações ou empresas. Isto, porém, dá ao Sapiens imenso poder, porque arrasta milhões de cooperadores. Não seria viável criar estados, igrejas ou sistemas legais, se falássemos apenas de coisas que existem de fato, como rios, árvores ou leões. As pessoas se engalfinharam em torno de estórias do arco da velha; em tais redes, ficções como Peugeot não só existem, como acumulam poder imenso. São “construtos sociais” ou “realidades imaginadas”, para a academia. Não é mentira – mentira é quando digo que um leão está perto do rio e não há nenhum leão aí. Nada de especial com mentiras – macacos mentem também. Um macaco verde foi visto dizendo “Cuidado! Um leão!”, quando não havia. O alarme atemorizou o companheiro que fugiu deixando a banana para o malandro. Ao contrário de mentira, realidade imaginada é algo em que todos creem, e persistindo isso, exerce força no mundo. O escultor da caverna Stadel pode ter sinceramente crido na existência do espírito guardião do leão-homem; alguns feiticeiros são charlatães, mas a maioria é sincera; a maioria dos milionários sinceramente creem na existência de dinheiro e empresas de responsabilidade limitada. “A maioria dos ativistas dos direitos humanos acreditam na existência dos direitos humanos. Ninguém mentia quando, em 2011, a ONU pediu que o governo líbio respeitasse direitos humanos dos cidadãos, mesmo que ONU, Líbia e direitos humanos sejam fingimentos de imaginações férteis. Desde a Revolução Cognitiva, Sapiens passou a viver em realidade dual. Num lado, a realidade objetiva dos rios, árvores e leões; noutro, a imaginada dos deuses, nações e empresas. Com o tempo a realidade imaginada se tornou tanto mais poderosa, a ponto de rios, árvores e leões dependerem das entidades imaginadas como Estados Unidos e Google.

Harari faz uma “gozação” bem humorada para desvelar que a realidade por trás da imaginada é feita de teias de poder invisível, mas não menos efetivo. Mas seria o caso lembrar que a Revolução Cognitiva tem como um de seus esteios o poder de abstração e modelagem da mente humana – a ciência também é “construto social”, em suas teorias que só existem na mente dos cientistas. Não há teoria andando por aí, morando lá, vestindo isso ou aquilo. Mas, com sua instrumentação chegamos à Lua – são extremamente efetivas, como religiões são. O abstrato é parte do concreto, não sendo talvez bem o caso falar de realidade dual – é a mesma realidade de fundo, mas abstraída de modos diferenciados. Não dá para viver no mundo físico dos físicos, nem eles podem; vivemos em realidades concretas bem diferentes. São duas realidades? Certamente, não, ainda que até hoje não tenhamos deslindado tais mistérios da mente.

III. ULTRAPASSANDO O GENOMA
Estando cooperação humana de larga escala fundada em mitos, o modo de cooperar pode ser alterado mudando os mitos – inventando outras estórias. Em circunstâncias adequadas, mitos podem mudar rapidamente. Em 1789, a população francesa mudou da noite para o dia de crer no mito do direito divino dos reis para crer no mito da soberania popular. Desde a Revolução Cognitiva, Sapiens é capaz de revisar sem comportamento rapidamente de acordo com as necessidades. Isto abriu uma avenida da evolução cultural, ultrapassando barreiras de tráfego da evolução genética e com isso avançou muitíssimo além de outras espécies na habilidade de cooperar. O comportamento de outros animais sociais é determinado em grande medida pelos genes. “DNA não é autocrata” (H:32). Comportamento animal é influenciado também por fatores ambientais e encrencas individuais. Contudo, em dado ambiente, animais da mesma espécie tenderão a comportar-se de modo similar. Mudanças significativas em comportamento social não podem ocorrer, em geral, sem mutações genéticas. Por exemplo, chimpanzés comuns possuem a tendência genética de viver em grupos hierárquicos puxados por um macho alfa. Bonobos são mais igualitários, em geral dominados por alianças femininas, mas não fazem assembleias e escrevem uma constituição. Para tamanha mudança, há que haver também mudança genética. Humanos arcaicos não aprontaram nenhuma revolução; mudanças no padrão social, a invenção de novas tecnologias e a colonização de habitats estranhos resultaram de mutações genéticas e pressões ambientais mais do que de iniciativas culturais.

Eis a razão da demora para isto florescer; dois milhões de anos atrás, houve mutações genéticas que eclodiram no aparecimento de nova espécie humana chamada Homo erectus – esta emergência foi acompanhada pelo desenvolvimento de nova tecnologia da pedra, agora reconhecida como traço definitório desta espécie. Sem novas mutações genéticas, sua tecnologia estagnou por quase dois milhões de anos! Ao contrário, desde a Revolução Cognitiva, Sapiens foi capaz de mudar seu comportamento rapidamente, transmitindo novos comportamentos a gerações futuras sem necessidade de mudança genética ou ambiental. Harari dá como exemplo o aparecimento de elites sem filhos, como sacerdotes católicos, budistas, burocracias chinesas de eunucos. Vai contra princípios fundamentais da seleção natural abandonar a procriação, via abstinência sexual. Isto só pode ser curtido sobre mitos poderosos e crenças. Harari dá a entender, nas entrelinhas, que é difícil entender tais comportamentos, mesmo mantidos por milênios e em culturas tão diferentes, mas talvez emerja aí certa dose excessiva de “crença” no método científico, onde fés não cabem. Mas humanos sempre curtiram fés como fundamentos de suas existências, com lados positivos e negativos, certamente. Tem razão em alegar o quanto parece estranho que alguém decida viver em celibato – mas não é enfermidade; é fé. Muitos dirão que fé é alienação, excrescência evolucionária, mas sendo tão comum em humanos, talvez seja o caso achar normal.

Constrói um exemplo: um residente em Berlim de 1900 e chegando aos 100 anos; passou a infância no Império dos Hohenzollern de Guilherme II; a idade adulta na República de Weimar, no Terceiro Reich Nazista e na comunista Alemanha oriental; morreu cidadã de uma Alemanha democrática e reunificada; fez parte de cinco sistemas sociopolíticos bem diversos, mas o DNA foi o mesmo. Eis a chave do sucesso do Sapiens – na luta corpo a corpo, o Neandertal teria batido o Sapiens. Mas em conflito com centenas, não. Neandertals podiam colher informação sobre leões á volta, mas não faziam disso narrativa, incluindo espíritos. Sem ficção, não há cooperação! Tinham cognição limitada, a julgar por seus restos arqueológicos em sites no centro europeu – ocasionalmente acharam conchas marinhas do Mediterrâneo e Atlântico – parece que tais conchas foram para o interior continental via comércio entre bandos de Sapiens. Sítios de Neandertals não têm vestígios de comércio, cada grupo manufaturava suas ferramentas e materiais locais (Taborin, 1993).  

Outro exemplo do Pacífico sul. Bandos de Sapiens que viviam na ilha de Nova Irlanda, ao norte da Nova Guiné, usavam vidro vulcânico chamado obsidiana para manufaturar ferramentas particularmente fortes e afiadas. Mas aí não há depósito de obsidiana; testes de laboratórios revelaram que a obsidiana usada foi trazida de depósitos na Nova Guiné, uma ilha a 402 km de distância (Summerhayes, 1998). Comércio foi atividade bem pragmática, sem base ficcional, mas é fato que nenhum outro animal, a não ser o Sapiens, se envolveu nisso com base em ficções. Comércio não existe sem confiança, e é bem difícil confiar em estranhos. A rede global de comércio de hoje baseia-se na confiança em tais entidades fictícias como dólar, Banco Central americano, marcas totêmicas de empresas. Quando dois estranhos se encontram em sociedade tribal e querem comerciar, muitas vezes apelam para confiança via deus comum, ancestral mítico ou totem animal. Se podiam comerciar bens, permutavam também informação, cirando rede mais densa de ampla de conhecimento. Técnicas de caça são outro argumento das diferenças. Neandertals costumavam caçar sozinhos ou em grupos pequenos; Sapiens, por sua vez, desenvolveu técnicas que repousavam em cooperação entre muitas dezenas de indivíduos e talvez mesmo entre bandos diferentes. Método bem eficaz era cercar um bando inteiro de animais, como cavalos selvagens, e então caçar à distância pequena, sendo possível matar em massa, conforme planejamento prévio. Arqueólogos descobriram sítios onde bandos inteiros foram mortos anualmente assim. Há mesmo sítios onde cercas e obstáculos foram erigidos para fazer arapucas artificiais. Havendo violência entre Neandertals e Sapiens, os primeiros não eram muito melhores que cavalos selvagens; mesmo que Sapiens perdesse o primeiro round, podiam se reprogramar em novos estratagemas na próxima.

Assim, cultura passou a força evolucionária, rivalizando com o DNA, cuja proporção é sempre objeto de muita querela científica. Isto poderia também dar outra luz sobre religiões, não como esquisitice aos olhos científicos, mas como tecnologias do espírito para dar sentido à vida, organizar razões de ser, morais, apegos e felicidades. Religiões são também armas de guerra, mas não menos ciência.

IV. REVOLUÇÃO COGNITIVA

Nova habilidade
Consequências mais amplas
Habilidade de transmitir quantidades mais amplas de informação sobre o mundo à volta do Homo sapiens Planejar e executar ações complexas, como evitar leões e caçar bisão
Habilidade de transmitir quantidades maiores de informação sobre relações sociais do SapiensGrupos maiores e mais coesivos chegando a 150 indivíduos
Habilidade de transmitir informação sobre coisas que não existem realmente, tais como espíritos tribais, nações, empresas de responsabilidade limitada e direitos humanosa) Cooperação entre grandes números de estranhos;
b) inovação rápida de comportamento social (H:37).

Surge parceria entre história e biologia (H:37). A diversidade imensa de realidades imaginadas inventadas pelo Sapiens e resultante pletora comportamental são peças centrais do que chamamos “culturas”. Tendo aparecido, nunca cessaram de mudar, desenvolver-se e alterações imparáveis é o que chamamos de “história”. É o ponto em que história se livra da biologia; até então, os feitos humanos pertenciam ao reino da biologia, ou à pré-história). Depois, narrativas históricas substituíram teorias biológicas como meios primordiais de explicar o desenvolvimento do Sapiens. Para entender o surgimento da Cristandade ou a Revolução Francesa, não basta compreender a interação de genes, hormônios e organismos; é mister tomar em conta a interação de ideias, imagens e fantasias também. Não significa que biologia sumiu, já que continuamos animais, sendo que habilidades físicas, emocionais e cognitivas são moldadas pelo DNA ainda. Nossas sociedades são constituídas dos mesmos blocos de construção dos Neandertals e chimpanzés, e quanto mais examinamos – sensações, emoções e laços familiares – tanto menos diferença achamos. Mas é erro olhar as diferenças ao nível do indivíduo ou família. Uma a um, ou dez a dez, somos “embaraçosamente” (Ib.) similares a chimpanzés. Diferenças significativas começam a aparecer quando ultrapassamos limiar de 150, chegando a mil ou dois mil, tornando-se estupefacientes. Reunindo milhares de chimpanzés, só vai dar confusão; mas Sapiens se reúnem aos milhões, bilhões. Juntos criam padrões como redes de comércio, celebrações e instituições políticas...

A diferença real entre nós e chimpanzés é a cola mítica que nos une em números bastos de indivíduos, famílias e grupos. Isto nos fez mestres da criação (H:38). Precisamos de outras habilidades, como de fazer ferramentas, mas isto será de pouca consequência sem vínculo com a habilidade de cooperar em multidões. Como foi que agora temos mísseis intercontinentais com ogivas nucleares, enquanto há 30 mil anos tínhamos apenas lanças primitivas? Fisicamente não houve melhoria significativa na capacidade de fazer ferramentas nos últimos 30 mil anos. Mas nossa capacidade de cooperar com grandes números de estranhos melhorou demais. Uma lança se faz rápido, com ajuda de parceiros, mas um míssil com ogiva atômica pede cooperações de milhões de estranhos...

Em suma, a relação entre biologia e história ficou assim na Revolução Cognitiva: i) biologia põe parâmetros básicos para comportamento e capacidades do Homo sapiens; a história toda ocorre dentro dos limites desta arena biológica; ii) contudo, esta arena é extraordinariamente ampla, permitindo ao Sapiens jogar variedade estonteante de jogos; graças à habilidade de inventar ficção, Sapiens cria jogos mais e mais complexos, que cada nova geração elabora e desenvolve ainda mais; iii) consequentemente, para entender como Sapiens se comportam, precisamos descrever a evolução histórica de suas ações; referir-se apenas às constrições biológicas seria como um locutor de rádio esportivo, assistindo à Copa do Mundo, dar apenas uma descrição do campo, ao invés do que os jogadores fazem (H:38).

CONCLUSÃO
Harari se apega ao lado fictício mental da produção imaginária, também porque isso lhe dá chance de fazer uma paródia ferina interessante. Mas poderia ter sublinhado a capacidade de abstração modelar, base da cognição dita científica, em especial no uso da matemática (algo tipicamente abstrato), para enfrentar um dos desafios maiores epistemológicos: para entender o concreto é preciso abstrair dele! A realidade não é o que parece. No mundo da ficção, porém, é o caso fazer distinções importantes como é a ficção religiosa e científica – possivelmente ambas são essenciais evolucionariamente, mas hoje apreciamos bem mais a segunda (como faz Harari com picardia). O mundo científico pode ser visto como ficção – Einstein gostava de partir de experimentos mentais – mas é uma ficção matematizada, bem diferente de um conto de fadas. Precisamos deste também, porém.


REFERÊNCIAS
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CHAMPLAN, C.A.; CHAPMAN, L.J. 2000. ‘Determinants of Groups Size in Primates: The Importance of Travel Costs’, in On the Move: How and Why Animals Travel in Groups, ed. Sue Boinsky and Paul A. Garber (Chicago: University of Chicago Press, 2000).
DUNBAR, R. 1998. Grooming, Gossip and the Evolution of Language (Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 1998).
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Programar ou Ser Programado


Rushkoff (2010) (R) fez publicação provocativa: programar ou ser programado, instando que as pessoas não sejam apenas consumidoras do computador e internet. À sombra desta preocupação muitos estão a exigir que educadores sejam programadores digitais, precisamente para evitar ser penduricalho da máquina e para incluir isso entre as alfabetizações essenciais dos novos tempos.]

I. INTRODUZINDO
Quando humanos adquiriram linguagem, aprendemos não só a escutar, mas a falar. Quando construímos alfabetização, aprendemos não só a ler, mas a escrever. Avançando na realidade digital crescentemente, precisamos aprender não só a usar programas, mas a fazê-los. “Na paisagem emergente, altamente programada pela frente, termos ou de criar o software ou ser o software” (R:P65). Simples assim: programar ou ser programado. Convém escolher a primeira alternativa para ter acesso ao painel de controle da civilização. Se escolhermos a segunda, pode ser a última chance de fazer. Enquanto tecnologias digitais são, em muitos sentidos, uma excrescência natural do que foi antes, são também marcadamente diferentes. Computadores e redes são mais que meras ferramentas: são como coisas vivas, em si. Diferentemente de um ancinho, uma caneta ou mesmo uma britadeira, tecnologia digital é programada. Significa que vem com instruções não só de uso, mas de si mesma. Como tais, tecnologias acabam por caracterizar o futuro do modo como vivemos e trabalhamos, as pessoas que as programam detêm papel crescentemente importante em moldar o mundo e como funciona. Tecnologias digitais irão moldar o mundo, com ou sem nossa cooperação.  Estamos criando um diagrama juntos – um design para nosso futuro coletivo. As possibilidades para progresso social, econômico, pratico, artístico e mesmo espiritual são tremendas. Assim como palavras deram aos humanos a habilidade de passar conhecimento em frente para o que agora chamamos de civilização, atividade em rede poderia logo nos oferecer acesso ao pensamento compartilhado – uma extensão da consciência ainda inconcebível para muitos hoje.

Os princípios operativos do comércio e cultura – desde suprimento e demanda até comando e controle – poderia dar lugar a modo de participação inteiramente mais envolvido, conectado e colaborativo. Mas, por enquanto, muitos acham que redes digitais respondem de modo imprevisível ou mesmo oposto a nossas intenções. Varejistas migram online só para encontrar seus preços rebaixados por agregadores automáticas de compra. Criadores de cultura pegam canais interativos de distribuição apenas para crescerem incapazes de achar pessoas que se dispõem a pagar pelo conteúdo que compravam antes alegremente. Educadores que buscam acessos a pletora global de informação para suas aulas se deparam com estudantes que creem que achar reposta na Wikipédia é pesquisa suficiente. Pais que achavam que seus filhos iriam, via multitarefa, chegar ao sucesso estão agora incomodados pelo fato de que eles já não conseguem focar atenção em nada. Organizadores políticos que acreditavam que internet consolidaria suas bases acham que petições da net e blog autorreferencial agora são substitutos da ação. Jovens que viam em redes sociais modo de redefinir a si e a seus eleitorados através de limites antes sacrossantos estão agora se conformando à lógica dos perfis das redes e achando-se vítimas de marqueteiros e assassinato de caracteres. Banqueiros que criam que empreendedorismo digital iria reavivar uma economia decadente da era industrial estão, ao invés, achando impossível gerar novo valor via investimento de capital. Mídia noticiosa via nas redes de informação oportunidades renovadas para jornalismo cidadão e responsável, a coleta de notícias por 24 horas virou sensacionalista, não rentável e despida de fatos úteis. Leigos educados que viam na rede nova oportunidade para participação amadora em setores previamente isolados da mídia e sociedade, veem ao invés a mistura indiscriminada de qualquer coisa, em ambiente onde o barulhento e lascivo abafam tudo que leva mais de uns momentos para se entender. Organizadores sociais e comunitários que viam na mídia social modo novo e seguro para pessoas se ajuntarem, expressar suas opiniões e deslanchar mudando de baixo para cima estão muitas vezes recuando em face da maneira como anonimato em rede se nutre de comportamento de massa, ataque inclemente e respostas sem nexo.

Uma sociedade que via na internet rota para conexões altamente articuladas e novos métodos de criar sentido está, ao invés, achando-se desconectada, negando-se-lhe pensamento profundo e exaurida de valores duradouros. Não é que isto seja fatal. E não seria se simplesmente aprendêssemos os vieses das tecnologias que usamos e nos tornássemos participantes cônscios dos modos em que são desenvolvidos. Em face de futuro em rede que parece favorecer o distraído sobre o focado, o automático sobre o considerado e o contrário sobre o compassivo, é tempo para parar para pensar e perguntar pelo que tudo isso significa para o futuro de nosso trabalho, nossas vidas e mesmo nossa espécie. Pensar, agora, não é mais exclusividade pessoal, chegando ao organismo cibernético e ao cérebro coletivo. Pessoas são reduzidas a sistemas nervosos externamente configuráveis, enquanto computadores estão livres para fazerem redes e pensar em modos mais avançados do que humanos. A resposta humana, se é que humanos farão este salto junto com máquinas, deve ser organização indiscriminada do modo como operamos nosso trabalho, nossas escolas, nossas vidas e em última instância nossos sistemas nervosos neste novo ambiente.

“Vida interior”, como tal, começou na era axial e foi reconhecida apenas na renascença. É construção que serviu a seu papel em nos levar até aqui, mas vai se afrouxar pra incluir formas inteiramente novas de atividade coletiva e extra-humana. É desconfortável para muitos, mas a recusa em adotar novo estilo de envolvimento nos condena a comportamento e psicologia crescentemente vulnerável aos vieses e agendas de nossas redes – do que temos pouca consciência de estarmos já programados nelas. Resistência é fútil, mas também é o abandono da experiência pessoal escalada para o organismo humano individual. Não somos apenas mente de colmeia operando num plano inteiramente divorciado da experiência individual. Há lugar para humanidade – para todos nós – na ordem nova cibernética. É que já passamos antes por mudanças dramáticas, mas a cada vez fracassamos em explorar as chances. No longo prazo, cada revolução da mídia oferece perspectiva inteiramente nova na relação com o mundo. Linguagem levou para aprendizagem partilhada, experiência cumulativa e possibilidade de progresso. O alfabeto levou à contabilidade, pensamento abstrato, monoteísmo e lei contratual. A imprensa e leitura privada nos levaram a nova experiência de individualidade, relação pessoal com Deus, Reforma Protestante, direitos humanos e Iluminismo. Com a chegada de novo meio, o status quo não só é questionado; é revisado e reescrito por quem tem acesso às ferramentas de criação. Infelizmente, este acesso é elitista – a invenção da era axial de 22 letras do alfabeto não levou a uma sociedade literata de leitores israelenses, mas a uma sociedade de ouvintes, que se ajuntavam na cidade para escutar a torá lida para eles por um rabi.

II. OPORTUNIDADES SEMPRE SÃO ELITIZADAS
Era melhor que ser escravo, mas o resultado ficou muito além do potencial. Similarmente, a invenção da imprensa na Renascença levou não a uma sociedade de escritores, mas de leitores; exceto poucos casos, o acesso era reservado, pela força,  para uso dos poderosos. Rádio de transmissão e TV foram na verdade extensões da imprensa: mídia cara e mão única que promovia a distribuição em massa das estórias e ideias de elite mínima no centro. Não fazemos TV; assistimos. Computadores e redes, enfim, nos oferecem a habilidade de escrever; e escrevemos com eles em nossos sites, blogs e redes sociais; mas a capacidade subjacente da era do computador está, na prática, programando – e não sabemos com sair dessa. Simplesmente usamos programas já feitos e entramos em nosso texto conforme diretivas que nos são alheias na tela. Ensinamos aos alunos como usar software de escrita, mas não como escrever software. Têm acesso às capacidades dadas por outrem, não ao poder de determinar as capacidades de criar valor dessas tecnologias e literacias de nossa era sem realmente aprender como funcionam e nos impactam. Assim, ficamos um passo atrás da potencialidade oferecida. Apenas uma elite – por vezes nova elite – ganha a habilidade de plenamente explorar o novo meio. O reste se contenta com o que último meio ofereceu; as pessoas escutam enquanto os rabis leem; leem enquanto os que têm acesso à imprensa escrevem; hoje escrevemos, enquanto a elite técnica programa (R:P136).

Algo ficou ainda pior, em termos de apostas bem mais altas. Antes, fracassar significava nos render à nova elite; na era digital, fracasso poderia significar abandonar nossa iniciativa coletiva nascente às máquinas como tais. Já começou. Ao invés de nos maravilhar com pessoa ou grupo que montou habilidade de comunicação de modo novo, tendemos a badalar ferramentas que comandam isso tudo; não celebramos os astros humanos neste meio, o modo como nos maravilhamos com astros do rádio, filme, ou TV; somos mesmerizados por telas e iPads em si. Pensamos menos sobre como integrar novas ferramentas em nossas vidas do que sobre como simplesmente nos atualizar nelas. Estamos otimizando humanos para as máquinas, não ao contrário. Não estamos apenas estendendo agenciamento humano via novo sistema linguístico ou de comunicação; estamos replicando a própria função de cognição através de mecanismos externos e extra-humanos. Tais ferramentas não são meras extensões do indivíduo ou grupo, mas possuem a habilidade de pensar e operar outros componentes da rede neuronal – ou seja, nós.

Se queremos participar disso, precisamos nos envolver numa renascença da capacidade humanos, não muito diferentes do tempo em que os israelitas receberam novo código de conduta rumo à civilização. A Torá não era subproduto de texto, mas código de ética para lidar com uma sociedade altamente abstrata baseada em texto que iria marcar os dois próximos milênios. Agora, para além de valores éticos, precisamos nos escudar em ciência e lógica que as máquinas a ameaçam trabalhar melhor que nós. As estratégias que desenvolvemos para dar conta de novas tecnologias mediadoras no passado já não servem – por exemplo, o incômodo de imaginar que iria significar ter algo de nosso pensamento feito fora do corpo por equipamento externo é a versão atual do desafio à autoimagem ou “propriocepção” posta pela maquinaria industrial. A era industrial nos desafiou a repensar os limites do corpo humano: onde termina o corpo e começa a ferramenta? A era digital desafia a repensar os limites da mente humana: quais os limites de minha cognição? Enquanto máquinas uma vez substituíram e usurparam o valor do trabalho humano, computadores e redes vão além disso – não só lidam com processos intelectuais – nossos programas repetíveis – mas desestimulam nossos processos amis complexos – nossa cognição de ordem mais elevada, contemplação, inovação e fazeção de sentido que seria o prêmio da “terceirização” nossa aritmética para chips de silício.

O modo para gerir isso é como esses equipamentos de “pensar” são programados. Voltando aos primeiros dias do computador pessoal, podemos não ter entendido como nossas calculadoras funcionavam, mas entendemos exatamente o que faziam por nós: somando um número a outro, achando raiz quadrada etc. Com computadores e redes, ao contrário de calculadoras, sequer sabemos o que estamos pedindo que as máquinas nos façam, muito menos como resolvem isso. Emerge nossa obsolescência enquanto engolimos novas tecnologias alegremente. Não sabemos como programar computadores, nem estamos preocupados com isso.

III. NÃO É O CASO ESTAR SEMPRE CONECTADO
A beleza da rede inicial foi seu atemporalidade. Conversa se dava em quadros de aviso em períodos de suas semanas ou meses; as pessoas entravam na internet via linhas telefônicas, via modem; tomava tempo, mas permitia que online era ato intencional; muito da vida se gastava offline. Conectando-se de diferentes locais em tempos diferentes, a maioria das experiências online eram “assíncronas”; queria dizer que, ao contrário da conversa regular ou chamada telefônica simultâneas, eram como passar carta para lá e par cá. Havia tempo para distinguir os momentos. A net foi lugar para fazer o tipo de deliberação e contemplação que não se podia fazer no mundo às pressas do emprego, filhos, automóveis. Não ocorrendo em tempo real, havia tempo, e isto facilitava envolvimento e colaboração. Até mesmo confrontos acalorados tinham alguma fineza, com tempo para esfriar os ânimos. Isto ajudou a faze da internet uma panaceia imprópria como se fosse a invenção da paz. Mas tecnologias digitais têm viés de fuga do tempo e sincronicidade. Seus sistemas operacionais possuem este design porque computadores pensam muito mais rápido que gente. Podem se dar novas instruções quase que instantaneamente. Programadores não querem que computador dependa de tempo. Operam de decisão a decisão, escolha a escolha, sem nada ocorrer aí pelo meio – tudo é similar formalmente em seus comandos, com respostas automatizadas velocíssimas. Por isso o primeiro “killer app” (aplicativo fatal) foi email. No início, não substituiu a carta, nem a chamada telefônica. Ao invés de achar uma pessoa em casa, email acha onde é para ser achada; ficava à espera; e tinha-se liberdade de responder. Como o controle remoto, não só trouxe a facilidade de mudar de canal no fim do programa, permitiu interromper os programas e ajuntá-los aos pedaços, embaralhando a noção de sequência e tempo.

Tornando-se conexões da internet mais velozes, densas e livres, contudo, vamos adotando uma abordagem de “sempre conectados” à mídia. Os aplicativos ficam ligados, atualizando-se e sempre alertas/prontos. O problema vira de lado: já não tempo para nada mais, porque somos avassalados pela mídia digital (Ophir et alii, 2009). Não é defeito da tecnologia, mas do modo como a operamos. Ao invés de entrar online para ver email, o email chega até nós; ao invés de usar a caixa de entrada como recipiente assíncrono, recebemos nos auriculares toda hora, sem fim. Não estamos atualizados, sempre um pouco atrás, porque não é mais assim que a tecnologia nos busca, é ao contrário: somos agora títeres dela. Temos o mundo no bolso (iPhone), mas é este que nos tem, domina, tiraniza. Podemos, claro, nos desligar – nada impede. Mas a ambiência é de tal ordem que ficar de fora é não existir...

Enquanto críticos e educadores lamentam efeitos da mensagem curta e superficial nos cérebros, mas isto talvez nem seja grande problema, porque os cérebros são máquinas admiravelmente plásticas – vão se acomodando, respondendo reconstrutivamente, como sempre no processo evolucionário. O lado mais complicado é a interatividade superficial, instantânea, o trabalho leviano com informação apenas indicada, nunca digerida, a disponibilidade tirana aos pés da máquina, que nos programa, não ao contrário. Programamos uma máquina que nos programa...

CONCLUSÃO
Muito pertinente a preocupação de Ruschkoff, embora talvez um pouco alarmista. Muitos alegam que estamos num limiar dramático civilizatório, mas é bom lembrar que esta sensação é perene na história humana. O dia do juízo final se repete sem nunca acontecer até hoje. No mundo das tecnologias, por ser muitas vezes espetacular, acarreta fantasias excitadas, indicando o fim dos tempos e a entrada em nova era, mais nova do que a evolução permite. Por trás está a expectativa de que máquinas digitais capazes Inteligência Artificial (IA) podem tornar-se mais inteligentes que humanos inteligentes, virando o sentido da história conhecida – não teria esta mais um ser no timão como nós, mas máquinas que inventamos e que, sarcasticamente, nos reinventam a seu talante, nos subordinando. Esta subordinação se observa cruamente no fato de que, não programando a máquina, apenas consumindo-a, somos consumidos por ela. Alguns apenas conseguem programar, razão pela qual se pleiteia tornar programação digital “a” alfabetização da hora, muito mais efetiva que ler/escrever/contar. Tudo isso se agrava sobremaneira quando o mercado se apropria dessas dinâmicas e fazem delas ocasião de competitividade e lucro, elitizando ainda mais seu acesso.

Essas ameaças em parte parecem ocorrer, em parte podem ser extravagância. Como o ser humano já foi desbancado do centro do universo, não cabe criar outra referência como  centro – a IA. Enquanto a inteligência humana é artefato de bilhões de anos de evolução, a IA é produto industrial. Isto não impede que possa ser mais inteligente – dependendo do que se define como inteligente – mas possivelmente temos aí inteligências diferentes que, ao invés de apenas rivalizarem, poderiam complementar-se. Dói na soberba humana ser assim descartado como expressão cada vez mais secundária do universo... Ao mesmo tempo, não se sabe que, programando o computador, ele estaria rigorosamente sob comando... Talvez programar e ser programado acabem sendo dinâmicas similares, complementares ou recíprocas...

REFERÊNCIAS
OPHIR, E., NASS, C., WAGNER, A.D. 2009. “Cognitive control in media multitaskers”. Proceedings of the National Academy of Sciences 106 (37):15583-15587.
RUSHKOFF, D. & PURVIS, L. 2010. Program or be programmed. OR Books, N.Y.

Pedro Demo (2016)
https://docs.google.com/document/d/1DJimMI6paz-8-WP55uiEzwtDAEbR5Ube1q637-9bxfY/pub