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Um homem bom é difícil de encontrar


A avó não queria ir para a Florida. Queria visitar uns parentes no leste do Tennessee e aproveitava todas as oportunidades para induzir Bailey a mudar de ideia. Bailey, o filho com o qual ela morava, seu único filho homem, sentado a mesa na beira da cadeira, dobrava-se sobre o alaranjado da pagina de esportes do Journal. "Olhe só isso aqui, Bailey, olhe só, leia isso aqui", disse ela em pé a seu lado, com uma das mãos no quadril magro e a outra esfregando outra folha de jornal na careca do filho. "Esse tal cara que fugiu da penitenciaria federal, o Desajustado, como ele mesmo se chama, e que foi justamente em direção a Florida... leia só o que diz aqui, veja o que ele fez com as pessoas. Vale a pena você ler. Eu é que não levaria os meus filhos, fosse lá para onde fosse, com um bandido desses assim a solta na área. Não ficaria em paz com a minha consciência."

Bailey não olhou para cima, não parou de ler o que lia, e ela então deu uma volta. Foi ficar cara a cara com a mãe das crianças, mulher nova, numa calça folgada, cujo rosto era tão largo e inocente quanto um repolho, estando envolto num lenço verde de cabeça amarrado com duas pontas no alto, como as orelhas de um coelho. Ela, sentada no sofá para alimentar o bebê, dava-lhe geleia de damasco que tirava do vidro. "À Flórida as crianças já foram", disse a velha senhora. "Deveriam leva-las a algum outro lugar, para variar, para que vejam diferentes partes do mundo e possam ter perspectivas mais amplas. Ao leste do Tennessee elas nunca foram."

A mãe das crianças nem pareceu escutar, mas o garoto de oito anos, John Wesley, parrudinho e de óculos, disse: "Se a senhora não quer ir para a Flórida, por que e que não fica em casa?". Ele e a menina, June Star, estavam lendo historias em quadrinhos no chão.

"Em casa? Duvido. Por nada desse mundo ela fica", disse June Star sem levantar a cabeça.

"Ah, é? E o que fariam vocês, se esse camarada, o Desajustado, pegasse vocês?"

"Eu quebrava a cara dele", John Wesley disse.

"Nem por um milhão de dólares ela ficava em casa" June Star disse. "Tem medo de estar perdendo coisas. Tem de ir pra toda parte com a gente."

"Esta bem, mocinha", disse a avó. "Da próxima vez que me pedir para cachear seu cabelo, você vai ver uma coisa."

June Star disse que seu cabelo já era naturalmente cacheado.

Na manha seguinte a avo foi a primeira a entrar no carro, pronta para partir. Tinha posto num canto sua enorme malinha preta, que parecia uma cabeça de hipopótamo, por baixo da qual ela escondia numa cesta o gato, Pitty Sing. Não quis deixar o gato em casa sozinho, por três dias, porque ele sentiria muito a sua falta e ela tinha medo de que acidentalmente se asfixiasse ao se esfregar num bico de gás. Mas o filho dela, Bailey, não gostava de chegar a um motel com um gato.

A avó ia no banco de trás, no meio, com um neto de cada lado, John Wesley e June Star. Bailey e a mãe das crianças com o bebê iam na frente e eles saíram as oito e quarenta e cinco de Atlanta com o painel indicando 89.944 quilômetros rodados. A avó anotou o numero por achar que seria interessante saber quantos quilômetros eles teriam feito, quando voltassem para casa. Levaram vinte minutos para atingir a periferia da cidade.

A velha senhora se instalou a vontade, tirando as luvas brancas de algodão e pondo-as junto com a bolsa no espaço por trás do banco. A mãe das crianças continuava com a mesma calça folgada, e com o mesmo lenço verde amarrado na cabeça, mas a avó estava usando um chapéu de palha azul-marinho, com um buque de violetas brancas na aba, e um vestido também azul-marinho de bolinhas brancas. A gola e os punhos eram de organdi branco, com debruns de renda, e um ramalhete roxo de violetas de pano, que era um sachê, estava pendurado em seu peito. Qualquer um que a visse morta na estrada, em caso de acidente, logo saberia tratar-se de uma senhora distinta.

Disse que o dia, a seu ver, era bom para viajar, nem muito quente nem muito frio demais, e lembrou a Bailey que o limite de velocidade era de noventa quilômetros por hora, e que os guardas rodoviários, escondidos atrás de anúncios e de amontoados de árvores, logo saiam em disparada atrás, sem nem dar chance de reduzir. E apontou interessantes detalhes dos panoramas: Stone Mountain; o granito azulado que nalguns trechos aflorava de ambos os lados da rodovia; os barrancos brilhantes, de barro vermelho rajado ligeiramente de roxo; e as diversas plantações enfileiradas como rendilhados verdes na terra. As árvores estavam cheias de uma luz solar prateada, e até mesmo as mais insignificantes brilhavam. As crianças iam lendo suas historias em quadrinhos e a mãe tinha voltado a dormir.

"Vamos passar pela Geórgia bem rápido para não ter de olhar muita coisa" John Wesley disse.

"Eu, se eu fosse um menino", disse a avó, "eu não falaria assim desse jeito do meu estado natal. O Tennessee tem montanhas, a Geórgia tem suas colinas..."

"O Tennessee não passa de um lixão, é uma terra de arigós" John Wesley disse, "e a Geórgia também é uma porcaria de estado."

"E isso mesmo", disse June Star.

"No meu tempo", a avó disse, cruzando os dedos de veias finas, "as crianças tinham mais respeito pela terra natal, pelos pais e por tudo o mais. Procedia-se bem, naquela época. Oh, mas vejam só o pretinho, que graça!" disse e apontou para um menino negro, em pé na porta de um barraco. "Não daria um quadro?" perguntou, e todos se viraram, olhando o menino negro pelo vidro de trás. Ele deu adeus.

"Ele estava sem calça", disse June Star.

“Talvez nem tenha" a avó explicou. "Os negrinhos da roça não são assim como nós, não tem coisas." E acrescentou: "Ah, se eu soubesse pintar, bem que faria esse quadro!".

As crianças trocaram de revista.

A avó se ofereceu para segurar o bebê, que a mãe das crianças lhe passou por cima do banco. Tendo-o posto nos joelhos, ela agora o puxava para cima e lhe falava das coisas pelas quais estavam passando. Revirava os olhos, fazia bico com a boca, colava a cara magra e dura no rosto, lisinho e fofo, da criança, que de vez em quando lhe dava algum sorriso distante. Passaram por uma grande plantação de algodão com um cercado com cinco ou seis túmulos no meio, como uma ilhota.

"Olhem lá o cemitério!" disse a avó, apontando. "O antigo campo- santo da família. Pertencia á fazenda."

"E onde esta a fazenda?" John Wesley perguntou.

"E o vento levou..." disse a avó. "Ha, ha."

The Handmaid's Tale - Cena do Protesto (Repost)

O Conto da Aia de Margaret Atwood (Repost)


A canadense Margaret Atwood, autora de O Conto da Aia, sempre gostou de afirmar que sua obra não é exatamente ficção científica, mas sim ficção especulativa, asseverando que, enquanto a primeira lida com elementos que a Humanidade ainda não pode fazer ou alcançar, de uma forma ou de outra, a segunda transporta o que a Humanidade já faz ou tem a capacidade de fazer para um cenário hipotético. Apesar de a ficção científica ser uma espécie do gênero ficção especulativa, essa diferenciação é sim importante para a compreensão do que a autora pretendeu aqui.

Lançada em 1985, a história se passa em um futuro distópico em que os Estados Unidos tornaram-se uma ditadura militar teocrática comandada por homens que anularam completamente a mulher, que não passam de seres categorizados como esposas, oficialmente as mulheres dos homens de posse, Martas, o que hoje são as empregadas domésticas e as aias, que têm a função de gerar filhos. Há outros tipos ainda, como as “econo-esposas”, mas que não são exploradas a fundo na obra. O fato é que, nesse “futuro” a mulher foi reduzida a funções pré-determinadas sem que possam fugir delas.

Com essa breve descrição, já é perfeitamente possível entender o que Atwood procurou fazer. Religiões fundamentalistas – e, aqui, o exemplo mais atual é a muçulmana, sem dúvida – já de certa forma categorizam suas mulheres, com muitos países proibindo que elas estudem, que elas cresçam independente de uma figura masculina ou mesmo que mostrem seu rosto e seus cabelos livremente (e não me venham dizer que proibir a mulher de mostrar o cabelo é alguma coisa diferente de deixar clara sua submissão ao homem). Se olharmos para o passado – e Atwood também bebe daí, já que o Puritanismo é uma de suas fontes mais claras para os trajes das aias – veremos a repetição disso em outras religiões, em um ciclo vicioso assustador.

E o que ela faz é transplantar o que ela vê ao seu redor em diversas regiões do mundo hoje (ou quando ela redigiu a obra, só para ser mais exato) para os Estados Unidos, ou, aqui, República de Gilead, imaginando uma situação em que um conflito de bases religiosas instaurou-se, tornando o país uma ditadura nos moldes acima e em que, por questões explicadas apenas muito brevemente, a taxa de natalidade caiu alarmantemente, tornando as aias tão importantes nesse cenário apocalíptico. Tenho sido propositalmente críptico na função de uma aia no romance, pois Atwood constrói essa revelação muito vagarosamente em seu texto, não porque é um plot twist ou uma revelação que muda os rumos narrativos, mas sim porque ela trabalha do pressuposto de que a narradora – uma aia – já sabe de sua função e não “corre” para nos contar, mas é impossível fazer uma crítica sem abordar esse elemento, que é da essência da obra.

Nesse futuro distópico, a aia, que usa uma vestimenta vermelha inspirada nos figurinos femininos da época da colonização americana, inclusive com um chapéu que cobre seus cabelos completamente e também sua visão periférica – têm a única função de ser fecundada, engravidar e parir uma criança. O “fecundador” é, via de regra, o marido de uma das “esposas” – normalmente mulheres que já não podem mais ter filhos em razão da idade ou outro fator – e a aia não tem escolha alguma. Na verdade, tem: ela pode se recusar e ser mandada para as “colônias”, o que é sinônimo de alguma forma de extermínio protraído no tempo.

Em outras palavras, apesar de serem aparentemente bem cuidadas por seus “senhores”, as aias são ritualisticamente estupradas pelos Comandantes (assim são chamados os maridos das esposas) e, quando engravidam e têm filhos, eles são cuidados exclusivamente pelas esposas. É a institucionalização do estupro debaixo de uma interpretação perversa do texto do Velho Testamento e sob a rubrica de “segurança da mulher” causada por uma alegada liberação sexual que teria gerado a cultura de contraceptivos, promiscuidade e violência. E, quando menciono “ritualisticamente”, é porque há mesmo um ritual que antecede o coito – com direito à leitura da Bíblia – que ocorre diante da “esposa” e em que o prazer de qualquer parte é veementemente proibido.

Para contar essa terrível história, Atwood usa única e exclusivamente a narrativa em primeira pessoa de uma aia que permanece sem nome, como todas as aias. Aliás, sem nome não. Ela se chama Offred (inclusive na tradução em português, por razões que não consigo entender) que é algo mais tenebroso do que meramente um nome. Offred significa Of Fred ou, em português, “De Fred”, transformando a aia em uma propriedade de um homem em um mundo em que a mulher realmente não é muito diferente do que um objeto ornamental ou, no máximo, com muita boa vontade, um animal de estimação.

Mas, ao usar esse recurso da primeira pessoa, Atwood brinca com as expectativas e mantém o leitor constantemente engajado. Offred, uma aia de primeira geração, ou seja, que se lembra do mundo pré-Gilead, conta sua história de seu próprio jeito e, como toda a memória, parte de lembranças imperfeitas de seu passado, além de capítulos não necessariamente cronológicos. Com isso, aprendemos vagarosamente quem ela é e como ela foi parar ali, como foi seu “treinamento” (o correto seria lavagem cerebral) para aceitar toda essa submissão e aos poucos vamos então vendo esse mundo além das abas do chapéu branco da aia narradora. E é um mundo simplesmente aterrador, daqueles que por diversas vezes dá vontade ao mesmo tempo de fechar o livro e continuar lendo vorazmente, em uma daquelas contradições que só fazem sentido realmente mergulhando na história.

E a perseverança é muito bem retribuída por Atwood, que consegue, de maneira simples, mas muito eficaz, não só estabelecer o cenário completo e crível que  levou a essa mundo distópico como, também, usar artifícios narrativos que manobram nossa percepção de Offred. Sem entrar em muitos detalhes, basta dizer que a autora é capaz de nos oferecer visões de “segunda” mão de situações que Offred apenas ouviu falar, costurando-as muito bem dentro da estrutura em primeira pessoa. Além disso, por muitas vezes somos convidados a duvidar de algumas situações que ela descreve, quase tornando-a uma narradora não confiável em determinados momentos, o que instiga o leitor a continuar em sua jornada de leitura.

Além disso, Atwood não é maniqueísta e não torna as conclusões fáceis para o leitor. Quando ela trata da condição da mulher nessa sociedade (não tão)futurista, ela encaixa elementos da atualidade como pontos usados pelo poder estabelecido para justificar o porquê de tudo. De certa forma, é possível ver críticas da autora até mesmo ao feminismo radical e do politicamente correto excessivo. Basta, para isso, que o leitor saia do dizem que ele deve esperar do livro e comece a perceber as entrelinhas do que ela escreve. E não, de forma alguma quero afirmar que o livro não é um alerta a algo que pode vir a acontecer se não estivermos alertas – e não falo só de EUA aqui -, mas sim que Atwood é mais inteligente do que alguém que só escreve o que se quer ler. Ela vai além e toca profundamente em vaidades, em consumismo, em egocentrismo, em preconceitos e diversas outras questões que, por intermédio de sua Offred, ela vai abordando sem nunca se valer de didatismo e de forma alguma subestimando o leitor.

O Conto da Aia é leitura obrigatória. Mas fica um aviso: o cenário hipotético criado por Margaret Atwood está mesmo ali na esquina, pelo que a obra é uma leitura que machuca a cada virada de página, mas a dor, aqui, é necessária e, mais do que isso, instrutiva.

O Conto da Aia (The Handmaid’s Tale, Canadá)
Autora: Margaret Atwood
Editora original: McClelland and Stewart
Data original de publicação: 1985
Editoras no Brasil: Editora Marco Zero, Editora Rocco
Datas de publicação no Brasil: 1987 (Marco Zero), 2006 e 2017 (Rocco)
Tradução: Ana Deiró (edição da Rocco)
Páginas: 368 (edição da Rocco)


Ritter Fan
Fonte: http://www.planocritico.com/critica-o-conto-da-aia-the-handmaids-tale-de-margaret-atwood/

Gente boa da roça


Além da expressão neutra que ela carregava quando estava sozinha, a Senhora Freeman tinha outras duas, uma afirmativa e outra retroativa, que ela usava para todas as suas relações humanas. Sua expressão afirmativa era firme e forte como a de um caminhão pesado. Seus olhos nunca desviavam para a esquerda ou direita, mas viravam de acordo com o rumo da estória como se seguissem uma linha amarela bem no centro da estória. Ela raramente usava a outra expressão porque muitas vezes não era necessário retirar uma declaração, mas quando usava, seu rosto parava completamente, havia um movimento quase imperceptível em seus olhos negros, enquanto eles pareciam retroceder, e então o observador via que a Senhora Freeman, embora estivesse lá, tão real quanto sacos de grão jogados em cima uns dos outros, não estava mais lá em espírito. Fazê-la entender qualquer coisa quando isso acontecia era impossível, a Senhora Hopewell havia desistido. Ela poderia falar até morrer. A Senhora Freeman nunca seria convencida a admitir seu erro em qualquer aspecto. Ela permaneceria lá e, se a pudessem convencer a falar qualquer coisa, seria algo como: “Bem, eu não diria que sim ou não diria que não” ou, ao direcionar seu olhar vago para a prateleira de cima da cozinha onde havia várias garrafas empoeiradas, ela poderia mencionar: “Eu vejo que você não comeu muitos dos figos das conservas que você fez no verão passado”.

Elas cuidavam de seus assuntos mais importantes na cozinha durante o café da manhã. Todas as manhãs a Senhora Hopewell se levantava às sete e ligava seu aquecedor à gás e o de Joy. Esta era sua filha, uma moça loira e alta que tinha uma prótese na perna. A Senhora Hopewell ainda via Joy como uma criança mesmo que ela tivesse trinta e dois anos e alto nível de formação. Joy se levantava enquanto sua mãe estivesse comendo e arrastava-se para o banheiro, batendo a porta, e logo a Senhora Freeman chegava à porta dos fundos. Joy ouvia sua mãe dizer: “Entre”, e então as senhoras conversavam por um tempo em voz baixa, inaudível no banheiro. No momento em que Joy entrava, elas já haviam terminado o relatório da previsão do tempo e estavam falando sobre uma das filhas da Senhora Freeman, Glynese ou Carramae. Joy as chamava de Glicerina e Caramelo. Glynese, uma moça ruiva, tinha dezoito anos e muitos admiradores; Carramae, uma moça loira, tinha apenas quinze, mas já estava casada e grávida. Ela não conseguia manter qualquer coisa em seu estômago. Todas as manhãs a Senhora Freeman contava à Senhora Hopewell quantas vezes Carramae havia vomitado desde o último relatório.

A Senhora Hopewell gostava de dizer para as pessoas que Glynese e Carramae eram duas das moças mais finas que ela conhecia, que a Senhora Freeman era uma lady e que ela nunca teria vergonha de levar a Senhora Freeman a qualquer lugar ou apresentá-la a qualquer pessoa que elas pudessem encontrar. Então ela contava como havia contratado os Freeman em primeiro lugar, como eles eram uma benção de Deus para ela e como estavam junto dela há quatro anos. A razão para mantê-los por tanto tempo era que eles não eram lixo. Eram boa gente do interior. Ela havia telefonado para o homem cujo nome havia sido dado como referência e ele contou para ela que o Senhor Freeman era um bom agricultor, mas que a Senhora Freeman era a mulher mais barulhenta a caminhar pela terra. “Ela tem que estar em tudo”, disse o homem. “Se ela não chegar lá antes que a poeira assente, pode apostar que ela está morta, só isso. “Ela vai querer saber de toda a sua vida. Eu o considero muito”, ele disse, “mas nem eu nem minha esposa conseguiríamos aguentar aquela mulher mais um minuto”. Isso desencorajou a Senhora Hopewell por alguns dias.

Por fim ela os contratou porque não houve outros candidatos, mas decidiu de antemão como lidaria com a mulher. Já que a Senhora Freeman era do tipo de se meter em tudo, a Senhora Hopewell decidiu que ela não apenas seria incluída em tudo, mas providenciaria para que ela estivesse em tudo, ela seria a pessoa encarregada. A Senhora Hopewell não tinha defeitos, mas tinha a habilidade de usar os defeitos de outras pessoas de maneira tão construtiva que ela já tinha os Freeman há quatro anos.

Nada é perfeito. Este era um dos ditados favoritos da Senhora Hopewell. O outro era: é a vida! E ainda mais um, o mais importante, era: bem, outras pessoas têm suas opiniões também. Ela diria essas expressões geralmente à mesa, em tom de insistência gentil, como se ninguém soubesse deles além dela, e a grande desajeitada Joy, cujo ultraje constante havia apagado qualquer expressão em seu rosto, apenas direcionaria um pouco seu olhar para o lado, seus frios olhos azuis, com o jeito de alguém que havia ficado cego por vontade própria e se manteve assim.

Quando a Senhora Hopewell dizia à Senhora Freeman que a vida era assim, esta dizia: “Eu sempre digo isso”. Nada acontecia sem que a Senhora Freeman soubesse primeiro. Ela era mais rápida que o Senhor Freeman. Quando a Senhora Hopewell disse a ela, após certo tempo da chegada deles: “Sabe, você é a comandante deste navio” e deu uma piscadela, a Senhora Freeman respondeu: “Eu sei. Sempre fui rápida. Há sempre aqueles que são mais rápidos que os outros”.

“Todos são diferentes”, disse a Senhora Hopewell.

“Sim, a maioria é”, respondeu a Senhora Freeman.

“É preciso gente de todos os tipos para formar o mundo”.

“Eu sempre disse isso”.

A menina estava acostumada com esse tipo de diálogo no café da manhã e também no jantar; de vez em quando elas conversavam no lanche também. Quando não tinham visitas, elas comiam na cozinha porque era mais fácil. A Senhora Freeman se esforçava para chegar durante a refeição e assisti-las terminar. Ela ficava na porta se fosse verão, mas no inverno ela apoiava um cotovelo em cima da geladeira e olhava para elas de cima, ou ficava ao lado do aquecedor a gás, levantando um pouco a parte de trás da saia. Ocasionalmente ela se apoiava na parede e rolava a cabeça de um lado para o outro. Ela nunca tinha pressa de ir embora. Tudo isso era muito penoso para a Senhora Hopewell, mas esta era uma mulher de grande paciência. Ela havia percebido que nada é perfeito, que os Freeman eram boa gente do interior e que, se em tempos presentes há boa gente no interior, era melhor segurá-la.

Ela teve muita experiência com lixo. Antes dos Freeman, ela tivera em média uma família de caseiros por ano. As mulheres desses agricultores não eram do tipo que você gostaria por perto por muito tempo. A Senhora Hopewell, que havia se divorciado do marido há anos, precisava de alguém que tocasse a plantação para ela; e quando Joy tinha de ser mandada a fazer esses serviços, as coisas que ela fazia eram geralmente tão malfeitas e sua expressão tão carrancuda que a Senhora Hopewell dizia: “Se você não faz de boa vontade, eu não quero”, ao que a moça, firme, com os ombros rígidos e o pescoço um pouco jogado para a frente, respondia: “Se você me quer, aqui estou – COMO SOU”.

Dostoiévski: condenação e exílio



“Nunca houve uma [revolução] que tivesse se espalhado tão rápida e amplamente, se alastrando como fogo na palha por sobre fronteiras, países e mesmo oceanos.” Assim o historiador Hobsbawm vê as Revoluções de 1848 que estouraram em toda a Europa. Surgidas como resposta à sociedade industrial, crises econômicas e más condições de trabalho, tendo como alvos a nobreza e os grandes industriais, pequenos burgueses uniram-se para quebrar máquinas e reivindicar direitos junto ao povo e ao rebento da industrialização: o proletariado. Muito baseadas no socialismo utópico de Fourier e acontecendo no mesmo ano da publicação do "Manifesto Comunista" de Marx e Engels, as revoluções tiveram conquistas avassaladoras com suas barricadas, varrendo diversas monarquias do mapa.

O duro czar Nicolau I da Rússia, isolado em seu enorme, porém distante país, observava tudo com cautela e temor. Há muito havia naquela nação grupos de intelectuais revolucionários e anticzaristas que se reuniam secretamente para falar de política. Nicolau sabia disso e aumentou a repressão contra os grupos enviando infiltrados para descobrir quem eram os revoltosos.

Em 1849, o Círculo Petrashevski – pois os intelectuais se reuniam na casa do progressista Mikhail Petrashevski – de São Petersburgo foi descoberto, preso e condenado. Entre os que lá estavam, encontrava-se o já famoso romancista russo Fiódor Dostoiévski, aclamado pelo seu livro de lançamento "Gente Pobre" (1846). Condenado à morte aos 28 anos, o desesperado Dostoiévski e seus companheiros são postos de frente ao pelotão de fuzilamento. Segundos antes do disparo que os tiraria a vida, uma carta chegou assinada pelo czar com o perdão aos condenados. Na verdade, tudo não passou de encenação, mas eles não sabiam.

No mesmo dia, já absolvido, Dostoiévski escreve ao seu irmão mais velho, Mikhail:

“Meu tão querido irmão!
Tudo está resolvido! Fui sentenciado a quatro anos de trabalhos forçados em uma fortaleza [...] e depois, alistamento como soldado raso. Hoje, 22 de dezembro, fomos todos levados à Praça Semionovski. Lá, a sentença de morte foi lida para nós, deram-nos a cruz para que beijássemos [...] e foram feitos nossos trajes mortuários (camisas brancas). Então, três de nós fomos colocamos diante do pelotão de fuzilamento para a execução da sentença de morte. Eu era o sexto da fila; fomos chamados em grupos de três, logo eu estava no segundo grupo e tinha não mais que um minuto de vida. Pensei em você, meu irmão, em todos vocês; naquele último instante, apenas você estava em meu pensamento – foi quando percebi o quanto eu amo você, meu adorado irmão! Tive tempo de abraçar Plechtchéiev e Durov, que estava ao meu lado, e despedir-me deles. No último instante, veio a ordem para suspender a execução, os soldados do pelotão de fuzilamento recuaram, e foi lida a sentença final.”

Ele foi enviado para o exílio na gelada e inóspita Sibéria, em Omsk, para cumprir trabalhos forçados e depois servir como soldado raso. Chegando na prisão após longa e difícil jornada, se impressionou com o que viu. Em carta ao irmão datada de 1854, ele escreve que seus companheiros de prisão eram “homens rudes, raivosos, amargurados. Seu ódio pela nobreza não tem limites; eles olham para todos nós, que pertencemos às classes mais abastadas, com hostilidade e rancor. Teriam nos devorado se tivessem a oportunidade. Julgue, então, o perigo que corremos, tendo que coabitar com essas pessoas por alguns anos, comer com eles, dormir ao seu lado, e sem qualquer possibilidade de reclamar das afrontas que eram constantemente direcionadas a anos.” E continua: “Passei quatro anos inteiros sob as paredes da prisão, e de lá saía apenas quando era escalado para o trabalho forçado. O trabalho era duro, mas nem sempre; algumas vezes, com mau tempo, sob a chuva, ou no inverno, durante as eternas nevascas, minhas forças faltavam-me. Certa vez, tive que fazer quatro horas de trabalho extra sob um frio que congelou até mesmo o mercúrio dos termômetros; creio que estava uns quarenta graus abaixo de zero. [...] Some-se a todos esses desconfortos o fato de que era quase impossível conseguir um livro, e quando consegui um, tive que ler às escondidas: tudo ao meu redor era uma incessante maldade, turbulência e discórdia. Vivíamos sob constante vigilância, e na impossibilidade de se estar sozinho, fosse por um minuto sequer – e sem qualquer variação desse quadro por quatro longos anos: você entenderá quando eu disser que eu não era feliz. Agora imagine, além de tudo isso, a ameaça constante de sofrer uma punição, os ferros, a opressão extrema de espírito – e terás um retrato fiel do que era minha vida.”

Livre em 1860 após dez longos anos em exílio, Dostoiévski relata suas memórias de prisão na novela Recordações da Casa dos Mortos (1862). Por suas experiências, uma nova fase surge em sua obra com seus grandes clássicos pós-siberianos: Crime e Castigo (1866), O idiota (1869), Os demônios (1871) e Os irmãos Karamázov (1880). Sua produção literária foi lida atentamente por Friedrich Nietzsche, Sigmund Freud e vários outros importantes nomes do século XIX e XX. Não à toa ele é um dos pensadores mais gloriosos e importantes da História!

DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Correspondências: 1838-1880. Porto Alegre: 8Inverso, 2009.HOBSBAWM, Eric J. A era do Capital: 1848-1875. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2009.

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Sapiens: Breve História da humanidade (II) A Árvore do Conhecimento


Neste segundo remix da obra de Harari (2015) (H) sobre Sapiens (Breve história da humanidade), vamos estudar o segundo capítulo da primeira parte (A árvore do conhecimento). Há 150 mil anos, Sapiens ocupava a África oriental, mas passou a colonizar o planeta e exterminar outras espécies humanas há 70 mil anos; nos milênios pelo meio, mesmo que parecesse conosco (os cérebros eram grandes como os nossos), não desfrutavam de vantagens marcantes, não tinham ferramentas propriamente superiores, nem outros feitos notáveis.

I. CONVIVÊNCIAS
Consta que no primeiro encontro entre Sapiens e Neandertals, estes venceram. Há 100 mil anos, alguns grupos Sapiens migraram para o norte, rumo ao Levante, que era território dos Neandertals, mas não se firmaram, talvez devido a nativos agressivos, clima inclemente e parasitas não familiares locais. Sapiens eventualmente recuou. Este desempenho decepcionante levou pesquisadores a especular que a estrutura interna dos cérebros desses Sapiens era provavelmente diferente da nossa; pareciam-se conosco, mas as habilidades cognitivas – aprender, lembrar, comunicar-se – eram limitadas. “Ensinar a tais Sapiens antigos inglês, persuadi-lo da verdade do dogma cristão ou conseguir que entendesse a teoria da evolução seria provavelmente inciativa sem viabilidade” (H:20). Vale o reverso também: difícil para nós entender sua linguagem e entendimento. Mas, desde 70 mil anos, Sapiens passou a fazer coisas bem especiais. Deixou a África pela segunda vez, e agora varreram os Neandertals e outras espécies da face da terra. Em período curto, alcançou a Europa e Ásia oriental; há 45 mil anos, chegaram à Austrália (continente até então intocado por humanos) – este período (70 mil a 30 mil anos atrás) testemunhou a invenção de barcos, lâmpadas a óleo, arcos e flechas, além de agulhas (para fazer roupas quentes). Os primeiros objetos podem chamados arte dessa era; aparecem os primeiros vestígios de religião, comércio e estratificação social. A maioria dos pesquisadores crê que tais feitos sem precedentes foram produto de revolução nas habilidades cognitivas. Mantém que gente que levou Neandertals à extinção, colonizou a Austrália e esculpiu o homem-leão (da caverna em Stadel, Alemanha, cerca de 32 mil anos atrás) eram tão inteligentes quanto nós, criativos e sensíveis – poderíamos nos comunicar com eles plenamente, também em questões de cognição sofisticada. O aparecimento de novos modos de pensar e comunicar-se, entre 70 mil e 30 mil anos atrás, constitui a Revolução Cognitiva (H:21). O que causou isso é incerto (ainda) – a teoria mais comum sugeres que mutações genéticas acidentais mudaram a formatação interna do cérebro, capacitando pensar de modos sem precedentes e comunicar-se usando novo tipo de linguagem – podemos chamar de mutação da Árvore do Conhecimento. Por que teria ocorrido no DNA do Sapiens, não no Neandertal? Teria sido acaso puro, parece. Será mais importante trabalhar as consequências desta mutação da Árvore do Conhecimento do que suas causas. O que foi tão especial nesta linguagem que facultou conquistar o mundo?

Não foi a primeira linguagem. Todo animal tem um tipo de linguagem, até mesmo insetos: comunicam-se de modo sofisticado, informa-se entre si sobre alimento ao redor; nem foi a primeira linguagem vocal; muitos animais, também espécies de macacos, possuem isso; por exemplo, macacos verdes usam chamados de vários tipos para se comunicarem; zoólogos identificaram um chamado que significa “cuidado, águia!”; chamado um pouco diferente diz “cuidado, um leão!”. Quando pesquisadores tocaram uma gravação do primeiro chamado para um grupo de macacos, eles pararam o que estavam fazendo, olhando para cima com medo. Ouvindo a segunda gravação, logo subiram em árvores. Sapiens faz muito mais que isso; no entanto, baleias e elefantes possuem habilidades impressionantes; um papagaio imita sons notavelmente. O que seria especial em nossa linguagem? Resposta comum é que nossa linguagem é flexível – podemos conectar número limitado de sons e sinais para produzir número infinito de sentenças, cada uma com significado próprio. Podemos, então, ingerir, estocar e comunicar montante prodigioso de informação sobre o mundo à volta. Humanos podem criar uma narrativa sobre os leões, indicando local exato, observações feitas, expectativas etc. Com esta informação, os membros do bando podem reunir-se e discutir como abordar o problema, talvez caçar o leão.

Uma segunda teoria concorda que nossa linguagem única evoluiu como meio de partilhar informação sobre o mundo. Mas a informação mais importante que se transmitia era sobre humanos, não leões. A linguagem evoluiu como modo de fofocar, por sermos animais sociais, cooperativos e reprodutivos. Não basta saber o que há por aí, pois é bem mais importante conversar sobre si mesmos, suas desavenças e amizades, como se dorme, como se cria criança, quem engana a quem... O montante de informação que precisamos obter e estocar para dar conta das relações sempre mutantes de algumas dúzias de indivíduos já é enorme (Num bando de 50 indivíduos, há 1.225 relações um-a-um e infinitas combinações sociais mais complexas) (H:23). Todos os macacos mostram interesse afiado em tal informação social, mas não fofocam propriamente, embora seja essencial para a convivência em bandos maiores (Dunbar, 1998). A teoria da fofoca parece gozação, mas muita pesquisa a suporta. Até hoje, grande parte da comunicação humana, também na forma de emails, chamadas telefônicas e colunas de jornais, é fofoca. É tão natural que parece ter a linguagem evoluído para este propósito.

Harari brinca então com cientistas que, num seminário mortalmente sério, quando se encontram para comer ou pausar, não falam sobre quarks, mas provavelmente sobre o colega traído pela esposa ou sobre a briga com o diretor do departamento. Em geral fofoca é sobre malfeitos. Rumores são especialidade do quarto poder, dos jornalistas... Provavelmente ambas as teorias – da fofoca e da informação sobre o leão por perto – têm seu lugar. No entanto, a marca única da linguagem não é a habilidade de transmitir informação sobre homens e leões; mas de transmitir informação sobre coisas que não existem. Só humanos falam sem parar sobre o que nunca viram, tocaram ou cheiraram. Lendas, mitos, deuses e religiões apareceram primeiro com a Revolução Cognitiva – por exemplo, dizer que o leão é o espírito vigilante da tribo. Não será viável convencer a um macaco que nos dê sua banana, com a promessa de que vai ter muitas outras após a morte. E isto se fez coletivamente – em mitos comuns como na estória da criação bíblica, nos mitos nacionalistas. Isto deu a habilidade sem precedentes de cooperar flexivelmente em sociedades maiores – podemos cooperar de modos bem mais flexíveis.

II. LENDA DA PEUGEOT
Os primos chimpanzés em geral vivem em grupos pequenos (algumas dúzias) – fazem amizades, caçam e lutam juntos; sua estrutura social tende a ser hierárquica; o membro dominante, quase sempre um macho, chama-se “macho alfa” e os outros machos e fêmeas mostram sua submissão curvando-se para ele, enquanto fazem grunhidos, não muito diferente dos humanos. O alfa procura manter harmonia social na tropa; quando dois brigam, intervém; de modo menos benevolente, pode monopolizar comida e impedir que indivíduos inferiores copulem com as fêmeas. Quando dois contestam o alfa, foram coalizões extensivas de asseclas, machos e fêmeas, do grupo; laços entre membros da coalizão se baseiam em contato diário íntimo – abraço, toque, beijo, coçar e favores mútuos. Assim como políticos humanos em campanhas eleitorais andam à volta apertando mãos e beijando bebês, assim aspirantes ao poder gastam tempo abraçando, dando palmadinhas e beijando bebês. O alfa em geral ganha a posição não por ser mais forte fisicamente, mas porque lidera coalizão maior e mais estável. Esta é estratégica não para disputas, mas também para atividades cotidianas – os membros passam mais tempo juntos, partilham comida e se ajudam em apertos. Há limites claros de tamanho dos grupos que podem ser formados e mantidos – todos precisam conhecer-se intimamente; dois chimpanzés que nunca se haviam encontrado, lutado ou se coçado juntos, não sabem se podem confiar-se, se vale a pena ajudar-se, e quem está acima. Em condições naturais, uma tropa típica tem 25 indivíduos; ao aumentar, a ordem social se desestabiliza, levando a eventuais rupturas e formação de nova tropa. Raramente houve casos de grupos com mais de 100 em estudos zoológicos; grupos separados quase não cooperam, tendem a competir por território e comida. Pesquisadores documentaram guerra prolongada entre grupos e mesmo um caso de atividade de genocídio na qual uma tropa sistematicamente matou a maioria dos membros do outro bando (Waal, 2000; 2005. Wilson; Wrangham, 2003. Symington, 1990:49. Chapman; Chapman, 2000:26).

Possivelmente, tais padrões comportamentais dominaram as vidas sociais de humanos primitivos, incluindo Sapiens arcaico. Como macacos, humanos têm instintos sociais que possibilitavam a nossos ancestrais a formar amizades e hierarquias e a caçar ou lugar juntos. Mas isto valia para grupos pequenos íntimos; com maiores, a ordem social se esfacela e o bando cinde. Mesmo que um vale fértil pudesse alimentar 500 Sapiens, não havia como viverem juntos – como se estabeleceria liderança, quem iria caçar e onde, e quem se acasala com quem? Na esteira da Revolução Cognitiva, fofoca ajudava o Sapiens a formar bandos maiores e mais estáveis; mas mesmo isto tem limite. Pesquisa sociológica mostrou que o tamanho natural máximo de um grupo unido por fofoca está em 150. A maioria não pode conhecer intimamente, nem fofocar efetivamente com mais. Mesmo hoje, limiar crítico nas organizações humanas está em torno desse número mágico. Abaixo disso, comunidades, empresas, redes sociais e unidades militares podem manter-se com base maior em relações íntimas e fofoca. Não se precisa de rankings formais, títulos e leis para manter a ordem (Dunbar, 1998. Aiello; Dunbar, 1993:189. McCarty et alii, 2001:32. Hill; Dunbar, 2003:65).

Então, como humanos chegaram a formar cidades enormes? O segredo esteve provavelmente no aparecimento da ficção. Estranhos em grande número pode cooperar acreditando em mitos comuns. Igrejas se baseiam em mitos religiosos comuns; dois católicos que nunca se encontraram podem lutar juntos ou construir hospital, porque ambos têm a mesma crença. Nada disso existe fora das estórias inventadas e contadas. Não há deuses no universo, nem nações, nem dinheiro, nem direitos humanos, nem leis, nem justiça, fora da imaginação comum humana. Primitivos mantinham a ordem crendo em espíritos e fantasmas, e dançando na noite de lua cheia em torno do fogo. Mas não percebemos que ainda funcionamos assim. Veja-se exemplo das empresas – empresários e advogados são, de fato, feiticeiros incisivos – a diferença principal entre eles e xamãs tribais é que advogados modernos conta estórias bem mais estranhas. A lenda da Peugeot é boa referência. Um ícone que se assemelha ao leão-homem está nos carros, caminhões e motos em todo o mundo, em geral no capô. Peugeot começou como empresa familiar em Valentigney, a 320 km da Caverna Stadel – hoje emprega 200 mil pessoas no mundo, a maioria estranha entre si, mas cooperam tão efetivamente que em 2008 Peugeot produziu mais de 1.5 milhão de carros, com ingressos de $55 bilhões de euros. O cerne da empresa é sua marca imaginária, distinta das bases físicas e das pessoas envolvidas. Se um juiz decretasse falência, desapareceria a marca, mas os prédios e carros continuam. Advogados chamam a isso de “ficção legal” – existe como entidade legal. Está ligada a leis dos países onde opera; podem abrir contas bancarias e ter propriedade; paga impostos e pode ser processada, também em separado dos donos. Pertence ao gênero particular de ficções legais chamado “empresas de responsabilidade limitada” – a ideia por trás é uma das invenções mais engenhosas. Sapiens viveu milhões de anos sem isso. Durante a maior parte da história registrada, propriedade podia ser possuída por gente de carne e osso. Na França do século XIII, quem tinha um negócio, era ele mesmo o tocador, era o negócio. Se o produto fosse ruim, seria processado em pessoa. Se tomasse mil moedas de ouro emprestadas para montar seu negócio e este falisse, teria como pagar, vendendo a propriedade – sua casa, vaca, terra. Talvez viesse mesmo a vender seus filhos em servidão. Se não cobrisse a dívida, poderia ficar na cadeia ou ser escravizado pelos credores. Era responsável plenamente. Era mesmo difícil ser empresário. E por isso passou-se a imaginar empresas de responsabilidade limitada – legalmente independentes das pessoas que as organizam ou onde investem dinheiro ou as gerem.

Nos séculos recentes, tais empresas viraram atores principais da arena econômica e somos tão acostumados com elas que esquecemos ser imaginárias. Nos Estados Unidos, o termo técnico usado é “corporação”, que é irônico, pois o termo deriva de “corpus” (corpo em latim) – o que precisamente tais corporações não têm. Mesmo não tendo corpos reais, o sistema legal trata como pessoas legais, também o sistema legam francês desde 1896, quando Armand Peugeot, que havia herdado dos pais uma loja de metais que produzia molas, serras e bicicletas, decidiu entrar na produção de veículos. Foi uma companhia de responsabilidade limitada, com seu nome, mas era independente. Se um dos carros quebrasse, o comprador pode processar a Peugeot, mas não o Sr. Peugeot. Este morreu em 1915, mas não a empresa. Criou a empresa de modo similar a sacerdotes e feiticeiros ao criarem deuses e demônios, ou como padres franceses criam o corpo de Cristo na missa dominical. Contam-se estórias e as pessoas se convencem delas. Harari parodia a missa católica, um pouco inclementemente. No caso de Peugeot a estória crucial era o código legal, constitucional. Seguindo liturgia e ritos, e com devidas vestimentas e ornamentos, mais juramentos aqui e ali, surge empresa. Quando em 1896, Peugeot quis criar sua empresa, pagou a um advogado para vencer todos os rituais e procedimentos exigidos; milhões de franceses creram que a empresa existia mesmo.

Mas, contar boa estória não é fácil (H:30). Contar até é fácil, difícil é persuadir a crer em deuses, nações ou empresas. Isto, porém, dá ao Sapiens imenso poder, porque arrasta milhões de cooperadores. Não seria viável criar estados, igrejas ou sistemas legais, se falássemos apenas de coisas que existem de fato, como rios, árvores ou leões. As pessoas se engalfinharam em torno de estórias do arco da velha; em tais redes, ficções como Peugeot não só existem, como acumulam poder imenso. São “construtos sociais” ou “realidades imaginadas”, para a academia. Não é mentira – mentira é quando digo que um leão está perto do rio e não há nenhum leão aí. Nada de especial com mentiras – macacos mentem também. Um macaco verde foi visto dizendo “Cuidado! Um leão!”, quando não havia. O alarme atemorizou o companheiro que fugiu deixando a banana para o malandro. Ao contrário de mentira, realidade imaginada é algo em que todos creem, e persistindo isso, exerce força no mundo. O escultor da caverna Stadel pode ter sinceramente crido na existência do espírito guardião do leão-homem; alguns feiticeiros são charlatães, mas a maioria é sincera; a maioria dos milionários sinceramente creem na existência de dinheiro e empresas de responsabilidade limitada. “A maioria dos ativistas dos direitos humanos acreditam na existência dos direitos humanos. Ninguém mentia quando, em 2011, a ONU pediu que o governo líbio respeitasse direitos humanos dos cidadãos, mesmo que ONU, Líbia e direitos humanos sejam fingimentos de imaginações férteis. Desde a Revolução Cognitiva, Sapiens passou a viver em realidade dual. Num lado, a realidade objetiva dos rios, árvores e leões; noutro, a imaginada dos deuses, nações e empresas. Com o tempo a realidade imaginada se tornou tanto mais poderosa, a ponto de rios, árvores e leões dependerem das entidades imaginadas como Estados Unidos e Google.

Harari faz uma “gozação” bem humorada para desvelar que a realidade por trás da imaginada é feita de teias de poder invisível, mas não menos efetivo. Mas seria o caso lembrar que a Revolução Cognitiva tem como um de seus esteios o poder de abstração e modelagem da mente humana – a ciência também é “construto social”, em suas teorias que só existem na mente dos cientistas. Não há teoria andando por aí, morando lá, vestindo isso ou aquilo. Mas, com sua instrumentação chegamos à Lua – são extremamente efetivas, como religiões são. O abstrato é parte do concreto, não sendo talvez bem o caso falar de realidade dual – é a mesma realidade de fundo, mas abstraída de modos diferenciados. Não dá para viver no mundo físico dos físicos, nem eles podem; vivemos em realidades concretas bem diferentes. São duas realidades? Certamente, não, ainda que até hoje não tenhamos deslindado tais mistérios da mente.

III. ULTRAPASSANDO O GENOMA
Estando cooperação humana de larga escala fundada em mitos, o modo de cooperar pode ser alterado mudando os mitos – inventando outras estórias. Em circunstâncias adequadas, mitos podem mudar rapidamente. Em 1789, a população francesa mudou da noite para o dia de crer no mito do direito divino dos reis para crer no mito da soberania popular. Desde a Revolução Cognitiva, Sapiens é capaz de revisar sem comportamento rapidamente de acordo com as necessidades. Isto abriu uma avenida da evolução cultural, ultrapassando barreiras de tráfego da evolução genética e com isso avançou muitíssimo além de outras espécies na habilidade de cooperar. O comportamento de outros animais sociais é determinado em grande medida pelos genes. “DNA não é autocrata” (H:32). Comportamento animal é influenciado também por fatores ambientais e encrencas individuais. Contudo, em dado ambiente, animais da mesma espécie tenderão a comportar-se de modo similar. Mudanças significativas em comportamento social não podem ocorrer, em geral, sem mutações genéticas. Por exemplo, chimpanzés comuns possuem a tendência genética de viver em grupos hierárquicos puxados por um macho alfa. Bonobos são mais igualitários, em geral dominados por alianças femininas, mas não fazem assembleias e escrevem uma constituição. Para tamanha mudança, há que haver também mudança genética. Humanos arcaicos não aprontaram nenhuma revolução; mudanças no padrão social, a invenção de novas tecnologias e a colonização de habitats estranhos resultaram de mutações genéticas e pressões ambientais mais do que de iniciativas culturais.

Eis a razão da demora para isto florescer; dois milhões de anos atrás, houve mutações genéticas que eclodiram no aparecimento de nova espécie humana chamada Homo erectus – esta emergência foi acompanhada pelo desenvolvimento de nova tecnologia da pedra, agora reconhecida como traço definitório desta espécie. Sem novas mutações genéticas, sua tecnologia estagnou por quase dois milhões de anos! Ao contrário, desde a Revolução Cognitiva, Sapiens foi capaz de mudar seu comportamento rapidamente, transmitindo novos comportamentos a gerações futuras sem necessidade de mudança genética ou ambiental. Harari dá como exemplo o aparecimento de elites sem filhos, como sacerdotes católicos, budistas, burocracias chinesas de eunucos. Vai contra princípios fundamentais da seleção natural abandonar a procriação, via abstinência sexual. Isto só pode ser curtido sobre mitos poderosos e crenças. Harari dá a entender, nas entrelinhas, que é difícil entender tais comportamentos, mesmo mantidos por milênios e em culturas tão diferentes, mas talvez emerja aí certa dose excessiva de “crença” no método científico, onde fés não cabem. Mas humanos sempre curtiram fés como fundamentos de suas existências, com lados positivos e negativos, certamente. Tem razão em alegar o quanto parece estranho que alguém decida viver em celibato – mas não é enfermidade; é fé. Muitos dirão que fé é alienação, excrescência evolucionária, mas sendo tão comum em humanos, talvez seja o caso achar normal.

Constrói um exemplo: um residente em Berlim de 1900 e chegando aos 100 anos; passou a infância no Império dos Hohenzollern de Guilherme II; a idade adulta na República de Weimar, no Terceiro Reich Nazista e na comunista Alemanha oriental; morreu cidadã de uma Alemanha democrática e reunificada; fez parte de cinco sistemas sociopolíticos bem diversos, mas o DNA foi o mesmo. Eis a chave do sucesso do Sapiens – na luta corpo a corpo, o Neandertal teria batido o Sapiens. Mas em conflito com centenas, não. Neandertals podiam colher informação sobre leões á volta, mas não faziam disso narrativa, incluindo espíritos. Sem ficção, não há cooperação! Tinham cognição limitada, a julgar por seus restos arqueológicos em sites no centro europeu – ocasionalmente acharam conchas marinhas do Mediterrâneo e Atlântico – parece que tais conchas foram para o interior continental via comércio entre bandos de Sapiens. Sítios de Neandertals não têm vestígios de comércio, cada grupo manufaturava suas ferramentas e materiais locais (Taborin, 1993).  

Outro exemplo do Pacífico sul. Bandos de Sapiens que viviam na ilha de Nova Irlanda, ao norte da Nova Guiné, usavam vidro vulcânico chamado obsidiana para manufaturar ferramentas particularmente fortes e afiadas. Mas aí não há depósito de obsidiana; testes de laboratórios revelaram que a obsidiana usada foi trazida de depósitos na Nova Guiné, uma ilha a 402 km de distância (Summerhayes, 1998). Comércio foi atividade bem pragmática, sem base ficcional, mas é fato que nenhum outro animal, a não ser o Sapiens, se envolveu nisso com base em ficções. Comércio não existe sem confiança, e é bem difícil confiar em estranhos. A rede global de comércio de hoje baseia-se na confiança em tais entidades fictícias como dólar, Banco Central americano, marcas totêmicas de empresas. Quando dois estranhos se encontram em sociedade tribal e querem comerciar, muitas vezes apelam para confiança via deus comum, ancestral mítico ou totem animal. Se podiam comerciar bens, permutavam também informação, cirando rede mais densa de ampla de conhecimento. Técnicas de caça são outro argumento das diferenças. Neandertals costumavam caçar sozinhos ou em grupos pequenos; Sapiens, por sua vez, desenvolveu técnicas que repousavam em cooperação entre muitas dezenas de indivíduos e talvez mesmo entre bandos diferentes. Método bem eficaz era cercar um bando inteiro de animais, como cavalos selvagens, e então caçar à distância pequena, sendo possível matar em massa, conforme planejamento prévio. Arqueólogos descobriram sítios onde bandos inteiros foram mortos anualmente assim. Há mesmo sítios onde cercas e obstáculos foram erigidos para fazer arapucas artificiais. Havendo violência entre Neandertals e Sapiens, os primeiros não eram muito melhores que cavalos selvagens; mesmo que Sapiens perdesse o primeiro round, podiam se reprogramar em novos estratagemas na próxima.

Assim, cultura passou a força evolucionária, rivalizando com o DNA, cuja proporção é sempre objeto de muita querela científica. Isto poderia também dar outra luz sobre religiões, não como esquisitice aos olhos científicos, mas como tecnologias do espírito para dar sentido à vida, organizar razões de ser, morais, apegos e felicidades. Religiões são também armas de guerra, mas não menos ciência.

IV. REVOLUÇÃO COGNITIVA

Nova habilidade
Consequências mais amplas
Habilidade de transmitir quantidades mais amplas de informação sobre o mundo à volta do Homo sapiens Planejar e executar ações complexas, como evitar leões e caçar bisão
Habilidade de transmitir quantidades maiores de informação sobre relações sociais do SapiensGrupos maiores e mais coesivos chegando a 150 indivíduos
Habilidade de transmitir informação sobre coisas que não existem realmente, tais como espíritos tribais, nações, empresas de responsabilidade limitada e direitos humanosa) Cooperação entre grandes números de estranhos;
b) inovação rápida de comportamento social (H:37).

Surge parceria entre história e biologia (H:37). A diversidade imensa de realidades imaginadas inventadas pelo Sapiens e resultante pletora comportamental são peças centrais do que chamamos “culturas”. Tendo aparecido, nunca cessaram de mudar, desenvolver-se e alterações imparáveis é o que chamamos de “história”. É o ponto em que história se livra da biologia; até então, os feitos humanos pertenciam ao reino da biologia, ou à pré-história). Depois, narrativas históricas substituíram teorias biológicas como meios primordiais de explicar o desenvolvimento do Sapiens. Para entender o surgimento da Cristandade ou a Revolução Francesa, não basta compreender a interação de genes, hormônios e organismos; é mister tomar em conta a interação de ideias, imagens e fantasias também. Não significa que biologia sumiu, já que continuamos animais, sendo que habilidades físicas, emocionais e cognitivas são moldadas pelo DNA ainda. Nossas sociedades são constituídas dos mesmos blocos de construção dos Neandertals e chimpanzés, e quanto mais examinamos – sensações, emoções e laços familiares – tanto menos diferença achamos. Mas é erro olhar as diferenças ao nível do indivíduo ou família. Uma a um, ou dez a dez, somos “embaraçosamente” (Ib.) similares a chimpanzés. Diferenças significativas começam a aparecer quando ultrapassamos limiar de 150, chegando a mil ou dois mil, tornando-se estupefacientes. Reunindo milhares de chimpanzés, só vai dar confusão; mas Sapiens se reúnem aos milhões, bilhões. Juntos criam padrões como redes de comércio, celebrações e instituições políticas...

A diferença real entre nós e chimpanzés é a cola mítica que nos une em números bastos de indivíduos, famílias e grupos. Isto nos fez mestres da criação (H:38). Precisamos de outras habilidades, como de fazer ferramentas, mas isto será de pouca consequência sem vínculo com a habilidade de cooperar em multidões. Como foi que agora temos mísseis intercontinentais com ogivas nucleares, enquanto há 30 mil anos tínhamos apenas lanças primitivas? Fisicamente não houve melhoria significativa na capacidade de fazer ferramentas nos últimos 30 mil anos. Mas nossa capacidade de cooperar com grandes números de estranhos melhorou demais. Uma lança se faz rápido, com ajuda de parceiros, mas um míssil com ogiva atômica pede cooperações de milhões de estranhos...

Em suma, a relação entre biologia e história ficou assim na Revolução Cognitiva: i) biologia põe parâmetros básicos para comportamento e capacidades do Homo sapiens; a história toda ocorre dentro dos limites desta arena biológica; ii) contudo, esta arena é extraordinariamente ampla, permitindo ao Sapiens jogar variedade estonteante de jogos; graças à habilidade de inventar ficção, Sapiens cria jogos mais e mais complexos, que cada nova geração elabora e desenvolve ainda mais; iii) consequentemente, para entender como Sapiens se comportam, precisamos descrever a evolução histórica de suas ações; referir-se apenas às constrições biológicas seria como um locutor de rádio esportivo, assistindo à Copa do Mundo, dar apenas uma descrição do campo, ao invés do que os jogadores fazem (H:38).

CONCLUSÃO
Harari se apega ao lado fictício mental da produção imaginária, também porque isso lhe dá chance de fazer uma paródia ferina interessante. Mas poderia ter sublinhado a capacidade de abstração modelar, base da cognição dita científica, em especial no uso da matemática (algo tipicamente abstrato), para enfrentar um dos desafios maiores epistemológicos: para entender o concreto é preciso abstrair dele! A realidade não é o que parece. No mundo da ficção, porém, é o caso fazer distinções importantes como é a ficção religiosa e científica – possivelmente ambas são essenciais evolucionariamente, mas hoje apreciamos bem mais a segunda (como faz Harari com picardia). O mundo científico pode ser visto como ficção – Einstein gostava de partir de experimentos mentais – mas é uma ficção matematizada, bem diferente de um conto de fadas. Precisamos deste também, porém.


REFERÊNCIAS
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HARARI, Y.N. 2015. Sapiens: A brief history of humankind. Harper, London.
HILL, R.A.; DUNBAR, R.I.M. 2003. ‘Social Network Size in Humans’, Human Nature 14:1 (2003).
MCCARTHY et alii, 2001. ‘Comparing Two Methods for Estimating Network Size’, Human Organization 60:1 (2001).
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WAAL, F. 2000. Chimpanzee Politics: Power and Sex among Apes (Baltimore: Johns Hopkins University Press, 2000).
WALL, F. 2005. Our Inner Ape: A Leading Primatologist Explains Why We Are Who We Are (New York: Riverhead Books, 2005).
WILSON, M.L.; SRANGHAM, R.W. 2003. ‘Intergroup Relations in Chimpanzees’, Annual Review of Anthropology 32 (2003), 363–92.

A Alegoria da Caverna





A arcaica lavoura de Nassar


Uma impressão similar à que tive ao ler Um copo de cólera tive também ao ler Lavoura arcaica: a narrativa de Nassar a todo o tempo parecia me remeter à prosa rascante de Franz Kafka. Essa percepção, sobre a qual já falei na resenha que escrevi sobre o primeiro livro, foi redimensionada no segundo livro, pois a história ali contada é de tal maneira límpida e solene, que a catarse, a tragédia, aparece como um golpe desferido após uma longa gestação de prazeres sinestésicos. Não à toa é tão fulminante e desconcertante, é “um machado para quebrar o ar de gelo que há dentro de nós.”

Mas, antes de me fiar em recursos investigativos dos quais já me utilizei outrora ou de querer fruir a obra de um autor através de obras de outros autores, ao invés de partir da sua singularidade, deixem-me discorrer um pouco sobre o enredo, a estrutura e os personagens de Lavoura arcaicaO romance foi publicado em 1975 e conta a história de André, filho de uma família camponesa, que deixou a casa paterna após constatar que não conseguiria continuar sob a égide da mentalidade tradicionalista e conservadora que imperava sobre o sítio em que habitavam. Entre outras razões. A sequência que abre o livro é justamente aquela em que Pedro, irmão de André, chega ao quarto de pensão do irmão, e busca convencê-lo a voltar para casa.

As feições psicológicas dos personagens vão se desenhando com riqueza apesar de Nassar ser preciso e econômico em sua escritura. Pedro é um tipo mais calmo, de espírito mais brando, que busca reconciliar as pontas soltas da família e reconstituir o tecido existencial dos tempos de outrora, nos quais imperava a harmonia. André é o espírito flamejante, sedento de liberdade e constantemente propenso a entregar-se com ardor as suas paixões e arroubos. O pai representa a típica vontade férrea e o pulso firme daqueles cujas rédeas da família e do sítio repousam à mão, decidido, direto, bruto e sistemático. A mãe vive em constante estado de tensão, esticada sobre os dilemas familiares entre dois pólos de atitude: a obediência ao rígido patriarca e a candura maternal para com os filhos. Ana é a filha, a mulher a florescer, confusa, ardorosa, sensível e propensa a assumir posturas extremas diante das invectivas dos pais. Lula é o caçula, o caçula que parece ter aprendido com os irmãos a atitude gauche daqueles que não se conformam com as normatizações cotidianas de uma vida sob um estigma.

A trama do livro decorre em torno do amor proibido que André sente por Ana, assim como sua reciprocidade. O contraste entre essa polêmica relação e o pano de fundo de tradições conservadoras clássicas do campo dá o tom com o qual a trama se move. Nassar consegue delinear traços típicos da mentalidade e da visão de mundo da “lavoura arcaica” através de pinceladas apuradas, traduzindo nos atos e palavras do pai, por exemplo, todo um constructo de valores e elementos históricos, assim como na postura da mãe, a partir da qual o tecido existencial da questão da posição da mulher no mundo da lavoura arcaica é trazido a lume.

O romance incestuoso que põe em questão o suposto arcaísmo da lavoura não passa despercebido como algo chocante aos olhos do autor. Ele não quer nos levar a relativizar de maneira absoluta o fato de que se trata de um tabu profundamente arraigado, mas conduzir nosso olhar para uma perspectiva perturbadoramente interessante: o de como a transgressão amorosa de André e Ana se encontra incrustada dentro de um cosmos particular, o modo de vida rural.

Para que esse conflito tenha profundidade e seja cotejado em sua complexidade, Nassar faz o movimento de urdir a tessitura sentimental e moral do cosmos da lavoura arcaica. Para tal ele busca nos personagens e nas situações recursos através dos quais essa ambiência (ambiência no sentido de extrapolar o espaço e transformá-lo em arranjo e experiência humanos) venha à tona. A postura rígida do pai, por exemplo, é um dos elementos que compõem a vida nos domínios da lavoura arcaica, assim como ela é, também, um dos elementos que indispõem André a esse mundo. A moralidade estrita, o trabalho duro e estafante, a aridez existencial que esse mundo costuma cobrar de seus habitantes são outros dos elementos que ajudam a compor o panorama espiritual e humano da vida na lavoura.

É assim que o leitor, ciente da textura humana desse modo vida, consegue enxergar as várias dimensões do ato de André bem como a beleza rústica dessa experiência existencial. Nassar não quer nos conduzir a julgamentos fechados, mas chamar nossa atenção para a complexidade da questão, apesar da moralidade polarizante nela imbricada. Não moralismo, moralidade.

Creio que seja por conta dessa intencionalidade velada que ele faz sua narrativa ter algo de parábola bíblica. O retorno de André ao sítio tem em torno de si uma aura estarrecedoramente similar à bíblica volta do filho pródigo. A dança profana de Ana, celebrando de forma ousada a volta do irmão amado, tem algo que lembra as descrições da mulheres pecaminosas que perambulam pelas páginas da Bíblia, entre elas a famosa – e controversa – Maria Madalena. A atitude extremada do pai tem algo daquele ranger de dentes que não raro espoca em algumas das histórias bíblicas. O próprio patriarcado parece ser um outro ponto de semelhança entre uma e outra narrativa.

Com poucos elementos e personagens, Raduan Nassar cria uma bela história. A riqueza psicológica dos personagens dá conta de expressar o espírito e a essência dos conflitos da lavoura arcaica e de suas dinâmicas humanas. Os objetos e os eventos são revestidos de tal poder simbólicos que prescindem da existência de mais deles: o sono fingido de Lula como a cumplicidade confusa de dois deslocados naquele mundo; os acessórios de Ana como a coroação ritualística da dança catalisadora da catarse; o arroubo do pai como a tragédia do homem que quer preservar sua rigidez patriarcal a todo o custo.

Costurando sentimentos, personagens e situações, a prosa poética de Nassar consegue dar conta de explorar algumas das várias dimensões que, entretecidas na trama da vida e da existência humana, formam a “geometria barroca do destino”. Com uma expressividade muito bem trabalhada e alocada, Lavoura arcaica consegue ir além de suas imediações históricas e suas circunscrições específicas, sendo um clássico no sentido universal, isto é, que lida com dramas que pertencem ao domínio da assim chamada natureza humana, e não somente daqueles personagens ou dos sujeitos que os inspiraram.



O homem que amava os cachorros


“A dor e a miséria figuram entre aquelas poucas coisas que, quando repartidas, tornam-se sempre maiores.”

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“O ódio é uma doença incontrolável.”

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“O olhar de Liev Davidovitch, no entanto, tentava ver para lá dos edifícios, das igrejas pontiagudas, das mesquitas arredondadas: tentava ver a si próprio naquela cidade (turca) onde não tinha um único amigo, um único seguidor de confiança. E não se encontrou. Sentiu que, naquele preciso instante, começava o seu exílio: verdadeiro, total, sem ter onde se agarrar. Para além da família e de alguns poucos amigos que lhe tinham reiterado a sua solidariedade, era um homem aflitivamente só. Seus únicos aliados úteis numa luta que devia iniciar (como?, por onde?) continuavam isolados em campos de trabalho ou já tinham claudicado, mas permaneciam todos dentro das fronteiras da União Soviética, e a relação com eles ia se apagando com a distância, a repressão e o medo.

Ao evocar aquela manhã de aspecto tão agradável, Liev Davidovitch recordaria sempre da urgência que experimentara de apertar a mão de Natália Sedova para sentir algum calor humano ao seu lado, para não asfixiar de tanta angústia diante da sensação de abandono que o acossava. Mas recordaria também que nesse momento tinha fortalecido a sua decisão de que, embora só, o seu dever seria lutar. Se a Revolução pela qual tinha combatido se prostituía na ditadura de um czar vestido de bolchevique, seria necessário nesse caso arrancá-la com raiz e tudo e semeá-la de novo, porque o mundo precisava de revoluções verdadeiras. Aquela decisão, estava ciente, o aproximaria ainda mais da morte que já o vigiava das torres do Kremlin. A morte, no entanto, podia ser considerada apenas uma contingência inevitável: Liev Davidovitch sempre pensara que as vidas de um, de dez, de cem, de mil homens podem e até devem ser devoradas se o turbilhão social assim o exigir para atingir seus fins transformadores, pois o sacrifício individual é muitas vezes a lenha que se queima na pira da revolução. Por isso lhe dava vontade de rir quando certos jornais insistiam em mencionar a sua “tragédia pessoal”. De que tragédia falavam?, escreveria. No processo sobre-humano da revolução não tinha cabimento pensar em tragédias pessoais. Sua tragédia, quando muito, era saber que para se lançar na luta não tinha à mão correligionários forjados no forno da revolução, nem meios econômicos e muito menos um partido. Mas restava-lhe aquela que sempre fora a sua melhor arma: a pena, a mesma que difundira as suas ideias nas colaborações entregues ao Iskrae que, já no seu primeiro desterro, o conduzira ao coração da luta, desde aquela noite de 1901 em que recebera a mensagem capaz de situar a sua vida de lutador no vórtice da história; a pena fora convocada para a sede do Iskra, em Londres, onde o esperava Vladimir Ilitch Ulianov, já conhecido como Lenin.”

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“O verdadeiro revolucionário começa a sê-lo quando subordina sua ambição pessoal a um ideal. Os revolucionários podem ser cultos ou ignorantes, inteligentes ou limitados, mas não podem existir sem vontade, sem devoção, sem espírito de sacrifício.” (L. D. Trotski)

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“Em Prínkipo, a presença de Trotski não provocava sobressaltos, e essa evidência o fez compreender que, se seu nome ainda gerava confusões na Europa, não se devia ao que ele pudesse originar mas àquilo que seus inimigos exigiam que lhe fosse entregue em pagamento dos seus atos: hostilidade, repressão, rejeição. O ódio de Stalin, transformado em razão de Estado, tinha posto em marcha a mais potente engrenagem de marginalização jamais dirigida contra um indivíduo solitário. Mais ainda, tinha se entronizado como estratégia universal do comunismo, controlado a partir de Moscou, e até como política editorial de dezenas de jornais. Por isso, engolindo os vestígios do seu orgulho, teve de admitir que, enquanto no Kremlin não decidissem quando a sua vida deixaria de ser útil, manteriam-no preso num ostracismo inflexível justamente até se decretar a queda do pano e o fim da palhaçada. E, pela primeira vez, atreveu-se a pensar em sua vida em termos de tragédia: a clássica, a grega, sem oportunidade para apelações.”

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“Olha, Ramón, entre as muitas coisas que você tem de aprender estão a ter paciência e a saber que não se atacam os inimigos quando estão de pé, mas quando estão de joelhos. E atacam-se sem piedade, caralho!”

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“A morte é tão definitiva e irreversível que quase não deixa margem para outros temores.”

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“Aquela jogada sórdida permitiu que Liev Davidovitch percebesse uma coisa que lhe escapara durante os julgamentos anteriores: Stalin também se propusera a transformar as poucas figuras do passado que ainda o acompanhavam já não em comparsas submissos de suas mentiras, mas em cúmplices diretos de sua fúria criminosa. Quem não fosse vítima seria cúmplice e, mais ainda, carrasco. O terror e a repressão estabeleciam-se como política de um governo que adotava a perseguição e a mentira como recursos de Estado e estilo de vida para o conjunto da sociedade.”

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“A primeira conclusão de Trotski foi que, de acordo com o governo stalinista, todos os membros do bureau político que levaram a revolução ao triunfo, que acompanharam Lenin nos dias mais difíceis da guerra e da fome e colocaram o país em marcha, homens que sofreram a cadeia, o desterro e inúmeras repressões, na realidade tinham sido desde sempre traidores dos seus ideais e, mais ainda, agentes a serviço de potências estrangeiras desejosas de destruir o que eles próprios tinham construído. Não seria um paradoxo os líderes de Outubro, todos eles, acabarem sendo traidores? Será que o traidor não era um só e se chamava Stalin?”

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“Há várias semanas, um grupo de escritores e ativistas políticos que se diziam próximos das posições do velho revolucionário tinham se obstinado, no calor dos vinte anos de Outubro, em procurar os defeitos do sistema bolchevique que proporcionaram a entronização do stalinismo. Para isso, quiseram desenterrar, com particular insistência, a repressão sangrenta da revolta dos marinheiros de Kronstadt e, invocando a pureza da verdade histórica, decidiram tornar pública a responsabilidade do exilado nos acontecimentos. O argumento mais utilizado fora de que aquela repressão podia ser considerada o primeiro ato do “terror stalinista” inerente ao bolchevismo no poder, e equiparavam a resposta militar e o fuzilamento de reféns aos expurgos de Stalin. Devido à sua responsabilidade à frente do exército, consideravam o então comissário da Guerra o progenitor daqueles métodos de repressão e de terror.

Fora doloroso para Liev Davidovitch saber que homens como Eastman, Victor Serge ou Souvarine sustentavam aquelas opiniões acerca de uma responsabilidade que o acossava há anos, mas incomodava-o, sobretudo, que tivessem retirado do seu contexto um motim militar, verificado no tempo da guerra civil, e o tivessem colocado ao lado de processos fabricados e fuzilamentos sumários de civis em tempos de paz.

Durante semanas, Liev Davidovitch se embrenharia naquela disputa histórica. Para começar a rebatê-los, o exilado teve de aceitar a responsabilidade que lhe correspondia como membro do Politburo, por ter aprovado, ele também, a repressão daquela estranha sublevação, mas recusou-se a aceitar a acusação de que ele pessoalmente favorecera a repressão e incentivara a crueldade com que tinha se manifestado. “Estou disposto a considerar que a guerra civil não é precisamente uma escola de conduta humanitária e que, de um lado e de outro, se cometem excessos imperdoáveis”, escreveu. “É verdade que em Kronstadt houve vítimas inocentes, e o pior excesso foi o fuzilamento de um grupo de reféns. Mas, mesmo tendo morrido inocentes, o que é inadmissível em qualquer tempo e lugar, e mesmo tendo sido eu, como chefe do exército, o derradeiro responsável pelo que aconteceu ali, não posso admitir uma equiparação entre o esmagamento de uma rebelião armada contra um governo frágil e em guerra com 21 exércitos inimigos e o assassinato frio e premeditado de camaradas cujo único crime foi pensar e, quando muito, dizer que Stalin não era a única nem a melhor opção para a revolução proletária.”

Mas Liev Davidovitch sabia que Kronstadt ficaria eternamente marcado como um capítulo negro da Revolução e que ele próprio, cheio de vergonha e de dor, carregaria para sempre essa culpa. Também sabia que, se em Kronstadt os bolcheviques (e incluía-se a si próprio e a Lenin) não tivessem reprimido sem piedade a rebelião, talvez tivessem aberto as portas à restauração. Assim, simples, terrível e cruel, podem ser a revolução e suas opções, pensou nessa altura e continuaria a pensar até o fim, sem que nada o fizesse mudar de opinião.”

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“A jogada de mestre da procuradoria era acusar Iagoda de ter agido como um instrumento das agressões trotskistas. Em consequência disso, durante os dez anos em que perseguira, prendera e torturara os camaradas de Liev Davidovitch e confinara milhares de pessoas aos campos da morte, seus excessos criminosos deviam-se a ordens contrarrevolucionárias justamente de Trotski, e não a disposições de Stalin…

Sentindo como aquela agressão à verdade lhe devolvia as forças, o exilado escreveu que Stalin, o Coveiro da Revolução, conseguia superar toda a sua experiência anterior, além de ultrapassar os receptáculos da credulidade mais militante. A irracionalidade das acusações era tanta que lhe era quase impossível conceber um contra-ataque, embora inicialmente tenha decidido responder usando a ironia: é tamanho o meu poder, escreveu, que por ordens minhas, dadas a partir da França, da Noruega ou do México, dezenas de funcionários e de embaixadores com quem nunca falei se transformam em agentes de potências estrangeiras e me enviam dinheiro, muito dinheiro, para apoiar minha organização terrorista; chefes de indústrias tornam-se sabotadores; médicos respeitáveis dedicam-se a envenenar seus pacientes. O único problema, comentaria, era aqueles homens terem sido dirigentes escolhidos pelo próprio Stalin, pois há muitos anos ele não nomeava ninguém na União Soviética.

As confissões inacreditáveis ouvidas durante os dez dias que durou o processo e a forma como foram obrigados a humilhar-se homens repletos de história como Bukharin e Rikov não surpreenderam Liev Davidovitch. Mas provocou-lhe uma enorme tristeza, pelo contrário, ler as autoincriminações de um lutador como o radical Rakovski (tão perto da morte que lhe fora permitido prestar declarações sentado), que reconheceu ter se deixado levar pelas aventureiras teorias trotskistas, apesar de Trotski ter lhe confessado em 1926 sua condição de agente britânico. A que extremos teriam chegado as pressões para quebrar a dignidade de um homem que resistira a anos de deportações e de prisão sem renunciar às suas convicções e que sabia, além disso, estar no fim da vida? Será que algum deles acreditava que, com a sua confissão, prestava um serviço à União Soviética, como eram obrigados a repetir? Liev Davidovitch teve de reconhecer ser incapaz de compreender aquelas exibições de submissão e covardia.

Um primeiro contratempo do processo revelou as costuras da sua montagem. Foi protagonizado por Krestinski, que, durante uma tarde inteira, se atreveu a afirmar que suas confissões, feitas à polícia secreta, eram falsas e se declarou inocente de todas as acusações. Mas, na manhã seguinte, quando subiu ao estrado, Krestinski admitiu serem verdadeiras as acusações anteriores, além de mais algumas, certamente elaboradas a toda a pressa. Com que argumentos teriam quebrado um homem já convencido de que ia ser fuzilado? A nova GPU estava desenvolvendo métodos que apavorariam o mundo no dia em que fossem conhecidos, métodos graças aos quais se verificou a revelação mais espetacular do processo, quando Iagoda, depois de se declarar inocente e de receber o mesmo tratamento que Krestinski, confessou ter preparado o assassinato de Kirov por ordens de Rikov, uma vez que este invejava a ascensão meteórica do jovem.

Mas a estrela do julgamento, como seria de se esperar, foi Nicolai Bukharin, que, depois de um ano de estada nos porões da Lubianka, parecia pronto para cometer o último ato de sua autodestruição política e humana. Embora negasse ser responsável pelas atividades de terrorismo e de espionagem mais assustadoras, Liev Davidovitch julgou compreender que sua tática era aceitar o inaceitável com uma convicção e uma ênfase com que pretendia demonstrar aos observadores mais perspicazes a falsidade da instrução criminal. O velho revolucionário, no entanto, percebeu o erro de perspectiva cometido por Bukharin ao tentar lançar um grito de alarme aos alarmados, para quem (apesar do silêncio que mantinham) todas aquelas acusações seriam tão pouco críveis como as dos julgamentos anteriores. Mas a grande massa, aquela que em Moscou e no mundo seguia o decorrer dos processos, tinha tirado de suas palavras uma única conclusão que validava as acusações e destruía a estratégia do réu: Bukharin confessou, disseram, e isso era o mais importante. Fora para acabar ajoelhado e choroso, admitindo crimes fictícios, que Bukharin preferira voltar a Moscou?, Liev Davidovitch se perguntaria, recordando a carta dramática que Fiodor Dan lhe remetera há três anos.

Parecia evidente a Liev Davidovitch que, nos processos, Stalin exigia dos acusados, mais que uma verdade, a sua autodestruição humana e política. Quando executara os condenados dos julgamentos anteriores, obrigara-os a morrer com a consciência de que não só tinham escarnecido de si próprios, como, além disso, tinham condenado muitos inocentes. Por isso se admirava de que Bukharin, que sem dúvida aprendera a lição dos bolcheviques que o antecederam naquela situação, conservasse a esperança vã de salvar a vida. Numa das muitas cartas que escreveu a Stalin dos porões da Lubianka e que o Coveiro se encarregava de fazer circular em algumas esferas, Bukharin chegou a dizer-lhe que só sentia por ele, pelo Partido e pela causa, um amor grandioso e infinito, e despedia-se abraçando-o em pensamentos… Liev Davidovitch podia imaginar a satisfação de Stalin ao receber mensagens como aquela, que o transformavam num dos poucos carrascos da história a obter a veneração de suas vítimas enquanto as empurrava para a morte… Em 11 de março, os autos tinham sido conclusos para a sentença. Quatro dias depois, os condenados à morte foram executados, garantia o Pravda…

Desde que aquela encenação começou a ser exibida, Liev Davidovitch manteve-se no seu quarto porque lhe era doloroso tentar responder às perguntas que lhe colocavam jornalistas, correligionários, secretários e guarda-costas, todos à procura de uma lógica existente para além do ódio, da obsessão conspiratória e da insanidade criminosa do homem que governava um sexto da Terra e a mente de milhões de pessoas em todo o mundo. Liev Davidovitch sabia que o único objetivo possível de Stalin nesses processos era desacreditar e eliminar adversários reais e potenciais e transferir para eles as culpas por cada um de seus fracassos. O que lhes escapava era aquele descrédito ser dirigido para o interior da sociedade soviética, que, numa porcentagem sem dúvida notável, devia acreditar em tudo o que era divulgado, por mais difícil que fosse sua assimilação. Outro grande objetivo era tornar o medo extensivo e onipresente, sobretudo o medo dos que tinham alguma coisa a perder. Por isso os primeiros destinatários daqueles expurgos tinham sido, na realidade, os burocratas: seguindo essa estratégia, Stalin atingia dezenas dos seus acólitos, incluindo vários membros do Politburo e secretários do Partido nas repúblicas, stalinistas que, de um dia para o outro, tinham sido qualificados como traidores, espiões ou ineptos. Se os oposicionistas de outros tempos foram desonrados publicamente, os stalinistas, pelo contrário, costumavam ser destruídos em silêncio, sem processos abertos, da mesma forma que tinham sido dizimados os comunistas de diversos países refugiados na União Soviética, contra quem Stalin, depois de usá-los, parecia ter se encarniçado.

O mais preocupante era saber que aquelas limpezas tinham afetado toda a sociedade soviética. Como era de se esperar, num Estado de terror vertical e horizontal, a participação das massas na depuração contribuíra para sua difusão geométrica, porque não era possível desencadear uma caçada como aquela que se vivia na União Soviética sem exacerbar os instintos mais baixos das pessoas e, sobretudo, sem que cada uma delas sofresse do terror de cair em suas redes, por qualquer motivo que fosse – ou mesmo sem motivos. O terror gerara o efeito de estimular a inveja e a vingança, além de ter criado um ambiente de histeria coletiva e, pior ainda, de indiferença pelo destino dos outros. A depuração alimentava-se de si própria e, uma vez desencadeada, libertava forças infernais que a obrigavam a seguir em frente e a crescer…

Semanas antes, Liev Davidovitch constatara dramaticamente o horror vivido por seus compatriotas quando uma velha amiga, fugida milagrosamente para a Finlândia, lhe escrevera: “É terrível verificar que um sistema nascido para resgatar a dignidade humana tenha recorrido à recompensa, à glorificação, ao estímulo da denúncia, e que se apoie em tudo o que é humanamente vil. A náusea sobe-me pela garganta quando ouço as pessoas dizerem: fuzilaram M., fuzilaram P., fuzilaram, fuzilaram, fuzilaram. As palavras, de tanto as ouvirmos, perdem seu sentido. As pessoas repetem-nas com a maior tranquilidade, como se estivessem dizendo: vamos ao teatro. Eu, que vivi esses anos no medo e senti a compulsão de denunciar (confesso com pavor, mas sem sentimento de culpa), deixei de sentir na minha mente a brutalidade semântica do verbo fuzilar… Sinto que chegamos ao fim da justiça na Terra, ao limite da indignidade humana. Que morreram demasiadas pessoas em nome daquela que, prometeram-nos, seria uma sociedade melhor”…”

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“Para a arte, a liberdade é sagrada, é a sua única salvação. Para a arte, tudo tem de ser tudo”. (Trotski)

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“Para indignação de poucos e para confirmação popular de suas boas intenções, o Grande Capitão tinha criticado os executores do expurgo, que fora acompanhado, as palavras eram suas, de “mais erros que os esperados”. Nesse caso, tudo teria corrido bem se só tivessem sido cometidos os erros esperados? Quantas pessoas podiam ser fuziladas por engano?

Na realidade, a mais dramática das certezas históricas que o Congresso revelara foi a de que o secretário-geral tinha chegado finalmente aonde desejava em sua ascensão ao céu do poder. O terror daqueles últimos anos tinha lhe permitido tirar de cena, de uma maneira ou de outra, dezoito dos vinte e sete membros do Politburo eleitos no último congresso presidido por Lenin, e poupar a cabeça de apenas um quinto dos membros do Comitê Central eleitos em 1934, quando a situação, pela última vez, esteve prestes a fugir-lhe das mãos. Stalin tinha demonstrado ser um verdadeiro gênio da trapaça: sua bem-sucedida eliminação de qualquer oposição no interior do Partido (apoiando-se no acordo sobre a ilegalidade das facções promovido por Lenin) transformou-se em sua arma política mais eficaz para acabar com a democracia e, mais tarde, instaurar o terror e levar a cabo os expurgos que lhe deram o poder absoluto. Talvez o primeiro erro do bolchevismo, deve ter pensado Liev Davidovitch, tenha sido a eliminação radical das tendências políticas que se lhe opunham. Quando essa política passou do exterior da sociedade para o interior do Partido, começou o fim da utopia. Se a liberdade de expressão fosse permitida na sociedade e dentro do Partido, o terror não teria conseguido se implantar. Por isso Stalin empreendera a depuração política e intelectual, para que ficasse tudo sob a alçada de um Estado devorado pelo Partido, de um Partido devorado pelo secretário-geral. Exatamente como Liev Davidovitch, antes da abortada revolução de 1905, disse a Lenin que aconteceria.”

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“O que mais o encorajava Trotski a dedicar-se à escrita daquela desoladora biografia de Stalin, era a convicção de que, tal como acontecera ao também deificado Nero, depois de sua morte as estátuas de Stalin seriam derrubadas e seu nome apagado de toda a parte, porque a vingança da história costuma ser mais terrível do que a do mais poderoso imperador que alguma vez existiu.”

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“Minha fama de boa pessoa, mais que a de veterinário eficiente, espalhou-se pela zona e as pessoas iam me ver com animais tão magros como elas (conseguem imaginar uma serpente magra?) e, por absurdo que pareça naqueles dias de escuridão, ofereciam-me medicamentos, linha para suturas, ataduras que por alguma razão haviam sobrado, numa prática fervorosa da solidariedade entre os fodidos, que é a única verdadeira.”

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“Embora ainda não tivesse começado a acompanhar Ana à igreja, Dany, Frank e os outros poucos amigos que via diziam que eu parecia estar trabalhando para minha candidatura à beatificação e minha ascensão incorpórea aos céus. A verdade era que, lendo e escrevendo sobre como a maior utopia que alguma vez os homens tiveram ao alcance da mão fora pervertida, mergulhando nas catacumbas de uma história que mais parecia um castigo divino que obra de homens ébrios de poder, de ânsias de controle e de pretensões de transcendência histórica, tinha aprendido que a verdadeira grandeza humana está na prática da bondade incondicional, na capacidade de dar aos que nada têm não o que nos sobra, mas uma parte do pouco que temos. Dar até doer, e não fazer política nem pretender prerrogativas com essa ação, muito menos praticar a enganosa filosofia de obrigar os outros a aceitar nossos conceitos do bem e da verdade por (acreditarmos) serem os únicos possíveis e por, além disso, deverem estar agradecidos pelo que lhes demos, mesmo que não o tivessem pedido. E, embora soubesse que a minha cosmogonia era de todo impraticável (e que merda fazemos com a economia, com o dinheiro, com a propriedade, para que tudo isso funcione? e que porra fazemos com os espíritos predestinados e com os filhos da puta de nascença?), satisfazia-me pensar que talvez um dia o ser humano pudesse cultivar essa filosofia, que me parecia tão elementar, sem sofrer as dores de um parto ou os traumas da obrigatoriedade, por pura e livre escolha, por necessidade ética de ser solidário e democrático. Masturbações mentais minhas…”

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“Com aquele impulso, que ele sabia ser um epílogo, Trotski pôs-se a dar forma às suas últimas vontades. “Durante 43 anos da minha vida consciente fui um revolucionário”, escreveu, “e durante 42 lutei sob a bandeira do marxismo. Se tivesse de começar outra vez, tentaria evitar este ou aquele erro, mas o decurso geral da minha vida permaneceria inalterado. Morrerei sendo um revolucionário proletário, um marxista, um materialista dialético e um ateu irreconciliável. Minha fé no futuro comunista da humanidade não é hoje menos ardente (antes, mais firme) do que era nos dias de minha juventude. (...) A vida é bela, os sentidos celebram sua festa… Que as gerações futuras limpem a vida de todo o mal, de toda a opressão e violência, e desfrutem dela com plenitude”.”

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“Ramón decidira desde o princípio, mesmo quando estava convencido de que Roquelia tinha sido enviada por seus chefes distantes, manter a mulher à margem dos pormenores mais profundos de sua relação com o mundo das trevas, porque, no meio dos ímpios de sempre, não saber é a melhor maneira de estar protegido.”

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“– Compreende agora que somos uns empestados? Você consegue se dar conta de que somos o que Stalin criou de pior e, por isso, ninguém nos quer, nem aqui na União Soviética depois de sua morte, nem no Ocidente? Que, quando aceitamos a missão mais honrosa, estávamos nos condenando para sempre, porque íamos executar uma vingança que o cérebro enfermo de Stalin julgava necessária para conservar o poder?

– Stalin não era um doente. Nenhum doente governa meio mundo durante trinta anos. Vocês mesmos diziam: Stalin sabe o que faz…

– É verdade. Mas uma parte dele estava doente. Dizem que matou cerca de 20 milhões de pessoas. Um milhão pode ter sido por necessidade, os outros 19 milhões foram por doença, eu digo… Mas já lhe disse que Stalin não era o único doente.”

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“Stalin, pare de enviar assassinos para me liquidarem. Já apanhamos cinco. Se não parar com isso, eu enviarei pessoalmente um homem a Moscou, e não haverá necessidade de mandar outro.” (Marechal Tito, em carta datada de 1950 encontrada nos arquivos pessoais de Stalin)

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“Pensou que o fato de ter acreditado e lutado pela maior utopia jamais concebida implicava doses necessárias de sacrifícios. Ele, Ramón Mercader, tinha sido um dos arrastados pelos rios subterrâneos daquela luta desproporcional, e não valia a pena esquivar-se de responsabilidades nem tentar atribuir suas culpas a enganos e manipulações: ele encarnava um dos frutos podres que apareciam mesmo nas melhores colheitas e, ainda que fosse verdade que outros lhe tinham aberto as portas, ele atravessara, satisfeito, o umbral do inferno, convencido de que deveria existir a morada das trevas para que houvesse um mundo de luz.”

O homem que amava os cachorros – Leonardo Padura
Editora: Boitempo
ISBN: 978-85-7559-445-2
Tradução: Helena Pitta
Páginas: 592
Fonte: http://jornalggn.com.br/blog/doney/lista-de-livros-o-homem-que-amava-os-cachorros-de-leonardo-padura