O Menino, a Toupeira, a Raposa e o Cavalo

Olhos d’água


Uma noite, há anos, acordei bruscamente e uma estranha pergunta explodiu de minha boca. De que cor eram os olhos de minha mãe? Atordoada custei reconhecer o quarto da nova casa em que estava morando e não conseguia me lembrar como havia chegado até ali. E a insistente pergunta, martelando, martelando... De que cor eram os olhos de minha mãe? 

Aquela indagação havia surgido há dias, há meses, posso dizer. Entre um afazer e outro, eu me pegava pensando de que cor seriam os olhos de minha mãe. E o que a princípio tinha sido um mero pensamento interrogativo, naquela noite se transformou em uma dolorosa pergunta carregada de um tom acusatório. Então, eu não sabia de que cor eram os olhos de minha mãe?

Sendo a primeira de sete filhas, desde cedo, busquei dar conta de minhas próprias dificuldades, cresci rápido, passando por uma breve adolescência. Sempre ao lado de minha mãe aprendi conhecê-la. Decifrava o seu silêncio nas horas de dificuldades, como também sabia reconhecer em seus gestos, prenúncios de possíveis alegrias. Naquele momento, entretanto, me descobria cheia de culpa, por não recordar de que cor seriam os seus olhos. Eu achava tudo muito estranho, pois me lembrava nitidamente de vários detalhes do corpo dela. Da unha encravada do dedo mindinho do pé esquerdo... Da verruga que se perdia no meio da cabeleira crespa e bela... Um dia, brincando de pentear boneca, alegria que a mãe nos dava quando, deixando por uns momentos o lava-lava, o passa-passa das roupagens alheias, se tornava uma grande boneca negra para as filhas, descobrimos uma bolinha escondida bem no couro cabeludo ela. Pensamos que fosse carrapato. A mãe cochilava e uma de minhas irmãs aflita, querendo livrar a boneca-mãe daquele padecer, puxou rápido o bichinho. A mãe e nós rimos e rimos e rimos de nosso engano. A mãe riu tanto das lágrimas escorrerem. Mas, de que cor eram os olhos dela?

Eu me lembrava também de algumas histórias da infância de minha mãe. Ela havia nascido em um lugar perdido no interior de Minas. Ali, as crianças andavam nuas até bem grandinhas. As meninas, assim que os seios começavam a brotar, ganhavam roupas antes dos meninos. Às vezes, as histórias da infância de minha mãe confundiam-se com as de minha própria infância. Lembro-me de que muitas vezes, quando a mãe cozinhava, da panela subia cheiro algum. Era como se cozinhasse ali, apenas o nosso desesperado desejo de alimento. As labaredas, sob a água solitária que fervia na panela cheia de fome, pareciam debochar do vazio do nosso estômago, ignorando nossas bocas infantis em que as línguas brincavam a salivar sonho de comida. E era justamente nos dias de parco ou nenhum alimento que ela mais brincava com as filhas. Nessas ocasiões a brincadeira preferida era aquela em que a mãe era a Senhora, a Rainha. Ela se assentava em seu trono, um pequeno banquinho de madeira. Felizes colhíamos flores cultivadas em um pequeno pedaço de terra que circundava o nosso barraco. Aquelas flores eram depois solenemente distribuídas por seus cabelos, braços e colo. E diante dela fazíamos reverências à Senhora. Postávamos deitadas no chão e batíamos cabeça para a Rainha. Nós, princesas, em volta dela, cantávamos, dançávamos, sorríamos. A mãe só ria, de uma maneira triste e com um sorriso molhado... Mas de que cor eram os olhos de minha mãe? 

Eu sabia, desde aquela época, que a mãe inventava esse e outros jogos para distrair a nossa fome. E a nossa fome se distraía. Às vezes, no final da tarde, antes que a noite tomasse conta do tempo, ela se assentava na soleira da porta e juntas ficávamos contemplando as artes das nuvens no céu. Umas viravam carneirinhos; outras, cachorrinhos; algumas, gigantes adormecidos, e havia aquelas que eram só nuvens, algodão doce. A mãe, então, espichava o braço que ia até o céu, colhia aquela nuvem, repartia em pedacinhos e enfiava rápido na boca de cada uma de nós. Tudo tinha de ser muito rápido, antes que a nuvem derretesse e com ela os nossos sonhos se esvaecessem também. Mas, de que cor eram os olhos de minha mãe?

Lembro-me ainda do temor de minha mãe nos dias de fortes chuvas. Em cima da cama, agarrada a nós, ela nos protegia com seu abraço. E com os olhos alagados de pranto balbuciava rezas a Santa Bárbara, temendo que o nosso frágil barraco desabasse sobre nós. E eu não sei se o lamento-pranto de minha mãe, se o barulho da chuva... Sei que tudo me causava a sensação de que a nossa casa balançava ao vento. Nesses momentos os olhos de minha mãe se confundiam com os olhos da natureza. Chovia, chorava! Chorava, chovia! Então, porque eu não conseguia lembrar a cor dos olhos dela?

E naquela noite a pergunta continuava me atormentando. Havia anos que eu estava fora de minha cidade natal. Saíra de minha casa em busca de melhor condição de vida para mim e para minha família: ela e minhas irmãs que tinham ficado para trás. Mas eu nunca esquecera a minha mãe. Reconhecia a importância dela na minha vida, não só dela, mas de minhas tias e todas a mulheres de minha família. E também, já naquela época, eu entoava cantos de louvor a todas nossas ancestrais, que desde a África vinham arando a terra da vida com as suas próprias mãos, palavras e sangue. Não, eu não esqueço essas Senhoras, nossas Yabás, donas de tantas sabedorias. Mas de que cor eram os olhos de minha mãe?

E foi então que, tomada pelo desespero por não me lembrar de que cor seriam os olhos de minha mãe, naquele momento, resolvi deixar tudo e, no outro dia, voltar à cidade em que nasci. Eu precisava buscar o rosto de minha mãe, fixar o meu olhar no dela, para nunca mais esquecer a cor de seus olhos.

E assim fiz. Voltei, aflita, mas satisfeita. Vivia a sensação de estar cumprindo um ritual, em que a oferenda aos Orixás deveria ser descoberta da cor dos olhos de minha mãe.

E quando, após longos dias de viagem para chegar à minha terra, pude contemplar extasiada os olhos de minha mãe, sabem o que vi? Sabem o que vi?

Vi só lágrimas e lágrimas. Entretanto, ela sorria feliz. Mas, eram tantas lágrimas, que eu me perguntei se minha mãe tinha olhos ou rios caudalosos sobre a face? E só então compreendi. Minha mãe trazia, serenamente em si, águas correntezas. Por isso, prantos e prantos a enfeitar o seu rosto. A cor dos olhos de minha mãe era cor de olhos d’água. Águas de Mamãe Oxum! Rios calmos, mas profundos e enganosos para quem contempla a vida apenas pela superfície. Sim, águas de Mamãe Oxum.

Abracei a mãe, encostei meu rosto no dela e pedi proteção. Senti as lágrimas delas se misturarem às minhas.

Hoje, quando já alcancei a cor dos olhos de minha mãe, tento descobrir a cor dos olhos de minha filha. Faço a brincadeira em que os olhos de uma são o espelho dos olhos da outra. E um dia desses me surpreendi com um gesto de minha menina. Quando nós duas estávamos nesse doce jogo, ela tocou suavemente o meu rosto, me contemplando intensamente. E, enquanto jogava o olhar dela no meu, perguntou baixinho, mas tão baixinho como se fosse uma pergunta para ela mesma, ou como estivesse buscando e encontrando a revelação de um mistério ou de um grande segredo. Eu escutei, quando, sussurrando minha filha falou:

Mãe, qual é a cor tão úmida de seus olhos?

Conceição Evaristo
(In: Olhos d’água, p. 15-19)

Maher Zain - Palestine Will Be Free


 

Liderança em tempos de crise


GOODWIN, Doris, K. Liderança em tempos de crise; Tradução de Alessandra Bonrruquer. 1ª edição Rio de Janeiro: Editora Record. 2020. 560 pgs.

Liderança em tempos de crise é um estudo detalhado sobre liderança, escrito por Doris Kearns Goodwin, renomada historiadora e autora, conhecida por seus estudos sobre líderes presidenciais dos Estados Unidos, que habilmente nos transporta para os bastidores da Casa Branca, onde testemunhamos como quatro dos presidentes mais emblemáticos enfrentaram desafios monumentais e moldaram o destino de uma nação: Abraham Lincoln, Theodore Roosevelt, Franklin D. Roosevelt e Lyndon B. Johnson.

Para isso, ela examina as habilidades e traços de liderança dos quatro presidentes durante momentos considerados cruciais da história do país: para explorar como esses líderes enfrentaram e superaram crises durante seus mandatos.

Goodwin mergulha minunciosamente nas vidas e carreiras dos quatro líderes, fornecendo insights valiosos e detalhados sobre suas personalidades, estilos e qualidades de liderança ímpares, como enfrentaram desafios únicos, lidaram com momentos extraordinários e lideraram o país através de crises e durante períodos críticos, que testaram suas habilidades e resiliência.

O livro é uma exploração profunda de como a liderança eficaz pode moldar o curso da história e inspirar uma nação em tempos de turbulência.

Abraham Lincoln: Goodwin analisa como Lincoln liderou o país durante a Guerra Civil, enfrentando divisões profundas e tomando decisões difíceis para preservar a União e abolir a escravidão;

Theodore Roosevelt: Ela explora como Roosevelt liderou durante a Era Progressista, lutando contra a corrupção e promovendo reformas sociais e econômicas para lidar com os desafios da industrialização e urbanização;

Franklin D. Roosevelt: Goodwin examina o papel de Roosevelt na liderança dos Estados Unidos durante a Grande Depressão e a Segunda Guerra Mundial, destacando sua habilidade em mobilizar o país e inspirar confiança durante tempos de crise;

Lyndon B. Johnson: Por fim, ela investiga como Johnson enfrentou desafios como a luta pelos direitos civis e a Guerra do Vietnã, analisando suas habilidades políticas e seu estilo de liderança.

Liderança em Tempos de Crise é uma leitura obrigatória para qualquer pessoa interessada em história, liderança ou política. Com uma combinação ímpar de narrativa cativante, pesquisa detalhada e insights perspicazes, o livro oferece uma visão inspiradora e edificante sobre como os líderes podem enfrentar desafios e crises com coragem, sabedoria e liderança eficaz.

Você já leu esse livro?

Liderança baseada em princípios

Depois de ler Os 7 hábitos das pessoas altamente eficazes: lições poderosas para a transformação pessoal, O 8º hábito: da eficácia à grandeza e A 3ª alternativa: resolvendo os problemas mais difíceis da vida, li de “uma sentada” [lá vem digressão: na verdade de duas sentadas, pois li em 2008 e reli em 2009 e estou relendo agora em 2024] Liderança baseada em princípios de Stephen R. Covey (falecido em 16 de julho de 2012, em decorrência de uma hemorragia cerebral que sofreu após um acidente de bicicleta).


Este livro é uma obra fundamental que oferece uma abordagem transformadora para liderança pessoal e organizacional. Covey apresenta um modelo de liderança baseado em valores fundamentais e princípios éticos que promovam a eficácia, a confiança e o crescimento sustentável, este modelo se propõe a ser um guia inspirador para líderes em todos os níveis de uma organização.

A liderança é uma arte complexa (não confundir com confuso ou de difícil compreensão), que exige não apenas habilidades técnicas, mas também uma compreensão profunda dos valores e princípios que guiam as ações de um líder.

Covey argumenta que a liderança eficaz começa com uma base sólida de caráter e princípios, e faz uma anamnese de "Os sete hábitos das pessoas altamente eficazes", que foram concebidos para ajudar os líderes a desenvolverem essa base tão necessária, ao mesmo tempo que servem como um guia prático para alcançar o sucesso pessoal e profissional.

Cada hábito aborda uma área diferente do crescimento pessoal e da liderança, como autodisciplina, planejamento estratégico, priorização, empatia, comunicação eficaz, trabalho em equipe e autoaperfeiçoamento:
1. Ser proativo;
2. Começar com um fim em mente;
3. Colocar primeiro o primeiro;
4. Pensar ganha-ganha;
5. Procurar primeiro entender, depois ser entendido;
6. Criar sinergia;
7. Afiar o machado;

Covey oferece, ao longo do livro, insights profundos e exemplos práticos de como os líderes podem aplicar esses hábitos em suas vidas e organizações para alcançar resultados excepcionais. Ele destaca a importância de cultivar relacionamentos baseados em confiança, comunicação eficaz e colaboração, enfatizando que o verdadeiro sucesso não é apenas medido por resultados financeiros, mas também pela qualidade dos relacionamentos e pelo impacto positivo na comunidade.

A ênfase na liderança servidora é um ponto-chave do livro, por meio dela os líderes colocam as necessidades dos outros em primeiro lugar e trabalham para capacitar suas equipes a alcançarem seu pleno potencial. Covey argumenta que os líderes eficazes são aqueles que se dedicam ao crescimento e ao bem-estar de seus colaboradores, criando um ambiente de trabalho inspirador e motivador.

Além disso, "Liderança Baseada em Princípios" destaca a importância de se viver e liderar com integridade, ética e valores sólidos. Covey ressalta que a liderança eficaz não é apenas sobre alcançar metas e objetivos, mas também sobre fazer a coisa certa, mesmo quando é difícil.

"Liderança Baseada em Princípios" é uma leitura essencial para líderes em todos os níveis de uma organização, pois oferece uma abordagem holística e transformadora para liderança. Com sua combinação de princípios sólidos, insights práticos e exemplos inspiradores, Stephen R. Covey fornece aos líderes as ferramentas necessárias para liderar com integridade (o sentido mais estrito do termo: “inteiro”), compaixão e eficácia em um mundo cada vez mais complexo e desafiador. Este livro não é apenas um guia para alcançar o sucesso, mas também uma chamada para uma liderança que prioriza o bem-estar das pessoas (como alguns chavões corporativos: “gente que cuida de gente”). Com sua abordagem prática e inspiradora, Stephen R. Covey oferece um guia valioso para liderança autêntica, compassiva e baseada em valores, que pode transformar vidas e organizações para melhor.

A coragem para liderar


BROWN, Brené.
A coragem para liderar: trabalho duro, conversas difíceis, corações plenos; tradução Carolina Leocádio. BestSeller, Rio de Janeiro, 2020. 8ª Ed.

Não é um livro tão simples, quanto parece à primeira vista. Na verdade, é simples sim, apenas que na simplicidade da exposição e escrita que reside toda a força e importância desse livro, simplicidade aliada à franqueza e honestidade, honestidade, principalmente, consigo mesma.

A verdade é que até para andar com esse livro nas mãos, à mostra, é preciso coragem. Muita gente “experiente” pega nesse livro nas livrarias, dá uma olhada para os lados, só depois que abre e folheia.

Eu comprei esse livro em 2019 para dar de presente para minha filha, não foi para mim, que isso fique bem claro [esse comportamento por si só já é vulnerabilidade, e a Brené Brown fala disso como ninguém].

Coragem para liderar é, mesmo correndo risco de usar chavão, uma obra inspiradora que mergulha nas águas profundas e complexas da liderança autêntica e compassiva. Brené é uma pesquisadora renomada nas áreas que envolvem vulnerabilidade, coragem e resiliência, sua perspicácia acadêmica e expertise é explorar como os líderes podem cultivar conexões significativas, promover a confiança e estimular a inovação em seus ambientes de atuação.

O livro procura ir além das teorias de liderança convencionais, desafiando os leitores a olharem para dentro de si mesmos, explorar sua própria autenticidade e vulnerabilidade como pré-requisitos essenciais para a liderança eficaz. Ao longo do livro é destacada a importância de os líderes desenvolverem aquilo que Carol Dweck (Mindset: a nova psicologia do sucesso) chama de mentalidade de crescimento, aliada à filosofia de lifelong learning (aprendizagem contínua) e a melhoria pessoal como elementos-chave para o sucesso.

A contribuição mais marcante do livro talvez seja a abordagem compassiva [do latim compassionis, que significa junção de sentimentos] em relação aos desafios e fracassos que os líderes enfrentam. A autora encoraja os líderes a abraçarem a imperfeição e a praticarem a autocompaixão, reconhecendo que todos estão sujeitos a cometer erros e que o verdadeiro crescimento vem da capacidade de se levantar após as quedas (resiliência). Importante aqui é fazer um diálogo dessa habilidade com o conceito de antifrágil de Nassim Taleb.

Além disso, o livro também apresentar insights práticos sobre como os líderes podem construir culturas organizacionais inclusivas, promovendo a diversidade e a equidade em todos os níveis da hierarquia. Destaca a importância de criar espaços seguros onde todos os membros da equipe se sintam valorizados e capacitados a contribuir plenamente com seus talentos e perspectivas únicas.

Brown compartilha, ao longo do livro, uma série de histórias envolventes e inspiradoras de líderes que incorporaram os princípios da coragem e da vulnerabilidade em suas práticas diárias de liderança. Essas narrativas adicionam uma dimensão humana à discussão, ilustrando como os conceitos abstratos podem ser aplicados de maneira tangível em diversos contextos profissionais e pessoais.

Podemos resumir que Coragem para Liderar é uma leitura obrigatória para todos os líderes (sejam neófitos no ofício ou calejados pela experiência) que buscam aprimorar suas habilidades e criar ambientes de trabalho mais positivos e produtivos. Com uma abordagem empática e perspicácia acadêmica, Brené Brown oferece um guia valioso para liderar com coragem, compaixão e autenticidade em um mundo cada vez mais complexo e desafiador.

Hamas é uma organização terrorista?


Entenda por que o Brasil não trata o Hamas como organização terroristaClassificação de organizações terroristas é atribuição da ONU, diz MRE. 

Publicado em 12/10/2023 - 17:26, por Pedro Rafael Vilela - Repórter da Agência Brasil - Brasília.

Os ataques do grupo extremista islâmico Hamas em uma festa rave no último sábado (7), em Israel, deram início a um novo capítulo sangrento no histórico conflito entre esse grupo e o exército israelense. As características do ataque, com centenas de mortes de civis e outras vítimas sendo levadas como reféns, levantou a questão sobre a denominação do Hamas como um grupo terrorista.

Veículos de imprensa de todo o mundo e algumas nações classificam assim o grupo extremista que controla a Faixa de Gaza. Ao lamentar o episódio, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, pelas redes sociais, se referiu ao ataque como terrorista, mas não estendeu tal adjetivo ao Hamas. Assim, o presidente segue a linha adotada pelo governo brasileiro.

O Palácio do Itamaraty emitiu um comunicado, nesta quinta-feira (12), para informar que segue as avaliações do Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas (ONU) na designação dos grupos considerados terroristas. Pela Carta da ONU, o Conselho de Segurança é o órgão encarregado de zelar pela paz internacional.

“O Conselho de Segurança mantém listas de indivíduos e entidades qualificados como terroristas, contra os quais se aplicam sanções. Estão incluídos o Estado Islâmico e a Al-Qaeda, além de grupos menos conhecidos do grande público”, diz um trecho do comunicado.

Na nota, o Ministério das Relações Exteriores reafirma que, “em aplicação dos princípios das relações internacionais previstos no Artigo 4º da Constituição, o Brasil repudia o terrorismo em todas as suas formas e manifestações”.

Apesar da definição da ONU, países como Estados Unidos, Reino Unido, Canadá, Austrália, Japão, integrantes União Europeia e outras nações classificam o Hamas como uma organização terrorista.

Já maioria dos países-membros da ONU, incluindo países europeus como Noruega e Suíça, além de China, Rússia, nações latino-americanas, como o próprio Brasil, México, Colômbia, seguem a definição atual da ONU que não classifica o Hamas como grupo terrorista. A ideia de uma posição mais neutra também é uma forma de manter os países como mediadores de conflitos, além de ampliarem a capacidade de proteção a seus cidadãos em áreas conflagradas.

“A prática brasileira, consistente com a Carta da ONU, habilita o país a contribuir, juntamente com outros países ou individualmente, para a resolução pacífica dos conflitos e na proteção de cidadãos brasileiros em zonas de conflito – a exemplo do que ocorreu, em 2007, na Conferência de Anápolis, EUA, com relação ao Oriente Médio”, diz ainda a nota do Itamaraty, para reforçar a posição brasileira atual.

Um grupo de deputados de oposição chegou a pedir, essa semana, que o Ministério das Relações Exteriores mude a classificação brasileira sobre o Hamas.

A violência em Israel e na Palestina chegou ao sexto dia nesta quinta, com a continuidade de intensos bombardeios na Faixa de Gaza, onde vivem 2,3 milhões de palestinos. Autoridades locais já contabilizam 1,2 mil mortes e mais de 5 mil feridos. Há pelo menos 180 mil desabrigados.

Em Israel, segundo a emissora pública Kan, o número de mortos havia aumentado para 1,3 mil desde o último sábado, quando começaram os ataques violentos promovidos pelo grupo islâmico Hamas.

Quem é o Hamas
O Hamas, nome que significa, em árabe, Movimento de Resistência Islâmica, é um movimento palestino constituído de uma entidade filantrópica, um braço político e um braço armado. Foi criado em 1987, no contexto da 1ª Intifada, que foi uma das revoltas Palestinas contra a ocupação de Israel.

Em 2006, o Hamas derrotou o Fatah nas eleições legislativas para a Autoridade Nacional Palestina (ANP), conquistando o direito de formar o novo governo. Os dois partidos, no entanto, entraram em conflito. O Hamas expulsou o Fatah da Faixa de Gaza. Em resposta, o Fatah rejeitou o governo de unidade e se manteve à frente da ANP, que passou a ter uma administração política voltada para as áreas da Cisjordânia.

Segundo o cientista político Leonardo Paz, o Hamas não reconhece o Estado de Israel e briga pela independência de um Estado Palestino. “Israel, por sua vez, diz que o território é seu e não tem como oferecer qualquer tipo de soberania a esse Estado palestino porque não haveria nenhuma garantia de segurança de que esse Estado não seria um posto avançado para atacar Israel”, acrescenta.
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O Nakba e a reviravolta na política palestina

O horror israelense já dura 72 anos, mas o ataque à Sheikh Jarrah pode ter saído pela culatra. A Autoridade Palestina se mostrou fraca e impotente. Hamas ganha mais popularidade, apostando na luta unificada e resistência “mais contundente”


O bairro de Sheikh Jarrah, em Jerusalém Oriental, é o lar e o exílio de algumas famílias palestinas desde 1950, quando foram desalojados de suas casas em 1948, em decorrência dos confrontos violentos, conhecido como a Nakba (“catástrofe”). Muitos palestinos, de segunda e terceira geração, nasceram em Sheikh Jarrah. Para eles, Sheikh Jarrah sempre foi e sempre será o seu lar nacional.

A vitória israelense na guerra de 1948 determinou conquistas territoriais importantes e o deslocamento interno e externo de mais de 700 mil palestinos. Parte dos palestinos desalojados foram alocados nos Estados árabes vizinhos como a Jordânia, Síria, Líbano e Egito e outra parte para os territórios da Faixa de Gaza, Cisjordânia e Jerusalém Oriental. Se do lado israelense, 1948 foi o ano de independência do Estado de Israel, do lado palestino, 1948 é a Nakba, um período marcado pela desintegração da sociedade palestina através da dispersão humana, dos massacres e da destruição da vida em sociedade. A Nakba está enraizada na memória e na história palestina como um ponto de ruptura e de mudanças irreversíveis.

O momento, definido pelos palestinos como catástrofe, paradoxalmente, marca o nascimento do lar nacional do povo judeu, o Estado de Israel, após uma década de perseguições e de extermínios da comunidade judaica da Europa promovido pelo nazismo. A criação do Estado de Israel representa, na memória coletiva judaica, o renascimento e a ressurreição do povo judeu.

Embora a sociedade palestina seja detentora de diversas identidades étnicas, culturais, políticas e religiosas, desde antes de 1948, a Nakba unificou a memória coletiva e a identidade nacional palestina. A Nakba é frequentemente invocada durante a eclosão de novos conflitos e de ciclos de violência nos territórios ocupados, em Israel e nos campos de refugiados. Isso ocorre porque muitos conflitos registrados na história palestina, como o Setembro Negro, na Jordânia, em 1971; os massacres nos campos de refugiados de Sabra e Chatila, no Líbano, e as Intifadas (de 1987 e 2000) nos territórios ocupados, não teriam acontecido se não fossem precedidos pela Nakba.

De um modo geral, a Nakba representa um trauma constante, uma injustiça irreparável. A Nakba não é apenas uma lembrança do passado, a Nakba está presente nas condições de vida de todos os palestinos dos territórios ocupados, em Jerusalém Oriental, Cisjordânia e Faixa de Gaza; nos campos de refugiados e na diáspora. A Nakba é traduzida pelo cerceamento da locomoção dos palestinos, nos inúmeros check in points, na precariedade dos campos de refugiados no mundo árabe e na legislação discriminatória em Israel. A Lei de Nacionalidade, aprovada pelo parlamento israelense em julho de 2018, estabeleceu que o exercício do direito de autodeterminação em Israel é exclusivo do povo judeu. Essa nova lei retirou o idioma árabe da categoria de língua cooficial do Estado de Israel.


Os palestinos vivem, até hoje, o seu exílio e o seu deslocamento permanente.

Para os palestinos, os lugares do período pré-Nakba não são apenas lugares de memória, mas, acima de tudo, um símbolo de tudo que foi perdido. Muitos refugiados palestinos ainda guardam as chaves de suas propriedades perdidas durante a Nakba. Para os palestinos, nascidos nos campos de refugiados e no exílio, a Palestina se resume à memória de seus pais e avós que lutam para que esta lembrança não seja esquecida e a Palestina não desapareça. A Palestina não é apenas um território geográfico, mas a memória dos palestinos exilados.

O caso de Sheikh Jarrah, particularmente, tornou-se dramático porque no mesmo mês em que os palestinos estavam sendo ameaçados de perderem suas casas para alguns israelenses que reclamavam na justiça o direito de posse de propriedade, perdida em 1948, aconteciam duas importantes celebrações do calendário religioso judaico e islâmico, o Iyyar e o Ramadã.

No início desse ano de 2021, a Suprema Corte israelense decidiu a favor de alguns colonos reaverem suas propriedades em Sheikh Jarrah, e outorgou até o dia 2 de maio para que as famílias palestinas de Sheikh Jarrah negociassem um acordo com esses colonos israelenses sobre a propriedade de suas casas. Diante do impasse, o Poder Judiciário israelense propôs um acordo, requereu que as famílias palestinas despejadas pagassem aluguel aos colonos pelas residências até que o título de propriedade fosse transferido aos cidadãos israelenses e não exatamente aos herdeiros, desalojados em 1948. O que é ilegal, de acordo com a lei internacional.

Ainda, no dia 10 de maio, aconteceu a controversa marcha anual do “Dia de Jerusalém”, que celebra a “reunificação” da cidade de Jerusalém, em decorrência da vitória israelense na guerra de Junho de 1967. Nessa manifestação, grupos nacionalistas israelenses costumam percorrerem os territórios palestinos, localizados na cidade velha de Jerusalém. Foi nesse mesmo dia que muitos muçulmanos palestinos celebravam o fim do mês sagrado do Ramadã, o Eid al-Fitr, no Haram al-Sharif, nos arredores da mesquita de Al-Aqsa, conhecido pelos judeus como o Monte do Templo.

Em meio às celebrações religiosas do calendário judaico e islâmico, foi deflagrado uma guerra entre jovens palestinos e israelenses no bairro de Sheikh Jarrah. Os ataques à mesquita de Al-Aqsa, durante as celebrações do fim do mês sagrado do Ramadã, provocaram a fúria dos grupos de resistência palestina. Os foguetes do Hamas, dessa vez, alcançaram cidades importantes de Israel, chegando a atingir os arredores de Jerusalém e de Tel Aviv, provocando medo entre a população israelense, além de pôr em cheque o sistema de defesa aérea, o Iron Dome.

A decisão de retaliação aos ataques do Hamas em Israel deu projeção ao premiê israelense, Benjamin Netanyahu, que, até então, vivia um momento político conturbado. Netanyahu fracassou na formação de um governo em Israel, além de, atualmente, enfrentar alguns processos judiciais por corrupção, fraude e abuso de poder. Do lado palestino, o presidente da autoridade palestina, Mahmoud Abbas, cada vez mais impotente e enfraquecido e que se perpetua no poder há mais de 12 anos, adiou mais uma vez as eleições palestinas, diante da nova crise instalada.

O novo ciclo de violência, deflagrado em Jerusalém Oriental e na Faixa de Gaza, fortaleceram os dois extremos: o ministro Benjamin Netanyahu e o grupo Hamas. Os projetos políticos de ambos se sobrepõem à existência e à narrativa do outro.

Benjamin Netanyahu nunca reconheceu o Estado palestino. Ao longo de sua gestão, em Israel, Netanyahu anexou territórios palestinos por intermédio de construção de assentamentos na Cisjordânia e em Jerusalém Oriental. Em dezembro de 2017, em apoio ao atual premiê israelense, o então presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, anunciou a transferência da embaixada dos Estados Unidos, da cidade de Tel Aviv para Jerusalém, de modo a reconhecer oficialmente Jerusalém como a capital indivisível do Estado de Israel e, assim, inviabilizar o projeto de tornar Jerusalém Oriental a capital de um futuro Estado palestino. O gesto do governo americano influenciou outros Estados, como a Sérvia e a Guatemala, a transferirem suas embaixadas.

O grupo Hamas (Movimento de Resistência Islâmica), por outra parte, é cada vez mais popular entre os palestinos, sobretudo na Faixa de Gaza. A gradual popularidade do Hamas ocorre basicamente por duas razões. O grupo islamita mantém inúmeros programas sociais, culturais e religiosos, capazes de aproximar os palestinos, sobretudo os mais pobres, de sua ideologia. Além disso, o fracasso dos Acordos de Paz de Oslo (1993), combinado com a progressiva brutalidade da ocupação israelense provocou, ao longo do tempo, o ceticismo de muitos palestinos pelas iniciativas de diálogos com o governo de Israel.

A permanência da Nakba, refletida nos contínuos ataques em Gaza e nos últimos acontecimentos em Sheikh Jarrah, sequestraram o movimento nacional e secular palestino. O Hamas passou a ser reconhecido como o “campeão” da resistência palestina, ao enfrentar arduamente o inimigo israelense. Diante de uma autoridade palestina extremamente impopular e enfraquecida, o Hamas passou a controlar a narrativa palestina e a garantir a sua popularidade frente ao partido al-Fatah, de Mahmoud Abbas, e, do mesmo modo, entre as comunidades da Cisjordânia e de Jerusalém Oriental. Muitos estudiosos, como o professor de Ciências Políticas da Universidade de Bar Ilan, Ariel Zellman, acredita, inclusive, que o cancelamento das eleições na palestina se deveu ao receio da autoridade palestina pelas chances reais de vitória do Hamas.

Além da sobreposição de narrativas, os últimos confrontos comprovaram que o Hamas está belicamente mais forte. Os foguetes lançados contra Israel são mais potentes e sofisticados. Mesmo assim, os 11 dias de pesados bombardeios israelenses deixou 232 palestinos mortos, entre as vítimas fatais haviam 65 crianças, 39 mulheres e 17 idosos. O número de vítimas palestinas escancara publicamente a força militar desproporcional de Israel frente ao seu adversário palestino.


O fortalecimento de dois adversários que não se reconhecem mutuamente é especialmente trágico, pois tende a sinalizar para mais confrontos violentos. Os eventos em Sheikh Jarrah e na Faixa de Gaza refletem a fragmentação da sociedade palestina desde a Nakba e reafirma a face cruel e desumana de Israel, representada pelo atual governo. Além disso, os interesses políticos dos governos israelense e palestino abafam as inúmeras tentativas de aproximação e de diálogo entre as sociedades civis israelense e palestina. A ocupação da Palestina, desde a Nakba, impediu e ainda impede o encontro de muitos palestinos e israelenses que se recusam a ser inimigos. Contudo, apesar das dificuldades, durante os eventos violentos em Sheikh Jarrah houve manifestações conjuntas em 30 cidades israelenses. “A luta é política, entre os que querem a ocupação e a supremacia e aqueles que desejam a paz e a igualdade”, afirmou publicamente o deputado palestino Ayman Odeh, em uma grande manifestação na cidade de Tel Aviv. A conciliação acontecerá entre palestinos e israelenses quando os palestinos passarem a viver com dignidade. Enquanto houver Nakba a paz estará longe de ser alcançada...

Luciana Garcia de Oliveira é mestre no Programa de Estudos Judaicos e Árabes do Departamento de Letras Orientais da Universidade de São Paulo (DLO-USP) e uma das responsáveis pela tradução da coletânea Escritos Judaicos, de Hannah Arendt, publicado pelo selo Amarilys (2016).