Desde o recrudescimento dos ataques do Estado de Israel a Gaza, no dia 7 de outubro, sob a justificativa de retaliação à ação de resistência armada contra a ocupação, chama a atenção, inclusive no Brasil, a defesa do Estado sionista por amplos setores evangélicos. Por que segmentos cristãos que, do ponto de vista religioso, em tese, compartilham de uma visão mais próxima do islamismo (o Islã, ao contrário do judaísmo, reconhece e reverencia a figura de Jesus Cristo como profeta), se alinham de forma tão incondicional ao Estado israelense?
Trata-se de uma história ao mesmo tempo antiga e recente. Uma construção ideológica de séculos que ganhou força e uma nova roupagem com o fortalecimento da extrema direita nos últimos anos. E que de “espiritual”, como veremos, não tem absolutamente nada.
Cristianismo e sionismo
A identificação entre protestantismo e o que viria a ser o sionismo, ou seja, a ideia de que o povo judeu deveria retornar à Palestina histórica, remonta ainda aos primeiros anos da Reforma Protestante. Um clérigo inglês do século XVI, Thomas Brightman, afirmava que os judeus deveriam “retornar a Jerusalém outra vez”, já que “os profetas de todos os cantos confirmam e falam sobre isso”.
Por trás dessa ideia estava uma leitura peculiar do evangelho, especificamente da escatologia cristã, que previa o retorno dos judeus à terra prometida, a reconstrução do Templo de Salomão (destruído pelos babilônicos e romanos), preparando a segunda vinda de Cristo e finalmente a conversão dos judeus ao cristianismo. Essa doutrina seria chamada mais tarde de “dispensacionalismo”. Trata-se de uma visão que pressupõe o abandono da fé judaica para o cumprimento das profecias, o que muitos judeus, não sem razão, tacham de antissemitismo.
Essa ideia se tornou uma força prática no século XIX com o movimento Templo Alemão Pietista, originado do luteranismo. Dois clérigos alemães, Christoph Hoffman e Georg David Hardegg, fundaram a Sociedade de Templer em 1861, com a ideia de colonizar a Palestina por meio de assentamentos. Com o apoio da Corte na Prússia e de teólogos anglicanos da Grã-Bretanha, instalaram o primeiro assentamento em Haifa ainda em 1866, espalhando-se pela região. Bem antes, portanto, de Theodor Herzl lançar o sionismo como corrente política e ideológica no congresso de 1897.
Os “templadores”, que acabariam sendo expulsos após a fundação do Estado de Israel, em 1948, tiveram seus métodos de instalação de assentamentos de povoação imitados pelas primeiras levas de sionistas, entre o final do século XIX e o começo do século XX, com forte apoio britânico. Para a Inglaterra, era estratégico fortalecer sua posição na região, ainda sob domínio Otomano.
Evidentemente, os primeiros sionistas não eram motivados por essa doutrina oriunda do protestantismo. Aliás, se o sionismo no século XIX, enquanto ideologia que advogava a construção de uma nação judaica, não era uma força majoritária entre os judeus – rivalizando com os que defendiam a completa integração dos judeus a seus respectivos países (ainda que mantendo certas tradições e a religiosidade) –, mesmo entre os sionistas, o sionismo religioso que defendia a volta a Jerusalém, tampouco predominava. Tanto que se cogitavam regiões como Bariloche, na Argentina, ou Uganda, na África.
A escolha pela Palestina e a construção do mito do retorno dos judeus à terra que teria sido prometida a eles teve como objetivo cerrar fileiras com Estados e atrair a simpatia e a defesa de amplos segmentos religiosos cristãos mundo afora. Para isso, tornou-se essencial a consolidação de outro mito: o de que os atuais judeus descendem diretamente do povo hebreu do Velho Testamento (ou da Torá).
Um mito funcional
Há muitos estudos e debates sobre a origem dos povos que se autointitulam judeus, principalmente após a publicação da obra de Shlomo Sand, A invenção do povo judeu (2008). O autor retoma estudos de Arthur Koestler que, em 1976, publicou o livro A décima terceira tribo, no qual afirma que os judeus são, na verdade, descendentes dos tzares, do Cáucaso, convertidos no século VIII. Essa versão é aceita por muitos pesquisadores sérios.
O historiador israelense Illan Pappé relativiza esse debate afirmando que “os povos têm o direito de se inventarem, como fizeram tantos movimentos nacionais em seu momento de concepção”, mas alertando que “o problema se agrava quando a narrativa de gênese engendra projetos políticos como genocídio, limpeza étnica e opressão”.
E foi justamente isso o que aconteceu. Os diversos segmentos do sionismo, do religioso ao de “esquerda”, confluíram a essa interpretação bíblica de que seriam os judeus (os atuais) os legítimos descendentes do antigo povo hebreu. Essa autoridade histórica, moral e ancestral, garantiria a justificativa para ocupar a Palestina e expulsar os “invasores”, no caso, os palestinos. Ainda que ironicamente não sejam poucos os que afirmam que os atuais palestinos, os povos originários daquela terra, carreguem mais DNA dos antigos hebreus do que os atuais judeus.
Contudo, para muitos sionistas, pouco importa se essa justificativa era falsa ou não. Até porque ela foi empregada por sionistas “socialistas”, ateus etc. O importante era colonizar a Palestina, expulsar quem lá vivia e instaurar um Estado judeu. E até hoje esse mito é empregado para a crescente ocupação de Gaza e Cisjordânia e os massacres perpetrados pelo Estado sionista há sete décadas. E principalmente para justificar a manutenção de Israel como um enclave militar, se antes da Inglaterra, agora dos EUA, numa região estratégica.
Israel e a extrema direita
Voltemos aos atuais evangélicos. O que essa trajetória tortuosa tem a ver com o pastor da esquina de um bairro de periferia que convoca seus fieis a uma “vigília por Israel” no exato momento em que o país lança toneladas de mísseis nas cabeças de crianças e bebês em Gaza?
O protestantismo teve um crescimento significativo no Brasi no século passado, principalmente por meio de movimentos pentecostais, mas ainda num contexto de um Brasil majoritariamente católico. A proliferação das igrejas neopentecostais, num quadro de crise, abissal desigualdade social e as promessas oferecidas pela Teologia da Prosperidade, vem mudando o placar religioso no país e, em breve, os evangélicos devem ultrapassar os católicos.
Sempre houve uma “natural” associação entre protestantismo e os judeus, mas essencialmente simbólica e religiosa. Jesus é o “Leão da Tribo da Judá”, a “esperança de Israel”. Mas era praticamente consenso que a “Israel” agora não se referia mais aos antigos judeus, mas à totalidade dos fiéis. A “lei” foi substituída pelo sacrifício de Jesus no calvário. Alguns segmentos inclusive resvalam no antissemitismo responsabilizando os judeus por “terem matado Jesus”.
Percebe-se, porém, uma profunda mudança nos últimos anos. As referências a Israel vão deixando de ser simbólicas e tornam-se quase literais. O milenarismo, ainda que não seja estudado em praticamente nenhuma igreja, é assimilado de forma acrítica. As igrejas vão se “judaizando”, e os próprios crentes se identificam como parte da diáspora judaica. Tornou-se frequente o uso de bandeiras de Israel, pastores ministrando cultos com quipás e, maior expressão desse processo, o enorme Tempo de Salomão construído pela Igreja Universal na capital paulista.
Trata-se de um movimento sincronizado com a radicalização do público evangélico à extrema direita e, mais recentemente, com o bolsonarismo. Essa é a razão pela qual muitos estranham a atual hipervalorização do Antigo Testamento. Lá, temos uma divindade guerreira, que destrói seus inimigos de forma impiedosa, não aceita o culto a qualquer outra divindade e se impõe à força. Uma narrativa mais fácil de ser absorvida e moldada a um projeto político de ditadura e de perseguição a opositores do que seria, por exemplo, uma divindade que pregasse amor ao próximo, protegesse prostituas e dissesse que “é mais fácil um camelo passar pelo buraco de uma agulha que um rico entrar no reino dos céus”.
Nesse sentido, assim como Bolsonaro e Trump seriam homens enviados por Deus para proteger os valores morais tradicionais (ou a tão propalada cultura judaico-cristã), ameaçados pelo avanço dos direitos de mulheres, negros e LGBTI+, o Estado de Israel seria o Estado “ungido” para barrar os “selvagens islâmicos” e o “terrorismo”. Uma visão não só distorcida, como profundamente racista e xenófoba.
Junte-se a isso interesses que passam ao longe de ideologia. Há alguns anos, prolifera-se uma verdadeira indústria do turismo a Jerusalém, comando por pastores midiáticos e empresas voltadas ao público religioso. Ironicamente, os mais pomposos tratam de dar uma esticadinha na luxuosa Dubai, que tem tanto a ver com a bíblia quanto Osasco, aqui em São Paulo.
Massacre não tem nada a ver com religião
É comum pastores e igrejas apresentarem a questão como uma espécie de “batalha espiritual”. Porém o que ocorre de fato é a ação de um Estado, criado de forma artificial pelo império britânico e apoiado hoje pelos EUA, que o tem como seu enclave militar. Os palestinos, assim, são um “problema” a ser eliminado. O discurso religioso é usado de forma cínica para esse objetivo.
Muitos operários são evangélicos, e respeitamos suas crenças. No entanto, a luta contra o genocídio palestino não é uma luta contra a religião, mas sim contra um projeto de colonização, limpeza étnica e genocídio a serviço do imperialismo. Tanto que existem evangélicos que se posicionam contra isso, a exemplo de inúmeros grupos judeus antissionistas. Convidamos as companheiras e os companheiros evangélicos a se unirem a nós nesta luta.
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Diego Cruz
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