Falta uma imaginação política capaz de propor e acreditar em futuros de coexistência e solidariedade para palestinos e judeus naquela região.
Vivemos um momento terrivelmente trágico na história global. Uma guerra no leste europeu entre Rússia e Ucrânia, a guerra civil síria que já vitimou 300 mil civis, uma guerra civil no Iêmen que já causou outras 150 mil mortes e, agora, uma nova etapa do conflito Israel-Palestina que já levou a milhares de mortos, especialmente de civis palestinos.
Palestinos e israelenses estão sofrendo e nenhuma dor deve ser diminuída. Palestinos e israelenses devem ter direito ao luto e a nossa solidariedade deve alcançá-los todos. Sem “mas”. Sem “porém”. Não são números, são vidas, histórias e famílias. Que o alcance irrestrito do luto, como refletiu Judith Butler, nos sirva para imaginarmos um futuro para o Oriente Médio de substancial igualdade, em que nenhuma vida mais seja perdida da forma como estamos assistindo.
Dito isso, precisamos achar, nesse doloroso momento, uma oportunidade para revisitarmos debates importantes do campo progressista que permanecem intocáveis e que, ao longo das décadas, se transformaram tickets ideológicos indispensáveis para que se receba a carteirinha de “esquerda de verdade”. A maioria desses dogmas, como é de se imaginar, são espantalhos mal compreendidos: sionismos, antissionismos e antissemitismos.
A dificuldade de escrever sobre uma temática tão delicada em um momento tão polarizado é que dificilmente um leitor radicalizado manterá uma postura intelectualmente aberta à posição do outro. Aprendi com os meus mais velhos: “ouvir não é escutar”. Ler para refutar é ler procurando o que há de errado na posição do outro. É ler procurando o viés de confirmação da própria posição. Ler para estabelecer pontes de diálogo, no entanto, é ler com disposição para a alteridade. Somente com esta última posição é possível fazer uma política de fato democrática.
MUDANÇA OU EXTINÇÃO
Criou-se um mito muito difundido de que judeus rejeitam quaisquer críticas ao Estado de Israel, pois estas seriam antissemitismo. Isso não é verdade, e quem compartilha dessa posição está equivocado.
Criticar Israel, seus governos e políticos, não é necessariamente antissemitismo. É possível, sim, condenar a ocupação de territórios palestinos, assim como é também possível criticar a lei básica do Estado-nação, que, aprovada em 2018, afirma que Israel é pátria “exclusiva do povo judeu”. Esse debate, na verdade, é imperativo. A comunidade judaica, em Israel e na diáspora, estava realizando-o quando foi surpreendida pelo massacre do último 07 de outubro. Antes disso, porém, semanalmente milhares de israelenses tomavam as ruas de Tel Aviv, e uma das palavras de ordem sempre presentes era: “não há democracia com ocupação!”.
Ainda hoje, após um traumático evento e em meio a uma guerra, há israelenses que levantam suas vozes sobre essa importante questão. O Standing Together é um exemplo disso. Um movimento popular árabe-judaico, com lideranças progressistas, de esquerda e socialistas, e que é, hoje, uma das maiores vozes contra a extrema-direita israelense e que luta contra ocupação dos territórios da Cisjordânia, contra o racismo e constrói propostas de solidariedade e coexistência entre os povos. No último dia 4 de novembro, a organização promoveu a Conferência de Solidariedade Árabe-Judaica que reuniu mais de 700 pessoas na cidade de Haifa. No último dia 7, o movimento também integrou uma grande manifestação em Tel Aviv contra o atual governo, por paz e pelo fim das ocupações já citadas.
Muitos militantes de esquerda, no Brasil e no mundo, fazem referência a Israel como uma Estado “artificial”. Um Estado sem sociedade civil mobilizada, sem contradições, disputas políticas, sem divergências e lutas de classes. A realidade é muito mais rica que a vulgaridade dessas análises. Israel não é uma “entidade”, um bloco monolítico, como muitos querem fazer parecer. É uma sociedade em que, assim como a nossa, também possui suas resistências. O Standing Together, o Hadash, partido árabe-judaico socialista, o Partido Comunista de Israel, e tantas outras organizações de oposição mostram um pouco disso.
Reconhecendo isso e reconhecendo, também, que a fundação do Estado de Israel, em 1948, visou oferecer para o povo judeu – um povo perseguido durante dois mil anos no Ocidente – um lar nacional no seu território ancestral, pedir a sua extinção é, também, negar a este povo o seu direito de autodeterminação. É desconsiderar que, mesmo após 97 gerações expulsas de 109 regiões do mundo, judeus nunca abandonaram sua relação com aquele território. Para dizer o mínimo, isso é uma insensibilidade histórica. Usando as palavras corretas, o nome disso é antissemitismo.
O sionismo foi um dos movimentos políticos por autodeterminação nacional judaica surgidos ao longo do século XIX em razão da onda de antissemitismo que tomava conta do continente europeu. Naquele momento, existiam outras correntes nacionalistas, como a União Geral Operária Judaica da Lituânia, Polônia e Rússia, também conhecida como Bund e que defendia a autonomia cultural do povo judeu. O sionismo, como corrente hegemônica, cresceu e se pluralizou. Desde então, convém falar de sionismos no plural. Sionismo religioso, secular, de direita, socialista etc. Vale lembrar da experiência do Poalei Tsion (Trabalhadores de Sião), sob a liderança de Ber Borochov, que uniu nacionalismo judaico e marxismo.
Antes mesmo, entretanto, da consolidação do sionismo como movimento organizado, no final do século XIX, já aconteciam fortes migrações judaicas para a Palestina Otomana, como a migração dos Beta Yisrael, os judeus etíopes, que em 1869, liderados pelo monge judeu Abba Mahari, fizeram uma jornada da Etiópia até Jerusalém caminhando. Vale mencionar o que também o que ficou conhecida como “primeira aliá”, entre 1881 e 1903, e levou cerca 35 mil judeus para aquele território e fundaram kibutzim e cidades como Petach Tikva, Rishon Letsion, Rosh Pina e Zihron Yaakov. Antes disso, ao longo dos anos 1800, muitos outros judeus de diversas origens também migraram até Jerusalém. Não é possível falar de “sionismo” desconhecendo essas histórias proto-sionistas.
No início do século XX, antes da fundação do Estado de Israel, as organizações comunistas tendiam a se opor ao nacionalismo judaico em todas as suas formas. Esse antissionismo, no entanto, não estava ligado com a existência do Estado de Israel e/ou a situação dos palestinos. Tratava-se de um universalismo abstrato em um contexto de revolução mundial. Nessa concepção compartilhada por Lenin, Trotsky, Kautsky e outros, os hebreus deveriam rejeitar o seu desejo por autodeterminação nacional e, então, se integrarem a luta pelo internacionalismo proletário, pois acreditava-se que a verdadeira emancipação das massas judaicas viria através de uma sociedade sem classes construída através do socialismo. Esse antissionismo não era necessariamente antissemita. Em verdade, muitos anarquistas e comunistas, por uma posição contrária a quaisquer nacionalismos ou Estados nacionais, ainda possuem uma posição semelhante. É preciso honestidade ao reconhecer essas posições.
No entanto, um dos problemas desse universalismo abstrato, como aponta o intelectual marxista Moshe Postone, é que ele serviu para que, no pós-Holocausto, a violência histórica perpetrada contra judeus fosse apagada, produzindo uma amnésia coletiva sobre a longa história de perseguição a que este povo foi submetido, sobretudo na Europa.
Há, porém, um antissionismo de tipo nacionalista que se produziu na União Soviética no período pós-1948, especialmente após o rompimento das relações com Israel, no início da década de 1950. Este ganha força com a doutrina do “socialismo em um só país” e o aprofundamento do chauvinismo nacionalista incentivado pelo governo de Stálin, especialmente durante a Guerra Fria. Nesse período, uma gramática antissemita é introduzida na propaganda do governo comunista e o temor de uma ameaça externa, que fez com que judeus fossem caracterizados como parte de uma conspiração mundial contrarrevolucionária contra a “pátria soviética”.
O internacionalismo da velha guarda comunista, portanto, foi substituído pelo nacionalismo chauvinista e com forte tom antissemita. Se antes tínhamos um antissionismo como fruto de uma oposição ao nacionalismo em quaisquer de suas naturezas ou matrizes – e que, portanto, não era necessariamente antissemita –, este antissionismo se refere a própria legitimidade da existência de Israel, com vista a erradicar a única autodeterminação judaica existente.
Aqui, portanto, caberia nos perguntarmos: quando grupos de esquerda estão dispostos a reconhecer a autodeterminação da maior parte dos outros povos, mas não dos judeus, qual o nome para isso? Quando se condena exclusivamente o nacionalismo judaico – em toda a sua pluralidade –, enquanto outros tipos são apoiados e até vistos como singularmente progressistas, pois são incluídos dentro de uma suposta aliança internacional “anti-imperialista”, qual o nome para isso? Alguns podem chamar de equívoco, má-fé. Chamo de antissemitismo.
Veja, nem mesmo Edward Said, um intelectual que exaustivamente refletiu sobre a causa palestina e que tem sido tão invocado nestes dias, negou a importância do nacionalismo judaico. Ele, que defendia a solução de um Estado binacional em que as identidades nacionais judaicas e palestinas pudessem ser abrigadas, rejeitava uma suposta proposta de “dessionização”, como deixou claro em uma entrevista para o portal Haaretz, em agosto de 2000: “Eles podem ser sionistas, e podem afirmar a sua identidade judaica e a sua ligação à terra, desde que isso não mantenha os outros de fora tão manifestamente.”
No texto Power, Culture and Politics (2013), Said aborda que, embora considere seu povo, os palestinos, vítimas do movimento que contraditoriamente liberou judeus, não achava adequada a resolução 3379 da ONU, que equiparava sionismo e racismo. Em suas palavras: “Bem, olhe, nunca fiquei feliz com a resolução. Dizer que o sionismo é uma forma de racismo é ser insuficientemente claro e insuficientemente sensível ao que o sionismo fez pelos judeus; para os judeus, por um lado, e para os palestinos, por outro. Em A Questão da Palestina, falo sobre isso. Para mim, sionismo é sionismo. Não preciso igualar isso a mais nada.”
Como se vê, Edward Said não tratava os sionismos como algum tipo racismo, supremacismo ou coisas semelhantes. Tratava os sionismos, porém, como aquilo que judeus insistentemente têm dito que ele é: o seu movimento de autodeterminação nacional. É possível, obviamente, não crer que os sionismos, em toda a sua pluralidade história e política, seja a melhor alternativa emancipatória para o povo judeu. Há quem pense assim, como comunistas e anarquistas que não acreditam no Estado e no nacionalismo como saída para nenhum povo. Porém, invalidar os que acreditam nesta via, os classificando como não integrantes do campo de esquerda é um comportamento autoritário digno da extrema-direita, que encerra pontes de diálogo e impossibilita alianças, pois, sim, existiram e existem sionistas à esquerda, que lutam contra a ocupação dos territórios da Cisjordânia, que pelejam contra o formato exclusivista do Estado de Israel, que defendem direito de retorno de palestinos que desejarem retornar, que defendem dois Estados, que defendem um Estado binacional etc. Os sionismos são amplos!
O PARADIGMA DO “COLONIALISMO-BRANCO”
Como já mencionado, a partir da década de 1950, os soviéticos, em sua razão das suas escolhas geopolíticas para o Oriente Médio e disputas internas, realizaram um forte combate ao sionismo com massivas campanhas de tom conspiratório e antissemita, nas quais judeus foram tratados como “cosmopolitas” e o sionismo como uma “conspiração internacional contrarrevolucionária”. O marco dessa difamação foi o que ficou conhecido como “complô dos médicos” de 1953, quando médicos, em sua maioria judeus, foram acusados de trabalhar em prol de uma “organização judaica burguesa internacional”, que teria dado ordens para eliminar os principais quadros soviéticos.
Com a Guerra dos Seis Dias, em 1967, quando Israel, mais uma vez, derrota a Liga Árabe, e os esforços soviéticos, nas Nações Unidas, para remover o país dos territórios ocupados foram vãos, o antissionismo tornou-se parte da cultura política da esquerda global. Esse sentimento anti-Israel tomou seu lugar, inclusive, entre os partidos da Nova Esquerda do Ocidente que preservavam certa simpatia pelos israelenses, como a Associação Socialista de Estudantes Alemães (SDS), que ao final daquela década declarou apoio a Carta de 1968 da Organização para Libertação da Palestina (OLP). O artigo 22 da carta classificava o sionismo como:“(…) racista e fanático na sua natureza, agressivo, expansionista e colonial nos seus objetivos, e fascista nos seus métodos. Israel é o instrumento do movimento sionista e a base geográfica do imperialismo mundial colocada estrategicamente no meio da pátria árabe para combater as esperanças da nação árabe de libertação, unidade e progresso”.
Essa virada acontece em um cenário muito particular para o movimento socialista internacional. As esquerdas haviam assistido a revolução vietnamita em 1945, a chinesa em 1949 e a cubana em 1959. O chamado “terceiro mundo” era visto como o novo lócus da revolução mundial. A região do globo que, aliás, decidiria quem seriam os vencedores e perdedores da Guerra Fria. Desde então, representando uma enorme vitória da OLP, o paradigma dominante para analisar o conflito israelo-palestino nos discursos de esquerda, especialmente entre trotskistas, é o “colonialismo”. No entanto, isso deve ser rediscutido.
Israel tem, hoje, uma grande comunidade de judeus etíopes, e cerca de metade de todos os israelenses – ou seja, cerca de 5 milhões de pessoas – são mizrahim, os descendentes de judeus de terras árabes e persas, pessoas do Oriente Médio e Norte da África. Eles não são europeus “brancos”, mas, sim, habitantes de Bagdá, do Cairo e de Beirute por muitos séculos e que foram expulsos destes países, através da limpeza étnica árabe depois de 1948. Estas pessoas não têm para onde voltar. Elas são colonialistas?
Isso para não falar que 25% da atual população israelense é composta de árabes e drusos muçulmanos e cristãos. Elas são colonialistas?
Os judeus ashkenazim, que hoje são cerca de 35% da população israelense, são aqueles oriundos das comunidades que, na diáspora, se estabeleceram em regiões da Europa Central e Oriental. Há uma tendência comum, na contemporaneidade, que consiste em afirmar que estes judeus são puramente europeus e “brancos”.
Ora, este é um caminho perigoso. Primeiro, esse raciocínio esquece que raça não é só genética ou fenótipo, mas um fenômeno relacional. Segundo, porque afirmar que judeus ashkenazim são “brancos” implica, necessariamente, em revisar a história de racialização a que judeus foram submetidos na Europa e que levou ao Holocausto. Judeus sempre foram vistos como o “outro”, o elemento estrangeiro. Isso não pode ser esquecido. Existem, também, palestinos com pele clara e olhos azuis. Eles são “brancos”?
Quase todos os ancestrais dos israelenses de hoje escaparam da perseguição. A maioria deles vieram de países árabes e um terço deles são árabes e drusos. A categoria colonialismo, portanto, é efetiva para analisar esse problema? Ou estamos nos deparando com um choque de nacionalismos e uma batalha pela terra entre dois grupos étnicos, ambos com reivindicações legítimas de ali viver? A reivindicação palestina não deve ser colocada em dúvida, nem a autenticidade da sua história como povo igualmente nativo.
Falta no campo progressista brasileiro a capacidade de reconhecer a história do povo judeu e a legitimidade da sua autodeterminação na mesma medida em que se luta pela liberdade do povo palestino. Falta, ainda, uma imaginação política capaz de propor e acreditar em futuros de coexistência e solidariedade para palestinos e judeus naquela região. O que se deve pensar é: qual o caminho de paz com justiça sem que se acione, para isso, violências antissemitas, mentiras e negacionismos histórias e o fomento a inimizade entre os povos?
Matheus Alexandre é cientista social, mestre e doutorando em Sociologia pela Universidade Federal do Ceará, pesquisa antissemitismos contemporâneos e discute essa temática no Instagram através do @matheusalexandre.sociologia
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