* * *
O autor Polanyi, no seu livro titulado “A grande transformação: as origens da nossa época”, trata, essencialmente, das implicações sociais de um sistema econômico particular, cuja economia de mercado atingiu sua plenitude no século XIX. A ideia de Polanyi é resgatar a história da formação dos mercados a fim de desvendar e (des)caracterizar certas ideias acerca do mesmo, revelando um novo olhar sobre as relações que fundaram e permeiam as relações de mercado.
Esta resenha trata do capítulo 5 do livro supracitado, cuja proposta é apresentar o papel do mercado na configuração da economia capitalista, revelando uma nova ótica (independente e reversa) acerca da relação entre ambos os elementos. Para tanto, Polanyi se utiliza de alguns elementos, tais como: o uso de princípios e padrões, dando especial atenção ao princípio de comportamento econômico da Permuta, barganha e troca; as relações existentes entre mercado externo e interno/local; e pontos de vista político (interno e externo) e econômico do papel do estado na economia.
Inicialmente Polanyi apresenta certos princípios do comportamento econômico e padrões dos quais eles necessitam para a sua efetivação no local que se chama mercado (produção de preço). Neste momento ele relaciona os princípios da Reciprocidade/ Redistribuição/ Domesticidade com os padrões de Simetria/ Centralidade/ Autarquia, respectivamente; sinalizando para importância da identificação de um padrão de mercado também para o princípio foco deste capítulo, a Permuta (mesmo que ela não produza o essencial do mercado- preço).
Em seguida Polanyi comenta que o princípio da Permuta não está em paridade estrita com os três outros princípios. Para o autor (p. 77): “O padrão de mercado, com o qual ele está associado, é mais específico do que a simetria, a centralidade ou a autarquia – os quais, em contraste com o padrão de mercado, são meros “traços” e não criam instituições designadas para uma função apenas”.
Polanyi aprofunda estas relações, citando que o padrão de mercado Simetria não dá origem a instituições isoladas, mas apenas padroniza as já existentes. Já o padrão de mercado Centralidade cria instituições distintas, mas não as particulariza para uma função específica única. E o padrão de mercado Autarquia é (p. 77) “[…] apenas um traço acessório de um grupo fechado existente”.
Para Polanyi, entretanto, o padrão de mercado, quando relacionado a um motivo peculiar próprio, a Barganha ou Permuta, é capaz de criar uma instituição específica – o mercado -, e é este mercado que, segundo Polanyi, que vai carregar com ele a sociedade. Aqui Polanyi traz uma revelação importante (p. 77):“[…] Em vez de a economia estar embutida nas relações sociais, são as relações sociais que estão embutidas no sistema econômico”. Aqui se comprova a existência do fator econômico como vital para a existência da sociedade, o que caracteriza o sistema econômico organizado em instituições separadas, baseado em motivos específicos e concedendo um status especial. Em outras palavras, uma economia de mercado funcionando (e só funcionando) em uma sociedade de mercado.
Aqui Polanyi (re)caracteriza o mercado como uma econômica de mercado auto regulável, deixando claro que isso decorreu não como resultado natural da difusão dos mercados, mas sim como efeito de estimulantes altamente artificiais administrados ao corpo social, representado pelas máquinas. Polanyi, neste momento, revela o que de fato emerge na atual pesquisa sobre este tema, a saber, o não reconhecimento da natureza limitada e não expansiva do padrão de mercado como tal.
Com base em pensamentos do Economics in Primitive Communities, de Thurnwald, Polanyi complementa seu estudo revelando que o dinheiro não seria o responsável pelas mudanças na sociedade. Cita ainda que o mercado seria apenas responsável (talvez) pelas questões de isolamento e tendência à reclusão, e que a organização interna da economia não seria explicada pela presença ou ausência de mercado, ou seja, a explicação é mais profunda.
Tal explicação se daria, pelo autor, por uma pequena frase (p. 78): “As razões são simples. Os mercados não são instituições que funcionam principalmente dentro de uma economia, mas fora dela”. As noções de comércio local e à longa distância são trazidas por Polanyi, cujo primeiro (o local) é de pouca importância e não compete com o segundo, dissolvendo a pressão para se criar um comércio territorial, o assim chamado mercado interno ou nacional.
Para Polanyi tal lógica vai na mão contrária à doutrina clássica, ou seja, o ensino ortodoxo parte do princípio do indivíduo à propensão à Permuta, o que traz a necessidade de mercados locais, divisão do trabalho e necessidade de comércio (inclusive à longa distância).
Neste ponto Polanyi reverte a sequência do argumento, colocando no centro do debate a localização geográfica (que levaria à prática do padrão de mercado Barganha ou Regateio) quando cita que (p. 79):“[…] o verdadeiro ponto de partida é o comércio de longa distância, um resultado da localização geográfica das mercadorias, e da “divisão do trabalho” dada pela localização. O comércio de longa distância muitas vezes engendra mercados, uma instituição que envolve atos de permuta e, se o dinheiro é utilizado, de compra e venda […].
O aspecto dominante nesta nova doutrina, segundo Polanyi, é a origem do comércio em uma esfera externa que, inclusive, não tem relação com a esfera interna da economia. Para tanto, Polanyi cita a obtenção de bens distantes, por meio da caça, para representar as origens do comércio. Aqui dois tipos de comércio se fazem presentes, o comércio unilateral, representado pela luta da espécie pela aquisição do produto, e o comércio bilateral, representado pela troca por conta das chantagens locais ou acordos de reciprocidade.
Retificando tal afirmação Polanyi cita que, originalmente, o comércio nem sempre envolveu mercados; bem como era muito mais voltado ao princípio da reciprocidade (aventura, caça) do que da permuta (mercado, economia). Para Polanyi (p. 80): “Ele pode implicar tanto em paz como em bilateralidade, porém, mesmo quando implica ambos, ele é baseado, habitualmente, no princípio da reciprocidade, e não da permuta”.
Neste momento do texto o autor começa a tratar a diferença (anteriormente evocada) entre mercado externo e comércio local, afirmando que, embora diferentes (tamanho, função e origem), se complementam. O primeiro é uma transação, já o segundo é limitado às mercadorias da região. Ainda: (p. 80): “Assim, tanto o comércio exterior quanto o local são relativos à distância geográfica, sendo um confinado às mercadorias que não podem superá-la e o outro às que podem fazê-lo. Um comércio desse tipo é descrito corretamente como complementar”.
Além do conceito de complementaridade que Polanyi traz aqui, ele apresenta também o conceito de competição, quando cita que (pg. 81): “Além das trocas complementares, ele inclui um número muito maior de trocas nas quais mercadorias similares, de fontes diferentes, são oferecidas em competição umas com as outras”.
Tentando tratar da origem dos mercados internos ou nacionais Polanyi cita que nem o porto, nem a feira e nem o empório foi o pai destes, acrescentando que atos individuais de permuta e troca também não são responsáveis por isso, especialmente em mercados onde predominam outros princípios de comportamento econômico.
Embora obscura esta origem, o autor sente segurança em afirmar que houveram uma série de salvaguardas destinadas a proteger a organização econômica vigente na sociedade de interferência por parte das práticas de mercado. Para ele (p. 82): “A paz do mercado era garantida ao preço de rituais e cerimônias que restringiam seu objetivo, enquanto asseguravam sua capacidade de funcionar dentro dos estreitos limites dados”. Aqui as cidades não só protegiam o mercado, mas também o impediam de se expandirem pelo campo, e, assim, incrustarem-se na organização econômica corrente da sociedade.
Polanyi chega ainda à conclusão de que os mercados locais não foram pontos de partida do comércio interno ou nacional, na medida em que são, essencialmente, mercados de vizinhança e, embora importantes para a vida das comunidades, em nenhum lugar revelam indícios de reduzir o sistema econômico vigente a seus padrões.
As chamadas nações eram, neste contexto, segundo o autor, apenas unidades políticas frouxas, auto-suficientes e sem significado para os mercados locais nas aldeias. Tais distritos organizados, como chama Polanyi, tinham atuação do comércio local ou a longa distância separadamente e sem infiltração no campo. Este fato peculiar constitui a chave da história social da vida urbana na Europa Ocidental.
Ao chegar a esta conclusão (sem alternativa) Polanyi evoca a intervenção estatal para explicar a formação do comércio local, mas antes de argumentar mais sobre isso, o autor faz um rápido esboço da história da civilização urbana conforme modelada pela separação peculiar entre o comércio e a longa distância, dentro dos limites da cidade medieval. Aqui aspectos como influencia militar e política da cidade (lidar com camponeses das redondezas); suprimento de alimentos (cuja regulamentação envolvia a aplicação de métodos tais como a publicidade obrigatória das transações e a exclusão de intermediários); artefatos industriais (separação profunda entre comércio local e a longa distância, dada a exportação afetada) foram abordados.
Tal desenvolvimento leva Polanyi a afirmar que se forçou o estado territorial a se projetar como instrumento da “nacionalização” do mercado e criador do comércio interno. Para Polanyi (p. 86):
A ação deliberada do estado nos séculos XV e XVI impingiu o sistema mercantil às cidades e às municipalidades ferrenhamente protecionistas. O mercantilismo destruiu o particularismo desgastado do comércio local e intermunicipal, eliminando as barreiras que separavam esses dois tipos de comércio não-competitivo e, assim, abrindo caminho para um mercado nacional que passou a ignorar, cada vez mais, a distinção entre cidade e campo […].
A partir deste momento, e em cima desta constatação, Polanyi faz análises do papel do estado sob os pontos de vista político e econômico. Do ponto de vista político, a nova política estatal mercantilista envolvia a disciplina dos recursos de todo território nacional para os objetos de poder nos assuntos externos.
Do ponto de vista econômico, o instrumento de unificação foi o capital, i.e., os recursos privados disponíveis sob a forma de dinheiro acumulado, e portanto, peculiarmente adequado para o desenvolvimento do comércio.
Agora a intervenção estatal, de posse de um fato – liberação do comércio dos limites da cidade privilegiada – tinha de lidar com dois perigos – o monopólio e a competição, o que desagua na total regulamentação da vida econômica, só que agora em escala nacional e não mais apenas municipal. Este mercado nacional assumiu o seu lugar ao lado dos mercados local e estrangeiro, às vezes sobrepujando-os em parte, o que conclui, segundo Polanyi, a sinopse do mercado até a época da Revolução Industrial.
Polanyi finaliza este capítulo deixando uma abertura para o estágio seguinte na história da humanidade, caracterizado pela tentativa de estabelecer um grande mercado auto-regulável, bem como deixa claro que a libertação do comércio, até aqui apresentada, o liberou do particularismo, ao tempo em que ampliou o escopo da regulamentação. Em outras palavras, ele – o mercado – ainda continua regulado e subordinado a uma autoridade social, o que costura o fim do capítulo ao seu início.
Filed Under: Ensaios e Resenha
Fonte: http://visaocritica.adm.br/?p=937
0 comentários:
Postar um comentário