O autor Polanyi, no seu livro titulado “A grande transformação: as origens da nossa época”, trata, essencialmente, das implicações sociais de um sistema econômico particular, cuja economia de mercado atingiu sua plenitude no século XIX. A ideia de Polanyi é resgatar a história da formação dos mercados a fim de desvendar e (des)caracterizar certas ideias acerca do mesmo, revelando um novo olhar sobre as relações que fundaram e permeiam as relações de mercado.
Esta resenha trata do capítulo 6 do livro supracitado, cuja proposta é discutir o mercado auto- regulável e a sua relação com os elementos a ele inerentes, a saber, o trabalho, a terra e o dinheiro, que vestem, neste contexto, a roupagem de mercadorias fictícias.
Para tanto, Polanyi estrutura seu capítulo discutindo, primeiramente, sobre o sistema econômico e sua relação (intrínseca) com o sistema social. Em seguida ele trata sobre o mercado e a sua forma de administração, bem como as características do mercado auto-regulável. Polanyi segue para tratar a economia de mercado e o que ele pressupõe, apresentando em seguida aspectos da auto-regulação e um conjunto de pressupostos em relação ao estado e à sua política. Depois destas explanações Polanyi segue para uma volta ao sistema mercantil e aos mercados nacionais, para só depois apresentar-se apto a desenvolver, de forma mais concreta, a natureza institucional de uma economia de mercado, e os perigos que ela acarreta para a sociedade. Polanyi vai finalizando seu capítulo tratando sobre a existência dos Grandes Mercados e a postura protetora da sociedade para os perigos inerentes a um sistema de mercado auto-regulável.
O autor cita, logo no início do seu capítulo, que os mercados funcionam como acessórios da vida econômica. Em outras palavras, o sistema econômico era regido pelo sistema social, que no capítulo 5 do seu livro se mostra como o grande ator no mercado vigente.
O sistema mercantil conseguiu desenvolver muito os mercados, mas mesmo assim o autor chama a atenção para uma administração centralizada que já se incorporava neste contexto. Aqui destaca-se que a regulamentação e os mercados cresceram juntos, e o mercado auto-regulável não só era desconhecido nesta época, como era visto como uma inversão completa da tenência do desenvolvimento.
De posse de tais fatores, Polanyi comenta que é possível entender como funciona uma economia de mercado, onde (p. 89): “[…] um sistema econômico controlado, regulado e dirigido apenas por mercados; a ordem na produção e distribuição dos bens é confiada a esse mecanismo auto-regulável”.
A ideia de tal tipo de mercado é, ainda, segundo o autor, a busca por atingir o máximo de ganhos monetários, pressupondo mercados nos quais o fornecimento dos bens disponíveis (incluindo serviços) a um preço definido igualarão a demanda a esse mesmo preço. Ou seja, toda a ordem na produção e distribuição gira em torno do fator preço.
Já a auto-regulação significa, para Polanyi, que toda a produção é para venda no mercado, e que todos os rendimentos derivam de tais vendas. Neste sentido, outros fatores envolvidos na produção como o trabalho, a terra e o dinheiro possuem um preço que equivale a mercadorias, salários, aluguel e juros. Os preços formam rendas, sendo os juros o preço do dinheiro, o aluguel o preço da terra, e os salários o preço da força de trabalho. Já o preço da mercadoria contribui para a formação da renda, que também é chamada de lucro (o lucro decorre da diferença entre o preço do bem e o seu custo).
Polanyi discorre o capítulo apresentando em seguida outra série de pressupostos e relação ao estado e a sua política. Para ele (p. 90):
A formação dos mercados não será inibida por nada, e os rendimentos não poderão ser formados de outra maneira a não ser através das vendas. […] Assim, é preciso que existam não apenas mercados para todos os elementos da indústria, como também não deve ser adotada qualquer medida ou política que possa influenciar a ação desses mercados.
Aqui Polanyi cita a necessidade e a validade na existência de políticas que apenas ajudem a assegurar a auto-regulação do mercado. Neste momento o autor retorna ao sistema mercantil e aos mercados nacionais para explicar alguns elementos que compõem este pensamento.
Quando retorna ao feudalismo e ao sistema de guildas, Polanyi cita que a terra e o trabalho formavam parte da própria organização social. O uso da terra ficava à parte da organização de compra e venda, e sujeitas a um conjunto inteiramente diferente de regulamentações institucionais. Já a organização do trabalho, as motivações e as circunstâncias das atividades produtivas estavam inseridas na organização geral das sociedades, ou seja, era regulamentado pelo costume e pelas regras da guilda e da cidade.
Polanyi destaca a postura do mercantilismo nesta época (p. 91): “O mercantilismo, com toda a sua tendência em direção à comercialização, jamais atacou as salvaguardas que protegiam estes dois elementos básicos da produção – trabalho e terra – e os impedia de se tornarem objetos de comércio”.
Polanyi comenta que o mercantilismo, por mais que tivesse insistido na comercialização como política nacional, pensava a respeito dos mercados de maneira contrária à economia de mercado, o que fica bem demonstrado pela amplitude da intervenção estatal na indústria. Tal fator assemelha muito ao mercantilismo dos feudais (avessos à ideia da comercialização do trabalho e da terra – a precondição da economia de mercado), diferindo-os apenas em relação aos métodos de regulamentação.
Neste momento Polanyi evoca a transição para um sistema democrático e uma política representativa, que significou total reversão da tendência da época. Neste ínterim, a mudança de mercados regulamentados para auto-reguláveis, já ao final do século XVIII, representou uma transformação completa na estrutura da sociedade.
O autor comenta sobre características do mercado auto-regulável, trazendo, dentre elas, a separação institucional da sociedade em esferas econômica e política. Neste momento, para Polanyi (p. 93) “A sociedade do século XIX revelou-se, de fato, um ponto de partida singular, no qual a atividade econômica foi isolada e imputada a uma motivação econômica distinta”.
Ainda, para o autor (p. 93), “Um tal padrão institucional não poderia funcionar a menos que a sociedade fosse subordinada, de alguma forma, às suas exigências. Uma economia de mercado só pode existir numa sociedade de mercado”. Esta seria a análise, de forma geral, acerca de um padrão de mercado existente. Neste sentido, o autor destaca que uma economia de mercado deve compreender todos os componentes da indústria, incluindo trabalho, terra e dinheiro.
É neste momento do texto que Polanyi evoca a contradição, quando cita que (p. 93) “[…]o trabalho e a terra nada mais são do que os próprios seres humanos nos quais consistem todas as sociedades, e o ambiente natural no qual elas existem. Incluí-los no mecanismo de mercado significa subordinar a substância da própria sociedade às leis do mercado”.
Tal contradição deixa Polanyi confortável para abordar em seu capítulo uma análise que tanto esperava, a saber, a natureza institucional de uma economia de mercado, e os perigos que ela acarreta para a sociedade.
Nesta abordagem Polanyi cita que é com a ajuda do conceito de mercadoria que o mecanismo do mercado se entrosa aos vários elementos da vida industrial. A mercadoria é o objeto produzido para a venda, e o mercado são os contatos reais empíricos entre compradores e vendedores. Para Polanyi na prática isso significa existência de mercados para cada um dos elementos da indústria de modo a formar (de maneira integrada) um Grande Mercado.
O ponto crucial que o autor traz aqui é o seguinte: trabalho, terra e dinheiro são elementos essenciais da indústria. Assim, eles também têm que ser organizados em mercados e, de fato, esses mercados formam uma parte absolutamente vital do sistema econômico.
É neste ponto que jaz a descrição do trabalho, da terra e do dinheiro como mercadorias inteiramente fictícias. Não obstante, é com a ajuda dessa ficção que são organizados os mercados reais do trabalho, da terra e do dinheiro.
Polanyi destaca veementemente que em relação ao trabalho, à terra e ao dinheiro não se pode manter um tal postulado. Para ele (p. 94) “Permitir que o mecanismo de mercado seja o único dirigente do destino dos seres humanos e do seu ambiente natural, e até mesmo o árbitro da quantidade e do uso do poder de compra, resultaria no desmoronamento da sociedade”.
Neste momento Polanyi vai comentando sobre os diversos elementos do mercado e o que poderia acontecer com eles se fossem condicionados ao papel anteriormente aqui comentado. A força de trabalho, os “seres humanos” sucumbiriam sob os efeitos do abandono social; a natureza seria reduzida a seus elementos mínimos; e a administração do poder de compra por parte do mercado liquidaria empresas periodicamente.
O autor comenta que mercados de trabalho, terra e dinheiro são, sem dúvida, essenciais para uma economia de mercado, mas nenhuma sociedade suportaria estar “totalmente” subordinada aos efeitos (muitas vezes artificiais e severos) de tal sistema.
Mais tarde, na sociedade mercantil, a produção foi organizada por mercadores e não se restringia mais às cidades. Para Polanyi foi nessa ocasião que a produção industrial se colocou definitivamente, e em grande escala, sob a liderança organizadora do mercador. Adicionalmente (p. 95) “Durante séculos esse sistema cresceu em poder e objetivo até que finalmente, num país como a Inglaterra, a indústria da lã, produto básico nacional, atingiu grandes setores do pais onde a produção era organizada pelo negociante de tecidos”. Aqui o autor cita que até o final do século XVIII, a produção industrial na Europa Ocidental já era um mero acessório do comércio.
Polanyi comenta um fato importante neste contexto. Não foi o aparecimento da máquina em si, mas a invenção de maquinarias e fábricas complicadas e, portanto, especializadas, que mudou completamente a relação do mercador com a produção. Foi a criação de um sistema fabril (decorrente do uso destas máquinas) que trouxe as grandes mudanças.
Neste novo modelo (p. 96) “A produção industrial deixou de ser um acessório do comércio organizado pelo mercador como proposição de compra e venda; ela envolvia agora investimentos a longo prazo, com os riscos correspondentes, e a menos que a continuidade da produção fosse garantida, com certa margem de segurança, um tal risco não seria suportável”.
Tal constatação trouxe a maior necessidade de garantias obre os elementos básicos da produção: terra, trabalho e capital. Em tempo, em uma sociedade comercial esse fornecimento só podia ser organizado de uma forma: tornando-os disponíveis à compra. Da transformação dos três elementos, um se destaca mais: trabalho (mão-de-obra) é o termo técnico usado para os seres humanos na medida em que não são empregadores, mas empregados. E seguindo este raciocínio, a sociedade humana tornara-se, como cita Polanyi, um acessório do sistema econômico.
Polanyi vai finalizando o capítulo comentando do efeito devastador da Revolução Industrial na Inglaterra, e cita que a história social do século XIX foi resultado de um duplo movimento (p. 98): “a ampliação da organização do mercado em relação às mercadorias genuínas, acompanhada pela sua restrição em relação às mercadorias fictícias”. Ele complementa (p. 98) “Enquanto, de um lado, os mercados se difundiam sobre toda a face do globo e a quantidade de bens envolvidos assumiu proporções inacreditáveis, de outro uma rede de medidas e políticas se integravam em poderosas instituições destinadas a cercear a ação do mercado relativa ao trabalho, à terra e ao dinheiro”.
Para Polanyi esta foi a forma que a sociedade se protegeu dos ônus decorrente da implantação de um sistema auto-regulável, sendo este um aspecto, talvez o único, mais abrangente e acolhedor na história deste período.
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Acesse o livro: A grande transfornação
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