A mais tenra lembrança que eu tenho de alguma música que tenha fortemente impactado minha vida, é de meados de 1970, na minha bonita cidade de Monteiro, originalmente chamada de Alagoa Grande do Monteiro, no sertão paraibano, a flor do Cariri. Morávamos, à época, no Sítio do Limão, onde nasci, eu tinha por volta de 02 ou três anos, íamos à pé, desde a zona rural à sede do município, para a Igreja Presbiteriana de Monteiro, onde fui batizado e tive os primeiros e fundamentais ensinamentos da fé reformada. Faço uma digressão necessária, para efeito de honestidade intelectual comigo mesmo: a canção que eu tenho o mais longínquo registro é; “Anunciamos a Paz, anunciamos a Paz, anunciamos a Paz...” que é uma adaptação cristã de uma música judaica; “Hevenu Shalom aleichem, hevenu Shalom aleichem...”, a qual aprendi a cantar nas aulas de hebraico do Rev. Humberto Freitas, cerca de 20 anos depois, no seminário Presbiteriano do Norte em Recife, ainda que tenha o registro na memória, por ser breve e de um fraseado pequeno, não me causou impacto profundo, não naquela época. Digressão fechada.
A minha memória se reporta ao final da década de 70, e sou acometido por uma saudade, bucólica, nostálgica, e tudo mais que combine com este substantivo. O que me faz ter essa sensação é relembrar a hora de dormir. A noite poderia ser fria ou quente, com belo luar ou chuvosa, estando com saúde ou doentes, sempre, ajoelhados à beira da cama: eu e meus três irmãos cantávamos com D. Marilene (D. Leninha, ou ainda Maria Helena, de acordo com uma tia teimosa que nunca pronunciou o nome dela de forma correta), minha mãe, a canção de ninar mais bela que eu conheci, então orávamos pedindo proteção divina, era um som mavioso, inefável e indizível sensação:
Finda-se este dia que meu Pai me deu
Sombras vespertinas cobrem já o céu
Ó Jesus bendito, se comigo estás
Eu não temo a noite, vou dormir em paz
Às vezes eu me entediava com as longas orações de minha mãe, pelo menos a minha impaciência me fazia acreditar que eram longas, e me distraía, uma noite eu sai do quarto em que estávamos todos reunidos em oração, andei por toda a casa, depois voltei, pé ante pé, silenciosamente e sorrateiramente entrei novamente no quarto, me aproximei de minha mãe, que orava de olhos fechados, tão empolgada estava que nem se deu conta de minha presença, eu segurei o seu nariz, queria dá-lhe um baita susto, não preciso dizer que logrei êxito nisto.
Não há como calcular o efeito que esta canção causava no coração inseguro e temeroso de uma criança de cinco anos. Eu sempre lembrava desta primeira estrofe quando as minhas precoces insônias me impediam de adormecer logo, ou quando os sons da noite, quaisquer ruídos, por menores que fossem, as sombras que porventura aparecessem, os sussurros nas ruas, os estalos no telhado, tudo isto provocava sobressaltos, e trazia consigo a insônia, era cíclico, eu estava insone, me amedrontava com algo, e então ficava mais insone ainda, só mesmo a confiança que eu adquiri ao cantar: "... eu não temo a noite, vou dormir em paz...", para sossegar e poder dormir. Por força da ocupação de meu pai, que trabalhava à noite, e que por isso quase nunca estava em casa, sempre ausente todas as noites, o temor se acentuava, temia por nós que estávamos em casa, como por ele que estava fora desprotegido, só mesmo confiando no Pai Eterno para poder dormir e descansar, acreditando que pela manhã o veria de novo e que estaríamos em paz. Eu me sentia mais vulnerável ainda, sem o meu "herói" por perto.
Só então o meu coração começava a acalmar-se, a mente relaxava e o corpo cedia ao cansaço físico e então eu podia enfim dormir.
Com pecados hoje, eu te entristeci
Mas perdão te peço por amor de ti
Sou pequeno e frágil, livra me do mal
Que em ti eu tenha proteção final
O ato de confessar as minhas faltas todas as noites tornou-se uma constante, primeiro porque eram muitas, eu era realmente "bagunceiro", aprontava todas que eu pudesse e mais algumas deixava na conta, segundo porque um dia a minha mãe contou para mim e para meus irmãos uma estória na qual uma criança rebelde, que não era muito obediente foi abduzida, não posso dizer que foi arrebatada, por Satanás. Será que se pode calcular o efeito que isso causou em nós? Era aterrorizante pensar nisto, era mais por medo que eu me aproximava de Deus do que por amor. O mais inusitado de tudo é que ela contou esta “estória pia” com a intenção de descobrir qual de nós havia cometido uma travessura, eu não lembro agora qual foi o ato, porém sabia que não tinha sido eu, mesmo que eu soubesse que era inocente, ainda assim fiquei com sentimentos de culpa. Porém, com o tempo, comecei a crer num Deus Pai que me ama e que sempre quer o melhor para mim, poder falar com alguém assim é mais fácil do que com um Deus Pai, distante, inquisidor e vingativo, que me deixava à mercê de Satã.
Guarda o marinheiro no violento mar
E ao que sofre dores queiras confortar
Ao tentado estende sua mão Senhor
Manda ao triste aflito, o Consolador
Muito tempo depois, quando os temores da infância que a escuridão noturna trazia junto a si, já não me assustavam mais, ouvia a voz dela cantando mais uma estrofe: “... Guarda o marinheiro no violento mar, e ao que sofre dores queiras confortar, ao tentado estende Tua mão, Senhor; manda ao triste e aflito o Consolador...”, eu tinha ingressado na Marinha do Brasil e a canção era atual, tinha vencido o tempo. Eu conseguia ouvi-la cantando esta canção, nas muitas noites em que eu estava de sentinela, olhando para o mar escuro, sem poder divisar nada à frente, relembrava dela cantando este trecho e me emocionava, sentia uma saudade infinda destas noites em Monteiro, saudades de um tempo que não volta jamais, por isso mesmo que é tão importante, porque não pode ser revivido. Muitas vezes com o vento frio batendo no rosto, eu cantava baixinho este trecho do hino, era a minha oração, pedia a Deus que guardasse o marinheiro, pedia a Deus que me guardasse do mal. Hoje vejo que Ele não só me guardou do violento mar, como me protegeu nas tempestades que atravessei por toda a vida, poucos teriam sobrevivido ao que eu sobrevivi, poucos teriam se levantado se tivessem tropeçado e caído tanto quanto eu caí, me levantei, e me levantarei sempre, pois ainda que fraco, a mão que me ergue é meiga, mas é muito forte.
Pelos pais e amigos, pela santa lei
Pelo amor divino, graças te darei
Ó Jesus, aceita minha petição A minha memória se reporta ao final da década de 70, e sou acometido por uma saudade, bucólica, nostálgica, e tudo mais que combine com este substantivo. O que me faz ter essa sensação é relembrar a hora de dormir. A noite poderia ser fria ou quente, com belo luar ou chuvosa, estando com saúde ou doentes, sempre, ajoelhados à beira da cama: eu e meus três irmãos cantávamos com D. Marilene (D. Leninha, ou ainda Maria Helena, de acordo com uma tia teimosa que nunca pronunciou o nome dela de forma correta), minha mãe, a canção de ninar mais bela que eu conheci, então orávamos pedindo proteção divina, era um som mavioso, inefável e indizível sensação:
Finda-se este dia que meu Pai me deu
Sombras vespertinas cobrem já o céu
Ó Jesus bendito, se comigo estás
Eu não temo a noite, vou dormir em paz
Às vezes eu me entediava com as longas orações de minha mãe, pelo menos a minha impaciência me fazia acreditar que eram longas, e me distraía, uma noite eu sai do quarto em que estávamos todos reunidos em oração, andei por toda a casa, depois voltei, pé ante pé, silenciosamente e sorrateiramente entrei novamente no quarto, me aproximei de minha mãe, que orava de olhos fechados, tão empolgada estava que nem se deu conta de minha presença, eu segurei o seu nariz, queria dá-lhe um baita susto, não preciso dizer que logrei êxito nisto.
Não há como calcular o efeito que esta canção causava no coração inseguro e temeroso de uma criança de cinco anos. Eu sempre lembrava desta primeira estrofe quando as minhas precoces insônias me impediam de adormecer logo, ou quando os sons da noite, quaisquer ruídos, por menores que fossem, as sombras que porventura aparecessem, os sussurros nas ruas, os estalos no telhado, tudo isto provocava sobressaltos, e trazia consigo a insônia, era cíclico, eu estava insone, me amedrontava com algo, e então ficava mais insone ainda, só mesmo a confiança que eu adquiri ao cantar: "... eu não temo a noite, vou dormir em paz...", para sossegar e poder dormir. Por força da ocupação de meu pai, que trabalhava à noite, e que por isso quase nunca estava em casa, sempre ausente todas as noites, o temor se acentuava, temia por nós que estávamos em casa, como por ele que estava fora desprotegido, só mesmo confiando no Pai Eterno para poder dormir e descansar, acreditando que pela manhã o veria de novo e que estaríamos em paz. Eu me sentia mais vulnerável ainda, sem o meu "herói" por perto.
Só então o meu coração começava a acalmar-se, a mente relaxava e o corpo cedia ao cansaço físico e então eu podia enfim dormir.
Com pecados hoje, eu te entristeci
Mas perdão te peço por amor de ti
Sou pequeno e frágil, livra me do mal
Que em ti eu tenha proteção final
O ato de confessar as minhas faltas todas as noites tornou-se uma constante, primeiro porque eram muitas, eu era realmente "bagunceiro", aprontava todas que eu pudesse e mais algumas deixava na conta, segundo porque um dia a minha mãe contou para mim e para meus irmãos uma estória na qual uma criança rebelde, que não era muito obediente foi abduzida, não posso dizer que foi arrebatada, por Satanás. Será que se pode calcular o efeito que isso causou em nós? Era aterrorizante pensar nisto, era mais por medo que eu me aproximava de Deus do que por amor. O mais inusitado de tudo é que ela contou esta “estória pia” com a intenção de descobrir qual de nós havia cometido uma travessura, eu não lembro agora qual foi o ato, porém sabia que não tinha sido eu, mesmo que eu soubesse que era inocente, ainda assim fiquei com sentimentos de culpa. Porém, com o tempo, comecei a crer num Deus Pai que me ama e que sempre quer o melhor para mim, poder falar com alguém assim é mais fácil do que com um Deus Pai, distante, inquisidor e vingativo, que me deixava à mercê de Satã.
Guarda o marinheiro no violento mar
E ao que sofre dores queiras confortar
Ao tentado estende sua mão Senhor
Manda ao triste aflito, o Consolador
Muito tempo depois, quando os temores da infância que a escuridão noturna trazia junto a si, já não me assustavam mais, ouvia a voz dela cantando mais uma estrofe: “... Guarda o marinheiro no violento mar, e ao que sofre dores queiras confortar, ao tentado estende Tua mão, Senhor; manda ao triste e aflito o Consolador...”, eu tinha ingressado na Marinha do Brasil e a canção era atual, tinha vencido o tempo. Eu conseguia ouvi-la cantando esta canção, nas muitas noites em que eu estava de sentinela, olhando para o mar escuro, sem poder divisar nada à frente, relembrava dela cantando este trecho e me emocionava, sentia uma saudade infinda destas noites em Monteiro, saudades de um tempo que não volta jamais, por isso mesmo que é tão importante, porque não pode ser revivido. Muitas vezes com o vento frio batendo no rosto, eu cantava baixinho este trecho do hino, era a minha oração, pedia a Deus que guardasse o marinheiro, pedia a Deus que me guardasse do mal. Hoje vejo que Ele não só me guardou do violento mar, como me protegeu nas tempestades que atravessei por toda a vida, poucos teriam sobrevivido ao que eu sobrevivi, poucos teriam se levantado se tivessem tropeçado e caído tanto quanto eu caí, me levantei, e me levantarei sempre, pois ainda que fraco, a mão que me ergue é meiga, mas é muito forte.
Pelos pais e amigos, pela santa lei
Pelo amor divino, graças te darei
E, seguro durmo sem perturbação.
Dormir nunca foi fácil para mim, nem mesmo na infância, posteriormente durante a adolescência e a juventude desenvolvi o hábito de tomar café em excesso, a cafeína me estimula e me deixa alerta, porém tenho crise de abstinência, se não consumir em grandes doses durante o dia, o que só aumenta a probabilidade de que eu passe algumas horas inquieto na cama e com dificuldades para “agarrar” no sono. Então passei a repetir esta frase: “... seguro durmo sem perturbação...”, nem sempre o sono reparador vem, nem sempre quando vem é reparador, e algumas vezes ele nem vem, mas ainda assim continuo fazendo minha petição, sei que sou atendido, quer durma logo, quer não.
Um dia eu ensinei algumas partes desta canção para minha filha Jessicah quando alegou que estava sem sono, preocupada com os estranhos ruídos da rua: ”... Ó Jesus, aceita minha petição, e seguro durmo, sem perturbação”. Calma e serena, reclinou a cabeça e dormiu a sono solto. Ela entendeu a mensagem.
Ainda que seja um adulto que está beirando a meia idade, com todas as nuances que um Baby Boomer possa ter, até hoje eu prefiro me sentir como um menino amedrontado por sombras e monstros inimagináveis, desde que isso me conduza a confiar no abraço protetor de Abba, não quero drogas e nem remédios para dormir, prefiro ouvir a chuva mansa no telhado, lembrar do Sítio do Limão, com a tritinar dos grilos e o coaxar das rãs, além do mugido do gado ou o balido das ovelhas, ou até mesmo o vento impetuoso que fazia o pé de Algaroba, que estava defronte de nossa casa, baloiçar como se fosse um simples galho de uma roseira, só assim me lembro desta canção, entoada de joelhos e lembro do quanto ela fazia sentir-me protegido, cantá-la era ter certeza de que dormiria por toda a noite, pois sabia que “... Jesus bendito, se comigo estás, eu não temo a noite, vou dormir em paz...”
[Oração Noturna (Hinário Novo Cântico 148)]
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