Os dicionários definem um maltrapilho como um “esfarrapado”, “roto”, “pelintra”, “mendigo”, “um pedinte”. Mas a definição bíblica de maltrapilho vai muito além, como mostra qualquer exame rápido das Escrituras.
Ao passearmos tranqüilamente pelos corredores da história da salvação, observamos que Deus sempre demonstrou um afeto especial pelos pobres e pequeninos, pelos humildes de coração. Desde o instante em que a teocracia é formada, no monte Sinai, Javé quis de Israel a compreensão de que ele esperava algo mais de seu povo eleito que a mera observância externa à lei mosaica. Com o passar dos anos, foi ficando cada vez mais evidenciado para os israelitas o fato de serem exatamente os maltrapilhos (os anawim — literalmente, “pequenos e pobres” —, como eram chamados em hebraico) o objeto especial da ternura e da compaixão de Deus.
A princípio, o termo maltrapilho tinha contornos somente sociológicos ou econômicos. Os maltrapilhos eram os desabrigados, os sem-terra, os meninos e as meninas de rua, os despojados, a quem um dia Deus tornaria novamente prósperos. Mais tarde, com a influência do profeta Isaías, o termo adquiriu sentido espiritual de enorme profundidade. O ministério de Isaías iniciou-se com uma visão de Deus “assentado num trono alto e exaltado [...]. Acima dele estavam serafins [...]. E proclamavam uns aos outros: ‘Santo, santo, santo é o Senhor dos Exércitos...’”. A visão deixou em sua alma uma marca incandescente e indelével: Deus é totaliter aliter, Totalmente Outro. Os sentimentos humanos não podiam tocá-lo, e o pensamento humano não era capaz de contê-lo. Como Charles de Foucauld aprendeu no momento de sua conversão: “Deus é tão grande que há uma distância infinita entre Deus e tudo o que não é Deus”.
A idéia do mistério é ainda desconcertante para boa parte das mentes modernas, mas constitui a pulsação dos profetas e dos santos de todas as eras. Eles sabem que Deus pode fazer qualquer coisa e agirá desde que os homens e as mulheres sejam suficientemente humildes para reconhecer que necessitam dele.
Os profetas posteriores, seguindo os passos de Isaías, chamaram a essas pessoas simples e humildes anawim ou, transpondo para um conceito que possamos entender hoje: “maltrapilhos”. Foi assim que os vocábulos relacionados à pobreza deixaram de ter sentido exclusivamente econômico para também abarcarem nuanças espirituais. No alicerce dessa mutação, estava o princípio de Isaías: Deus executa seus atos divinos somente quando as pessoas reconhecem a insuficiência humana delas próprias (ou, no linguajar dos AA, sua “impotência humana”). Os verdadeiros amigos de Deus foram aqueles que se sentiram realmente pobres diante dele. Perceberam que o ato mais fundamental da religião era o fato de deverem a vida e o próprio ser a Outro. A dependência e a rendição amorosa consistiam para eles próprio fôlego de vida. Os maltrapilhos eram os pobres em espírito, pequenos aos próprios olhos, cientes de sua nudez e pobreza diante de Deus, por isso mesmo entregando-se sem reservas a sua misericórdia.
Era esse o espírito que Deus procurava em seu povo; é a única atitude que condiz com a condição de criatura própria do ser humano. Alia um senso de impotência da pessoa com uma confiança infalível no amor de Deus e uma rendição total à orientação de sua vontade. Os maltrapilhos eram na realidade o remanescente, o verdadeiro Israel para quem as promessas messiânicas haviam sido feitas.
Quando por fim o Filho de Deus abre as cortinas da eternidade e lá em Belém finca o pé na história humana, os que dão o passo de encontrá-lo são os verdadeiramente pobres em espírito: José, Zacarias e Isabel, Simeão e Ana, os pastores e os magos. Esses formaram sua corte, o remanescente sagrado de maltrapilhos prometido pelos profetas. Muito antes, porém, o olhar de Deus havia repousado com afeição especial sobre Maria, a jovem judia de Nazaré. Ninguém era mais verdadeiramente pobre em espírito, tão profundamente ciente de necessitar dele, tão inteiramente rendido a sua vontade. Foi por isso que ele a escolheu para ser a mãe do Messias — o menor e mais humilde na longa sucessão de maltrapilhos.
Como era de esperar, quando Jesus começa seu ministério profético, de imediato identifica o espírito de maltrapilho que havia nele: “... aprendam de mim, pois sou manso e humilde de coração...”. E que dizer do primeiro grupo chamado para o reino? “Bem-aventurados os pobres em espírito, pois deles é o Reino dos céus.”
Meditações para maltrapilhos consiste numa série de reflexões escritas num espaço de 22 anos — anos de alegria e sofrimento, de fidelidade e infidelidade, de compromisso intenso e graves recaídas, de vida desordenada e esforço intenso por ser fiel a Jesus. Compartilho essas reflexões com um alvo específico em mente: não desejando transmitir pensamentos inspiradores, mas esperando despertar, ressuscitar e reavivar uma confiança radical e inamovível no Deus representado em forma corpórea no Carpinteiro de Nazaré. Creio piamente que o esplendor de um coração humano que confie na verdade de ser amado de modo incondicional confere maior prazer a Deus e lhe traz mais deleite do que a catedral mais magnífica jamais erigida ou o órgão mais estrondoso jamais tocado.
Confiar de forma inabalável hoje num maltrapilho é algo extraordinário, porque em geral exige um grau de coragem que chega às raias do heroísmo. Quando a sombra da cruz de Cristo recai sobre as pessoas na forma de fracassos, pesares, rejeição, abandono, desemprego, solidão, depressão, a perda de um querido; quando ficamos surdos a tudo o mais, exceto ao bramido estridente da nossa própria dor; quando o mundo ao redor repentinamente se apresenta como um lugar ameaçador e hostil, bem podemos bradar de angústia: “Como um Deus de amor permite que isso aconteça?”. E assim é lançada a semente da desconfiança, obrigando-nos a uma situação de escolha: nos afastaremos de Deus, ou nos voltaremos em direção a ele mesmo quando a escuridão o esconde de nossa visão? Escolher a luz de Deus na noite escura do desespero é um ato heróico de coragem.
Continuo a deparar com essa escolha nos momentos mais sombrios, solitários e desalentadores de minha vida. Ao convidá-lo a unir-se comigo nessa viagem de maltrapilho, não peço mais de você do que peço de mim mesmo: que confie no amor de Deus não importando o que nos aconteça.
Brennan Manning
[Apresentação feita pelo autor do livro Um vislumbre de Jesus, Editora Palavra, 1ª edição, 201 páginas.]
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