Era um piromaníaco, nem sabia bem o que este termo significava, mas era exatamente o que ele era, se alguém lhe dissesse que ele era isso, consideraria como um elogio ou que era portador de uma doença grave. E não apenas no sentido metafórico, ainda que gostasse de ardis e estratagemas próprios da infância ele era piromaníaco de verdade, poria fogo em Roma com mais qualidade que Nero, nada escapava à sanha ardente que tinha. Como quase todas as outras crianças era fã incondicional dos bombeiros, os homens do fogo, mas era fã do fogo também, não saberia “elaborar” essa contradição dentro si mesmo, não era a única e não era a mais grave, logo, não era objeto de sua preocupação, seu negócio mesmo era andar com uma caixa de fósforos no bolso.
Tinha começado com queima de papéis no banheiro, adorava fazer isso, ainda que levasse reprimenda da mãe, ainda assim de vez em quando colocava papéis no vaso sanitário e depois tocava fogo. A fumaça que ficava presa no banheiro e o odor de papel queimado o denunciavam com muita facilidade, mas também não o impediam, sempre dava um jeito quando ia lavar o banheiro para ajudar a mãe de tocar fogo nos papéis na lixeira.
Tinha desgosto por ter nascido presbiteriano, pelo menos no mês de junho, pois nas festas juninas não podia ter a sua própria fogueira, contentava-se em queimar as fogueiras dos vizinhos, mas não era a mesma coisa. E ainda tinha aquela bendita tradição de dizer que quem mexia com fogo “mijava na cama à noite”.
Costumava andar com seu inseparável cão de guarda, um pequinês misturado com vira-latas, mais vira-latas que pequinês, infestado de pulgas, de humor instável e encrenqueiro, cria que a razão de tamanha instabilidade do cão se dava ao desgosto que o coitado tinha por ter dentes tão desalinhados, o pobre cão não tinha oclusão, nem ele mesmo sabia o que era isso, mas a palavra era bonita demais, cabia muito bem: - Meu cão não tem oclusão! Várias vezes descia as encostas da montanha em que morava em busca de aventuras, um dia descobriu que a parte que descia para um vale desabitado, com uma lagoa fantasmagórica no meio, era propriedade privada, um vizinho dizia ser dono daquela terra, plantara então cana-de-açúcar para poder afirmar a sua autoridade sobre o local, mas decerto que aqueles pés de goiaba, não foram plantados por ele, mas mesmo assim requisitava a posse dos mesmos, e colocava os filhos para vigiar o que eles chamavam de “sítio”, eram tantos que pareciam ser onipresentes, bastava roubar uma goiaba, verde ou cheia de vermes que lá vinha um deles dizer: - Vou dizer ao meu pai! E lá ia o sitiante bater na casa do acusado e dizer para os pais que o filho estava roubando as goiabas dele, era motivo de surra na certa para toda a vizinhança.
Um dia após ser flagrado roubando umas tantas goiabas verdes e denunciado a sua mãe, prometeu se vingar. Quando ninguém mais se lembrava de nada, colocou uma caixa de fósforos no bolso e desceu a encosta por um lado em que não podia ser visto pelos onividentes filhos do dono do sítio, desceu e tornou a subir por onde tinha a plantação de cana-de-açúcar, e lá começou a atear fogo na palha seca, que não precisava de absolutamente nada para fazer o serviço, e que ainda contou com a ajuda do vento que soprou forte e subiu a encosta levando as chamas, verdadeiras línguas de fogo, para cima da vegetação que sofria com a estiagem.
Não demorou muito e toda a encosta da montanha virou uma enorme fogueira, não sobrou nada, apenas tocos de madeira enegrecidos e retorcidos pelo calor.
Não sabe dizer quem tomou a iniciativa, só lembra que quando o terreno esfriou viu pessoas com enxadas na mão limpando o terreno e demarcando os lotes. Logo vieram outros e mais outros, em menos de uma semana já tinham casas, depois de um mês já era uma vila, havia iniciado sem querer um movimento de reforma agrária urbana.
E por conta da invasão empreendida pelos sem teto, e por alguns que não eram tão sem teto assim, ninguém no final soube que o estopim fora iniciado por ele.
Depois de mais de 25 anos deste fato ele se constrange quando tem que pegar ônibus, pois de vez em quando entra no coletivo em que um daqueles onividentes garotos é motorista, e, por gentileza, não o deixa pagar a passagem.
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