Todo gato é mesmo pardo no escuro?


"Todo gato no escuro é pardo”, é assim, por meio de metáforas que o nordestino, mormente o morador de cidades interioranas, como a que eu nasci, costuma indicar a sua incapacidade em perceber as diferenças entre uma coisa e outra. Pode ser que a razão para tal impossibilidade esteja no objeto em si, por ser muito semelhante ao outro, ou então a impossibilidade pode ser causada pelo meio-ambiente que não fornece a luminosidade necessária para que se tenha condições de efetuar esta diferenciação, desta segunda opção nasce o dito supra-citado.

É assim, como um gato no escuro, que eu me sinto quando leio ou vejo na mídia qualquer reportagem sobre o segmento “evangélico” no Brasil, e não estou sozinho nisso, muitos outros cristãos não católicos de origem reformada sentem a mesma coisa, somos todos jogados numa mesma bacia, somos todos atirados ao “mesmo saco”, não são estabelecidas as necessárias diferenças, não são feitas as distinções indispensáveis, conjuga-se com o mesmo verbo o que IURD, IMPD, IIGD, Casa da Bênção, Deus é Amor, Brasil para Cristo, Assembleia de Deus (melhor seria dizer “Assembleias de Deus” visto o caráter multifacetado desta instituição), Presbiteriana, Batista, Congregacional, Luterana, Anglicana (além das muitas episcopais), “Pentecostais” e as incontáveis comunidades fazem. As pessoas nem notam, às vezes por ignorância mesmo e a culpa é mais nossa do que delas (visto que não nos preocupamos em esclarecê-las), que há mais pontos de divergência, do que de convergência dentro do que impropriamente se chama de protestantismo brasileiro (para efeito de melhor acurácia da definição seria mais adequado chamar de “protestantismos”). Este texto não tem a finalidade de esclarecer, seria muita superbia minha se pensasse assim, mas de servir como mote para uma discussão que possa contribuir, ainda que modestamente, para iluminar alguns termos, de uma vez por todas.

Para confundir, mas com a intenção de esclarecer mais à frente, vamos fazer um brainstorm:

Nem todo protestante é evangélico,
Nem todo evangélico é protestante,
Nem todo pentecostal é reformado,
Nem todo reformado é pentecostal,
Nem todo evangélico é pentecostal,
Nem todo pentecostal é evangélico,
Nem todo reformado é protestante e
Nem todo protestante é reformado.

Depois desse “trava-línguas” advindo da sociologia da religião, onde encaixar os neo-pentecostais, os para-evangélicos e os pós-pentecostais? Pelo visto esta salada teria muito mais ingredientes para acrescentar, caso quiséssemos abranger muitas linhas, porém como o tempo exige brevidade e concisão, fiquemos apenas com estes citados. Eu nem quero falar de “crente”, pois aí a coisa complicaria mais ainda.

De antemão eu quero levantar uma discussão que pode parecer polêmica (e é por demais!), mas ainda assim eu faço questão de mantê-la: chamar todos os cristãos acatólicos brasileiros de protestantes é impreciso e demonstra desconhecimento das nuances que caracterizam este seguimento religioso. Protestante não é sinônimo de evangélico, bem como não é de reformado e muito menos de pentecostal ou de neo-pentecostal. Vamos tentar entender isso:

Vamos começar pelo termo mais utilizado: Protestante. Este termo deriva, etimologicamente do latim protestari e foi difundido popularmente por meio do francês e do alemão. E refere-se, em última instância, aos príncipes luteranos que, na Dieta (reunião dos príncipes alemães com o seu suserano espanhol) de Speyer em 1529, fizeram um protesto formal, por meio de uma carta, se posicionando contrários à decisão que reafirmava o Édito de Worms de 1521 que bania as 95 Teses de Martinho Lutero. Para ser preciso, este termo só deveria ser aplicado, ou só deve ser aplicado, aos seguidores de Martinho Lutero, aqui no Brasil temos duas comunidades eclesiais (as duas são oriundas do que se chama protestantismo de migração e não do protestantismo de missão), que se enquadram nesta classe: Igreja Luterana e a Igreja de Confissão Luterana. Talvez em algum lugar do passado, mormente nos primórdios das querelas com a igreja católica, este termo significou todos os cristãos que não tinham práxis católica e nem eram ortodoxos gregos, mas o termo caducou e hoje não engloba mais tantos segmentos.

O segundo termo que merece destaque é: Reformado. Este termo designa aquelas comunidades eclesiais que derivam doutrinariamente e mantêm conexão histórica com as ideias zuinglianas ou calvinistas. Nos países de língua inglesa estas comunidades são identificadas pelo regime de governo: presbiterianismo (no Brasil, ainda que o inglês não seja o idioma oficial, o ramo majoritário desse grupo também é assim denominado, visto que foi inserido com sucesso pelas missões americanas, que alcançaram resultados mais duradouros que as francesas e as holandesas), porém em países de língua espanhola, holandesa, suíça, húngara, etc, estas comunidades são chamadas de reformadas. Algumas dessas comunidades, de língua não saxã, também mantém testemunhos de sua presença no Brasil, ainda que em pequeno número, porém sua influência supera o seu tamanho. Podemos encontrar ainda traços desta categoria dentro da igreja anglicana, em alguns grupos batistas e congregacionais, ainda que em número pequeno e muitas vezes inexpressivos. A principal característica é a crença nas doutrinas da graça e a prática do pedobatismo. No sentido mais estrito do termo, diríamos que quem é reformado não é protestante e vice-versa. Se a presença dos missionários que Calvino enviou ao Brasil no Século XVI tivesse gerado frutos duradouros e as igrejas plantadas pelos holandeses tivessem sobrevivido no nordeste, talvez no Brasil não conhecêssemos nenhuma denominação com o nome presbiteriana.

O terceiro termo que deve ser considerado é: Evangélico, e creio que deva ser o que mais despertará polêmicas. Este é definido por alguns estudiosos como: um movimento teológico originário do protestantismo, mas que se afasta deste e o transcende em diversos pontos, tendo como característica mais marcante a crença na necessidade do indivíduo passar por uma experiência de conversão ("nascer de novo", "aceitar Jesus") como ponto de partida da vida cristã, defende ainda que a Bíblia é a única regra de fé e prática. Diferentemente do protestantismo, aqui como sinônimo de luteranismo, que enfatiza mais a salvação por meio da fé, mediante a graça, e a inclusão de todos os que se aproximam da igreja no Pacto da Graça por meio do batismo. Se alguém nasce em berço luterano, subtende-se que o mesmo já “nasceu convertido” e quando ele é batizado, toma-se como ponto pacífico a aceitação do mesmo no corpo de Cristo (o pietismo foi um movimento evangélico dentro das fronteiras luteranas que enfatizava a conversão como uma experiência distinta do discipulado e do batismo, para ele não bastava nascer na igreja e ser batizado). Este movimento transcende as fronteiras denominacionais e confessionais, enfatizando a conformidade com as doutrinas básicas da fé e um alcance missionário de compaixão e urgência. Teríamos traços deste segmento tanto dentro do presbiterianismo, dos batistas e congregacionais, como até mesmo em alguns ramos episcopais que crescem no Brasil. Na Inglaterra, este termo é usado como sinônimo da Igreja Baixa (ala dos anglicanos que se aproxima mais das posturas protestante e evangélica). Eu diria que um presbiteriano é reformado e não é evangélico e que um luterano é protestante e não reformado, porém um evangélico pode até ter traços reformados, quando absorve parte das doutrinas de Calvino, mas, como não as aceita em sua totalidade (muitos batistas, por exemplo, acreditam na Graça como Calvino pregou, mas desprezam seu ensino sobre governo de igreja e batismo de crianças), isto não o torna um reformado no sentido pleno do termo.

O último termo a ser visto é Pentecostais. Este é um dos mais fáceis de definir. Refere-se ao integrantes do movimento de “renovação espiritual”, com ênfase naquilo que convencionou-se chamar de Batismo no Espírito Santo (uma segunda benção, distinta inclusive da salvação, como outro evento advindo de uma vida de santidade), que é evidenciado pelo falar em “outras línguas”, quem manifesta este dom, comprova o batismo, quem não manifesta, não foi batizado ainda e terá que buscar com afinco este manifestação, caso queira ascender ou ser aceito pelo grupo. Este termo é muito amplo e inclui uma vasta gama de diferentes perspectivas teológicas e organizacionais, de caráter fragmentado e multifacetado. Conforme observam alguns especialistas os pentecostais podem ser inseridos em mais de um grupo cristão, indo de um lado ao outro do espectro, desde os trinitarianos até os unitaristas. No Brasil, erroneamente, é comum os pentecostais se auto-identificarem pelo termo evangélico. A Igreja de Deus, Assembleia de Deus e Evangelho Quadrangular são exemplos de grupos que se enquadram neste segmento (A IURD e seus similares se enquadram naquilo que os estudiosos chamam de neo-pentecostalismo, com cultos cheios de fetiches e ritos do candomblé travestidos de práticas cristãs, enfatizam, na maioria das vezes a Teologia da Prosperidade, rejeitando os tradicionais usos e costumes austeros dos pentecostais, também é a vertente pentecostal mais influente e a que mais cresce).

Somente com a definição clara dos vários segmentos que, juntos, compõem o caleidoscópico cristianismo acatólico brasileiro, é que poderemos evitar, por parte da imprensa e daqueles que estão mais distantes desses segmentos, aquilo que já chamaram de “associação indesejada”. Sou anglicano, porém, em virtude de minha origem presbiteriana, adoto a teologia reformada, não sou protestante, nem evangélico e muito menos pentecostal, por isso antes de me incluírem numa lista qualquer, favor lerem de novo este texto.

P. S.: A minha sugestão aos que discordarem de mim é que escrevam o seu ponto de vista e me enviem, que prazerosamente postarei aqui.

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