Canção de morte ou de vida?


Já estive em mais de 100 funerais, seja como mero assistente ou participante, seja como oficiante, alguns desses funerais foram dolorosos demais para mim. O primeiro funeral que me lembro de ter assistido foi o de uma irmã minha, mais nova do que eu uns três anos, morreu com menos de 06 meses, tal como a sua gêmea que morreu alguns dias depois, ainda que tenha imagens em minha mente deste acontecimento, percebo que ele não me afetou tanto, eu ainda não tinha muito consciência do que significava a morte. Alguns anos depois fui ao funeral do meu avô materno, eu estava com cerca de 07 anos, tinha uma vivência afetuosa com ele, a sua morte me afetou bastante e creio que foi a primeira vez que tive consciência do alcance da morte. Porém não posso deixar de reconhecer que as cerimônias fúnebres que mais me afetaram foram as efetuadas nos funerais de meu filho Ulrich em agosto de 1993 e no do meu pai José Trezena em março de 2004, não consigo externar, traduzir em palavras, a dor que senti neste dois momentos. Em outros funerais que estive, em alguns chorei, noutros não, fui oficiante, num deles eu me dei conta de que não tinha nada para falar, a família queria ouvir uma palavra de consolo e eu descobri que eu mesmo não tinha o que dizer, a pessoa tinha morrido de forma trágica como consequência de uma vida torpe e cheia de percalços, e lá estava eu no meio de um velório com uma Bíblia numa mão e um livro de Ritos Litúrgicos em outra sem nem saber por onde começar, até hoje nem sei como consegui terminar a cerimônia.

Em todos esses momentos que presenciei, e certamente em milhares de outros que não pude presenciar, os ofícios fúnebres começaram ou terminaram com um cântico: “Eu avisto uma terra feliz, onde irei para sempre morar...[1]”, ainda não descobri nenhum hino que melhor se adeque a este tipo de ocasião e que transmita aos enlutados a esperança da ressurreição de forma mais eficiente que este. Seja qual for a denominação, não importa se usa o Cantor Cristão, Harpa Cristã, Novo Cântico ou Salmos e Hinos, todos, absolutamente todos os hinários brasileiros são contemplados com este cântico, a maioria já o classifica no índice como um hino fúnebre.

Já ouvi, ou cantei, tanto este hino que só de ouvir os acordes da introdução sou tomado por um estranho sentimento de saudade, misturado com tristeza e abandono, acho que até mesmo um pouco de solidão eu consigo sentir por meio dele. Já chorei ouvindo esta música, ainda que o corpo que estivesse sendo sepultado não fosse de nenhum parente meu, foi a tristeza que me tomou e invadiu-me a alma, trazendo-me o sentimento da perda de alguns pessoas tão queridas que um dia partiram ou de pessoas queridas que um dia partirão, demonstrando-me que não aprendi ainda a lidar com a perda. “... vou morar, vou morar, nesta terra, celeste porvir...”. A morte não é algo natural, logo, não podemos esperar que um dia aprendamos a lidar com ela de forma natural.

Albert Raboteau (citado por Philip Yancey in: Rumores de outro mundo, Editora Vida:2004) que passou muitos anos estudando a religião dos escravos no sul dos EUA (curiosamente ele reproduz a fala de uma mulher branca do século XVIII que afirmava não ter conhecido nenhum negro que fosse universalista, todos eles acreditavam em perdão, mas acreditavam também em retribuição), descreve como eram as reuniões de oração, em sua totalidade secretas, efetuadas pelos escravos: “... em 1847, na Virgínia. Os escravos se reúnem clandestinamente no pântano, seguindo sinais feitos nas árvores que os levam a um local específico. Começam perguntando uns aos outros como se sentem e da situação de suas mentes. Sobram histórias de espancamentos, linchamentos e outras crueldades. Então, o culto de oração tem início. Como relata um deles: “O escravo se esquece de todo seu sofrimento, a não ser para lembrar aos outros as provações da semana que passou, ao exclamar: “Graças a Deus, não viverei aqui para sempre”.

Eles oravam e cantavam para afastar a dor da saudade do tempo em que eram livres e da terra onde eram livres, uma das músicas mais cantadas por estes cristãos norte-americanos era: “... In the sweet by and by...”[2] que é a versão original de Lindo país.

O mesmo canto sendo executado em duas épocas diferentes, em dois momentos litúrgicos distintos, sentimentos difusos, motivação paradoxal, resultados antagônicos.

O hino parecia apontar para uma esperança de liberdade numa vida futura, “logo, logo, em sua terra agradável”, como diz a versão em inglês, porém houve uma mudança de perspectiva, uma mudança de prisma, em virtude da forte convicção que tinham de que Deus era justo e que esta justiça não estava reservada para ser aplicada apenas numa vida pós-morte, mas sim no hoje, no agora, passaram então a cantar este hino nas reuniões secretas de oração como forma de mutuamente se confortarem e se animarem, de que a liberdade estaria próxima, que já anteviam pelos olhos da fé esta terra de liberdade, esta terra feliz, “Eu avisto uma terra feliz, onde irei para sempre morar...”, e não chegariam lá passando pela morte, mas sim, que ainda em vida todos os seus anseios e sonhos se tornariam realidade.

Nós cristãos do Século XXI, de uma geração abastada, entediada e próspera, cantamos este hino para celebrar a morte e afirmar a convicção de que em outra vida, os nossos anseios mais queridos serão atendidos, os cristãos de séculos passados, vítimas do flagelo da escravidão, num contexto de absoluto desespero, privações e profundos sofrimentos físicos e mentais, enquanto os seus algozes estavam reunidos nos templos evangélicos, reservados exclusivamente para a sociedade caucasiana, cantavam no meio das florestas frias e escuras um hino que lhes servia de bandeira, que lhes trazia a esperança de uma nova vida, e esta nova vida não se tornaria realidade numa vida futura pós-morte, mas naquele mundo em que viviam. Preferiam a vida, enquanto nós preferimos a morte. Estranha opção a que fizemos, estranha espiritualidade. 

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[1] Eu avisto uma terra feliz,
Onde irei para sempre morar;
Há mansões nesse lindo país,
Que Jesus foi pra nós preparar. 

Vou morar, vou morar
Nessa terra, celeste porvir!
(bis)
Cantarei nesse lindo país
Belos hinos ao meu Salvador,
Pois ali viverei bem feliz,
Sem angústias, tristezas, nem dor. 
Vou cantar, vou cantar
Nessa terra, celeste porvir! (bis) 
Deixarei este mundo afinal
Para ir a Jesus adorar;
Nessa linda cidade real,
Mil venturas sem fim vou gozar.
Harpa Cristã 614

[2] There’s a land that is fairer than day,
And by faith we can see it afar;
For the Father waits over the way
To prepare us a dwelling place there.
In the sweet by and by,
We shall meet on that beautiful shore;
In the sweet by and by,
We shall meet on that beautiful shore.

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