Mesmo após quase quinze anos a imagem é bastante clara e bem nítida em sua mente, nenhum acontecimento posterior poderia fazê-lo esquecer daquele momento específico, a impressão é que não se passou nenhum só dia, não só pela nitidez da imagem guardada, nunca percebeu nenhum indício de que a mesma estaria arrefecendo ou desintegrando-se, mas também pelo o que sentia quando pensava no assunto, revivia tudo com intensidade, e gostava disso.
Os fatos, que estavam descritos minuciosamente, jamais saíram dos arquivos de sua memória, sabia, no momento em que estavam acontecendo, que aqueles acontecimentos ficariam como que arquivados quadro por quadro em sua alma para sempre, ou no dizer dos antigos hebreus ficariam gravados indelevelmente no coração.
Foi marcante demais o que aconteceu para que algum segundo sequer corresse o risco de ser esquecido e nem ser esquecido, ainda que seja por um segundo. Ele podia entender a metáfora paternal para expressar o amor de Deus que foi usada por um antigo profeta israelita: “Na palma de minhas mãos te tenho gravado...”.
Ele estava de pé num corredor, num corredor de um hospital, mais precisamente de uma maternidade, estava diante de uma janela envidraçada, de um verdadeiro “aquário”, o nariz roçando no vidro, a respiração acelerada em decorrência da ansiedade embaçava o vidro e retornava para seu rosto embaçando também os óculos, mas ele não se afastava, não conseguiria se afastar, ainda que quisesse. Mascava chicletes, não apenas um, mas muitos, enchera a mão e colocara dentro da boca uma quantidade muito grande de tabletes, e a cada minuto de espera colocava mais, quase não conseguia mastigar, não se dava conta que deveria jogar fora alguns para poder colocar novos tabletes, mas a mente estava ocupada demais com coisas muito importantes para que se preocupasse com um assunto tão insignificante quanto este. Seus maxilares doíam, a boca estava tomada de goma e saliva, mas ele ficara inerte, não se afastaria dali ainda que o corredor virasse o leito de uma linha do trem e viesse um comboio desgovernado em sua direção.
Lá dentro do “aquário” havia mais de 10 caixinhas de acrílico, chamadas carinhosamente pelas atendentes de “berço”, todas estavam vazias, não havia nenhuma criança ali, ou todas que nasceram naquele dia já tinham ido para o berçário ou não havia nascido nenhum bebê nas últimas horas. Mas como já eram mais de três horas da tarde, divagava ele, é provável que nasceram muitos bebês, mas já saíram dali para o berçário ou para os quartos juntos às mães. Este tipo de raciocínio o impedia de ficar mais ansioso, mas o mesmo raciocínio o fazia ficar ansioso, não tinha chance, não havia escapatória dessa roda inexorável.
Olhava com ansiedade para a porta branca no fundo da sala, quase defronte à janela de vidro em que se encontrava, a ansiedade era tamanha que corria o risco de converter-se em raiva. Já não bastava a raiva que sentia por não ter reagido à desculpa idiota do médico, que por isso estava sendo considerado um idiota e até a si mesmo ele estava chamando de idiota. Tinha pedido ao médico para acompanhar tudo, o pedido tinha sido feito com muita antecedência, ele tinha anuído, mas na hora “H” veio com a desculpa de que não tinha roupas suficientes, ele acreditou, mas só conseguiu se dar conta de que deveria ter reagido com veemência ao médico quando já era tarde e não podia fazer mais nada, a paralisia que o tomou no momento da negativa era o que mais o irritava.
Ainda tinha a mente turvada de sentimentos contraditórios e compensações emocionais, como canalizar para o médico desprezo e raiva a fim de diminuir a adrenalina que parecia correr a 1.000 km por hora em suas veias, pronta para explodir seu coração em milhares de pedaços, quando a porta branca se moveu, seus olhos a fixavam há tanto tempo que estavam doendo por conta da brancura, uma mão envolta por uma luva de látex apareceu e afastou de vez a porta, atrás dela veio outra mão, também envolta numa luva, apenas dois olhos o fixaram, uma máscara encobria o resto do rosto, ele não podia ver as feições, mas notava que os olhos sorriam, as mãos enluvadas traziam um lençol e envolvida por aquele lençol vinha algo que não podia divisar com certeza, não sabia se eram as lágrimas ou a miopia que o impediam de ver direito. As mãos quando se aproximaram do “aquário” foram elevadas e deixaram à amostra dois pezinhos pequenos e vermelhos, duas perninhas rechonchudas, dois bracinhos também vermelhos com duas mãozinhas que pareciam de boneca, de tão pequenas que eram, um rostinho inchado, com dois olhinhos fechados e uma cabeleira escura, quase preta. Parecia que aquele diminuto ser ou tentava sugar todo o ar do mundo ou estava com muita fome, se mexia, fungava e abria a boca, não estava chorando. Foi depositada num berço de acrílico para que ele pudesse olhá-la com calma, ainda que por trás do vidro.
Foram segundos que para ele duraram anos. Quando deitada ela que estranhava a abrupta introdução no mundo, se mexia tentando encontrar conforto naquele novo ambiente frio. Foram suas pernas que lhe chamaram à atenção, pareciam recurvadas, ele ficou preocupado, a ansiedade que sentira antes do nascimento era transferida agora para a saúde dela, será que era realmente saudável? Aquela perna parecia ter uma ligeira deformidade. Quando se virou e notou que sua mãe estava ali, não perdeu tempo e indagou sobre a perna da pequeninha, ela, com toda a experiência de quem teve oito filhos, tranqüilizou-lhe, não era nada, apenas a posição fetal que a pequenina ainda tentava manter. Depois de alguns dias ele descobriu que ela tinha razão e ficou muito feliz por isso. Era tão bom para ser verdade que ele procurara alguma coisa “errada” com medo de que tudo não passasse de uma ilusão, algo que ele conhecia muito bem, pois já tinha acontecido quase dois anos antes, agora, porém tudo era perfeito demais!
Então vieram buscá-la para terminar os procedimentos profiláticos.
Daquele momento em diante ela o tornara outra pessoa, quando ele entrou naquele hospital, entrou carregando muitos sonhos e uma quantidade muito maior de medos e ansiedades, medo que tudo não se transformasse numa desilusão, que o seu sonho mais belo não se tornasse um pesadelo aterrorizante, estes pensamentos ele guardara para si, não tinha dividido com ninguém, e agora quando saísse dali, todos os sonhos concernentes a ela teriam se realizado, os medos e as ansiedades teriam sido vencidos, seriam deixados para trás, sairia livre, leve, feliz! O segundo domingo de agosto para ele agora teria um novo sentido, ele fora inserido na categoria que deveria ser homenageada nesse dia: Ele agora era pai!
Aquele dia ficou marcado em sua vida: 04 de Março de 1995, dia em que medo, ansiedade, felicidade e tranqüilidade se misturaram e se sucederam numa velocidade muito grande. Vieram depois milhares de dias em que novas lembranças foram acrescentadas, mas aquele foi o maior de todos, diria parafraseando os modernos babilônios que aquele dia foi o Pai de todos os dias.
Muito tempo depois, no 120º aniversário da República, ela cumpriu mais um dos ritos de passagem para a vida adulta, que no ritmo do século XXI acontecem cada vez mais cedo: prestou vestibular seriado para uma universidade pública, quando ela começou a subir a rampa de acesso rumo à sala de aula no meio de centenas de outros adolescentes, ele que a tinha levado e que ficaria até o final da prova esperando-a pensou consigo mesmo: Cadê aquele bebê rechonchudo e vermelho que eu vi sair da sala de parto que cabia apenas numa mão da pediatra?
Era aquela bela mulher de porte elegante e confiante que subia a rampa, mas que para ele seria sempre a sua menininha.
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