A promessa do humanismo revolucionário
O problema da tradição humanista é que ela não tem uma boa compreensão de suas próprias contradições internas inevitáveis, o que se evidencia com mais clareza na contradição entre liberdade e dominação. O resultado é que, hoje, as tendências e os sentimentos humanistas são apresentados de maneira um tanto precipitada e constrangida, exceto quando têm o apoio da autoridade e da doutrina religiosa. Consequentemente, não existe uma defesa vigorosa das proposições ou perspectivas de um humanismo secular, apesar de inúmeras obras individuais que defendem a tradição ou discutem suas virtudes óbvias (como acontece no mundo das ONGs). Suas armadilhas perigosas e contradições fundamentais – em especial questões sobre coerção, violência e dominação – são evitadas porque é muito complicado abordá-las. O resultado é o que Frantz Fanon caracterizou como “humanitarismo insípido”. Há muitos indícios disso evidentes em sua recente retomada. A tradição burguesa e liberal do humanismo secular forma uma base ética piegas para uma ação moralizadora altamente ineficaz sobre o triste estado em que se encontra o mundo e para a formulação de campanhas igualmente ineficazes contra a pobreza crônica e a degradação ambiental. É provavelmente por isso que o filósofo francês Louis Althusser lançou uma influente e feroz campanha na década de 1960 para que fosse eliminado da tradição marxista todo o falatório sobre o humanismo socialista e a alienação. Althusser afirmava que o humanismo do jovem Marx, tal como era expresso nos “Manuscritos econômico-filosóficos de 1844”, se afastava do Marx científico de “O capital” por uma “ruptura epistemológica” que não podemos ignorar. O humanismo marxista, escreveu ele, é pura ideologia, teoricamente vazio e politicamente enganoso, se não perigoso. A devoção ao “humanismo absoluto da história humana”, como a de um marxista dedicado como Antonio Gramsci, que passou tantos anos encarcerado, era, na opinião de Althusser, completamente inapropriada.
O aumento e a natureza das atividades compactuantes das ONGs humanistas nas últimas décadas parecem sustentar as críticas de Althusser. O crescimento do complexo beneficente-industrial reflete sobretudo a necessidade de ampliar a “lavagem de consciência” de uma oligarquia mundial que, apesar da estagnação econômica que vivemos, duplicou sua riqueza e seu poder em poucos anos. O trabalho dessas ONGs tem feito muito pouco ou quase nada para resolver a degradação e a espoliação dos indivíduos ou a proliferação da degradação ambiental. Isso é um problema estrutural, porque se exige que as organizações que combatem a pobreza façam seu trabalho sem intervir na acumulação perpétua de riqueza, da qual tiram seu próprio sustento. Se todo mundo que trabalha para uma organização de combate à pobreza assumisse da noite para o dia uma política contra a riqueza, em pouco tempo estaríamos vivendo num mundo muito diferente. Haveria poucos doadores para financiar isso – suspeito que nem Peter Buffett. E as ONGs, que hoje estão no centro do problema, não aceitariam a mudança (apesar de que muitos indivíduos no mundo das ONGs estariam dispostos a aceitá-la, mas simplesmente não poderiam fazê-lo).
Então de que tipo de humanismo precisamos para transformar progressivamente o mundo em um lugar diferente, povoado por pessoas diferentes, por uma ação anticapitalista?
Acredito que necessitamos urgentemente de um humanismo “revolucionário” secular que possa se aliar aos humanismos religiosos (articulados mais claramente nas versões protestante e católica da Teologia da Libertação, bem como nos movimentos análogos dentro das culturas religiosas hindus, islâmicas, judaicas e indígenas) para enfrentar a alienação em suas muitas formas e mudar radicalmente o mundo a partir de suas bases capitalistas. O humanismo revolucionário secular tem uma tradição forte e poderosa, embora problemática, em relação à teoria e à prática política. Essa é uma forma de humanismo totalmente rejeitada por Althusser. Mas, apesar da influente intervenção deste, tal humanismo tem uma expressão forte e articulada nas tradições marxistas e radicais, bem como além delas. Ele é muito diferente do humanismo liberal burguês. Recusa a ideia de que exista uma “essência” humana imutável, ou dada de antemão, que nos obriga a refletir profundamente sobre como podemos nos tornar um novo tipo de ser humano. Alia o Marx de “O capital” com o Marx dos “Manuscritos econômico-filosóficos de 1844” e mira no centro das contradições daquilo que qualquer programa humanista deve estar disposto a abraçar para mudar o mundo. Reconhece claramente que as perspectivas de um futuro feliz para a maioria são invariavelmente frustradas pela inevitabilidade de se causar infelicidade a outros. Em um mundo mais igualitário, a oligarquia financeira despossuída, que não vai mais poder comer caviar e tomar champanhe em iates ancorados nas Bahamas, sem dúvida vai reclamar de seu destino e da diminuição de sua fortuna. Como bons humanistas liberais que somos, podemos até nos condoer por eles. Os humanistas revolucionários não sentem a mínima pena. Podemos não concordar com essa forma bruta de lidar com tais contradições, mas temos de reconhecer a honestidade fundamental e a autoconsciência de seus praticantes.
Não levanto a questão da violência aqui, como tampouco o fez Fanon, porque eu ou ele sejamos a favor da violência. Ele deu destaque à violência porque muitas vezes a lógica das situações humanas se deteriora a ponto de não restar opção. Até Gandhi reconheceu isso. Mas essa opção tem consequências potencialmente perigosas. O humanismo revolucionário tem de oferecer uma resposta filosófica para essa dificuldade, algum conforto diante das tragédias incipientes. Embora a principal tarefa do humanista seja “domar a ferocidade do homem e tornar agradável a vida no mundo”, como disse Ésquilo há 2.500 anos, isso não pode ser feito sem enfrentarmos e tratarmos a imensa violência que corrobora a ordem colonial e neocolonial. Foi o que Mao e Ho Chin Minh tiveram de enfrentar, o que Che Guevara tentou fazer, e o que muitos líderes e pensadores políticos – como Amílcar Cabral em Guiné-Bissau, Julius Nyerere na Tanzânia, Kwame Nkrumah em Gana e Aimé Césaire, Walter Rodney, C. L. R. James e muitos outros – combateram com tanta convicção em palavras e ações nas lutas pós-coloniais.
Mas será que a ordem social do capital é essencialmente diferente de suas manifestações coloniais? Certamente, na metrópole, essa ordem tentou se distanciar do cálculo mordaz da violência colonial (retratando-a como algo que se deve necessariamente aplicar àqueles outros não civilizados “do lado de lá”, para seu próprio bem). Na metrópole, teve de dissimular a inumanidade ostensiva que demonstrava no exterior. “Do lado de lá” as coisas podiam ser afastadas do nosso campo de visão e audição. Só agora, por exemplo, está sendo plenamente reconhecida a cruel violência dos britânicos contra o movimento Mau-Mau, no Quênia, na década de 1960. Quando o capital se aproxima dessa inumanidade na metrópole, ele tipicamente desperta uma resposta semelhante à dos colonizados. Quando admite a violência racial na metrópole, como fez nos Estados Unidos, produz movimentos como Panteras Negras e Nação do Islã, e líderes como Malcolm X e, no fim de sua vida, Martin Luther King, que entendeu que havia uma conexão entre raça e classe e sofreu as consequências disso. Mas o capital aprendeu a lição. Quanto mais raça e classe se entrelaçam organicamente, mais rápido queima o estopim da revolução. Mas o que Marx deixa muito claro em “O capital” é a violência diária que se constitui na dominação do capital sobre o trabalho no mercado e no ato de produção, assim como no terreno da vida diária. É muito fácil encontrar relatos das condições contemporâneas de trabalho, por exemplo, nas fábricas de eletrônicos de Shenzhen, nas confecções de Bangladesh ou nas fabriquetas clandestinas de Los Angeles, e inseri-los no clássico capítulo sobre a “jornada de trabalho” de “O capital”, sem notar nenhuma diferença. É surpreendentemente fácil comparar as condições de vida das classes trabalhadoras, dos desempregados e dos marginalizados de Lisboa, São Paulo e Jacarta com a descrição clássica de 1844 de Engels, em “A situação da classe trabalhadora na Inglaterra”, e não encontrar nenhuma diferença substantiva.
O poder e o privilégio oligárquicos da classe capitalista estão conduzindo o mundo todo a uma mesma direção. O poder político, sustentado por uma vigilância, um policiamento e uma violência militarizada que só fazem se intensificar, está sendo usado para atacar o bem-estar de populações consideradas substituíveis e descartáveis. Testemunhamos diariamente a desumanização sistemática de pessoas descartáveis. Hoje, o poder implacável da oligarquia é exercido através de uma democracia totalitária que se dedica a perturbar, fragmentar e suprimir imediatamente qualquer movimento político coerente contra a riqueza (como o “Occupy”). A arrogância e o desdém com que os abastados encaram os menos afortunados – mesmo (em particular) quando rivalizam entre si para mostrar quem é mais caridoso – são fatos notáveis da nossa condição atual. A “lacuna de empatia” entre a oligarquia e o resto é imensa e está aumentando. Os oligarcas confundem renda superior com valor humano superior e êxito econômico com prova de conhecimento superior do mundo (e não prova de controle superior das artimanhas jurídicas e contábeis). Eles não sabem ouvir a dor do mundo porque não podem e não vão assumir voluntariamente seu papel na construção dessa dor. Eles não veem e não podem ver suas próprias contradições. Os bilionários irmãos Koch fazem doações caridosas a uma universidade como o MIT, a ponto de construir uma linda creche para o meritório corpo docente, e ao mesmo tempo gastam milhões de dólares financiando um movimento político (liderado pelo Tea Party) no Congresso dos Estados Unidos que faz cortes nos auxílios-alimentação e nega assistência social, creches e bônus para alimentação a milhões de pessoas que vivem na pobreza absoluta ou perto dela.
É nesse clima político que as revoltas imprevisíveis e violentas que vêm ocorrendo pontualmente em todo o mundo (da Turquia e do Egito ao Brasil e à Suécia apenas em 2013) se parecem cada vez mais com os tremores que antecedem um terremoto: elas farão as lutas revolucionárias pós-coloniais da década de 1960 parecerem brincadeira de criança. Se o capital tem um fim, este virá certamente daí, e provavelmente suas consequências imediatas não serão boas para ninguém. É isso que Fanon nos ensina com tanta clareza.
A única esperança é que a humanidade veja o perigo antes que a podridão avance ainda mais e os danos humanos e ambientais sejam grandes demais para se recuperar. Diante do que o papa Francisco chamou com toda a razão de “globalização da indiferença”, é imperioso que, como diz Fanon, “as massas europeias resolvam despertar, sacudir o cérebro e cessar de tomar parte no jogo irresponsável da bela adormecida no bosque”. Se a bela adormecida despertar a tempo, talvez possamos ter um final mais parecido com um conto de fadas. O “humanismo absoluto da história humana”, escreveu Gramsci, “não visa a resolução pacífica das contradições existentes na história e na sociedade, mas é a própria teoria dessas contradições”. A esperança está latente nelas, disse Bertolt Brecht. Como demonstro no livro [“17 contradições e o fim do capitalismo”], há contradições convincentes o bastante no campo do capital para semear o solo da esperança.
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David Harvey é um dos marxistas mais influentes da atualidade, reconhecido internacionalmente por seu trabalho de vanguarda na análise geográfica das dinâmicas do capital. É professor de antropologia da pós-graduação da Universidade da Cidade de Nova York (The City University of New York – Cuny) na qual leciona desde 2001. Sua obra foi apontada pelo jornal britânico “Independent” como uma das mais importantes de não-ficção publicadas desde a Segunda Guerra Mundial.
Fonte: Nexo Jornal
David Harvey
Tradução de Rogério Bettoni
Editora Boitempo
304 páginas
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