Não sei como começar esta oração, nem sei mesmo se quero fazer esta oração, nem sei mesmo se isto é uma oração. Talvez seja apenas uma queixa, um grito de socorro, de alguém que tem um coração sem pele, sem proteção, sensibilidade à flor da pele, nervos, músculos e vasos expostos, expostos à menor mudança e variação possíveis, sensível à nada e a tudo ao mesmo tempo.
Há muito que não faço uma prece, acho que não sei mais fazer, que não me exorcizem os paladinos da ortodoxia, não sou herege, estou apenas sem prática. Nem sei se vou conseguir terminá-la, nem sei se vale à pena concluí-la.
Se tiver que começar, terá que ser com um pedido, súplica de perdão pela ousadia, clamor por desculpas pela arrogância. Arrogância de achar que posso me curvar diante de Ti!
Vim aqui para dizer que cansei, cansei mesmo! Cansei de que tudo o que toco vira poeira, cansei de que tudo o que ponho a mão vira caos. Tudo, absolutamente tudo, me escorre como areia entre os dedos, não consigo segurar nada, absolutamente nada. Não consigo reter uma folha seca sequer. Empregos eu conquistei com sacrifícios, bons empregos, boas colocações, os coloquei na latrina sem sequer um lamento. Família eu me afastei, mais por eles do que por mim, a melhor proteção que poderia lhes dar seria ir embora. Minha mãe se tranca no quarto dela todas as noites, custa-lhe muito dizer um simples boa noite, minha companhia é tão nociva que ela prefere a solidão. Minha filha no alvorecer da vida, não sabe a dor que sinto do afastamento dela, afastamento que eu sou culpado, mas, uma ligação apenas eu espero, quando vem, tem sempre algo banal para tratar, nunca me liga para saber como estou de fato, ou mesmo para saber quem sou de fato.
Bens eu jamais terei, não quero mais do que uma mochila, carros, eu perdi vários, vou perder mais um, que me custou mais do que eu paguei por ele.
Gostaria de ter começado esta elegia com a palavra Abba! Pai! Mas é tão difícil ser sincero ao pronunciar esta palavra. Não sou um filho obediente, não tenho a aparência de uma ovelha do teu rebanho, não estou no Aprisco seguro e acolhedor, estou em alguma viela suja e fétida, ou à beira de um precipício correndo riscos, não sei o caminho de volta para o redil, não há quem queira pagar o preço de me colocar nos ombros e me levar de volta, sou um fardo pesado, não valho à pena ser procurado e resgatado. Se rebuscar na minha infância a figura de pai, encontrarei a de um homem íntegro e honesto, mas distante, ocupado e que nunca conseguia ver meu sofrimento, talvez sofresse mais do que eu mesmo. Fui abusado demais na infância, ele não pôde ou não teve como me proteger. Você poderá me proteger hoje de mim mesmo? Mas, será que mereço te chamar de Pai?
Estou destroçado, tudo em mim é destroços, não me lembro de outra época que não tenha sido assim, minha alma vive em frangalhos, emoções e sentimentos rotos, não sei como juntar os poucos cacos do que sobrou são de mim, se é que sobrou algo são em mim.
Abba, é a necessidade que me coloca aqui, a vontade para isso não existe de fato, ou é pouca ou é fraca. Preferes que seja honesto? Estou como o outro Pródigo, retomei a estrada da volta, por estar cansado de comer sobras, bolotas, do que os porcos não querem mais. Não sei se depois de saciado continuarei aqui, A mim não pertence o Dom da Constância. Minha perseverança, muitas vezes é volátil demais. Nem mesmo eu sei o que vou querer no segundo seguinte.
A única forma que tenho para demonstrar minha vergonha é humildemente me aproximando de Ti de cabeça baixa. Estou desiludido, comigo e com a vida, mas comigo mesmo do que com a vida, não tenho a quem culpar por minha condição, Só a mim mesmo, Abba, só a mim mesmo. Fiz aquilo que eu achei que era o melhor para mim, levarás isso em conta?
Quando olho para o que restou de minha alma, não vejo mais nenhuma pérola encravada nela, não há nenhuma joia dependurada, não há nenhum diamante caro e nem enfeites de ouro, minha alma está completamente dilapidada, eu mesmo a despojei de todos os tesouros que custei a angariar, hoje no lugar do que havia de precioso só há ouro de tolo e vidro no lugar dos diamantes.
Todos os meus sonhos de toda minha vida, todos aqueles que juntei desde a minha infância, adolescência e juventude tão ideológica, todos, um a um, foram derrotados, todos foram lançados fora, todos foram destruídos, todos foram embora, e o único responsável por isso foi um grande inimigo meu: eu mesmo! Eu que paulatina e persistentemente destruí tudo, até mesmo a minha própria capacidade de sonhar, não sei mais sonhar, não consigo sonhar, como viver sem sonhos?
A minha força, do qual outrora tinha tanto orgulho, e o meu vigor, que parecia tão inabalável, hoje estão exauridos, foram sendo extraídos, dia a dia, sem que fossem repostos. Pareço mais um soldado ferido e cansado, roto, maltrapilho, com bandagens por todo o corpo, voltando para casa, à pé e com o fuzil às costas, que serve mais de fardo do que de proteção, já não mais atira, já não sabe mais atirar. Mas em que inimigo atirar, se quem mais lhe fez mal foi ele mesmo?
Sou um peregrino que está na estrada, estrada poeirenta, não vejo estalagens para descansar à beira do caminho, não vejo árvores que deem sombras, não vejo o fim do caminho, nem sei mais por que estou na estrada, nem sei por que comecei a andar. Os fardos que levo são grandes demais, pesados demais, estão incrustados na alma, fazem com que me sinta sobrecarregado, pareço mais um peregrino que tem que viajar com uma mala pesada, e que precisa mudar o peso desta mala de uma mão para a outra, por vezes acho que não vou suportar a caminhada, nem tampouco o peso que tenho que carregar. Por vezes acho que não chegarei a lugar algum, nem sei mesmo aonde tenho que ir.
Eu tenho uma personalidade vacilante Abba, os meus joelhos são tão fracos, me impedem de andar, me impedem de me ajoelhar, me impedem de subir às montanhas. Mas sei que não me basto, eu sei Abba, que não sou suficiente, reconheço que sem Ti eu sou um barco perdido sem remo no meio do oceano, ao sabor do vento e das correntes, sou como um pássaro distante de seu lar, fugindo do inverno, em busca de outros verões, perdido, vagando em busca de um pouso seguro.
Todo o meu orgulho se foi Abba, até mesmo a falsa humildade me abandonou, e o pouco que restou de orgulho próprio não me torna soberbo o suficiente para não aceitar a dádiva da Graça Admirável. Sou como um mendigo em Tua porta e aceito a Tua esmola, aceito o que quiseres me oferecer. O menos que tu podes me dar, é mais do que o tudo que o mundo pode me oferecer.
Não preciso Te dizer Abba, pois sei que sabes de tudo, mesmo assim, vou Te confessar que sempre fui um discípulo inconsistente, se é que a minha inconstância pode me dar o direito de me chamar de discípulo, e instável. Sou realmente desajeitado, sou desajustado, sou inadequado, como disse um sábio um dia, “... sou como uma azeitona que vive caindo para fora da empada”. Por isso que tantos se afastaram de mim, isso me torna muito inconveniente, pareço um bêbado no meio de uma festa de casamento, esbarrando em todos e contando piadas fora de hora, não há coisa melhor a fazer que lançar fora alguém assim.
Eu faço parte de uma legião de muitos homens e de muitas mulheres que sabem que são pobres, que sabem que são fracos e não têm como esconder que são pecaminosos, que não podem negar que têm falhas hereditárias e mesmo, até os talentos que possuem, são limitados, mas ainda assim, eu sei Abba, que mesmo com este perfil, tu não me desprezarás, pois sei que a pessoas como eu, tornaste-os vasos de honra para fazer a tua vontade e implantar Teu Reino.
Sou apenas um vaso de barro, ainda que posto em lugar de honra, segurando flores belíssimas e de um cheiro especial, eu tenho pés de argila, que me fazem frágil e vulnerável.
Abba, eu sei que pareço um ancião recurvado, que carrega o peso dos anos em suas costas, e que parece levar na alma uma tristeza infinita, parece que a Noite escura da alma nunca passa, nunca amanhece, pareço um soldado ferido ou um atleta contundido, que não consegue mais o desempenho de outrora, e sinto, sei, tenho certeza, que a minha vida é, foi, e será por muito tempo, quem sabe até à morte, um grave desapontamento para Ti e para tua igreja, de Ti eu espero clemência, graça e misericórdia, mas não espero o mesmo de Tua igreja.
Sei que sou, um pouco que seja, inteligente, mas sei que também sou muitas vezes estúpido, sou discípulo honesto, ainda que um filho ingrato e infiel, e admito que sou canalha, canalha, mas sincero.
Estou aqui Abba, vou permanecer aqui, aguardando apenas uma palavra Tua, e sei que por meio de Tua palavra, a minha sorte mudará, transformarás o meu pranto em dança, e enxugarás dos meus olhos toda lágrima. “... não remova esta montanha Abba, dê-me forças para subi-la!”. Basta apenas uma palavra Tua!
Que eu mesmo possa dizer amém!
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