Acordei-me às 04h00, sentei-me diante do computador com uma caneca de café fumegante, coloquei os fones de ouvido e me preparei para assistir ao The last station (A última estação) antes mesmo do cantar do galo. Este “esforço” não me custou muito, pois trata-se de uma produção cinematográfica anglo-germânica de 2009 sobre os últimos momentos do grande escritor russo Leon Tolstoi, um dos meus mentores espirituais e intelectuais. A direção do filme é de Michael Hoffman e conta no elenco com nomes de pesos como Helen Mirren, Christopher Plummer e James McAvoy. A película é uma adaptação do, homônimo, romance biográfico de Jay Parini (1990). Nos créditos é possível ver que tanto um dos produtores (Wladimir) quanto uma das crianças que aparece no filme são descendentes diretos de Tolstoi.
De chofre já fui impactado pela aparição de Tolstoi, acostumado a imaginá-lo como um ancião circunspecto, taciturno, com uma aura de santidade, deparei-me com um senhor bonachão, simpático, esbanjando jovialidade e extremamente cinestésico, como todo russo que se preze, senti uma inveja de Valentin Bulgakov, pois Tolstoi o abraça e se importa sinceramente com ele. Do filme todo, a cena que mais me emocionou foi exatamente o primeiro diálogo do Conde com o secretário, a doçura de Tolstoi e a idolatria de Bulgakov por ele, e o mais belo, o ídolo se curva em direção ao devoto, realmente Tolstoi estava à frente do seu mundo, e ouso dizê-lo, até mesmo do nosso mundo. Acho que por ter lido toda a obra de Dostoiévski antes de ler a de Tolstoi, eu transpus a imagem melancólica que tinha de um para o outro, não sei! mas confesso que isso me chocou bastante.
Não vou fazer críticas ao filme, fotografia, enredo, adaptação, cenografia, nada! Não é essa a minha intenção, quero antes expressar o que senti ao ver um dos meus “ícones” ser retratado pelo cinema. O texto é bem pessoal, apenas vou endossar algumas críticas que foram feitas ao ambiente do filme: o enredo parece se desenrolar numa propriedade britânica e, imperdoável, é todo falado em inglês, mas nem isso conseguiu diminuir o impacto que a vida de Tolstoi causa em quem se aprofunda em conhecê-lo.
Lev (Leon) Nikoláievich Tolstoi nasceu em Yasnaya Polyana (onde se passa boa parte do filme) em 9 de setembro de 1828 e faleceu na estação de trem de Astapovo, em 20 de novembro de 1910, há exatos 101 anos.
O enredo se desenvolve na maturidade, no ocaso de uma vida intensa e cheia de significados, do Conde Lev, este após angariar fama como escritor, ficou célebre por tornar-se, na velhice, adepto de um modo de vida pacifista, seus textos e ideias desta época pareciam anarquistas e iconoclastas, e confrontavam as teses da igreja (a Ortodoxa Russa era a igreja estatal, com todas as benesses e malefícios que isso acarretava) e do governo (estamos falando da Rússia Czarista, aristocrata e escravagista) pregando que todos deviam levar uma vida simples e em contato e respeito com a natureza, o que é um tema antigo, porém “inadequado” na Rússia daquele período, que era opulenta e para a manutenção desse status quo das elites, permitia a existências de tantas diferenças entre as classes, com mais de 70% da população vivendo na escravidão e na semi-escravidão, os 30% restantes eram divididos entre a elite (10%) e a classe média, pouco mais de 20%.
Tolstoi além de Guerra e Paz, que trata da malfada campanha de Napoleão na Rússia, aquela que ele perdeu e a sua soldadesca ficou catando cavacos, daí o termo jocoso: “do jeito que Napoleão perdeu a guerra”, escreveu também Anna Karenina, por meio do qual faz uma denúncia profética da hipocrisia enraizada na alta sociedade russa e traça, com maestria, o perfil psicológico feminino mais profundo e sugestivo da literatura universal. Isso para citar apenas duas de suas obras, já que o total de seus escritos é computado em mais de uma centena.
A interpretação que ele faz dos ensinamentos cristãos é literal, a sua cosmovisão cristã, baseada numa exegese e numa hermenêutica muito peculiar, o permitiu encontrar o que tanto procurava: um ideal para viver, um caminho a seguir, diga-se de passagem, um caminho radical, já que o mesmo queria seguir ao pé da letra o que Jesus ensinou. Desta forma ele estabeleceu princípios que serviriam de norte para sua vida, do momento que os concebeu em diante. Nada rebuscado ou muito elevado para os iniciados, tudo muito simples, como simples foram os ensinamentos de Jesus.
Alguns desses princípios o impediram de aceitar a autoridade, seja civil ou eclesiástica, além disso, o “obrigaram” a criticar o direito à propriedade privada (o filme aborda a polêmica que ele criou com a esposa por conta desta crença) e os tribunais, com sua parcialidade e injustiça, e a defender entusiasticamente o conceito de não-violência, o que o tornariam uma referência para Gandhi, Luther King e Chesterton, Tolstoi utilizou-se das mídias disponíveis à época para propagar sua fé, panfletos, ensaios e peças teatrais. As críticas contra a sociedade estabelecida e contra a vã filosofia mundana eram por demais consistentes e esmagadoras, além de serem endossadas pela força do nome que empunhava a pena, tudo isso causou uma tremenda confusão nos admiradores de suas obras.
Tolstoi, depois que encontrou o propósito maior de sua vida, abandonou o vício do fumo e o costume de beber, além de tornar-se vegetariano, adotando também o vestuário simples e sóbrio de um campônio, criticando, desse modo, o luxo dos salões de baile e a pompa da corte de Moscou, distante de sua propriedade apenas 200 quilômetros. Não era natural que um Conde, ainda mais da mas alta nobreza literária russa, dono de milhares de “almas” e de muitos alqueires de terra, se vestisse de forma tão espartana.
Tolstoi procurava ser coerente com o que cria e demonstrava ter uma fé íntegra. Não aceitava que ninguém arrumasse seus aposentos, lhe fizesse roupas ou produzisse suas botas, cuidava disso pessoalmente, pois era convencido da igualdade universal, por isso, pregava que ninguém devia depender do trabalho alheio, chegou ao extremo até mesmo de lavrar o campo. Aos poucos as suas ideias atraíram centenas de seguidores, estamos falando do final do século XIX, época de ebulição e transformações em todas as esferas da vida, que passaram a ser chamados de "tolstoianos". Chegou também a abrir mão de receber os direitos autorais dos livros que viria a escrever, e só mudou de pensamento em relação a isso, apenas quando precisou conduzir uma campanha de angariação de fundos para ajudar uma comunidade de camponeses (de ideias menonitas), a se mudarem para o Canadá fugindo da perseguição do governo.
Como não poderia deixar de ser, em virtude de tão avançadas ideias, Tolstoi, foi vigiado pela polícia do czar, além de ter sido excomungado pela Igreja Ortodoxa russa, em 1901, o que não lhe trouxe impacto negativo algum, tais atos só confirmavam o que ele havia escrito, alguns de seus amigos e seguidores contudo, foram para o exílio. E o próprio Tolstoi somente não foi preso porque sua fama era muito grande em todo o mundo, ele era considerado como um dos maiores nomes da arte da época, além de ser amado e adorado pelo povo, nem o governo e nem a igreja queriam mexer em casa de vespa, deixaram Tolstoi “em paz”.
Tolstoi conseguiu convencer o mundo todo de suas ideias, mas não conseguia viver na simplicidade em que acreditava, o que poderia lhe trazer o descrédito por conta da incoerência, e quem mais contribui para esta aparente contradição foi sua família, principalmente a sua esposa Sônia, esta não queria perder o luxo e a opulência a que estava acostumada, e fazia terríveis cobranças ao mesmo, os filhos, que não haviam conquistado nada, davam razão a mãe, por quem Tolstoi tinha um devotado amor, e que usava este sentimento para chantageá-lo, e repetidas vezes ameaçou se matar quando ele demonstrava ter a intenção de ir embora de vez, viver o resto dos seus dias de acordo com sua crença. Ela por outro lado, cobrava um “pagamento” por toda a dedicação que havia tido durante toda a vida e exigia que ele deixasse um testamento concedendo-lhe os direitos autorais das suas obras da maturidade, ele porém, para não ser incoerente com o que pregava, elaborou um testamento em segredo, declarando no mesmo que todos os direitos autorais de sua obra pertenceriam a um seguidor seu, Chertkov, que no filme é tratado com um hipócrita e cínico, que teria a missão de tornar de domínio universal toda a sua obra.
Cansado de tanta ausência de paz, aos 82 anos de idade, quando deveria estar desfrutando de um sossego, ou escrevendo mais alguma obras, Tolstoi decide que chegou inexoravelmente o momento de ir embora, resolve portanto fugir, não tanto de casa, mas de sua esposa e seus filhos, deixou para trás um modo de vida que lhe era aviltante viver.
Nos primeiros dias obteve relativo sucesso, porém, Tolstoi não passava desapercebido nos trens e nas inumeráveis estações pelas quais passava, era o homem mais famoso da Rússia, não podia ser diferente. Por conta de sua austeridade, viajava sempre em vagões de terceira classe, que não eram dotados de um sistema de calefação eficiente, havia muito frio e muita fumaça, o Conde, já debilitado pela idade e pelo esforço desprendido na viagem, contraiu uma pneumonia, que se agravou muito rapidamente. No dia 20 de novembro de 1910, o velho profeta morreu, ainda em fuga, de pneumonia, na estação ferroviária de Astapovo, província de Riazan.
O féretro que conduzia seu corpo foi enviado para Yasnaya por meio de um trem, que foi recebido por centenas de camponeses e operários que viviam próximos à propriedade dos Tolstoi. Quando o caixão foi retirado do trem e carregado por sobre os ombros de seus seguidores, parentes e amigos, foi seguido uma multidão de quase 4 mil pessoas. O Governo de São Petesburgo deu ordens expressas para que as companhias ferroviárias não enviassem trens especiais para Yasnaya, pois muitos se aglomeravam nas estações querendo ir para o sepultamento daquele que era o último de uma linhagem de homens que nascem a cada mil anos.
Muitos consideram Tolstoi um anarquista, visto que pregava que estados organizados e as igrejas estabelecidas, além dos tribunais e dos dogmas eram meramente instrumentos de dominação de uns poucos homens sobre outros, muito embora ele mesmo não se visse assim, apenas não acreditava em guerras “justas” e revoluções violentas como remédios para planificação da sociedade e para a erradicação dos males que a assolavam e a faziam tão injusta, antes acreditava que quando o homem muda a si mesmo, ele estava começando a mudar o mundo. Ou seja, uma revolução só terá eficácia, se for uma revolução moral. Tolstoi deixava bem claro que o que ele cria e defendia, estavam embasados na vida simples e próxima à natureza dos camponeses e no evangelho sem arroubos literários e não nas teorias sociais intelectualizadas dos gabinetes dos filósofos de seu tempo.
Passaremos mais mil anos, até que um novo Tolstoi nasça, o que é uma pena, porém, cabe aqui uma questão final: como chegaremos à nossa estação final? O que levaremos e o que deixaremos para trás? Perguntas difíceis de responder.
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