Francisco de Assis era protestante?



O problema
Na pequena, porém bela cidade de Canindé, no agreste do Ceará, está erguido o segundo maior santuário franciscano do mundo, só perdendo para o de Assis na Itália, caso seja considerado o fluxo anual de visitações, caso, porém tomemos como critério as expressões extremadas de fé e a devoção popular, somos levados a aceitar que é o maior santuário franciscano do mundo.

Dois fatos nos chamam à atenção ao observarmos esta devoção franciscana: em primeiro lugar o nome do santuário é São Francisco das Chagas do Canindé e em segundo lugar a crença dos romeiros de que Francisco de Assis ainda está vivo e mora no convento, razão para que haja tantos buracos nos muros, pois querem vê-lo de perto e acham que os frades estão escondendo-o.

Nos perguntamos: qual a razão desta supervalorização das chagas de Francisco a ponto de alterarem seu nome criando uma identidade própria, distinta da que o mesmo teve há oitocentos anos? Por que o povo sofrido se identifica tanto com este personagem mais do que outro?

Outro problema ainda a considerar: a existência destas supostas chagas que se apresentam com roupagem fantasiosa, mítica e lendária é rejeitada pelas igrejas herdeiras da reforma protestante, naturalmente avessas às fantasias religiosas e lendas pias. Concomitantemente torna o próprio Francisco, personagem pouco relevante no meio, e até mesmo objeto de desconfiança. Faz também com que o franciscanismo, que é um movimento evangelístico, de renovação do ideal monástico e de reformas basilares na instituição eclesiástica - ainda que não tenha implementado todas -, que surgiu sob a direção e inspiração do il poverello de Assis, não conste na maioria dos livros de história da igreja de orientação protestante como um movimento pré-reformista da mesma importância que os movimentos de Wycliffe ou Huss, que dirá os de Lutero, Zwínglio e Calvino, em alguns manuais nem aparece. Perguntamos mais uma vez: é justa esta rejeição de Francisco e seu movimento evangelístico?

A causa
Tantos os católicos quantos os protestantes estão equivocados, uns por quase colocarem Francisco na Trindade os outros por desprezarem a obra e vida de alguém sem investigar a verdade do fato.

Há um dito atribuído ao úmbrio Giovanni(João) Bernadone, mais conhecido pelo apelido de Francesco(Francisco – pequeno francês) da cidade de Assis, na Itália, que ele teria pronunciado ao lhe indagarem sobre as marcas profundas em sua pele: ulcerações, chagas purulentas e manchas escuras, que tinha em algumas partes do corpo, mormente nas mãos: “... trago no meu corpo as marcas de Cristo!”, que é um eco de um dito do apóstolo Paulo na carta aos Gálatas 6.17. O problema se constitui em: qual sentido alegórico, mítico, literal ou metafórico a tradição franciscana, se apropria desta frase paulina? Teria entendido o que Paulo disse? Ou estaria dando uma nova interpretação? Ou ainda será que o apóstolo expressou-se de forma também literal? Será que Paulo tinha chagas miraculosas em sua pele?

A explicação para uma provável mudança de significado no texto esteja no episódio mais famoso da vida de Francisco, ocorrido numa noite entre agosto e setembro de 1224: a estigmatização, no qual o mesmo teria recebido perfurações miraculosas(stigmata) das mãos, pés, e flanco, o que justificaria a existência de ulcerações, chagas purulentas e manchas escuras. Segundo as fontes franciscanas da primeira hora, tal episódio, retratado como uma epifania, ocorreu enquanto ele estava em reclusão por quarenta dias, à semelhança de Moisés, Elias e Jesus, numa caverna no monte Alverne, nos Apeninos. Entrou em êxtase por meio de um sonho, no qual teve a visão de um serafim crucificado que o mirava bondosamente, após esta contemplação intuiu que a revelação suprema do amor de Deus foi dada através do sofrimento de Jesus. Ficou tão impressionado com esta verdade que decidiu levar a sua cruz e vivenciar uma vocação mais profunda como seguidor do Cristo, tendo então alcançado a identificação máxima com o Mestre: participado de sua agonia recebendo as chagas do crucificado. A partir daí passa a ser conhecido como o santo seráfico.

A solução ou há solução?
Para que se entenda, necessário se faz interpretar corretamente a carta aos Gálatas, que foi escrita por volta de 49d.C. talvez o primeiro escrito canônico do Novo Testamento, tem uma importância ímpar dentro do corpus paulinus: trata da liberdade cristã diante da obrigatoriedade da lei mosaica, sendo intitulada por alguns como a Declaração da Independência Cristã. Contrapondo-se aos judaizantes, que defendiam a obrigatoriedade da circuncisão para os recém-convertidos ao cristianismo Paulo argumenta que mais importante que a marca da circuncisão eram as marcas que ele possuía: “... De nada vale ser circuncidado ou não. O que importa é ser uma nova criação [...] sem mais, que ninguém me perturbe, pois trago em meu corpo as marcas de Jesus”, Gálatas 6:15-17(NVI). Paulo usa a expressão grega: stigma que significava no passado “ferrar”, como uma tatuagem em sinal de propriedade sobre o corpo. O que Paulo diz é que ele era servo de Jesus e tinha no seu corpo marcas, que não foram tatuadas por mãos humanas, mas sim foram obtidas por meio de açoites, apedrejamento, naufrágios, dores, enfermidades que lhe foram impingidas no serviço ao mestre Jesus. Ele não diz que as mesmas eram reproduções das chagas de Cristo. Paulo não admite ter as chagas do Jesus Crucificado, mas sim, marcas que o identificavam como servo do Senhor Jesus.

Quanto a Francisco de Assis e seus estigmas, assim as fontes franciscanas primitivas justificam o aparecimento das mesmas:
Daí começaram a aparecer imediatamente nas mãos e pés de São Francisco os sinais dos cravos, do jeito que ele tinha visto então no corpo de Jesus Cristo Crucificado[...] E assim pareciam suas mãos e pés pregados no meio com cravos, cujas cabeças estavam nas palmas das mãos e nas plantas dos pés fora da carne, e suas pontas saíam no dorso das mãos e dos pés, de maneira que pareciam entortados e rebatidos.

Logo se vê o caráter lendário em questão, pois tinham a necessidade de colocar Francisco entre os santos tão logo após a sua morte, abreviando o processo de canonização, já que o mesmo não morreu mártir, para desgosto de muitos de seus seguidores e talvez dele próprio.

Ainda digno de menção é o fato de que o Papa da época morte de Francisco, Gregório IX, amigo pessoal do santo teve profundas dúvidas sobre a estigmatização, recusando-se a acreditar nesse relato durante uma década. A proclamação da canonização de Francisco em 1228 não faz referência a estigmas, e é impossível que um elemento tão dramático tivesse sido omitido, pois isso bastaria para tornar evidente por si mesma a extraordinária santidade dele. Em 1237 o mesmo papa mencionas os estigmas, sua mudança de opinião se deu mais por necessidade política que religiosa, porém eis como Boaventura, um dos primeiros biógrafos de Francisco narra a confirmação na mente do bispo:

[...] apareceu-me em sonhos o bem-aventurado Francisco, mostrando na fisionomia certa amargura e repreendendo-o por causa da dúvida que alimentava em seu coração, levantou o braço direito, descobriu a chaga e pediu-lhe que chegasse com uma taça para nela receber o sangue que dela brotava. [...] Desde então nutriu tal devoção a esse extraordinário milagre e sentiu tanto zelo por ele, que de nenhum modo podia consentir que alguém se atrevesse a impugnar com temerária ousadia aquelas chagas benditas sem repreendê-lo com grande severidade.

Deixando de lado todo o lado místico do fato, o certo é que a questão que fica desprezada é a causa natural das muitas enfermidades de Francisco, o mesmo era portador de malária, problemas oculares graves, contraídos durante sua estada entre os muçulmanos, que foram tratados a ferro quente para cauterizar, só aumentando a dor do paciente, além de algo que contraiu por amor: a lepra. Por amar a todos, principalmente os humildes e marginalizados, Francisco tratava leprosos com mais atenção que aos sãos, daí não ser surpreendente que tenha contraído a lepra. Por isso não é fantástico que os companheiros e seguidores de Francisco, após sua morte, logicamente interpretassem sua lepra como uma participação nos sofrimentos de Cristo.

Francisco jamais falou de estigmas, o que ele queria dizer é que por sua missão ter sido árdua na terra, trazia impingidas em sua pele as marcas de servo de Cristo, pois as tinha alcançado no serviço diligente e altruísta.

As influências
Outro fato que foge à atenção é a influência que teria sofrido o franciscanismo primitivo por outro movimento espiritual e reformista: os valdenses. Os dois são contemporâneos, têm a mesma temática de pregação e a mesma área geográfica de atuação. Os valdenses são originários de um rico comerciante de Lion que converteu-se em 1176. Seu nome era Pedro Valdo, daí a alcunha “valdenses”.

Dizia-se dos valdenses que eles se vestiam com relativa simplicidade, comiam e bebiam moderadamente, sempre laboriosos e estudiosos, havendo entre eles muitos homens e mulheres que sabiam de cor todo o Novo Testamento, proclamavam-se "discípulos de Cristo e sucessores dos apóstolos" e quando eram excomungados, regozijavam-se com o fato de sofrerem perseguição como os apóstolos um dia foram também perseguidos, "nas mãos dos escribas e fariseus". Rejeitavam ainda as lendas de milagres eclesiásticos e os festivais, ordens, bênçãos, etc., dizendo que essas coisas foram introduzidas pelo clero cobiçoso; não criam que o sangue e o corpo de Cristo estão na eucaristia, limitando-se a abençoar o elemento como um símbolo. Celebravam a ceia, recitando palavras do evangelho; negavam o a existência do purgatório, o concubinato dos padres, a ênfase sacerdotalista medieval, o legalismo, etc.

Não é de estranhar que sofressem perseguição por conta disto, os valdenses foram tenazmente perseguidos pela Igreja Católica. A Inquisição matou, queimou, afogou, esfolou, torturou e fez muito mais para destruí-los. No final do século XV os valdenses ainda estavam de pé. Suas forças estavam nos vales dos Alpes. Tinham uma escola prática em Milão e de ramificações em zonas distantes como a Calábria e a Apúlia. Possuidores de um noviciado e de seminários independentes, os valdenses punham em campo uma grande quantidade de missionários itinerantes(muito semelhante ao que Francisco começa a fazer logo depois), os quais, conheciam de cor longas passagens dos evangelhos e das epístolas. Muitos se ligaram com os hussitas na Boêmia e com os Lolardos na Inglaterra. É o primeiro grupo reformado e existe até hoje.

Encontramos traços da teologia e espiritualidade valdense no movimento franciscano. Francisco de Assis, que foi reconhecido por Inocêncio III como um sustentáculo da igreja, foi cooptado pela igreja romana, principalmente após sua morte, pode ser considerado um pré-reformador por sua prática, por suas pregações e por sua espiritualidade, ao não aceitar que ninguém se curvasse diante dele, dizia que só devemos nos curvar diante de Deus ou de um necessitado(para ajudá-lo) além de um dia ter pedido a um amigo que não fizesse dele um santo, bem como por sua piedade, por sua temática evangelística, seu desejo sincero de ver uma igreja pura e humilde, livre dos pecados que a assolavam naqueles sombrios dias. Pena que a sua imagem tenha sido deturpada, pena que os protestantes só consigam enxergar esta caricatura que se fez dele e desprezem tudo o mais que é relevante em sua vida e nas suas obras. Poucos encarnaram com mais simplicidade o evangelho de Jesus mais do que ele, poucos amaram tanto a igreja e desejaram reformá-la, poucos também tiveram suas palavras tão deturpadas quanto ele. Francisco é um cristão para o século XXI, um mundo de mentes vazias, espiritualidade superficial e desprezo pela criação. Cria em Deus e somente em Deus, exercitou uma espiritualidade simples como ninguém e amou a criação de Deus como uma dádiva das mãos do próprio Deus. Da próxima vez que saudar alguém com a Paz do Senhor lembre-se que esta era a saudação preferida dele e além disso, amava chamar aos outros de irmãozinhos.