A professora



Dois termos se confundem hoje, mas carecem de resgate da significância: pedagogo e mestre. O primeiro deriva etimologicamente do substantivo grego paidós (criança) e do verbo agô (guiar, conduzir) e era como se chamavam os escravos que acompanhavam os filhos de seus senhores quando estes iam à escola estudar com os mestres (o segundo termo, que os gregos chamavam de didáskalós) e pode ser definido como “aquele que guia”. Com a evolução diacrônica do vocábulo, os dois termos tornaram-se intercambiáveis.

O nome dela era Niedja, foi minha professora de português e inglês desde a 6ª Série Ginasial até o 2º Grau (hoje Ensino Médio). Eu não lembro o primeiro dia de aula que tive com ela, talvez não estivesse consciente do quão indelevelmente ela marcaria a minha vida, mas eu lembro a última vez que a vi, há mais de trinta anos. Envergava a farda alabastrina da Marinha, ela me saudou com um galanteio e foi embora, não sabia que era a última vez que a via.

Ela conseguia enxergar em mim alguns valores e predicados que eu sequer achava que tinha, talvez nem enxergasse, talvez apenas estivesse semeando na minha mente sem luz (alumnus: "sem luz"). Quando descobriu o meu amor pelos livros, invariavelmente me trazia livros dela para que eu lesse, lembro de ter lido Canguru de D H Lawrence, que só vim entender muitos anos depois, alguns outros títulos eu sequer tornei a encontrar depois, foi uma experiência rara. Ainda consigo rever com nitidez a cena: ela entrando na sala colocando os materiais de aula sobre a mesa e chamando meu nome, eu me levantava, ela então me entregava um livro, nem sei se eu agradecia, tal era a vergonha que ficava, e empreendia a jornada de regresso. A distância do bureaux até minha cadeira se tornava quilométrica, era fulminado por dezenas de olhos, nem sempre favoráveis e compreensivos.

Algumas vezes me fazia ir ao quadro-negro que já era verde à época, para transcrever as palavras que ela ditava (chamávamos esse tipo de atividade de “ditado”) para toda a classe, como sabia que eu dificilmente erraria, me expunha sem medo. Sabia que ela fazia isso porque acreditava em mim, eu porém tinha a letra feia e não conseguia escrever no quadro de forma simétrica, minhas linhas pareciam um eletrocardiograma, e não gostava da gozação dos meus colegas me perguntando que letra era aquela que eu tinha "hieroglifado".

Um dia eu não me dei conta de que era aula de português e me preparei para a aula de inglês, ela me pediu para ir ao quadro e soletrou: "h-e-d-i-o-n-d-o", eu não consegui escrever, minha mente se recusava a me ajudar, eu pensava que era um vocábulo novo, eu nunca tinha ouvido aquele som em inglês, depois de minutos de confusão e caos, ela me disse que a aula era de português, eu me sentei constrangido e deixei que outro aluno tomasse meu lugar.

A sensação de decepcionar àquela professora me acompanha até hoje, foi a primeira pessoa que enxergou em mim o que ninguém enxergava, nunca me perdoei por aquele deslize, talvez por isso até hoje seja tão cuidadoso com o ato de escrever e falar.

Posso dizer sem medo de errar que Niedja foi a professora de minha vida, ela era até bonita, elegante, tinha a idade da minha mãe (suponho até que fosse mais velha), porém, não havia a relação de transferência de afeto ou de estar apaixonado pela professora, havia uma transcendentalidade naquela relação, tanto que a venero até hoje, muito embora não saiba sequer se ela já partiu desta realidade.

Tive outras duas professoras que me marcaram muito: uma na segunda série primária e outra na quarta. A da segunda era carinhosa e atenciosa, a da quarta me mandava corrigir as provas de meus colegas, eles me detestavam por isso, eu só tirava dez, ela corrigia e saia da sala e me pedia para corrigir as dos demais, nunca trai a sua confiança e ela nunca alterou qualquer nota que eu tenha colocado. Me fez aprender o que era responsabilidade e profissionalismo, antes mesmo dos dez anos. Falo profissionalismo por um fato: eu tinha, obviamente, desafetos na sala, nunca deixei que as nossas diferenças interferissem no meu julgamento e eles sabiam disso. Um dos professores que nunca esqueci foi um de história na academia na Marinha que eu estudei ao término da ditadura, ele descobriu que eu conseguia ler parágrafos inteiros sem pestanejar e numa velocidade acima da média, então me pedia para que eu lesse todos os capítulos que lecionaria, eu gostava daquela atividade, tornava a aula menos entediante, pelo menos para mim, por causa disso virei motivo de chacota dos meus colegas de turma: me alcunharam de “Jornal Nacional”.

Olhando para trás eu percebo hoje que sempre fui um aluno prestigiado por meus professores de português e história, as disciplinas que eu sequer precisava estudar para ser aprovado. Raquel e Dulce foram responsáveis pelo meu amor pela história e por ter me aprofundado com tanto gosto e zelo por essa disciplina, a gratidão que tenho a estas professoras é muito grande, mormente a conjuntura atual de completa alheação da história e de seus marcos basilares. Não sabia à época o quanto o estudo da história seria imprescindível para mim, hoje olho para trás com satisfação, acredito que as duas teriam orgulho de mim se soubessem quais as escolhas ideológicas que fiz nestes quase 40 anos.

Tive professores ruins também: um de matemática que sadicamente dava aulas, detesto matemática até hoje por causa dele, atribuí a disciplina ao seu caráter irascível e ranzinza. Era um sádico que se divertia em mostrar o lado difícil da matemática, não de ensinar de fato, deve ter sido uma pessoa triste e solitária, era perceptível que ele se divertia ao reprovar os alunos, não conheci nenhum outro professor tão pequeno e mesquinho quanto ele. Outro professor que não gosto de lembrar foi um de ciências. Ele me fez abandonar a aula depois que discutimos Criacionismo X Evolucionismo, eu argumentei que Criacionismo era mais uma questão de fé do que de provas científicas, ele se irou com o fato de eu dizer que colocaria na prova os argumentos de Darwin, porém, não alteraria a minha fé em função do que havia ensinado. Como podem ver não é de hoje que eu gosto de uma polêmica. A incapacidade dele de lidar com um aluno disciplinado e estudioso que divergia de suas afirmações me marcaram bastante e me ensinaram muito, me mostraram qual o caminho que eu como professor nunca deveria trilhar.

A foto que está no início desse post é da professora Marcia Friggi, de 51 anos, que foi agredida por um aluno recententemente (outubro de 2017), vou usar como a imagem do estereótipo de docente que quero homenagear neste texto.

Mestra Niedja, onde estiver, meu muito obrigado por acreditar em mim, muito do que sou devo a você, espero que a vida lhe tenha sido generosa o quanto você foi com um adolescente desengonçado, magricela e esquisito que só vivia com um livro debaixo do braço. Todas as vezes que assumo uma cátedra, que inicio uma aula, você está ali, pois foi com você que eu aprendi a ser professor: descobri o que há de melhor em cada um dos alunos e permitir que estas qualidades aflorem. Espero que tenha orgulho de eu ter escolhido tua profissão e espero estar honrando tua memória dignamente cada vez que inicio uma aula.

Um beijo muito carinhoso de quem nunca vai deixar de ser teu aluno.

O caminho de Barrabás



Eu dava assistência pastoral a uma pequena comunidade presbiteriana na periferia do Recife. Tentava, não com muito sucesso, equacionar o ministério pastoral com uma nascente e promissora carreira acadêmica teológica. Antes mesmo de concluir o bacharelado em teologia eu já atuava como professor de diversas disciplinas nas turmas de noviços (os calouros, como chamávamos) e de segundo ano. Por conta dessa atuação numa instituição de muito prestígio na região, expandi a carreira para outras instituições de ensino teológico, ser professor então me atraía muito mais que ser pastor. Usava a pequena comunidade que assistia como laboratório de exposição bíblica, aquilo que mais me atraía na área depois das disciplinas de história da igreja e de Israel.

Um dia, resolvi fazer uma exposição dos evangelhos no que era denominado de “Culto de Doutrina”, tomando por base o evangelho de Lucas e cotejando com as passagens paralelas dos demais sinóticos (os que tinham a mesma visão que Lucas: Mateus e Marcos). Quando tangenciei o capítulo 27 de Mateus, que tratava da experiência de Pilatos com o Nazareno eu, que buscava a interação com o grupo, perguntei: - Quem era Barrabás e qual o crime que ele cometeu? A irmã Diana, lépida como sempre, levanta a mão e brada: “- Ele estuprou uma moça!”. Eu fiquei pasmo, extático. Já havia lido a bíblia toda diversas vezes e, obviamente nunca me deparara com tal afirmação. Olhei para a irmã Diana e perguntei: - Onde você leu isso? Ao que ela me respondeu em meio ao espanto geral dos que estavam na igreja naquela noite: “- Na bíblia, olhe aqui em Lucas, 23:17, e Barrabás havia sido preso por sedição na cidade e por ter cometido um crime” (suponho hoje que a versão que ela usava era alguma antiga de Figueiredo ou Almeida, versão corrigida). O resto do culto eu tive que explicar a diferença entre sedição e “sedução” (ela havia confundido os termos e tirado conclusões a partir dessa interpretação), e foi, talvez, a exegese laica mais inusitada que me deparei na vida sacerdotal.

Nas tradições armênia e siríaca há manuscritos dos evangelhos que dão testemunho que o nome do preso que Pilatos apresentou como alternativa para ser solto por ocasião da prisão de Jesus, era Jesus, o Barrabás (Filho do pai em aramaico, ou talvez, segundo alguns estudiosos: “filho de um rabino”), que teria sido suprimido pelos escribas em respeito ao Jesus, o Nazareno. Já que a história que estava sendo contada era a de Jesus, o chamado Cristo, não fazia sentido que outro lhe ofuscasse (Jesus era um nome muito comum naquela época). Barrabás é mais um título do que nome próprio, e é correto afirmar que Jesus, o Nazareno, também podia ser chamado de Barrabás, já que ele se posicionava como “Filho do Pai”. Então fica fácil entender essa supressão pelos copistas dos manuscritos.

Quem era então esse prisioneiro, segundo o fraseado da Bíblia de Jerusalém, acusado de motim e homicídio? O texto já nos deixa saber de antemão que ele era bastante conhecido e gozava de boa fama com o povo. Qual o motivo desta fama e qual parte da população (a sociedade judaica da época era bastante fragmentada) lhe tinha apreço? Em Marcos 15:7 somos informados que ele era um dos “amotinadores que, numa revolta, haviam cometido um homicídio”, em outras palavras, um assassino e revolucionário. É bastante razoável pensar que ele fosse o líder de um motim contra os romanos liderados por Pilatos (quando este tentou usar os fundos financeiros do Templo em proveito próprio), tinha cometido o mesmo crime que os judeus atribuíram falsamente ao Nazareno. Alguns estudiosos pensam, não sem embasamento, que ele fosse um sicário (em latim: sicarius - “homem da adaga”; grupo que promovia atentados contra os romanos e a elite judaica que colaborava com o regime intervencionista, usavam as adagas escondidas no manto, praticavam atentados contra os alvos inimigos no meio da multidão e depois sumiam sem deixar vestígios). Tal grupo tinha aceitação entre o populacho que era espoliado, tanto pelos ricos judeus colaboracionistas quanto pelos romanos, logo não causa surpresa alguma sua escolha por aqueles que o tinham como herói.

Houve uma combinação de forças da aristocracia com a massa pobre e manipulável (boa parte era de áreas rurais e estava em Jerusalém apenas para as festividades pascais) na escolha de Barrabás. O que precisa ser percebido é que, quando os judeus gritaram o nome de Barrabás, eles escolheram simultaneamente, intrinsecamente, o caminho da violência, do arbítrio, da Lei do Talião [da retaliação], do sangue, da vingança, da Lei inclemente e excludente mosaica, da força das armas. Era o regime do olho por olho, dente por dente, bastante atrativo para um povo que havia perdido a liberdade há bastante tempo e se acostumara com a opressão. Esse discurso encontrou guarida nos corações do piedoso, porém oprimido povo de Israel. É possível acreditar que a revolta de Barrabás contra o saque que Pilatos fizera nos fundos do templo, lhe angariou também a simpatia dos sacerdotes que viam com desgosto e desconfiança a ingerência romana no seu espaço sagrado. Eu denominaria este viés escolhido por uma turba ensandecida como o Caminho de Barrabás, em contraposição ao Caminho do Nazareno.

Nasci na tradição calvinista puritana, no melhor sentido que este termo possui. Cresci ouvindo Dona Guiomar ler um “jogral” todo ano por ocasião do 31 de outubro (na Igreja Presbiteriana do Brasil em Monteiro, Paraíba), Dia da Reforma Protestante, dia em que Lutero fixou suas 95 Teses na porta da Capela de Wittenberg, teses estas que eram uma declaração escrita para abrir um debate sobre a venda de indulgências pela Igreja Católica. Eu sabia de cor sua história, tinha apreço pela história de Savonarola, John Wycliffe, Ulrich Zwínglio, Jan Huss e o mais notável de todos para mim: João Calvino. Eu tinha pouco mais de cinco anos de idade. Fico surpreso até hoje quando vejo muitas pessoas se denominarem “calvinistas”, pois sei que muitos sequer leram o mínimo de Calvino, eu li As Institutas em espanhol e posteriormente no português rebuscado e incompreensível de Waldir Carvalho Luz, além de vários comentários bíblicos, e não julgo que tenha conseguido compreender com propriedade o pensamento teológico dele.

Até os 12 anos permanecemos nesta tradição, quando urgências familiares nos conduziram a uma igreja presbiteriana que havia abraçado o pentecostalismo da década de 1970, éramos então presbiterianos “renovados” como se chamava à época. Foi um momento difícil para mim, tive que passar por um processo de desconstrução doutrinária, até que resolvi cursar teologia depois que abandonei a carreira militar na Marinha, entrei numa instituição também presbiteriana de cunho anti-pentecostal (da linha de Carl McIntire do ICCC – Concílio Internacional de Igrejas Cristãs, que morreu execrado por seus pares, quando se descobriu que era um agente da CIA), que me fez retornar à tradição da infância. Pude assim ter acesso a lados opostos do que chamaria de “protestantismos”, já que considero impróprio falar de protestantismo brasileiro, tal é o caráter multifacetado deste (fui presbiteriano moderado, pentecostal, fundamentalista e da Igreja Presbiteriana Unida, de orientação da Teologia da Libertação, tudo isso numa vida só).

Com a aproximação com Robinson Cavalcanti (ícone da minha infância a quem tinha acesso através da revista Ultimato), bispo anglicano de Recife, eu me senti aceito naquela tradição de caráter tão heterogêneo e ecumênico, eu podia ser calvinista, esquerdista, não ter uma visão literalista da bíblia e ainda assim ser aceito. Porém, ser aceito incondicionalmente implicava em aceitar o outro incondicionalmente, o que nem sempre é verdade e a história da Diocese Anglicana do Recife serve como amostra de que é fácil falar de tolerância e inclusividade, desde que estas “diferenças” sejam apenas litúrgicas, ou seja, puramente cosméticas.

Hoje, primavera de 2018 (outubro, 26), a grande maioria dos líderes eclesiásticos brasileiros induziu seus rebanhos (segundo alguns votos de cajado, segundo minha visão, voto de cabresto mesmo) a escolher o mesmo caminho que a aristocracia judaica e o movimento sacerdotal induziram o povo judeu a escolher naquele fatídico dia: o Caminho de Barrabás! Mesmo sabendo quais foram as consequências da escolha feita pelo populacho judeu no primeiro século da Era Comum.

Não tenho como ficar indiferente às escolhas que foram feitas, no aço que fui temperado não há incoerência, seja política, social, intelectual ou religiosa, também não conheço a categoria da indiferença. Em virtude dessa escolha em massa, venho por meio deste manifestar publicamente algo que já fiz na prática há alguns anos, desde 2013 para ser preciso: corto todo e qualquer laço de ligação, seja histórico, seja cúltico, seja de herança, com o protestantismo brasileiro. Aos muitos amigos dessa tradição, por favor, não me considerem mais vosso irmão, posso ser e vou continuar sendo vosso amigo, mas não irmão.

Não posso ser irmão de quem escolheu o Caminho de Barrabás, mesmo sabendo que é um caminho de violência, um caminho do mal, um caminho de derramamento de sangue inocente. Não posso ser irmão de quem apoia um regime que será homofóbico e estimulará a violência contra aqueles que pensam sua sexualidade “supostamente” de forma distinta da maioria. Não posso ser irmão de quem propiciou que um regime racista e fascista chegasse ao poder por meio do voto. Não posso ser irmão de quem contribuiu para que a misoginia seja legalizada e regulamentada no país. Não posso ser irmão de quem votou num candidato que fez do discurso de liberação das armas a única proposta real e concreta de sua plataforma de governo. Não posso chamar de irmão quem deixou o ódio dominar o coração a ponto de ficar cego às verdades que eram postas todos os dias, aos apelos e clamores das minorias e daqueles que sabiam que seriam perseguidos no futuro. Não posso ser irmão de quem colaborou para colocar no poder um regime que pode me prender, me exilar ou me matar, pelo simples fato de que eu seja contrário ao que ele prega e defende e por eu ser também intransigentemente defensor da vida e dos direitos básicos do ser humano.

A leitura que aprendi a fazer do evangelho do Nazareno choca-se frontalmente com tudo o que vocês defendem, não posso sequer dizer uma boa parte de vocês, me desespero pensar que mais de 95% do evangelicalismo brasileiro adotou o Caminho de Barrabás. Acredito que o termo que melhor define a experiência evangélica brasileira é um trecho de uma música gospel: “Gadara é assim, ninguém se importa com os outros. Cada um vive pra si, alimentando os seus porcos. São indiferentes, vivem para seus interesses. Só querem ter! Querem ter! Só querem ter”. Não quero fazer parte sociedade de Gadara, vou apagar da minha história teu nome, não quero lembrar que um dia tive orgulho de ser cidadão de ti e a muitos convidei para que se tornassem cidadãos também, hoje sou peregrino em terras ermas, mas não beberei de tuas águas fétidas e nem dormirei em tuas camas de espinho. Parafraseando um antigo hino que eu sempre amei: Adeus Gadara, há Deus!

Eu vou continuar no Caminho do Nazareno, caminho difícil, cheio de pedras e espinhos, mas, neste caminho, quando parar para descansar e colocar a minha cabeça numa pedra, não terei nenhuma contradição ou incoerência para afastar meu sono, da mesma forma, quando diante do espelho não terei do que me envergonhar. Os que estão neste Caminho, estes sim, são meus irmãos (alguns são protestantes, outros católicos, alguns espíritas, outros de religiões de matriz africana, alguns ateus, alguns judeus, alguns sem religião, alguns gays, alguns indígenas, alguns negros, etc.), são poucos, porém são persistentes e determinados, não são movidos pela busca desenfreada por prosperidade ou poder, são movidos por três coisas apenas: a fé, a esperança e o amor, porém o maior destes é o amor.

Primeira carta: livros e leituras



Jaboatão dos Guararapes, primavera de 2018.

Prezado e estimado Nilton,

Primeiramente sente-se em algum lugar sossegado, pode ser aquele banco de pedra no quintal ou nos degraus da escada, leia esta carta devagar, calmamente. Eu sei que você está assustado em recebê-la, na verdade é a primeira carta que você receberá na vida e ela foi enviada por alguém que tem o mesmo nome que o teu e está com a data de um futuro tão longe (vou logo te adiantar: o mundo não vai se acabar no ano 2.000, aquela teoria do pastor Oliveira que o mundo terminará ao fim desse milênio é um erro de interpretação da parte dele, não adianta você dizer-lhe isso, vai te perguntar como você sabe, se disser que alguém do futuro te contou, vão dizer que você ficou louco, mais ainda!), mas, não se assuste. O nome que está no envelope é o seu mesmo, não há engano algum, espero que tenha recebido essa carta das mãos do Assis, o carteiro, não se admire com o que vou dizer: um dia você será colega dele de profissão e sentirá saudades da época em que ele passava na frente de tua casa e gritava: - Corrêêêêêiô! Mas a farda que você vai usar será uma outra, não é essa toda amarela, não cairia muito bem você, creio que nisso nós dois concordamos.

Você também precisa se acostumar com o tipo de linguagem com a qual esta carta foi escrita. Ela é uma carta do futuro, foi escrita quase 45 anos depois desse momento em que você está vivendo, não se espante com essa questão temporal e nem com as outras cartas que chegarão depois, algumas em ocasiões banais e outras nem tão banais assim, depois você entenderá e até esperará ansioso para que cheguem. No tempo certo todas que foram escritas chegarão as tuas mãos, apenas leia, somente isso: leia!

Você está com quase seis anos, essa carta foi escrita para chegar no momento em que aprendeu a ler, antes não faria sentido e elas não são para serem lidas pelos outros, mas sim apenas por você, foram escritas por você e para você.

Você ainda pensa em como foi perceber que sabia ler, foi uma experiência e tanto, de repente abrir um Almanaque do Tio Patinhas e entender todas as narrativas e diálogos, você nunca esquecerá, absolutamente nunca, repetirá sempre extasiado esse momento tão marcante. Mesmo aos 50 anos ainda lembrará daquele dia, logo, não precisa ficar acordado a noite toda com medo de dormir e acordar e descobrir que foi um sonho, não é um sonho, você sabe ler.

No futuro você não lerá com tanta frequência gibis, portanto aproveite e leia os que puder, desde os de Tio Patinhas, Donald, Zagor, Ken Parker, Tex Willer, Universo Marvel, Super Homem, Aquaman, Vingadores, Luluzinha, Bolinha, Homem-Aranha, Batman, Homem de Ferro e todos os outros que tiver acesso. Seja generoso com as leituras, em algum momento você vai se lembrar de cada um deles quando estiver no cinema assistindo filmes com sua filha. Sim, você terá uma filha, mas não é momento de falar disso agora.

Você vai roubar livros da biblioteca da escola para poder ler mais, já que só poderá pegar um livro de cada vez e isso será pouco para você. Não cultive sentimento de culpas, no futuro vão fazer um filme de sucesso sobre uma menina que também gostava de livros e como não podia pagar por eles, roubava-os sem constrangimento. O filme será um sucesso e ninguém chama a menina de ladra, ela é bem mais bonita que você (sinto dizer isso), mas ninguém vai te condenar quando disser um dia que roubava livros. Roubar livros é mais perdoável até do que roubar comida, pode apostar nisso, quem rouba livros para ler, rouba para alimentar a alma. Não há como julgar alguém que faz isso. Não se preocupe, você não continuará roubando livros, vai ganhar muitos e vai comprar mais ainda, até mesmo mais do que a capacidade de lê-los (você terá um emprego de “consultor” numa livraria no qual você ganhará uns 50 livros todo mês, alguns ficarão no plástico durante anos, até você conseguir ler). Em média você comprará 70 ou 80 livros por ano e lerá sempre uma média de 100 ou 120, não se preocupe, você terá onde guardá-los, você terá uma biblioteca na sua casa, algumas vezes você se trancará no quarto e ficará olhando para cada livro, resgatando a emoção que sentiu ao ler o livro pela primeira vez.

Sim, você lerá alguns livros mais de uma vez, alguns serão lidos até 06 vezes, esse será um hábito que você alimentará e terá o costume de ler 10 ou 15 livros ao mesmo tempo, se acostumará com isso e não conseguirá ler apenas um. Portanto leia todos os clássicos antes dos 15 anos, a quantidade de livros que terá que ler depois dos 30 não permite que você pense em ler os 03 mosqueteiros ou 20.000 légua submarinas com quase 40 anos, leia todos, leia com sofreguidão, você não sabe o que é isso ainda: leia como se a sua vida dependesse disso. Leia Júlio Verne, Victor Hugo, C.S. Lewis, Tolkien, Charles Dickens, Alexandre Dumas, Machado de Assis (eu sei que você vai achar chato, te garanto que no futuro vai considerá-lo o maior escritor brasileiro), Cecília Meireles, Raquel de Queiroz, José Lins do Rego e tantos outros. Se você pegar algum livro de Clarice Lispector, grave bem esse nome, não leia, você não vai entender tão fácil, mesmo aos 50 você não julga que a entende tão bem. A mesma coisa para Nietzsche, Søren Kierkegaard, Kafka e Gabriel Garcia Márquez. No futuro você vai amar Tolstoi, Dostoiévski, Mia Couto, José Saramago e Amós Oz, todos chegarão até você no devido tempo, não se preocupe em decorar esses nomes, você lembrará dessa nossa conversa quando estiver com algum exemplar deles em mãos.

Acostume-se a ser olhado de forma esquisita, mesmo aos 50 anos você ainda lerá andando. Isso mesmo, você estará tão acostumado a ler que não escolherá lugar para fazer isso: fila de banco (um dia eu te explicarei o que é um banco e porque deverá ficar na fila), ônibus (eu sei que você vomita quando anda de ônibus), no futuro você andará de ônibus para poder ler, mesmo tendo carro e sabendo dirigir (sim, você terá carro e deixará na garagem para poder andar de ônibus e metrô – com o devido tempo eu explicarei o que é isso – e ler alguns livros). Não se incomode quando for desprezado por teus colegas de escola ou vizinhos, você não tem culpa por ter duas pernas esquerdas e não possuir coordenação motora suficiente para jogar futebol com desenvoltura (no futuro você saberá o que cada palavra dessa significa, as que não souber, anote e procure no dicionário Aurélio da biblioteca da escola, você não vai acreditar quando eu te falar de um negócio chamado “Google”, mas esquece, você não compreenderá tão fácil assim!), teus amigos e colegas não são maus, eles são apenas crianças sendo crianças, não são culpados por você ter a cabeça no mundo da fantasia e da ficção, tenha paciência com eles, você vai precisar se acostumar com pessoas que não têm as mesmas prioridades que você. Para não ser tão esquisito, aprenda a contar piadas, procure ser engraçado, decore todas que puder e conte-as como se tivessem acontecido com você, as pessoas te acharão um cara legal e nem notarão que você não costuma sorrir.

Você vai cair numa ladeira por causa desse costume de ler andando, não se preocupe antecipadamente, alguns arranhões nos joelhos não causam tanto estrago assim. Terá um transtorno maior quando cair da bicicleta com o Rui, ele vai balançar a bicicleta sentado no bagageiro, ele acha que ela estará sem freios, não adianta você dizer que sabe o que está fazendo, o pânico vai dominá-lo e ele vai provocar a queda de vocês. Você precisa perdoar esta fraqueza dele, num futuro razoavelmente distante, algumas dores não curadas dentro dele vão levá-lo a cometer alguns equívocos e por causa desses equívocos ele vai encerrar a jornada aqui nesta dimensão. Você sequer lembrará dessa queda quando souber que ele foi embora, por isso, valorize o que é de fato importante e ele será o teu primeiro amigo de verdade e por muito tempo, teu único amigo. A queda vai te deixar de cama, porém uma coisa boa acontecerá: você terá tempo de sobra para ler mais livros. Outra coisa: devolva os livros de faroeste de Tio Chico, você lerá uns 500 ou 600 (vai desistir de contar depois de passar de 300), cuidado para não perdê-los, ele certamente nem perceberá se você perder, mas ele troca os que já leu por livros novos, por isso cuidado, do contrário não vai ter mais o que ler.

O costume que você vai adquirir de ler à noite pela réstia de luz da lua que entra no teu quarto através da telha de vidro vai te deixar míope, você não conseguirá ler na cozinha e nem no banheiro, tua mãe não deixará, não se pergunte porque alguém impediria um garoto de ler tanto, aos 50 anos você ainda não entenderá, logo, gaste seus neurônios (uns negócios que você tem no cérebro que está dentro da cabeça, vai descobrir depois para que serve, te ajuda a pensar, nem sempre você vai dar atenção devida ao que eles dizem, mas eles estão aí para isso), não se preocupe com a miopia, você vai usar óculos com lentes grossas para poder ler, mas não sentirá desconforto, eles te ajudarão a ser proteger das pessoas, verá que não é tão ruim assim quanto parece.

Cada carta que receberá abordará um tema, por isso não vamos tratar de outro assunto desta vez, não fique ansioso para receber a próxima carta, ela vai chegar no momento exato. Você só saberá que é o momento exato quando ele acontecer, confie em mim, eu sei quando será esse momento.

Por ora era só isso, aproveite a infância, deixe tua imaginação fluir, nunca tenha vergonha de ser um sonhador, você conhecerá pessoas e visitará lugares antes dos 10 anos que a maioria das pessoas não visitará a vida toda, portanto, você já sabe que ler não dá sono, ler dá sonhos, leia muito, leia tudo, leia a vida.

Até breve garoto, cuide bem de minha mente, cuide bem de meus olhos, cuide bem de minha alma.

Eu,

Gente boa da roça


Além da expressão neutra que ela carregava quando estava sozinha, a Senhora Freeman tinha outras duas, uma afirmativa e outra retroativa, que ela usava para todas as suas relações humanas. Sua expressão afirmativa era firme e forte como a de um caminhão pesado. Seus olhos nunca desviavam para a esquerda ou direita, mas viravam de acordo com o rumo da estória como se seguissem uma linha amarela bem no centro da estória. Ela raramente usava a outra expressão porque muitas vezes não era necessário retirar uma declaração, mas quando usava, seu rosto parava completamente, havia um movimento quase imperceptível em seus olhos negros, enquanto eles pareciam retroceder, e então o observador via que a Senhora Freeman, embora estivesse lá, tão real quanto sacos de grão jogados em cima uns dos outros, não estava mais lá em espírito. Fazê-la entender qualquer coisa quando isso acontecia era impossível, a Senhora Hopewell havia desistido. Ela poderia falar até morrer. A Senhora Freeman nunca seria convencida a admitir seu erro em qualquer aspecto. Ela permaneceria lá e, se a pudessem convencer a falar qualquer coisa, seria algo como: “Bem, eu não diria que sim ou não diria que não” ou, ao direcionar seu olhar vago para a prateleira de cima da cozinha onde havia várias garrafas empoeiradas, ela poderia mencionar: “Eu vejo que você não comeu muitos dos figos das conservas que você fez no verão passado”.

Elas cuidavam de seus assuntos mais importantes na cozinha durante o café da manhã. Todas as manhãs a Senhora Hopewell se levantava às sete e ligava seu aquecedor à gás e o de Joy. Esta era sua filha, uma moça loira e alta que tinha uma prótese na perna. A Senhora Hopewell ainda via Joy como uma criança mesmo que ela tivesse trinta e dois anos e alto nível de formação. Joy se levantava enquanto sua mãe estivesse comendo e arrastava-se para o banheiro, batendo a porta, e logo a Senhora Freeman chegava à porta dos fundos. Joy ouvia sua mãe dizer: “Entre”, e então as senhoras conversavam por um tempo em voz baixa, inaudível no banheiro. No momento em que Joy entrava, elas já haviam terminado o relatório da previsão do tempo e estavam falando sobre uma das filhas da Senhora Freeman, Glynese ou Carramae. Joy as chamava de Glicerina e Caramelo. Glynese, uma moça ruiva, tinha dezoito anos e muitos admiradores; Carramae, uma moça loira, tinha apenas quinze, mas já estava casada e grávida. Ela não conseguia manter qualquer coisa em seu estômago. Todas as manhãs a Senhora Freeman contava à Senhora Hopewell quantas vezes Carramae havia vomitado desde o último relatório.

A Senhora Hopewell gostava de dizer para as pessoas que Glynese e Carramae eram duas das moças mais finas que ela conhecia, que a Senhora Freeman era uma lady e que ela nunca teria vergonha de levar a Senhora Freeman a qualquer lugar ou apresentá-la a qualquer pessoa que elas pudessem encontrar. Então ela contava como havia contratado os Freeman em primeiro lugar, como eles eram uma benção de Deus para ela e como estavam junto dela há quatro anos. A razão para mantê-los por tanto tempo era que eles não eram lixo. Eram boa gente do interior. Ela havia telefonado para o homem cujo nome havia sido dado como referência e ele contou para ela que o Senhor Freeman era um bom agricultor, mas que a Senhora Freeman era a mulher mais barulhenta a caminhar pela terra. “Ela tem que estar em tudo”, disse o homem. “Se ela não chegar lá antes que a poeira assente, pode apostar que ela está morta, só isso. “Ela vai querer saber de toda a sua vida. Eu o considero muito”, ele disse, “mas nem eu nem minha esposa conseguiríamos aguentar aquela mulher mais um minuto”. Isso desencorajou a Senhora Hopewell por alguns dias.

Por fim ela os contratou porque não houve outros candidatos, mas decidiu de antemão como lidaria com a mulher. Já que a Senhora Freeman era do tipo de se meter em tudo, a Senhora Hopewell decidiu que ela não apenas seria incluída em tudo, mas providenciaria para que ela estivesse em tudo, ela seria a pessoa encarregada. A Senhora Hopewell não tinha defeitos, mas tinha a habilidade de usar os defeitos de outras pessoas de maneira tão construtiva que ela já tinha os Freeman há quatro anos.

Nada é perfeito. Este era um dos ditados favoritos da Senhora Hopewell. O outro era: é a vida! E ainda mais um, o mais importante, era: bem, outras pessoas têm suas opiniões também. Ela diria essas expressões geralmente à mesa, em tom de insistência gentil, como se ninguém soubesse deles além dela, e a grande desajeitada Joy, cujo ultraje constante havia apagado qualquer expressão em seu rosto, apenas direcionaria um pouco seu olhar para o lado, seus frios olhos azuis, com o jeito de alguém que havia ficado cego por vontade própria e se manteve assim.

Quando a Senhora Hopewell dizia à Senhora Freeman que a vida era assim, esta dizia: “Eu sempre digo isso”. Nada acontecia sem que a Senhora Freeman soubesse primeiro. Ela era mais rápida que o Senhor Freeman. Quando a Senhora Hopewell disse a ela, após certo tempo da chegada deles: “Sabe, você é a comandante deste navio” e deu uma piscadela, a Senhora Freeman respondeu: “Eu sei. Sempre fui rápida. Há sempre aqueles que são mais rápidos que os outros”.

“Todos são diferentes”, disse a Senhora Hopewell.

“Sim, a maioria é”, respondeu a Senhora Freeman.

“É preciso gente de todos os tipos para formar o mundo”.

“Eu sempre disse isso”.

A menina estava acostumada com esse tipo de diálogo no café da manhã e também no jantar; de vez em quando elas conversavam no lanche também. Quando não tinham visitas, elas comiam na cozinha porque era mais fácil. A Senhora Freeman se esforçava para chegar durante a refeição e assisti-las terminar. Ela ficava na porta se fosse verão, mas no inverno ela apoiava um cotovelo em cima da geladeira e olhava para elas de cima, ou ficava ao lado do aquecedor a gás, levantando um pouco a parte de trás da saia. Ocasionalmente ela se apoiava na parede e rolava a cabeça de um lado para o outro. Ela nunca tinha pressa de ir embora. Tudo isso era muito penoso para a Senhora Hopewell, mas esta era uma mulher de grande paciência. Ela havia percebido que nada é perfeito, que os Freeman eram boa gente do interior e que, se em tempos presentes há boa gente no interior, era melhor segurá-la.

Ela teve muita experiência com lixo. Antes dos Freeman, ela tivera em média uma família de caseiros por ano. As mulheres desses agricultores não eram do tipo que você gostaria por perto por muito tempo. A Senhora Hopewell, que havia se divorciado do marido há anos, precisava de alguém que tocasse a plantação para ela; e quando Joy tinha de ser mandada a fazer esses serviços, as coisas que ela fazia eram geralmente tão malfeitas e sua expressão tão carrancuda que a Senhora Hopewell dizia: “Se você não faz de boa vontade, eu não quero”, ao que a moça, firme, com os ombros rígidos e o pescoço um pouco jogado para a frente, respondia: “Se você me quer, aqui estou – COMO SOU”.

Deus Não é Grande: Como a Religião Envenena Tudo


Quando eu li Christopher Hitchens pela primeira vez eu fiquei genuinamente emocionado. Hitchens resgata o sentimento de indignação com as barbáries cometidas pela religião e nos ajuda a perceber como, de fato, a religião envenena tudo, incluindo nossa capacidade crítica a respeito dela. Se você for ler apenas um livro esse ano, o que infelizmente será verdade para a maioria dos brasileiros, já que uma pesquisa recente aponta que o brasileiro lê em media apenas dois livros completos por ano e que o livro mais lido é a Biblía, eu recomendaria que você lesse esse livro.

Separei algumas passagens de cada capítulo.
Capítulo 1: Colocando Gentilmente
E aqui está o ponto, sobre mim e meus colegas pensadores. Nossa crença não é uma crença. Nossos princípios não são uma fé. Nós não confiamos exclusivamente na ciência e na razão, porque estes são necessários, em vez de fatores suficientes, mas desconfiamos de tudo que contradiga a ciência ou ultraje a razão. Podemos divergir sobre muitas coisas, mas o que respeitamos é a indagação livre, a mente aberta, e a busca de ideias para seu próprio bem. Não temos convicções dogmáticas.

Capítulo 2: Religião Mata
Certa vez ouvi o falecido Abba Eban, um dos diplomatas e estadistas mais polido e pensativo de Israel, dar uma palestra em Nova York. A primeira coisa a bater o olho sobre o conflito israelo-palestino, disse ele, foi a facilidade de sua solubilidade. A partir deste início cativante ele passou a dizer, com a autoridade de um ex-chanceler e representante da ONU, que o ponto essencial era simples. Dois povos de tamanho equivalente tinha um crédito a mesma terra. A solução seria, obviamente, a criação de dois Estados lado a lado. Certamente, algo tão evidente estava dentro do espírito do homem para abranger? E assim teria sido, décadas atrás, se os rabinos e mulás messiânicos e padres pudessem ter sido mantidos fora da questão. Mas os clamores exclusivos para a autoridade dada por Deus, feita por clérigos histéricos de ambos os lados e ainda mais felizmente por cristãos que esperam trazer o Apocalipse (precedido pela morte ou a conversão de todos os judeus), tornaram a situação insuportável, e colocaram toda a humanidade na posição de refém de uma briga que apresenta agora a ameaça de guerra nuclear. A religião envenena tudo. Bem como uma ameaça à civilização, tornou-se uma ameaça à sobrevivência humana.

Capítulo 3: Uma pequena digressão sobre o porco, ou, por que o céu odeia presunto?
A atração e repulsão simultânea é derivado de uma raiz antropomórfica: o olhar do porco, e com o sabor do porco, e os moribundos gritos do porco, e a inteligência evidente do porco, eram de uma demasiada e incômoda reminiscência do ser humano.

Capítulo 4: Uma nota sobre a saúde, para qual a religião pode ser perigosa
Feche os olhos e tente imaginar o que você diria se você tivesse que infligir o maior sofrimento possível no menor número de palavras.
"... Durante o carnaval no Brasil, o bispo auxiliar do Rio de Janeiro, Rafael Llano Cifuentes, disse à sua congregação em um sermão que "a igreja é contra o uso do preservativo. As relações sexuais entre um homem e uma mulher tem que ser natural. Eu nunca vi um cãozinho usar um preservativo durante a relação sexual com um outro cão." Figuras clericais experientes de vários outros países, como o cardeal Obando y Bravo da Nicarágua, o arcebispo de Nairobi, no Quênia, e o Cardeal Emmanuel Wamala de Uganda, tem todos ditos aos seus rebanhos que as camisinhas transmitem AIDS.

Capítulo 5: As afirmações metafísicas da religião são falsas
Todas as tentativas de conciliar a fé com a ciência e a razão estão fadadas ao fracasso e ao ridículo por precisamente estas razões. Eu li, por exemplo, de alguma conferência ecumênica dos cristãos que desejam mostrar sua mente aberta e convidar alguns físicos para participarem. Mas sou obrigado a lembrar o que eu sei, que é que não haveriam tais igrejas, em primeiro lugar, se a humanidade não tivesse temido coisas como o clima, o escuro, a peste, o eclipse, e toda sorte de outras coisas agora facilmente explicáveis. E também se a humanidade não tivesse sido obrigada, sob pena de consequências extremamente agonizantes, a pagar os dízimos e impostos exorbitantes que elevaram os edifícios imponentes da religião.

Capítulo 6: Argumentos sobre Design
Ceticismo e descoberta libertaram (os religiosos) do fardo de ter que defender seu deus de ser absurdo, desajeitado, um cientista louco, e também de ter que responder perguntas perturbadoras sobre quem infligiu o bacilo da sífilis ou criou o leproso ou a criança deficiente, ou concebeu os tormentos do trabalho. O fiel repousa absolvido dessa acusação: não temos mais qualquer necessidade de um deus para explicar o que não é mais misterioso. O que os crentes vão fazer, agora que sua fé é opcional e privada é irrelevante, é uma questão para eles. Nós não deve se preocupar, desde que eles não façam nova tentativa de forçar a religião sob qualquer forma de coerção.

Capítulo 7: Apocalipse: O pesadelo do "Antigo" Testamento
Em Deuteronômio Moisés dá ordens para os pais que seus filhos sejam apedrejados até a morte por indisciplina (que parece violar pelo menos um dos mandamentos) e continuamente faz pronunciamentos dementes ("Aquele que está ferido nas pedras, ou tem o seu membro cortado , não entrará na congregação do Senhor "). Em Números, ele aborda seus generais depois de uma batalha e se enfurece com eles por poupar tantos civis: "Agora, pois, matem todos os meninos entre as crianças, e matai toda mulher que tiver conhecido homem, deitando-se com ele. Mas todas as mulheres-crianças que não tem conhecido um homem, deitando-se com ele, manter as viva para vós."

Capítulo 8: O "Novo" Testamento excede o mal da"Velho"
Muitos dos ensinamentos de Jesus são ininteligíveis e mostram uma crença na magia, vários são absurdos e mostram uma atitude primitiva para com a agricultura (isso se estende a todas as menções de arar e semear, e todas as alusões a árvores de mostarda ou figueira), e muitos são claramente imorais. A analogia de seres humanos para os lírios, por exemplo, sugere juntamente com muitas outras passagens, que coisas como economia, inovação, vida familiar, e assim por diante são uma pura perda de tempo. ("Não fazeis plano para o dia de amanhã.").

Capítulo 9: O Corão é uma cópia de mitos judaicos e cristãos.
Em vinte e cinco anos de discussões, muitas vezes ferrenhas, apenas uma vez fui ameaçado com violência real. Isso ocorreu em Washington, DC quando eu estava jantando com alguns funcionários e apoiadores da Casa Branca de Clinton. Um dos presentes, um na época conhecido democrata arrecadador de fundos para o partido, questionou-me sobre a minha mais recente viagem ao Oriente Médio. Ele queria a minha opinião sobre a razão pela qual os muçulmanos eram tão "tudo nervosos, malditos fundamentalistas." Eu descrevi meu repertório de explicações, acrescentando que muitas vezes é esquecido que o Islã é uma fé relativamente jovem, e ainda no calor da sua auto-confiança. Os muçulmanos ainda não tiveram tempo de sofrer a crise de insegurança que havia superado o cristianismo ocidental. Acrescentei que, por exemplo, enquanto havia pouca ou nenhuma evidência para a vida de Jesus, a figura do Profeta Maomé era ao contrário pessoa significativamente documentada na história. O homem mudou de cor mais rápido do que eu já havia visto. Depois de gritar que Jesus Cristo tinha mais significado para as pessoas mais do que eu jamais poderia imaginar, e que eu era nojento acima de qualquer insulto por falar tão casualmente de Cristo, ele recuou o pé e mirou um pontapé que só a sua decência, concebivelmente seu cristianismo, o impediu de desferir contra minha perna. Ele então ordenou que sua esposa o acompanhasse enquanto se retirava.

Capítulo 10: O enfeite barato do milagroso e o declínio do Inferno
Depoimento de Ken Macmillan, o cinegrafista do documentário "Algo Bonito Para Deus":
"Durante as filmagens, houve um episódio em que fomos levados para um prédio que Madre Teresa chamava de Casa dos Moribundos. Peter Chafer, o diretor, disse: "Ah, bem, é muito escuro aqui. Você acha que podemos conseguir alguma coisa?" E nós tínhamos acabado de receber na BBC um novo filme feito pela Kodak, que não tivemos tempo para testar antes de sairmos, então eu disse a Pedro: "Bem, nós podemos tentar e pode dar certo."Então, nós filmamos. E quando voltamos, algumas semanas depois, um mês ou dois mais tarde, nós estamos sentados na sala de projeção no Ealing Studios e, eventualmente, se vêm as imagens da Casa dos Moribundos. E foi surpreendente. Você podia ver todos os detalhes. E eu disse: "Isso é incrível. Isso é extraordinário." E eu ia dizer, você sabe, três vivas para a Kodak. Eu não tive a chance de dizer isso, porém, porque Malcolm, sentado na primeira fila, virou-se e disse: ".. É luz divina. É Madre Teresa. Você verá que é a luz divina, meu velho" E três ou quatro dias depois eu estava recebendo telefonemas de jornalistas de jornais de Londres que diziam coisas como: ". Ouvimos dizer que você acabou de voltar da Índia com Malcolm Muggeridge e que você testemunhou um milagre"
Assim nascia uma estrela...

Capítulo 11: "O Selo humilde de sua origem": O começo corrupto da Religião
Não são os livros sagrados do monoteísmo oficial absolutamente encharcado de desejo material e com descrições - quase de dar água na boca- das riqueza de Salomão, das pastagens e rebanhos prósperos e bem sucedidos dos fiéis, as recompensas para um bom muçulmano no paraíso, para não falar de muitos, muitos contos sombrios de pilhagem e saque? Jesus, é verdade, não mostra nenhum interesse pessoal no ganho, mas ele fala de um tesouro no céu e até mesmo de "mansões" como um incentivo para segui-lo. Não é mais verdade que todas as religiões ao longo dos tempos têm mostrado um grande interesse no recolhimento de bens materiais no mundo real?

Capítulo 12: Um Epílogo: Como a Religião Acaba
Pode ser igualmente útil e instrutivo vislumbrar o encerramento de religiões ou movimentos religiosos. Os mileritas, por exemplo, não existem mais. E nós não ouviremos falar novamente, a não ser de forma vestigial e nostálgica, de Pan ou Osíris ou qualquer um dos milhares de deuses já escravizaram pessoas absolutamente.

Capítulo 13: A Religião Faz as Pessoas Comportarem-se Melhor?
A primeira coisa a ser dita é que o comportamento virtuoso de um crente não é prova da verdade de sua crença de forma alguma, não é nem mesmo um argumento a seu favor. Eu poderia, vamos imaginar, agir de forma mais caridosa se ​​eu acreditasse que Buda nasceu de uma fenda no lado de sua mãe. Mas isso não faria o meu impulso de caridade dependente de algo muito tênue? Da mesma forma, não digo que se eu pegar um sacerdote budista roubando todas as oferendas deixadas pelo povo simples em seu templo, o budismo é, assim, desacreditado. E esquecemos em qualquer caso, como tudo isto é contingente. Das milhares de religiões possíveis que haviam no deserto, assim como haviam milhões de espécies potenciais, um ramo criou raízes e cresceu. Passando por suas mutações judáicas até a sua forma cristã, que foi adotado por motivos políticos pelo Imperador Constantino, e transformada em uma fé oficial com (eventualmente) a forma codificada e aplicável ​​de seus muitos livros caóticos e contraditórios. Já para o Islã, ele se tornou a ideologia de uma conquista de grande sucesso que foi adotado por dinastias de sucesso, codificados e estabelecido por sua vez, e promulgado como lei da terra.

Capítulo 14: Não há Solução "Oriental"
A espécie humana é uma espécie animal sem muita variação dentro dela, e é ingênuo e inútil imaginar que uma viagem ao Tibete, por exemplo, vai revelar uma harmonia inteiramente diferente com a natureza ou com a eternidade. O Dalai Lama, por exemplo, é inteiramente e facilmente reconhecível para um secularista. Exatamente da mesma maneira como um príncipe medieval, ele faz a afirmação não só que o Tibete deve ser independente da hegemonia chinesa - uma solicitação aceitável - mas que ele próprio é um rei hereditário nomeado pelo próprio céu.Que conveniente! Seitas dissidentes dentro de sua fé são perseguidas; seu governo de um homem em um enclave indiano é absoluto, ele faz declarações absurdas sobre sexo e dieta e quando em suas viagens para Hollywood os principais doadores como Steven Segal e Richard Gere são ungidos com o status de "santos" dentro da religião budista. (Na verdade, mesmo Gere foi forçado a reclamar um pouco quando o Sr. Segal foi reconhecido como "tulku',ou "pessoa de alta iluminação". Deve ser chato ser derrotado em um leilão tão espiritual.)

Capítulo 15: Religião Como Um Pecado Original
Há, de fato, várias formas nas quais a religião não é apenas amoral, mas definitivamente imoral. E estas falhas e crimes não estão a ser encontradas no comportamento dos seus adeptos (que às vezes pode ser exemplar), mas em seus preceitos originais.

Capítulo 16: Seria a Religião Abuso de Menores
Como podemos saber quantas crianças tiveram suas vidas físicas e psicológicas irreparavelmente ​​mutiladas pela inoculação compulsória da fé? Isso é quase tão difícil de determinar como o número de sonhos e visões espirituais e religiosos e que se tornaram "verdade", que a fim de possuir ainda uma verificação real teria que ser medido contra todos os sonhos não registrados e esquecidos que não se realizaram. Mas podemos ter certeza de que a religião sempre exerceu sua influência sobre as mentes disformes e indefesas dos jovens, e tem feito grandes sacrifícios para certificar-se deste privilégio, fazendo alianças com os poderes seculares no mundo material.

Capítulo 17: Uma Objeção Antecipada: O último argumento contra o secularismo
Se eu não posso provar definitivamente que a utilidade da religião está no passado, e que seus livros fundamentais são fábulas transparentes, e que é uma imposição feita pelo homem, e que tem sido um inimigo da ciência e da investigação, e que tem subsiste em grande parte a mentiras e medos e foi cúmplice da ignorância e da culpa, bem como da escravidão, do genocídio, do racismo e da tirania, posso certamente afirmar que a religião está agora plenamente consciente dessas críticas. E também está plenamente consciente da evidência sempre crescente, sobre as origens do cosmo e da origem das espécies, coisas que ela tenta levar à marginalidade, se não tão somente à irrelevância.

Capítulo 18: Uma Tradição Melhor: A Resistência do Racional
É fato que alguns seres humanos sempre notaram a improbabilidade de Deus, o mal feito em seu nome, a probabilidade de que ele é feito pelo homem, e a disponibilidade de crenças alternativas menos prejudiciais e outras explicações. Não podemos saber os nomes de todos estes homens e mulheres,porque eles foram, em todos os tempos e todos os lugares, objetos de repressão implacável. Por motivo idêntico, nem podemos saber quantas pessoas ostensivamente devotas eram secretamente descrentes. No final dos séculos XVIII e XIX, em sociedades relativamente livres, como a Grã-Bretanha e os Estados Unidos, os incrédulos, mesmo seguros e prósperos como James Mill e Benjamin Franklin sentiram que seria aconselhável manter as suas opiniões privadas. Assim, quando lemos sobre as glórias da pintura "cristã" e da arquitetura, astronomia ou da medicina "islâmica", nós estamos falando sobre os avanços da civilização e da cultura (alguns deles previstos pelos astecas e chineses) que têm tanto a ver com "fé", como seus predecessores tinham a ver com sacrifício humano e imperialismo. E nós não temos meios de saber, exceto em alguns poucos casos especiais, quantos desses arquitetos e pintores e cientistas decidiram preservar seus pensamentos mais íntimos do escrutínio dos fiéis.

Capítulo 19: Conclusão: A Necessidade de uma nova iluminação
Acima de tudo, temos necessidade de uma iluminação renovada, que vai basear-se na proposição de que o estudo apropriado da humanidade é o homem e mulher. Este esclarecimento não vai precisar depender, como seus antecessores, dos avanços heroicos de poucas pessoas talentosas e extremamente corajosas. Está ao alcanço da pessoa comum. O estudo da literatura e da poesia, tanto para seu próprio bem como para as eternas perguntas éticas da qual eles tratam, agora podem facilmente derrubar o exame dos textos sagrados que foram provados ser corruptos e inventados. A busca da investigação científica desenfreada, e da disponibilidade de novas descobertas para as massas por fáceis meios eletrônicos, vai revolucionar nossos conceitos de pesquisa e desenvolvimento. Muito importante, o divórcio entre a vida sexual e o medo, e a vida sexual e as doenças,e a vida sexual e tirania, pode agora, finalmente, ser tentada, sob a única condição de que todas as religiões sejam banidas da questão. Tudo isto e muito mais está, pela primeira vez em nossa história, ao alcance de todos.

Violência e banalidade do mal

Jerome Kohn, assistente de ensino e intérprete de Hannah Arendt, escreveu que o problema do mal é o principal eixo argumentativo a atravessar toda a reflexão político-filosófica arendtiana. A base da reflexão da pensadora é a experiência totalitária. Ao ligar essa experiência ao mal, Hannah Arendt apontou o paroxismo da violência perpetrada pelos governos totalitários e mostrou a insuficiência das teorias e categorias científicas, econômicas e políticas tradicionais para captar e explicar a novidade do que estava acontecendo. O domínio total é mais opressor que a escravidão e a tirania, é mais destruidor que a miséria econômica e o expansionismo territorial. O controle total pretende atingir e capturar os humanos; adota, como critério de legitimidade governamental, a redução dos homens a seres naturais. O recurso à categoria do mal é uma forma de tentar compreender o inexplicável e visa aproximar-se reflexivamente da primeira tentativa de constituição de uma forma de governo, no Ocidente, baseada na purificação e no extermínio dos seres humanos. Trata-se, assim, de pensar o mal nas sociedades secularizadas sem apelar ao teor teológico-religioso.


O tema do mal, em Arendt, não tem como pano de fundo a malignidade, a perversão ou o pecado humano. A novidade da sua reflexão reside justamente em evidenciar que os seres humanos podem realizar ações inimagináveis, do ponto de vista da destruição e da morte, sem qualquer motivação maligna. O pano de fundo do exame da questão, em Arendt, é o processo de naturalização da sociedade e de artificialização da natureza ocorrido com a massificação, a industrialização e a tecnificação das decisões e das organizações humanas na contemporaneidade. O mal é abordado, desse modo, na perspectiva ético-política e não na visão moral ou religiosa.

Faz-se necessário esclarecer, antes de avançarmos, que Hannah Arendt nunca sistematizou suas reflexões sobre o assunto. Colhemos os elementos do seu ponto de vista nas seguintes obras: Origens do totalitarismo (1951), Eichmann em Jerusalém (1963), A vida do espírito (1971) e em outros textos publicados postumamente. Essa bibliografia está muito bem articulada no livro de Nádia Souki intitulado Hannah Arendt e a banalidade do mal (Ed. UFMG).

Contingência do mal
Em Origens, o tema aparece no cotejamento e prolongamento da reflexão kantiana sobre o mal radical. Kant percebeu que o mal pode ter origem não nos instintos ou na natureza pecaminosa do homem e, sim, nas faculdades racionais que o fazem livre. Dessa forma, o mal não possui dimensão ontológica, mas contingencial. Ele acontece a partir da interação e da reação das faculdades espirituais humanas às suas circunstâncias. O mal radical, em Kant, é uma espécie de rejeição consciente ao bem e está atrelado, ainda, ao uso dos homens como meios, instrumentos, e não fim em si mesmo. Arendt retém esse aspecto da reflexão kantiana, acrescentando-lhe a dimensão histórico-política do seu próprio tempo. Nela, o radicalismo vai relacionar-se à novidade e ao assombro diante das informações chegadas às suas mãos nos Estados Unidos, em 1943, sobre Auschwitz. Ela associou o mal radical aos campos de concentração, base de sustentação da nova forma de governo em gestação. Isso faz o assunto ultrapassar a questão judaica, embora seja incompreensível sem ela. Holocausto é pouco para captar o que surgiu, pois não se trata apenas da execução de judeus. Esse algo a mais faz sua obra dizer coisas relevantes para todos nós. O mal radical está associado ao totalitarismo, organização governamental e sistemática da vida dos homens prescindindo do discurso e da ação, considerando-os meros animais, controláveis e descartáveis. É uma forma de governar sustentada, explicitamente, no pressuposto do extermínio de setores da população e não apenas na sua opressão ou instrumentalização. Isso não diz respeito apenas à exclusão sócio-política do criminoso, nem à eliminação do opositor ou inimigo, mas a atualização da lógica da descartabilidade humana inerente àquelas formas de governo.

Ao considerar a população apenas do ponto de vista biológico, laborante, o governo total tratou de eliminar qualquer instituição ou vínculo humano que pudesse dar abrigo à solidariedade, à ação e à diferenciação entre os indivíduos. Destruindo o mundo comum (partidos, família, arte, religiões, sindicatos, justiça e outras formas de organização), no qual as pessoas poderiam ser amparadas e respeitadas, os governos totalitários constituíram-se baseados na propaganda, na espetacularização, na atomização, na solidão, na padronização, na coletivização das massas e na redução do homem a animal, ocupado exclusivamente com a sua reprodução biológica. Os regimes totais conceberam os homens apenas como seres vivos e prolongaram esse critério na escolha dos merecedores da vida. O grande temor, presente nos textos da pensadora, é que o extermínio, a nova terapia contra os humanos considerados impuros e indignos, inerente aos governos totalitários, viesse a constituir-se em elemento imanente aos governos e sociedades contemporâneas. Isso levou Arendt a afirmar: “talvez os verdadeiros transes do nosso tempo somente venham a assumir a sua forma autêntica – embora não necessariamente a mais cruel – quando o totalitarismo pertencer ao passado”.

Cumprir o seu dever
A questão do mal retorna, em Arendt, quando ela aceita o convite de uma revista americana para fazer a cobertura do julgamento de Eichmann ocorrido em Jerusalém, em 1962. As questões jurídicas e filosóficas envolvidas nesse caso foram muito bem debatidas no livro Justiça em tempos sombrios de Christina Ribas (Ed. UEPG). Se, ao mal radical, Arendt associa o surgimento e a prática da violência extremada e sistemática contra setores da população por parte de uma nova forma de governo, ao mal banal, ela vai relacionar a prática dos agentes encarregados de executar as ordens governamentais. Quem foi Eichmann? Trata-se do principal responsável pelo envio dos judeus aos campos de concentração. Em todos os relatos de Arendt, verificamos uma profunda perplexidade com a forma de Eichmann falar das suas atividades como carrasco nazista. Ele usava clichês, palavras de ordens e a moral da obrigação do bom funcionário para justificar o seu comportamento. Para ele, em nenhum momento, podia ser enquadrado como criminoso, pois apenas cumpria a sua obrigação, o seu dever. Eichmann era um ser humano normal, bom pai de família, não possuía nenhum ódio ao povo judeu e não era motivado por uma vontade de transgredir ou por qualquer outro tipo de maldade. No entanto, viabilizou o assassinato de milhões de pessoas. Foi justamente isso que levou Arendt a usar o termo banalidade do mal. Estamos diante de um tipo de mal sem relação com a maldade, uma patologia ou uma convicção ideológica. Trata-se do mal como causa do mal, pois não tem outro fundamento. O praticante do mal banal não conhece a culpa. Ele age semelhante a uma engrenagem maquínica do mal. O mal banal parece ser um fungo, cresce e se espalha como causa de si mesmo, sem raiz alguma e atinge contingentes enormes das populações humanas em diversos lugares da terra.

A pergunta de Arendt, ao se deparar com os depoimentos de Eichmann, foi: “o que faz um ser humano normal realizar os crimes mais atrozes como se não estivesse fazendo nada demais?” A resposta está no mal banal. Trata-se de uma prática do mal promissora nas sociedades massificadas, possuidoras de organizações econômicas, políticas e sociais potentes, nas quais os seres humanos tendem a se sentir sem poder, solitários, submissos e quase condicionados. Vivendo apenas como animal laborante, os homens tecnificam e burocratizam as suas obrigações e se tornam, desse modo, incapazes de pensar as conseqüências das ordens dadas pelos seus superiores ou grupos. Eichmann, segundo Arendt, agiu igual ao cão de Pavlov, que foi condicionado a salivar mesmo sem ter fome. Ele não praticou o mal motivado pela ambição, ódio ou doença psíquica. Nada disso foi encontrado em Eichmann. A única coisa que chamou atenção de Arendt foi a sua incapacidade de pensar. Ao renunciar ao pensamento, Eichmann destituiu-se da condição de ser dotado de espírito que lhe possibilitaria o descondicionamento e, assim, dizer: não, isso eu não posso.

O mal como renúncia à capacidade de julgar
O mal banal caracteriza-se pela ausência do pensamento. Essa ausência provoca a privação de responsabilidade. O praticante do mal banal submete-se de tal forma a uma lógica externa que não enxerga a sua responsabilidade nos atos que pratica. Age como mera engrenagem. Não se interroga sobre o sentido da sua ação ou dos acontecimentos ao seu redor. Buscar o sentido não é apenas se informar, não é algo da ordem do conhecimento nem da aferição da eficácia. Trata-se de medir e buscar a estatura do que está acontecendo a partir do crivo da dignificação dos envolvidos. Quem pensa resiste à pratica do mal. A busca da significação encontra muita dificuldade quando a pressa, os mecanismos e procedimentos técnicos, burocráticos e os processos econômicos auto-propelidos engolfam tudo. O praticante do mal banal renuncia à capacidade pertencente aos humanos de mudar o curso das ações rotineiras através do exercício da vontade própria. Repete heteronomamente o seu comportamento. Não se reconhece dotado de vontade, capaz de iniciar, fundar e começar. Ele também não exercita a habilidade, peculiar aos homens, de falar e comunicar o que está vendo e sentindo. Vive sem compartilhar o mundo com os outros. Renuncia, desse modo, à faculdade do julgamento. Em suma, recusa-se a viver com os dons provenientes das suas faculdades espirituais: pensar, querer e julgar.

Ao relacionar o mal ao vazio reflexivo, Arendt aponta para uma possível compreensão da violência nas sociedades contemporâneas. Nessas sociedades, o mal realiza-se na banalidade, na injustiça e nas radicais práticas de violência contra apátridas, imigrantes, mulheres, desempregados, índios, negros, crianças, idosos e a natureza.

A partir dessas teses, vemos emergir, na autora, formas de contraposição ao mal radical e ao mal banal. Na primeira, a autora propõe a recuperação da política, do mundo comum, principalmente, em A condição humana (1958); na segunda, aponta a retomada da dimensão ética em A vida do espírito (1971). Pensar, julgar e querer desembocam no cuidado com o mundo comum, no amor mundi, para usar a terminologia de Arendt, no respeito aos espaços onde os homens podem circular e se sentirem amparados pela presença dos iguais e dos diferentes. Nesse mundo comum os homens mostram que nasceram para começar e não para morrer. 

Odílio Alves Aguiar é professor de filosofia da UFC e autor de Filosofia política no pensamento de Hannah Arendt (UFC)

Não há outro caminho!

"Sangue nas mãos"


Senhores (as) líderes evangélicos, graça, paz e discernimento!

As eleições se avizinham, e boa parte dos pastores de nosso país tem manifestado seu apoio à candidatura de Jair Bolsonaro. A maioria alega ser ele o que melhor representa os anseios do povo evangélico, principalmente devido ao seu discurso favorável à família tradicional e aos valores morais tão caros ao cristianismo.

De repente, sinto-me como se houvesse viajado no tempo e revivesse os dias da guerra fria, quando o mundo se via ameaçado pela eclosão de uma guerra nuclear envolvendo as duas potências mundiais: A União Soviética e os Estados Unidos. Colegas vociferam de seus púlpitos sobre o perigo do comunismo que ronda a nossa sociedade. Pergunto-me em que mundo estamos vivendo, afinal? Qualquer um que levante sua voz a favor do pobre, do excluído, do oprimido, logo é tachado de esquerdopata, comunista, “agente do inferno”, e coisa parecida.

Os senhores já pararam para se perguntar sobre o que estaria por trás deste discurso ultraconservador? Há uma onda conservadora varrendo a Europa e os EUA, suscitando velhos rancores contra os imigrantes, os homossexuais, as minorias, a classe operária, etc.

No meio desta avalanche de intolerância, eis que uma voz destoante se faz ouvir mundo afora. Não de um pastor como foi nos dias de Luther King nos EUA, ou de Bonhoeffer na Alemanha, mas de um Papa, líder da instituição mais conservadora do mundo. Por ironia, justamente o primeiro Papa latino-americano se levanta contra tudo e contra todos os que insistem em ressuscitar um discurso que há décadas parecia ter sido abandonado e enterrado. Enquanto isso, a igreja evangélica, que por tanto tempo esteve na vanguarda na luta pelos direitos humanos passa a se aliar com o que há de mais retrógrado e ultrapassado. Que vergonha! Tudo em nome de nossos escrúpulos moralistas.

Conseguiram a façanha de diluir o puro Evangelho da graça num discurso de ódio e intolerância.

Esquecemo-nos dos colegas que foram perseguidos, torturados, e, alguns até mortos e desaparecidos, durante o regime militar. Justificamo-nos no fato de que o tal candidato defenda os mesmos valores. Será que ser a favor da tortura soa menos cruel quando se é contrário ao aborto? Será que ser a favor do armamento da população condiz com o que foi ensinado por Jesus? Afinal, bem-aventurados são os pacificadores ou os que pretendem armar a população? Ser pela família tradicional abona a conduta de quem se revela contrário aos direitos trabalhistas conquistados a duras penas? Se você, pastor, é contra tais direitos, recomendo que não aceite mais dízimos de décimo-terceiro ou de férias de seus membros.

Não ajamos como o profeta Natan que encorajou a Davi a construir o templo, afirmando-lhe categoricamente que Deus o havia escolhido para aquela empreitada. Porém, o Senhor não o tinha autorizado a fazer tal coisa, de modo que, mesmo constrangido, teve que retornar ao rei e dizer-lhe a verdade. Por causa do sangue que havia em suas mãos, Deus não o designou para edificar Sua casa, ainda que já houvesse levantado todos os recursos para tal, e recebido do Senhor a planta, caberia ao seu sucessor tocar a obra.

Quem somos nós para abençoar o que Deus não abençoou? Quem somos nós para encorajar o que contraria frontalmente a Sua vontade?

Sei que muitos alegarão que tudo não passa de manipulação da mídia esquerdista. Mas basta assistir aos inúmeros vídeos de discursos e entrevistas do candidato para verificar que exatamente assim que ele pensa. Ele mesmo afirma que o trabalhador terá que escolher entre ter seus direitos assegurados ou o emprego. Ele é quem diz com todas as letras que o Estado não é laico, mas cristão e que as minorias terão que se dobrar à vontade das maiorias. Ele diz que seria incapaz de amar um filho homossexual e que a homossexualidade é falta de p*rrada na infância. Diz que não empregaria uma mulher, já que esta engravida. Diz que educou seu filhos para que jamais namorassem negras. Diz que em seu governo os índios não receberiam nem mais um centímetro de terra. Se ele é a favor da família tradicional, por que disse que usava o apartamento para “comer gente”? Como defender quem diz que uma mulher não merecia ser estuprada por ser feia? Como apoiar quem defende o uso da tortura se somos seguidores de um Cristo torturado e morto numa cruz? Como apoiar quem diz que ordenaria que helicópteros metralhassem uma favela se os criminosos não se rendessem? Será que na favela só mora bandido? Com que cara visitaremos os presídios para pregar o amor de Cristo depois de apoiar que tem como slogan “bandido bom é bandido morto”?

O sangue de toda uma geração poderá cair em nossas mãos!

Se você é pastor de uma pequena congregação, talvez esteja indo na onda de grandes líderes que já manifestaram seu apoio a Bolsonaro. Não seja ingênuo. Muitos deles o fazem, não por convicção, mas por conveniência, movidos por interesses nem sempre louváveis (alguns até sórdidos).

Lembre-se de quem nos considerou fiéis, pondo-nos em seu ministério (1 Timóteo 1:12), e que um dia, teremos que prestar contas (Hebreus 13:17).

Por isso, deixo aqui uma recomendação que deveria perturbar o sono de todos os que levam a sério o ministério pastoral:

“Pastoreiem o rebanho de Deus que está aos seus cuidados. Olhem por ele, não por obrigação, mas de livre vontade, como Deus quer. Não façam isso por ganância, mas com o desejo de servir. Não ajam como dominadores dos que lhes foram confiados, mas como exemplos para o rebanho.” 1 Pedro 5:2,3

Não compete a pastor algum dizer em quem seu rebanho deve votar. Mas compete-nos instrui-los a reconhecer os riscos por trás de todo discurso de ódio e intolerância.

Jesus disse que enquanto o bom pastor dá a vida pelas ovelhas, o ladrão, ao ver o lobo, foge e deixa suas ovelhas à mercê do perigo. Portanto, cumpramos nosso papel. Pois cuidar das ovelhas que nos foram confiadas é a melhor maneira de dizer: TU SABES QUE TE AMO, SENHOR.

Hermes Carvalho Fernandes é pastor, escritor, conferencista e teólogo com doutorado em Ciências da Religião e editor do blog HermesFernandes.com
Fonte: Sangue nas mãos

Qual o sentido de um cristão apoiar a tortura?


A gente sempre acha que não dá mais para se surpreender, mas se surpreende. E até se assusta. Estou assustado com a maneira avassaladora como a “igreja brasileira” – usando um termo bastante impreciso para me referir a esse grande fenômeno de massa que ocupa enormes espaços na mídia, arrebanha multidões, e que tem um projeto claro de aparelhamento dos espaços de decisão, inclusive com representações nas câmaras, parlamentos e outros espaços da política nacional, como o Judiciário – vem dando mostras escancaradas de engajamento não apenas político, mas partidário.

Pois essa “igreja brasileira” – formada por uma salada infinita, que vai do fundamentalismo protestante e seus derivados, até as novíssimas igrejas pentecostais-neo-pós-tudo, e que se somam a um grande contingente de católicos (no plural mesmo, pois longe da uniformidade pensada, o Catolicismo se constitui de numerosíssimos movimentos que guardam entre si uma relação muito mais simbólica, posto que no campo das ideias e práticas são absurdamente diferentes, divergentes e contraditórios) – está se superando a cada dia que passa em seus malabarismos bíblico-teológicos para escancarar o seu apoio a um candidato que apoia abertamente a tortura e a eliminação de grupos divergentes. 

Qual o sentido de um cristão apoiar um candidato que se dizendo cristão, faz apologia à TORTURA??? 

Não há sentido bíblico, ao menos não à luz da pessoa e das obras do Jesus de Nazaré. Como combinar “Bandido bom é bandido morto” com o “Ouvistes o que foi dito: ‘Amarás o teu próximo e odiarás o teu inimigo’. Eu, porém, vos digo: Amai os vossos inimigos e orai pelos que vos perseguem” (Mt. 5:43-44)? Simplesmente não dá para “esticar” o texto para desdizer o óbvio ululante. Ou você apoia o candidato-torturador e abre mão de ser discípulo do nazareno, ou vice-versa. 

Não há, certamente, um sentido lógico. Minimamente uma reflexão lógica há de nos fazer refletir que, por exemplo, dois erros não fazem um acerto. Não é possível achar que por termos uma situação de violência vamos aumentar a violência para diminuir a violência. Não faz sentido.

Não há sentido ético. Se pensamos ética como uma busca pela realização humana, como é possível combiná-la com ideais de eliminação da diferença, imposição de uma moral estrita, e falta de respeito às diferenças? 

Resta o sentido histórico... Sim, talvez seja isso. Pois se lembrarmos que grandes porções dos “cristãos” ao longo da história apoiaram as Cruzadas, apoiaram a Inquisição, participaram das Guerras de Religião, da Caça às Bruxas, estiveram do lado de Hitler e de Mussolini, participaram e participam da “guerra contra o mal” empreendida pelo “gigante protestante” que são os EUA, matando com bombas e disfarçando com bíblias...

Sim, sim... Há um sentido histórico naqueles que cantam louvores ao Jesus, preso, torturado e morto como um bandido entre bandidos, mas que apoiam os torturadores e seus apoiadores de plantão. Talvez retorne aqui a frase de Nietzsche, que dizia lavar as mãos depois de apertar as mãos de um cristão. No caso atual, talvez seja por que essas mãos estão cobertas de sangue.

Joel Zeferino é pastor na Igreja Batista Nazareth

"I have a dream!"

“Estou feliz em me unir a vocês hoje naquela que ficará para a história como a maior manifestação pela liberdade na história de nossa nação.



Cem anos atrás um grande americano, em cuja sombra simbólica nos encontramos hoje, assinou a proclamação da emancipação [dos escravos]. Este decreto momentoso chegou como grande farol de esperança para milhões de escravos negros queimados nas chamas da injustiça abrasadora. Chegou como o raiar de um dia de alegria, pondo fim à longa noite de cativeiro.

Mas, cem anos mais tarde, o negro ainda não está livre. Cem anos mais tarde, a vida do negro ainda é duramente tolhida pelas algemas da segregação e os grilhões da discriminação. Cem anos mais tarde, o negro habita uma ilha solitária de pobreza, em meio ao vasto oceano de prosperidade material. Cem anos mais tarde, o negro continua a mofar nos cantos da sociedade americana, como exilado em sua própria terra. Então viemos aqui hoje para dramatizar uma situação hedionda.

Em certo sentido, viemos à capital de nossa nação para sacar um cheque. Quando os arquitetos de nossa república redigiram as magníficas palavras da Constituição e da Declaração de Independência, assinaram uma nota promissória de que todo americano seria herdeiro. Essa nota era a promessa de que todos os homens, negros ou brancos, teriam garantidos os direitos inalienáveis à vida, à liberdade e à busca pela felicidade.

É evidente hoje que a América não pagou esta nota promissória no que diz respeito a seus cidadãos de cor. Em lugar de honrar essa obrigação sagrada, a América deu ao povo negro um cheque que voltou marcado “sem fundos”.

Mas nós nos recusamos a acreditar que o Banco da Justiça esteja falido. Nos recusamos a acreditar que não haja fundos suficientes nos grandes depósitos de oportunidade desta nação. Por isso voltamos aqui para cobrar este cheque –um cheque que nos garantirá, a pedido, as riquezas da liberdade e a segurança da justiça.

Também viemos para este lugar santificado para lembrar à América da urgência ferrenha do agora. Não é hora de dar-se ao luxo de esfriar os ânimos ou tomar a droga tranquilizante do gradualismo. Agora é a hora de fazermos promessas reais de democracia. Agora é a hora de sairmos do vale escuro e desolado da segregação para o caminho ensolarado da justiça racial. É hora de arrancar nossa nação da areia movediça da injustiça racial e levá-la para a rocha sólida da fraternidade. Agora é a hora de fazer da justiça uma realidade para todos os filhos de Deus.

Seria fatal para a nação passar por cima da urgência do momento e subestimar a determinação do negro. Este verão sufocante da insatisfação legítima do negro não passará enquanto não chegar um outono revigorante de liberdade e igualdade. Mil novecentos e sessenta e três não é um fim, mas um começo.

Os que esperam que o negro precisasse apenas extravasar e agora ficará contente terão um despertar rude se a nação voltar à normalidade de sempre. Não haverá descanso nem tranquilidade na América até que o negro receba seus direitos de cidadania. Os turbilhões da revolta continuarão a abalar as fundações de nossa nação até raiar o dia iluminado da justiça.

Mas há algo que preciso dizer a meu povo posicionado no morno liminar que conduz ao palácio da justiça. No processo de conquistar nosso lugar de direito, não devemos ser culpados de atos errados. Não tentemos saciar nossa sede de liberdade bebendo do cálice da amargura e do ódio.

Temos de conduzir nossa luta para sempre no alto plano da dignidade e da disciplina. Não devemos deixar nosso protesto criativo degenerar em violência física. Precisamos nos erguer sempre e mais uma vez à altura majestosa de combater a força física com a força da alma.

A nova e maravilhosa militância que tomou conta da comunidade negra não deve nos levar a suspeitar de todas as pessoas brancas, pois muitos de nossos irmãos, conforme evidenciado por sua presença aqui hoje, acabaram por entender que seu destino está vinculado ao nosso destino e que a liberdade deles está vinculada indissociavelmente à nossa liberdade.

Não podemos caminhar sozinhos.

E, enquanto caminhamos, precisamos fazer a promessa de que caminharemos para frente. Não podemos retroceder. Há quem esteja perguntando aos devotos dos direitos civis ‘quando vocês ficarão satisfeitos?’. Jamais estaremos satisfeitos enquanto o negro for vítima dos desprezíveis horrores da brutalidade policial.

Jamais estaremos satisfeitos enquanto nossos corpos, pesados da fadiga de viagem, não puderem hospedar-se nos hotéis de beira de estrada e nos hotéis das cidades. Não estaremos satisfeitos enquanto a mobilidade básica do negro for apenas de um gueto menor para um maior. Jamais estaremos satisfeitos enquanto nossas crianças tiverem suas individualidades e dignidades roubadas por cartazes que dizem ‘exclusivo para brancos’.

Jamais estaremos satisfeitos enquanto um negro no Mississippi não puder votar e um negro em Nova York acreditar que não tem nada em que votar.

Não, não estamos satisfeitos e só ficaremos satisfeitos quando a justiça rolar como água e a retidão correr como um rio poderoso.

Sei que alguns de vocês aqui estão, vindos de grandes provações e atribulações. Alguns vieram diretamente de celas estreitas. Alguns vieram de áreas onde sua busca pela liberdade os deixou feridos pelas tempestades da perseguição e marcados pelos ventos da brutalidade policial. Vocês têm sido os veteranos do sofrimento criativo. Continuem a trabalhar com a fé de que o sofrimento imerecido é redentor.

Voltem ao Mississippi, voltem ao Alabama, voltem à Carolina do Sul, voltem a Geórgia, voltem a Louisiana, voltem aos guetos e favelas de nossas cidades do norte, cientes de que de alguma maneira a situação pode ser mudada e o será. Não nos deixemos atolar no vale do desespero.

Digo a vocês hoje, meus amigos, que, apesar das dificuldades de hoje e de amanhã, ainda tenho um sonho.

É um sonho profundamente enraizado no sonho americano.

Tenho um sonho de que um dia esta nação se erguerá e corresponderá em realidade o verdadeiro significado de seu credo: ‘Consideramos essas verdades manifestas: que todos os homens são criados iguais’.

Tenho um sonho de que um dia, nas colinas vermelhas da Geórgia, os filhos de ex-escravos e os filhos de ex-donos de escravos poderão sentar-se juntos à mesa da irmandade.

Tenho um sonho de que um dia até o Estado do Mississippi, um Estado desértico que sufoca no calor da injustiça e da opressão, será transformado em um oásis de liberdade e de justiça.

Tenho um sonho de que meus quatro filhos viverão um dia em uma nação onde não serão julgados pela cor de sua pele, mas pelo teor de seu caráter.

Tenho um sonho hoje.

Tenho um sonho de que um dia o Estado do Alabama, cujo governador hoje tem os lábios pingando palavras de rejeição e anulação, será transformado numa situação em que meninos negros e meninas negras poderão dar as mãos a meninos brancos e meninas brancas e caminharem juntos, como irmãs e irmãos.

Tenho um sonho hoje.

Tenho um sonho de que um dia cada vale será elevado, cada colina e montanha será nivelada, os lugares acidentados serão aplainados, os lugares tortos serão endireitados, a glória do Senhor será revelada e todos os seres a enxergarão juntos.

Essa é nossa esperança. Essa é a fé com a qual retorno ao Sul. Com esta fé poderemos talhar da montanha do desespero uma pedra de esperança. Com esta fé poderemos transformar os acordes dissonantes de nossa nação numa bela sinfonia de fraternidade. Com esta fé podemos trabalhar juntos, orar juntos, lutar juntos, ir à cadeia juntos, defender a liberdade juntos, conscientes de que seremos livres um dia.

Esse será o dia em que todos os filhos de Deus poderão cantar com novo significado: “Meu país, é de ti, doce terra da liberdade, é de ti que canto. Terra em que morreram meus pais, terra do orgulho do peregrino, que a liberdade ressoe de cada encosta de montanha”.

E, se quisermos que a América seja uma grande nação, isso precisa se tornar realidade.

Então que a liberdade ressoe dos prodigiosos picos de New Hampshire.

Que a liberdade ecoe das majestosas montanhas de Nova York!

Que a liberdade ecoe dos elevados Alleghenies da Pensilvânia!

Que a liberdade ecoe das nevadas Rochosas do Colorado!

Que a liberdade ecoe das suaves encostas da Califórnia!

Mas não só isso – que a liberdade ecoe da Montanha de Pedra da Geórgia!

Que a liberdade ecoe da Montanha Sentinela do Tennessee!”

Que a liberdade ecoe de cada monte e montículo do Mississippi. De cada encosta de montanha, que a liberdade ecoe.

E quando isso acontecer, quando deixarmos a liberdade ecoar, quando a deixarmos ressoar em cada vila e vilarejo, em cada Estado e cada cidade, poderemos trazer para mais perto o dia que todos os filhos de Deus, negros e brancos, judeus e gentios, protestante e católicos, poderão se dar as mãos e cantar, nas palavras da velha canção negra, “livres, enfim! Livres, enfim! Louvado seja Deus Todo-Poderoso. Estamos livres, enfim!”.

Fonte do texto: Discurso de Martin Luther King
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Em 28 de agosto de 1963, o pastor e líder do movimento contra a segregação racial nos Estados Unidos Martin Luther King discursou sobre seu sonho de uma América (e um mundo) com igualdade entre negros e brancos. O discurso foi proferido em Washington, durante uma marcha que reuniu cerca de 250 mil pessoas contra as políticas racistas e pelos direitos civis dos negros nos Estados Unidos. Suas palavras ecoaram em um contexto de divisão e segregação racial no país que se colocava como moderno e como liderança mundial. Enquanto os norte-americanos possuíam as mais avançadas tecnologias e armas, negros eram impedidos de dividir espaços com brancos, o casamento entre negros e brancos era proibido e jovens afrodescendentes tinham acesso limitado à educação. Na Guerra Fria, os Estados Unidos faziam a propaganda de que aquele era o regime e o país onde todos gostariam de viver – exceto os negros, que tinham de se limitar aos assentos reservados nos ônibus. Desde que o pastor proferiu seu discurso há 50 anos, muitas leis segregacionistas foram derrubadas no país e muitos direitos foram garantidos aos negros. Ainda assim, as palavras do homem que virou símbolo da luta por vias não-violentas ainda têm a mesma força e urgência das décadas passadas.
A tradução é de Clara Allain.