Os Testamentos

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"O Hológrafo de Árdua Hall

Apenas os mortos têm permissão para ter estátuas, mas eu ganhei uma ainda em vida. Eu já estou petrificada.

Aquela estátua era um pequeno sinal de agradecimento por minhas várias contribuições, dizia o discurso, que foi lido pela Tia Vidala. Ela fora incumbida dessa tarefa pelos nossos superiores e estava longe de transmitir entusiasmo. Agradeci-lhe com o máximo de modéstia que pude e puxei a corda que desatava o manto que me encobria; ele flutuou morosamente ao chão, e lá estava eu. Aqui em Ardua Hall não se ovaciona ninguém, mas ouviu-se uma discreta salva de palmas. Inclinei minha cabeça em agradecimento.

A minha estátua é algo descomunal, como tende a ser toda estátua, e me retrata mais jovem, mais magra e em melhor forma do que tenho estado há tempos. Estou ereta, ombros para trás, meus lábios curvos num sorriso firme, mas benevolente. Meus olhos se fixam em algum ponto de referência cósmico que se presume representar meu idealismo, meu compromisso inabalável com o dever, minha determinação em seguir em frente a despeito de qualquer obstáculo. Não que qualquer parte do céu esteja à vista da minha estátua, plantada onde está, naquele melancólico aglomerado de árvores e arbustos ao lado da trilha de pedestres que passa em frente do Ardua Hall. Nós, as Tias, não podemos ter grandes pretensões, mesmo em forma de pedra.

Agarrada à minha mão esquerda há uma menina de sete ou oito anos, mirando-me cheia de confiança. Minha mão direita está apoiada na cabeça de uma mulher agachada a meu lado, de cabelos cobertos, seus olhos voltados para cima em uma expressão que poderia ser lida tanto como amedrontada quanto como grata – uma de nossas Aias –, e atrás de mim há uma de minhas Pérolas, pronta para partir em seu trabalho missionário. Pendendo do cinto que contorna minha cintura está minha arma de choque. Esta arma me lembra de minhas limitações: se eu tivesse sido mais eficiente, não teria necessitado desse acessório. A persuasão da minha voz teria sido suficiente.

Como grupo estatuário, não somos um grande sucesso: há elementos demais. Eu preferiria uma maior ênfase na minha pessoa. Mas pelo menos eu pareço estar em meu perfeito juízo. Poderia ter sido bem outro o caso, dado que a escultora idosa – uma crente fervorosa que veio a falecer – tendia a esbugalhar os olhos das modelos para sinalizar devoção. O busto que ela fez da Tia Helena tem ares de hidrofobia, o de Tia Vidala está com hipertireoidismo, e o de Tia Elizabeth parece prestes a explodir.

Na inauguração, a escultora estava nervosa. Será que havia me adulado o suficiente com sua escultura? Eu a aprovava? As pessoas iam entender que aprovei? Cogitei franzir a testa assim que o manto caísse, mas achei melhor não: não sou totalmente destituída de compaixão.

– Ficou muito realista – falei.

Isso foi há nove anos. Desde esse dia minha estátua vem se deteriorando: pombos me adornaram, musgo brotou nas minhas dobras mais úmidas. Devotos adquiriram o hábito de deixar oferendas a meus pés: ovos pela fertilidade, laranjas para sugerir a corpulência da gravidez, croissants em referência à lua. Ignoro os artigos de padaria – geralmente eles pegaram chuva –, mas embolso as laranjas. Laranjas são muito refrescantes.

Escrevo essas palavras no meu gabinete particular dentro da biblioteca do Ardua Hall – uma das poucas bibliotecas restantes após as animadas fogueiras de livros que têm ocorrido em nossa terra. As digitais pútridas e ensanguentadas do passado precisam ser expurgadas para deixar uma tábula rasa para a geração moralmente pura que com certeza vai nos suceder. Em teoria, pelo menos, é isso.

Mas entre estas digitais sangrentas estão as que nós mesmos deixamos, e estas não são tão fáceis de apagar. Com o passar dos anos enterrei muitos ossos; agora minha vontade é de exumá-los – nem que seja só para te edificar, meu leitor desconhecido. Se você estiver lendo isso, pelo menos este manuscrito terá sobrevivido. Embora talvez eu esteja fantasiando: talvez eu nunca venha a ter um leitor. Talvez eu só esteja falando com as paredes, ou muros, em todos os sentidos.

Chega de escrevinhar por hoje. Minha mão está doendo, minhas costas ardendo, e meu copo noturno de leite morno me aguarda. Vou guardar essa arenga no seu devido esconderijo, evitando as câmeras de vigilância – que sei bem onde estão, já que eu mesma as instalei. Apesar dessas precauções, estou ciente do risco que corro: escrever pode ser perigoso. Que traições, e então que acusações, podem estar à minha espera? Há muita gente em Ardua Hall que adoraria se apoderar dessas páginas.

Aguardem, aconselho-os silenciosamente: pois vai ficar pior."
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'Os Testamentos', continuação de 'O Conto da Aia', escrita por Margaret Atwood

The Handmaid's Tale - Cena do Protesto (Repost)

O Conto da Aia de Margaret Atwood (Repost)


A canadense Margaret Atwood, autora de O Conto da Aia, sempre gostou de afirmar que sua obra não é exatamente ficção científica, mas sim ficção especulativa, asseverando que, enquanto a primeira lida com elementos que a Humanidade ainda não pode fazer ou alcançar, de uma forma ou de outra, a segunda transporta o que a Humanidade já faz ou tem a capacidade de fazer para um cenário hipotético. Apesar de a ficção científica ser uma espécie do gênero ficção especulativa, essa diferenciação é sim importante para a compreensão do que a autora pretendeu aqui.

Lançada em 1985, a história se passa em um futuro distópico em que os Estados Unidos tornaram-se uma ditadura militar teocrática comandada por homens que anularam completamente a mulher, que não passam de seres categorizados como esposas, oficialmente as mulheres dos homens de posse, Martas, o que hoje são as empregadas domésticas e as aias, que têm a função de gerar filhos. Há outros tipos ainda, como as “econo-esposas”, mas que não são exploradas a fundo na obra. O fato é que, nesse “futuro” a mulher foi reduzida a funções pré-determinadas sem que possam fugir delas.

Com essa breve descrição, já é perfeitamente possível entender o que Atwood procurou fazer. Religiões fundamentalistas – e, aqui, o exemplo mais atual é a muçulmana, sem dúvida – já de certa forma categorizam suas mulheres, com muitos países proibindo que elas estudem, que elas cresçam independente de uma figura masculina ou mesmo que mostrem seu rosto e seus cabelos livremente (e não me venham dizer que proibir a mulher de mostrar o cabelo é alguma coisa diferente de deixar clara sua submissão ao homem). Se olharmos para o passado – e Atwood também bebe daí, já que o Puritanismo é uma de suas fontes mais claras para os trajes das aias – veremos a repetição disso em outras religiões, em um ciclo vicioso assustador.

E o que ela faz é transplantar o que ela vê ao seu redor em diversas regiões do mundo hoje (ou quando ela redigiu a obra, só para ser mais exato) para os Estados Unidos, ou, aqui, República de Gilead, imaginando uma situação em que um conflito de bases religiosas instaurou-se, tornando o país uma ditadura nos moldes acima e em que, por questões explicadas apenas muito brevemente, a taxa de natalidade caiu alarmantemente, tornando as aias tão importantes nesse cenário apocalíptico. Tenho sido propositalmente críptico na função de uma aia no romance, pois Atwood constrói essa revelação muito vagarosamente em seu texto, não porque é um plot twist ou uma revelação que muda os rumos narrativos, mas sim porque ela trabalha do pressuposto de que a narradora – uma aia – já sabe de sua função e não “corre” para nos contar, mas é impossível fazer uma crítica sem abordar esse elemento, que é da essência da obra.

Nesse futuro distópico, a aia, que usa uma vestimenta vermelha inspirada nos figurinos femininos da época da colonização americana, inclusive com um chapéu que cobre seus cabelos completamente e também sua visão periférica – têm a única função de ser fecundada, engravidar e parir uma criança. O “fecundador” é, via de regra, o marido de uma das “esposas” – normalmente mulheres que já não podem mais ter filhos em razão da idade ou outro fator – e a aia não tem escolha alguma. Na verdade, tem: ela pode se recusar e ser mandada para as “colônias”, o que é sinônimo de alguma forma de extermínio protraído no tempo.

Em outras palavras, apesar de serem aparentemente bem cuidadas por seus “senhores”, as aias são ritualisticamente estupradas pelos Comandantes (assim são chamados os maridos das esposas) e, quando engravidam e têm filhos, eles são cuidados exclusivamente pelas esposas. É a institucionalização do estupro debaixo de uma interpretação perversa do texto do Velho Testamento e sob a rubrica de “segurança da mulher” causada por uma alegada liberação sexual que teria gerado a cultura de contraceptivos, promiscuidade e violência. E, quando menciono “ritualisticamente”, é porque há mesmo um ritual que antecede o coito – com direito à leitura da Bíblia – que ocorre diante da “esposa” e em que o prazer de qualquer parte é veementemente proibido.

Para contar essa terrível história, Atwood usa única e exclusivamente a narrativa em primeira pessoa de uma aia que permanece sem nome, como todas as aias. Aliás, sem nome não. Ela se chama Offred (inclusive na tradução em português, por razões que não consigo entender) que é algo mais tenebroso do que meramente um nome. Offred significa Of Fred ou, em português, “De Fred”, transformando a aia em uma propriedade de um homem em um mundo em que a mulher realmente não é muito diferente do que um objeto ornamental ou, no máximo, com muita boa vontade, um animal de estimação.

Mas, ao usar esse recurso da primeira pessoa, Atwood brinca com as expectativas e mantém o leitor constantemente engajado. Offred, uma aia de primeira geração, ou seja, que se lembra do mundo pré-Gilead, conta sua história de seu próprio jeito e, como toda a memória, parte de lembranças imperfeitas de seu passado, além de capítulos não necessariamente cronológicos. Com isso, aprendemos vagarosamente quem ela é e como ela foi parar ali, como foi seu “treinamento” (o correto seria lavagem cerebral) para aceitar toda essa submissão e aos poucos vamos então vendo esse mundo além das abas do chapéu branco da aia narradora. E é um mundo simplesmente aterrador, daqueles que por diversas vezes dá vontade ao mesmo tempo de fechar o livro e continuar lendo vorazmente, em uma daquelas contradições que só fazem sentido realmente mergulhando na história.

E a perseverança é muito bem retribuída por Atwood, que consegue, de maneira simples, mas muito eficaz, não só estabelecer o cenário completo e crível que  levou a essa mundo distópico como, também, usar artifícios narrativos que manobram nossa percepção de Offred. Sem entrar em muitos detalhes, basta dizer que a autora é capaz de nos oferecer visões de “segunda” mão de situações que Offred apenas ouviu falar, costurando-as muito bem dentro da estrutura em primeira pessoa. Além disso, por muitas vezes somos convidados a duvidar de algumas situações que ela descreve, quase tornando-a uma narradora não confiável em determinados momentos, o que instiga o leitor a continuar em sua jornada de leitura.

Além disso, Atwood não é maniqueísta e não torna as conclusões fáceis para o leitor. Quando ela trata da condição da mulher nessa sociedade (não tão)futurista, ela encaixa elementos da atualidade como pontos usados pelo poder estabelecido para justificar o porquê de tudo. De certa forma, é possível ver críticas da autora até mesmo ao feminismo radical e do politicamente correto excessivo. Basta, para isso, que o leitor saia do dizem que ele deve esperar do livro e comece a perceber as entrelinhas do que ela escreve. E não, de forma alguma quero afirmar que o livro não é um alerta a algo que pode vir a acontecer se não estivermos alertas – e não falo só de EUA aqui -, mas sim que Atwood é mais inteligente do que alguém que só escreve o que se quer ler. Ela vai além e toca profundamente em vaidades, em consumismo, em egocentrismo, em preconceitos e diversas outras questões que, por intermédio de sua Offred, ela vai abordando sem nunca se valer de didatismo e de forma alguma subestimando o leitor.

O Conto da Aia é leitura obrigatória. Mas fica um aviso: o cenário hipotético criado por Margaret Atwood está mesmo ali na esquina, pelo que a obra é uma leitura que machuca a cada virada de página, mas a dor, aqui, é necessária e, mais do que isso, instrutiva.

O Conto da Aia (The Handmaid’s Tale, Canadá)
Autora: Margaret Atwood
Editora original: McClelland and Stewart
Data original de publicação: 1985
Editoras no Brasil: Editora Marco Zero, Editora Rocco
Datas de publicação no Brasil: 1987 (Marco Zero), 2006 e 2017 (Rocco)
Tradução: Ana Deiró (edição da Rocco)
Páginas: 368 (edição da Rocco)


Ritter Fan
Fonte: http://www.planocritico.com/critica-o-conto-da-aia-the-handmaids-tale-de-margaret-atwood/

Alívio após uma doença


Jair acordou a meio da noite. Mandara colocar uma cama dentro do closet e era ali que dormia. Durante o dia tirava a cama, instalava uma secretária e recebia os filhos, os ministros e os assessores militares mais próximos.

Alguns estranhavam. Entravam tensos e desconfiados no armário, esforçando-se para que os seus gestos não traíssem nenhum nervosismo. Interrogado a respeito pela Folha de São Paulo, o deputado Major Olímpio, que chegou a ser muito próximo de Jair, tentou brincar: “Não estou sabendo, mas não vou entrar em armário nenhum. Isso não é hétero.” Michelle, que também se recusava a entrar no armário, fosse de dia ou de noite, optou por dormir num outro quarto do Palácio da Alvorada.

Aliás, o edifício já não se chamava mais Palácio da Alvorada. Jair oficializara a mudança de nome: “Alvorada é coisa de comunista!” — Esbravejara: “Certamente foi ideia desse Niemeyer, um esquerdopata sem vergonha.”

O edifício passara então a chamar-se Palácio do Crepúsculo. O Presidente tinha certa dificuldade em pronunciar a palavra, umas vezes saía-lhe grupúsculo, outras prepúcio, mas achava-a sólida, máscula, marcial. Ninguém se opôs.

Naquela noite, pois, Jair Messias Bolsonaro despertou dentro de um closet, no Palácio do Crepúsculo, com uma gargalhada escura rompendo das sombras. Sentou-se na cama e com as mãos trêmulas procurou a glock 19, que sempre deixava sob o travesseiro.

— Largue a pistola, não vale a pena!

A voz era rouca, trocista, com um leve sotaque baiano. Jair segurou a glock com ambas as mãos, apontando-a para o intenso abismo à sua frente:

— Quem está aí?

Viu então surgir um imenso veado albino, com uma armação incandescente e uns largos olhos vermelhos, que se fixaram nos dele como uma condenação. Jair fechou os olhos. Malditos pesadelos.

Vinha tendo pesadelos há meses, embora fosse a primeira vez que lhe aparecia um veado com os cornos em brasa. Voltou a abrir os olhos. O veado desaparecera. Agora estava um índio velho à sua frente, com os mesmos olhos vermelhos e acusadores:

— Porra! Quem é você?

— Tenho muitos nomes. — Disse o velho. — Mas pode me chamar Anhangá.

— Você não é real!

— Não?

— Não! É a porra de um sonho! Um sonho mau!

O índio sorriu. Era um sorriso bonito, porém nada tranquilizador. Havia tristeza nele. Mas também ira. Uma luz escura escapava-lhe pelas comissuras dos lábios:

— Em todo o caso, sou seu sonho mau. Vim para levar você.

— Levar para onde, ô paraíba? Não saio daqui, não vou para lugar nenhum.

— Vou levar você para a floresta.

— Já entendi. Michelle me explicou esse negócio dos pesadelos. Você é meu inconsciente querendo me sacanear. Quer saber mesmo o que acho da Amazônia?! Quero que aquela merda arda toda! Aquilo é só árvore inútil, não tem serventia. Mas no subsolo há muito nióbio. Você sabe o que é nióbio? Não sabe porque você é índio, e índio é burro, é preguiçoso. O pessoal faz cordãozinho de nióbio. As vantagens em relação ao ouro são as cores, e não tem reação alérgica. Nióbio é muito mais valioso que o ouro.

O índio sacudiu a cabeça, e agora já não era um índio, não era um veado — era uma onça enfurecida, lançando-se contra o presidente:

— Acabou!

Anhangá colocou um laço no pescoço de Jair, e no instante seguinte estavam ambos sobre uma pedra larga, cercados pelo alto clamor da floresta em chamas. Jair ergueu-se, aterrorizado, os piscos olhos incrédulos, enquanto o incêndio avançava sobre a pedra:

— Você não pode me deixar aqui. Sou o presidente do Brasil!

— Era. — Rugiu Anhangá, e foi-se embora.

Na manhã seguinte, o ajudante de ordens entrou no closet e não encontrou o presidente. Não havia sinais dele. “Cheira a onça”, assegurou um capitão, que nascera e crescera numa fazenda do Pantanal. Ninguém o levou a sério.

Ao saber do misterioso desaparecimento do marido, Michelle soltou um fundo suspiro de alívio.

Os generais soltaram um fundo suspiro de alívio. Os políticos (quase todos) soltaram um fundo suspiro de alívio.

Os artistas e escritores soltaram um fundo suspiro de alívio. Os gramáticos e outros zeladores do idioma, na solidão dos respetivos escritórios, soltaram um fundo suspiro de alívio.

Os cientistas soltaram um fundo suspiro de alívio. Os grandes fazendeiros soltaram um fundo suspiro de alívio.

Os pobres, nos morros do Rio de Janeiro, nas ruas cruéis de São Paulo, nas palafitas do Recife, soltaram um fundo suspiro de alívio.

As mães de santo, nos terreiros, soltaram um fundo suspiro de alívio.

Os gays, em toda a parte, soltaram um fundo suspiro de alívio.

Os índios, nas florestas, soltaram um fundo suspiro de alívio.

As aves, nas matas, e os peixes, nos rios e no mar, soltaram um fundo suspiro de alívio.

O Brasil, enfim, soltou um fundo suspiro de alívio — e a vida recomeçou, como se nunca, à superfície do planeta Terra, tivesse existido uma doença chamada Jair Messias Bolsonaro.

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Publicado originalmente na revista “Visão” de Portugal. Reproduzido no blog do Juca Kfouri.
Por José Eduardo Agualusa

Fonte: https://www.brasil247.com/cultura/escritor-angolano-descreve-o-triste-fim-de-jair-messias-bolsonaro?fbclid=IwAR3SKBlHl6s4WL5xjFvLRxpGvrN7u8GoLC_ZKDmUX3E3JchB5kZX5gMX1js

Way Down We Go

Father tell me, do we get what we deserve?
We get what we deserve?

And way down we go-o-o-o-o
Way down we go-o-o-o-o
Say way down we go
Way down we go

You let your feet run wild
Time has come as we all oh, go down
Yeah but for the fall oh, my
Do you dare to look him right in the eyes?

'Cause they will run you down, down til the dark
Yes and they will run you down, down til you fall
And they will run you down, down til you go
Yeah so you can't crawl no more

And way down we go-o-o-o-o
Way down we go
Say way down we go
'Cause they will run you down, down til you fall
Way down we go

Oh bab-bab-yeah
Wow baby-a-aha
Baby
Bab, down we go
Yeah

And way down we go-o-o-o-o
Way down we go
Say way down we go
Way down we go




Padre diga me, nós recebemos o que merecemos?
Nós recebemos o que merecemos?

E para baixo nós vamos
Para baixo nós vamos
Diga, para baixo nós vamos
Para baixo nós vamos

Você deixa seus pés correrem livresO tempo chegou assim como todos nós oh, cairmos
Sim mas, para a queda oh, meu
Você tem coragem de olhá-lo bem nos olhos?
Porque eles vão te derrubar, derrubar até a escuridão
Sim e eles vão te derrubar, derrubar até você cair
E eles vão te derrubar, derrubar até você partir
Sim, então você não pode rastrear mais

E para baixo nós vamos
Para baixo nós vamos
Diga, para baixo nós vamos
Porque eles vão te derrubar, derrubar até você cair
Para baixo nós vamos

Oh-bab bab-yeah
Wow baby-a-aha
Baby
Bab, para baixo nós vamos
Sim

E para baixo nós vamos
Para baixo nós vamos
Diga, para baixo nós vamos
Para baixo nós vamos.
[Kaleo - Compositor: Jökull Júlíusson]

Excelsior!



Henry Wadsworth Longfellow
(Ballads and Other Poems, 1842)

The shades of night were falling fast,
As through an Alpine village passed
A youth, who bore, ‘mid snow and ice,
A banner with the strange device,
Excelsior!

His brow was sad; his eye beneath,
Flashed like a falchion from its sheath,
And like a silver clarion rung
The accents of that unknown tongue,
Excelsior!

In happy homes he saw the light
Of household fires gleam warm and bright;
Above, the spectral glaciers shone,
And from his lips escaped a groan,
Excelsior!

“Try not the Pass!” the old man said;
“Dark lowers the tempest overhead,
The roaring torrent is deep and wide!
And loud that clarion voice replied,
Excelsior!

“Oh stay,” the maiden said, “and rest
Thy weary head upon this breast!”
A tear stood in his bright blue eye,
But still he answered, with a sigh,
Excelsior!

“Beware the pine-tree’s withered branch!
Beware the awful avalanche!”
This was the peasant’s last Good-night,
A voice replied, far up the height,
Excelsior!

At break of day, as heavenward
The pious monks of Saint Bernard
Uttered the oft-repeated prayer,
A voice cried through the startled air,
Excelsior!

A traveler, by the faithful hound,
Half-buried in the snow was found,
Still grasping in his hand of ice
That banner with the strange device,
Excelsior!

There in the twilight cold and gray,
Lifeless, but beautiful, he lay,
And from the sky, serene and far,
A voice fell, like a falling star,
Excelsior!


A noite com suas sombras cai depressa;
A aldeia alpina aos poucos atravessa
Um jovem, que ergue, em meio à neve em sanha,
Uma bandeira com a divisa estranha:
Excelsior!

Sua cor é triste, mas, sua vista alçada
Lembra uma espada desembainhada,
E a sua voz, qual clarim de prata erguida,
Lança os sons de uma língua nunca ouvida:
Excelsior!

Casas felizes ele vê brilhando
Ao fogo quente, familiar e brando;
Mais ao alto espectral geleira ao vento,
E de seus lábios escapa um lamento:
Excelsior!

“Não tentes a Passagem”, diz-lhe um velho,
“Já ergue a tormenta o seu manto vermelho,
Rugem as águas sem olhar que as sonde!”
E a alta voz de clarim só lhe responde:
Excelsior!

“Oh!, fica”, diz-lhe a virgem, “e em meu seio
Deita a fronte cansada sem receio!”
Nubla-lhe um pranto o olhar azul erguido,
Mas, ele ainda responde, com um gemido:
Excelsior!

“Teme os galhos na treva borrascosa!
Teme a uivante avalanche pavorosa!”
É o último boa-noite de quem fica,
E uma voz, longe, no alto, lhes replica:
Excelsior!

Nascido o Sol, no divino resguardo
Dos santos ermitões de São Bernardo,
Quando o salmo de sempre é repetido,
Uma voz grita no ar estremecido:
Excelsior!

Na neve, um viajor semi-enterrado,
Pela matilha fiel é encontrado,
Tendo em sua mão de gelo branca e lisa
A bandeira, com a estranha divisa:
Excelsior!

Lá, onde a noite fria e cinza pousa,
Sem vida, mas, tão belo ele repousa,
E do céu, sereníssima e clemente,
Desce uma voz, como estrela cadente:
Excelsior!

[Tradução para o português de Alexei Bueno]

Trotsky na Netflix


Acaba de chegar aos telespectadores brasileiros a série Trotsky, exibida pela Netflix. Ela é original da Rússia, foi produzida pela TV Pevry Kanal sob a direção-geral de Konstantin Ernst e tem a produção de Alexandre Tsekalo. No momento que soube da notícia que a Netflix iria exibir a série, como admirador da figura política e intelectual, sobretudo por que o biografado desempenhou um importante papel junto com Lênin na condução da primeira revolução operária/camponesa duradoura, fiquei entusiasmado. Mas, fui advertido por colegas e pessoas que conhecem a história do processo revolucionário e também a vida e obra do criador do Exército Vermelho.

Mesmo com as advertências, fiz questão de assisti-la e comprovar o quanto é problemática do ponto de vista histórico e político, tanto no que se refere à biografia do personagem principal, como também à ambientação na qual lhe fez ser conhecido internacionalmente: a revolução russa. Portanto, confirmei que o enredo da série não é só reacionário politicamente, como também pratica indigência teórica e histórica do co-líder da revolução russa e o processo da revolução, ou seja, nem fatos históricos a série teve a dignidade de respeitar. Acredito que os erros sucessivos que aparecem ao longo dos episódios se dão por questão de escolha, e não por falta de conhecimento da produção do seriado. Basta uma pequena olhada na produção cinematográfica para perceber que teve um alto investimento e não foi feita com baixo orçamento. Sendo assim, seria muito tranquilo a produção contratar uma consultoria de historiadores sérios que não cometessem equívocos. Mas, como se trata deliberadamente de falsificar a história da revolução russa e, com isso, produzir grosserias, eles não se preocuparam nem um pouco com os fatos históricos.

O tamanho do absurdo que aparece ao longo da série faz inveja à grande maioria das produções anticomunistas de Hollywood durante a guerra fria. O fato é que trata-se da narrativa oficial do Governo Putin e daqueles que na derrocada da URSS espoliaram os meios de produção. O objetivo é a reescritura da história recente da Rússia.

Portanto, antes de relatar e desmentir algumas passagens da série (sim, algumas, pois se eu fosse tentar desfazer todas as mentiras e falsificações que existem nela, certamente este texto seria longo e cansativo para os leitores) queria elencar alguns pontos que considerei importante que a narrativa da série tenta inculcar naqueles que a assistem.

A primeira é a maneira como é retratada a vida e a personalidade de um dos principais dirigentes da revolução de Outubro. Trotsky é mostrado como um homem egoísta, ambicioso financeiramente, machista, tirano e sanguinário.

O segundo alvo das inverdades contidas no enredo da série localiza-se sobre o movimento socialista russo, sobretudo sobre o partido bolchevique, que é tratado como uma facção criminosa que só pensa em iludir o povo em beneficio dos seus dirigentes – especialmente Lênin, que é colocado como o chefe da máfia –, mostrando os debates dentro do partido não como embates de ideias e princípios socialistas, mas como uma disputa de egos para ver quem comandaria a facção. Em suma, a intenção é desmoralizar ao máximo o partido bolchevique, que liderou a revolução de Outubro.

A terceira e, para mim, o elemento principal do enredo reacionário da série, foi mostrar que a revolução russa foi um grande erro que só gerou violência e barbárie, indo ao ponto da série demonstrar que a atitude do partido que dirigiu a revolução foi motivada por dinheiro, e não pelo princípio da emancipação humana, que foi o significado maior daquele outubro de 1917. O fato é que a revolução não foi produzida pelo partido bolchevique, e não foi financiada pelo governo alemão (como mostra a série), mas, sim, pelos operários e camponeses que viram nas Teses de Abril de Lênin um programa de sua emancipação, e que atendiam suas reivindicações mais básicas e imediatas.

A primeira cena da série mostra a famosa imagem do trem blindado no qual Trotsky foi “morador” durante os tempos difíceis da guerra civil, quando foi comissário de guerra, organizador e comandante do Exército Vermelho. Assim, era imprescindível o transporte sob trilhos para coordenar essas tarefas. Em seguida, as câmeras focam o interior do Trem, com um Trotsky conversando com uma moça charmosa, vestida de modo pomposo, e fumando no interior do vagão. Seguem-se algumas palavras, beijos e sexo. Parece uma cena inocente, retratando um caso de extra-conjugal, porém é uma cena lastimável quando olhamos com mais rigor. A primeira observação é a de que o biógrafo de Trotsky mais gabaritado, Isaac Deutscher, não apresenta em nenhum momento que ele teve algum caso com uma moça chamada Larissa Reissnerque teria nascido na Polônia em 1895, se tornando socialista na Alemanha e que finalmente vai para a Rússia em 1917 acompanhar o processo revolucionário russo ao lado dos bolcheviques. Na invasão dos exércitos estrangeiros na Rússia, ela aceitou de prontidão se alistar nas fileiras do partido para defender a revolução dos ataques estrangeiros, e foi nesta tarefa que foi convidada a acompanhar e auxiliar Leon Trotsky na coordenação do Exército Vermelho. Mas a série a retrata como uma espécie de concubina de Trotsky, cujas atenções negligenciavam as tarefas principais do conflito,enquanto o mundo soviético desabava sob a guerra civil. Ou seja, mostra o co-líder da revolução como uma pessoa sem escrúpulos.

Posteriormente, a série dá uma guinada temporal para o México, país de seu último exílio. A cena que acabamos de descrever foi construída como uma espécie de memória do comandante do Exército Vermelho. A série então se desloca temporalmente para a apresentação do então namorado de sua secretária, de pseudônimo Jacson, que na realidade se chamava Ramón Mercader. Ao conhecer Trotsky (isto é, depois do atentado à sua vida pelos agentes stalinistas), Mercader começa a fazer uma série de entrevistas na casa do líder soviético. Porém, esta informação também não consta nas biografias sobre vida e a obra do líder revolucionário. Mas o processo de falsificação não para por aí. O enredo da série começa a mostrar que Jacson era um ferrenho defensor de Stálin, colocando-o em constante conflito com Trotsky. E ainda pior: com Trotsky sempre provocando-o, dando a ideia que Ramón assassinou-o não por motivos políticos, mas por questões pessoais. Se Jacson já se apresentou como um stalinista, então por que Trostsky iria manter amizade com ele, uma vez que Stálin já tinha mandado lhe assassinar? O fato é que o afã de desmoralizar Trotsky e o partido bolchevique foi tão grande, que até elementos de ficção foram utilizados.

A propósito da ficção,  um episódio que me chamou muita atenção: os encontros que Leon Trotsky teve com Sigmund Freud, o pai da psicanálise.Mas a ficção vai além.  também uma cena em que Freud entra em debate com o co-líder da revolução russa. Aquele lhe faz um diagnóstico de um homem obcecado pela revolução comunista a ponto de passar por cima de tudo e todos para atingir este objetivo. E, diga-se, que este objetivo é um projeto pessoal de Trotsky, e não o projeto de uma emancipação dos trabalhadores russos.

Para além das mentiras do diagnóstico de Trotsky feito por Freud nas cenas mencionadas, nunca houve um tal encontro entre os dois – nenhuma biografia minimamente séria sobre a vida e a obra do revolucionário russo menciona tal encontro. O problema não é utilizar-se de ficção. Basta que se anuncie que trata-se de uma obra de tal gênero. Porém, em entrevista ao site de O Globo, o produtor diz: “É difícil ser objetivo cem anos depois, mas tentamos produzir uma série fundamentada em acontecimentos reais”.

Na segunda e última parte deste texto, mostrarei as outras deformações do enredo referente à biografia de Trotsky e à revolução russa, concatenando uma resposta para os supostos motivos por detrás das falsificações grosseiras que a série produz, tanto contra Trotsky como contra a revolução de Outubro.

Jefferson Lopesmestre em História pela UFCG.