A persistência do mito

Depois de se consolidar nas publicações de obras de ficção do Oriente Médio, a editora Tabla dá mais um ousado passo adiante estreando na não ficção com o provocativo Dez mitos sobre Israel, de Ilan Pappe. Reconhecido como um dos “novos historiadores” israelenses, grupo de acadêmicos que realiza uma crítica contundente à criação do Estado de Israel e ao sionismo, Pappe dispensa apresentações óbvias e tietagens, ainda mais depois da publicação de A limpeza étnica da Palestina pela Sundermann em 2016. Ao associar o termo limpeza étnica, cunhada pelo sociólogo Michael Mann para descrever os acontecimentos da Guerra da Bósnia (1992-95), com a criação do Estado de Israel e a Nakba de 1948, Pappe sofreu duras perseguições e ameaças, o que o levou, em 2007, a trocar Israel pela Grã-Bretanha e a Universidade de Haifa pela Universidade de Exeter, onde leciona ciência política e dirige o Centro Europeu de Estudos sobre a Palestina.


Dez mitos sobre Israel foi publicado em 2017, nos cinquenta anos da Guerra de Junho de 1967 ou a “guerra sem escolha”, um desses dez mitos que Pappe se propõe a desconstruir. Em pouco mais de 250 páginas, a obra está composta de dois prefácios, um da edição de 2017 e outro para a edição brasileira, e divide-se em três partes: “As falácias do passado”, que trata de seis mitos (A Palestina era uma terra vazia, Os judeus eram um povo sem terra, Sionismo é judaísmo, Os palestinos deixaram sua pátria voluntariamente em 1948, A guerra de Junho de 1967 foi uma “guerra sem escolha”); “As falácias do presente”, que trata de três mitos (Israel é a única democracia do Oriente Médio; As mitologias de Oslo; As mitologias de Gaza); e “Olhando para o futuro” que trata do décimo mito (A solução de dois Estados é o único caminho a seguir), além de uma Conclusão (O Estado israelense de colonização de povoamento no século 21) e uma linha do tempo que tem a intenção de ajudar o leitor a identificar os acontecimentos narrados nos dez mitos.

Nessa obra, que é também uma denúncia, Pappe não se furta ao trabalho do historiador: apresenta suas fontes (cartas, documentos, atas de reuniões, relatórios, currículos escolares, artigos de jornais), confronta os dados, dialoga com a historiografia, debate as posições consolidadas, refuta as certezas e desconstrói os mitos sobre os quais o Estado de Israel foi edificado e tem se sustentado no passado e no presente e na sua projeção para o futuro.

Apoio interno e externo
O autor defende que a persistência do mito, sua solidez e a dificuldade de sua desconstrução residem no fato de estar consolidado não apenas em sua narrativa em Israel, para justificar e camuflar sua existência usurpadora, mas porque sempre teve e continua tendo respaldo e apoio interno e externo. De um lado o apoio de países como Grã-Bretanha e sua Declaração Balfour de 1917, e os Estados Unidos e seu protestantismo milenarista; de outro, a ajuda da mídia, da propaganda oficial, dos currículos escolares, dos textos didáticos, dos estudos bíblicos e da arqueologia bíblica que contribuíram para perpetuar uma definição do que era a Palestina mas não a quem ela pertencia, assim como para justificar a expropriação e a ocupação da terra e a desumanização do palestino, visto como usurpador e inimigo eterno.

Para Ilan Pappe há vários autores responsáveis pela criação dos mitos: claramente, Theodor Herzl e o movimento sionista, baseado na fundação de um Estado judeu na Palestina como uma resposta ao antissemitismo europeu; os primeiros colonos do Leste Europeu a ocuparem a “terra vazia”; os judeus comunistas e socialistas que igualaram sionismo ao comunismo; as nações colonialistas que atuaram em interesse próprio; os acadêmicos de grande projeção pública nas mídias e, sobretudo, a sociedade judaica de Israel que se calou, se omitiu e deu carta branca para que suas lideranças continuassem adotando uma política destrutiva sobre o povo palestino. Foi na construção desses mitos e na manutenção de sua narrativa que Israel tem legitimado suas ações e angariado apoio para consolidar sua presença na Palestina, e o direito ao retorno ao mesmo tempo em que nega aos palestinos esse mesmo direito. Assim, os palestinos são os estranhos, estrangeiros, usurpadores; os judeus são os povos originários, autênticos, nativos. A doença e a cura.

Ao analisar esses dez mitos, Pappe apresenta um novo vocabulário para definir a militância judaica na Palestina: Israel é um Estado de apartheid, uma etnocracia racista e judeificada que tem baseado suas ações no terror militar, nas atrocidades cotidianas, nas prisões, na guetificação, nos boicotes, nos bloqueios, na intolerância, no assédio, no abuso, na matança, na desumanização dos palestinos; a Nakba é limpeza étnica — e, não custa lembrar, um crime contra a humanidade —; sionismo é colonialismo e, portanto, ocupação é colonização. Para o autor, são mais de cem anos de violação de direitos humanos na Palestina sob a falsa bandeira da “única democracia do Oriente Médio” — democracia que, Pappe não cansa de reafirmar enfaticamente, se comporta como uma “ditadura da pior espécie” e “um dos regimes mais cruéis de nosso tempo”.

O autor não se contrapõe à ideia de que os povos têm direito de se inventarem — aliás, os mitos estão na origem de povos, nações e Estados ao longo da história da humanidade. Também não há limites numéricos para esses mitos, um ou dez, como os enumerados e dissecados por Pappe em relação a Israel. A questão é quando esses mitos, construídos para legitimar um povo ou um Estado, carregam consigo opressão, racismo, limpeza étnica e genocídio sobre outro povo e sobre um lado da história. Quando esses mitos legitimam narrativas criminosas e permitem que os crimes continuem a ser cometidos impunemente. Como afirma Edward Said em seu artigo “Permission to Narrate” (Permissão para narrar, 1984), que trata dos massacres de Sabra e Chatila e da responsabilidade de Israel na perpetração desse crime, deve-se levar em conta que quem tem a permissão de narrar tem legimitidade para narrar fatos, acontecimentos, mitos e memórias.

Pappe também denuncia a responsabilidade acadêmica dos intelectuais em transformar mitos em verdades, de colaborar com uma narrativa legitimadora de um lado da história ou, por que não dizer, falsificadora da história. Pappe intima o intelectual a se posicionar, o desafia a comprovar com pesquisas a narrativa que corrobora, a dizer o que deve ser dito, a não se omitir para não ser conivente. Ele está ciente de que é preciso coragem para “questionar os mitos fundadores de seu próprio Estado e sociedade”, pois como Said enfatiza em Representações do intelectual (2005), o intelectual deve ser comprometido com o que faz e com o que diz, deve ter ousadia e coragem para se expor, deve causar embaraço, deve ter compromisso e assumir riscos.

Ao ler Dez mitos sobre Israel podemos perceber que Pappe é um intelectual comprometido com seu papel na sociedade, ou melhor, na humanidade, pois não lhe falta coragem para apontar, questionar, destrinchar, desconstruir e denunciar os dez mitos sobre Israel. Em tempo de guerra de narrativas, história oficial, pós-verdades, mitos e contramitos, talvez um título opcional e muito apropriado para essa obra fosse: Dez fake news de Israel sobre a Palestina e os palestinos. É preciso ter coragem. A coragem da verdade, como nos lembra Michel Foucault.


40 anos de Sabra e Chatila:

 

Há 40 anos, na noite de 16 de Setembro de 1982, milícias falangistas cristãs libanesas invadiram os campos de refugiados palestinos de Sabra e Chatila, nos arredores de Beirute, com o apoio do exército israelita que, desde Junho, ocupava a capital do Líbano.

Durante dois dias, os falangistas, instigados por Israel, levaram a cabo um hediondo massacre de que resultaram numerosas vítimas palestinas, em grande parte mulheres e crianças.

Soldados israelitas cercaram os campos para impedir que os refugiados saíssem, e durante a noite disparavam foguetes luminosos para ajudar a ação dos criminosos falangistas. Ao fim dos dois dias de massacre, Israel forneceu os buldózeres para cavar valas comuns.

O número exato de vítimas é difícil de determinar pois, além do milhar de corpos enterrados em valas comuns, muitas vítimas ficaram soterradas nas casas derrubadas a buldózer pelas milícias e centenas de palestinos foram por elas levados para destino desconhecido de onde nunca regressaram. Uma estimativa credível aponta para 3500 vítimas.

Um cenário de horror
O massacre foi de uma barbaridade inaudita. Ao entrar no campo de Chatila no dia 19, a jornalista americana Janet Lee Stevens deparou-se com a cena de corpos com membros e cabeças cortadas, alguns rapazes castrados, corpos retalhados com cruzes. "Vi mulheres mortas nas suas casas com as saias levantadas até a cintura e as pernas abertas; dezenas de jovens mortos a tiro depois de terem sido alinhados contra uma parede; crianças com a garganta cortada, uma mulher grávida com a barriga esventrada, de olhos ainda muito abertos, o rosto enegrecido gritando silenciosamente de horror; inúmeros bebés e crianças pequenas que tinham sido esfaqueadas ou despedaçadas e que tinham sido atiradas para pilhas de lixo."

Robert Fisk descreve um cenário de horror: "O que encontrámos no campo palestino de Chatila às 10 da manhã de 18 de Setembro, desafia qualquer descrição (…) Havia mulheres jazendo nas suas casas com as saias rasgadas até ao peito e as pernas todas abertas, crianças com as gargantas cortadas, filas de jovens baleados nas costas depois de alinhados numa parede de execução. Havia bebés (…) cujos corpos tinham sido lançados para pilhas de lixo, juntamente com latas vazias de rações do exército americano, equipamento médico do exército de Israel e garrafas vazias de whisky. (…). Havia uma pilha de corpos, mais de uma dúzia de jovens (…) mortos à queima-roupa (…) um tinha sido castrado (…) o mais novo teria só 12 ou 13 anos. (…). Encontrámos os corpos de cinco mulheres e várias crianças (…) Uma das mulheres tinha um bebé ao colo. A bala que lhe atravessou o peito matou também o bebé."

No seu ensaio Avenging Sabra and Shatila, citado por Ramzy Baroud em artigo recente evocativo da efeméride, Kifah Sobhi Afifi descreveu o ataque conjunto falangista-israelita ao seu campo de refugiados quando ela tinha apenas 12 anos de idade. "Por isso fugimos, tentando ficar o mais perto possível dos muros do campo. Foi então que vi as pilhas de cadáveres por todo o lado. Crianças, mulheres e homens, mutilados ou a gemer de dor enquanto morriam. As balas voavam por todo o lado. As pessoas estavam a cair à minha volta. Vi um pai a usar o seu corpo para proteger os seus filhos, mas eles foram todos alvejados e mortos na mesma".

As reações internacionais
No mesmo artigo de Ramzy Baroud, ele refere que a Dra. Swee Chai Ang, que tinha acabado de chegar ao Líbano como cirurgiã voluntária e estava colocada no Hospital de Gaza em Sabra e Chatila, escreveu num artigo recente que, após a divulgação de fotografias dos "montes de cadáveres nos becos do campo", seguiu-se um ultraje mundial, mas tudo isso foi de curta duração. "As famílias e os sobreviventes das vítimas foram logo deixados sozinhos para se dedicarem às suas vidas e reviverem a memória daquela dupla tragédia do massacre e das 10 semanas precedentes de intenso bombardeamento terrestre, aéreo e marítimo e bloqueio de Beirute durante a invasão".

Em 19 de Setembro de 1982 o Conselho de Segurança das Nações Unidas aprovou por unanimidade a Resolução 521 que "condena o massacre criminoso de civis palestinos em Beirute".

Em 16 de Dezembro desse mesmo ano, a Resolução 37/123 da Assembleia Geral da ONU "condena nos termos mais fortes o massacre em grande escala de civis palestinos nos campos de refugiados de Sabra e Chatila" e "resolve que o massacre foi um ato de genocídio".

No dia seguinte, a AG aprovou a Resolução 37/134 que "condena Israel pela sua invasão do Líbano que infligiu graves danos aos civis palestinos, incluindo pesadas perdas de vidas humanas, sofrimento intolerável e destruição material maciça".

E depois, o silêncio.

Os culpados
Quarenta anos passaram sobre o horror de Sabra e Chatila. Todos os responsáveis ficaram impunes. Os sobreviventes e os descendentes das vítimas continuam à espera que lhes seja feita justiça.

Robert Fisk não tem dúvidas: "Se os israelitas não tinham participado nas matanças, tinham certamente enviado milícias para o campo. Tinham-nas treinado, dado-lhes uniformes, entregado rações do exército americano e equipamento médico israelita. Depois tinham assistido aos assassinatos nos campos, tinham-lhes dado assistência militar - a força aérea israelita tinha lançado todos aqueles foguetes luminosos para ajudar os homens que estavam a assassinar os habitantes de Sabra e Chatila - e tinham estabelecido uma ligação militar com os assassinos nos campos."

A Comissão de Inquérito Kahan, criada por Israel em 28 de Setembro de 1982, concluiu que a "responsabilidade direta" recaía sobre os falangistas, embora Israel tenha sido considerado "indiretamente responsável". O Ministro da Defesa Ariel Sharon foi considerado como tendo "responsabilidade pessoal" por "ignorar o perigo de derramamento de sangue e vingança" e "não tomar as medidas adequadas para impedir o derramamento de sangue". Foi demitido do seu cargo, mas isso não obstou a que se tornasse Primeiro-Ministro de Israel em 2001.

Ariel Sharon, supremo comandante militar da invasão do Líbano, encontrava-se pessoalmente a poucas centenas de metros do local do crime e nada fez para impedir o massacre. Mas o seu envolvimento na morte de palestinos não começou nem terminou ali Uma publicação do Institute for Midle East Understanding enumera a longa lista de crimes de guerra e de crimes contra a humanidade imputáveis a Ariel Sharon, desde que, em Outubro de 1953, no âmbito da chamada Operação Shoshana, foi o responsável directo pelo massacre de 69 palestinos, dos quais dois terços eram mulheres e crianças, na aldeia de Qibya.

O primeiro-ministro israelita na altura, Menachim Begin, também escapou impune à sua responsabilidade pela morte de mais de 17 000 libaneses, palestinos e sírios na invasão do Líbano em 1982.

A responsabilidade
O massacre de Sabra e Chatila foi uma consequência directa da impunidade concedida a Israel pelos EUA e pela comunidade internacional. Ainda que particularmente hediondo, o massacre de Sabra e Chatila não é uma excepção, antes se inclui numa longa série de crimes contra o povo palestino que caracteriza a história de Israel, ainda desde antes da sua criação em 14 de Maio de 1948.

"Teria Israel sido capaz de invadir e massacrar à vontade se não fosse o apoio militar, financeiro e político dos Estados Unidos e do Ocidente?", questiona Ramzy Baroud no artigo que vimos citando. "A resposta é não. Aqueles que têm dúvidas quanto a tal conclusão só precisam de considerar a tentativa, em 2002, por parte dos sobreviventes do massacre dos campos de refugiados do Líbano, de responsabilizar Sharon. Levaram o seu caso à Bélgica, tirando partido de uma lei belga que permitia a acusação de alegados criminosos de guerra internacionais. Após muita discussão, muitos atrasos e intensa pressão por parte do governo dos EUA, o tribunal belga acabou por abandonar completamente o caso. Por fim, Bruxelas alterou as suas próprias leis para garantir que tal crise diplomática com Washington e Telavive não se repetiria."

A memória
Quarenta anos depois, os nomes de Sabra e Chatila permanecem vivos na memória da humanidade como sinónimos da barbárie e da natureza criminosa do Estado sionista.

São também um testemunho da natureza volúvel da comunidade internacional que passa rapidamente do estado de choque para o olvido, quando não para a desculpabilização.

Mas Sabra e Chatila, bem como todos os episódios da ocupação da Palestina, são também um sinal de que, apesar do longo cortejo de atrocidades israelitas e da sua impunidade, a resistência do povo palestino não quebra.

"Não chorem à beira do meu túmulo..."


"Não chore à beira do meu túmulo, eu não estou lá. 
Estou no soprar dos ventos, nas tempestades de verão e nos chuviscos suaves da primavera. 
Eu sou a pressa inquieta dos ruídos da cidade e o silêncio das madrugadas. 
Não chore à beira do meu túmulo, eu não estou lá. 
Estou no brilho das estrelas perfurando a noite e no cantar alegre dos pássaros. 
Não, não chorem tristes à beira do meu túmulo, eu não estou lá, eu não morri. 
Eu sou a vida incessante e livre, que corre nas águas do rio." 
Mary Elizabeth Frye.

Como se formou o sionismo evangélico no Brasil



Este artigo, publicado na revista Religião & Sociedade, busca analisar o surgimento, entre grupos evangélicos brasileiros, do chamado “sionismo cristão”. Tal posicionamento pode ser entendido como argumentação religiosa que resulta em discurso e atuação política em apoio ao fortalecimento e ampliação territorial do Estado de Israel. 

Foram analisados fatores nacionais e internacionais para explicar a adoção desse tipo de posicionamento político por parte de importantes lideranças evangélicas brasileiras, especialmente nos últimos anos.

1 - A QUAL PERGUNTA A PESQUISA RESPONDE?
A questão central desse artigo é o surgimento entre grupos evangélicos brasileiros do chamado “sionismo cristão”, entendido como argumentação religiosa que resulta em discurso e atuação política em apoio ao fortalecimento e ampliação territorial do Estado de Israel. Buscamos, assim, identificar e analisar fatores nacionais e internacionais que expliquem a adoção desse tipo de posicionamento político por parte de importantes lideranças evangélicas brasileiras, especialmente nos últimos anos. Para entender essa genealogia, acessamos e discutimos livros e outras produções (vídeos, textos em sites) de autores evangélicos brasileiros que defendem o sionismo. Inicialmente expomos a literatura publicada ainda no século 20 e tentamos rastrear a difusão do sionismo cristão suas articulações nacionais e internacionais naquele contexto. A seguir procuramos identificar quem são os líderes evangélicos, que defendem o sionismo cristão e adotam práticas judaizantes no Brasil contemporâneo. Tal identificação nos conduziu à reflexão sobre o papel do turismo evangélico à Terra Santa e também do movimento chamado de NAR (New Apostolic Reformation) no surgimento de líderes sionistas cristãos no Brasil. Finalmente, refletimos sobre a incidência do governo Bolsonaro na consolidação e implementação do sionismo cristão evangélico no país. 

2 - POR QUE ISSO É RELEVANTE?
Embora o sionismo cristão seja já por muitas décadas uma força política significativa nos Estados Unidos e em certa medida na Inglaterra e em outros países europeus, não era observado no Sul Global. O êxito da empreitada sionista cristã varia não só nas articulações internas dos próprios movimentos e os vínculos dos cristãos locais com os centros irradiadores do sionismo no plano internacional (USA-Europa), mas também com as relações estabelecidas com o Estado de Israel. Entretanto os diferentes governos brasileiros, como os de outros países do “Sul”, não recebiam pressões de lideranças religiosas para apoiar Israel quando havia disputas na ONU, envolvendo esse Estado e o povo palestino. Por isso, em várias ocasiões os representantes brasileiros na ONU se opuseram à Israel e apoiaram palestinos. O sionismo cristão brasileiro, que ficará mais evidente nos últimos anos, quer reverter esse posicionamento de crítica ao Estado de Israel no plano diplomático e ir além, vide o empenho evangélico ao exigir de Bolsonaro levar a embaixada brasileira para Jerusalém. De tal forma que, a relevância do sionismo cristão também reside na sua capacidade de realizar articulações internacionais e nacionais para alcançar os objetivos que interessam ao Estado de Israel, gerando potenciais conflitos com o movimento pró palestinos no Brasil. Em termos religiosos, a importância desta reflexão encontra-se na possibilidade de ampliar a compreensão de como se concretizam essas narrativas sionistas cristãs internacionais no Brasil. Ao mesmo tempo, ajuda na percepção do tipo de adaptações teológicas, do envolvimento das lideranças e seus fiéis nessa causa e do porquê da proliferação da bandeira de Israel em eventos políticos, protestos sociais, processos eleitorais e templos evangélicos. 

3 - RESUMO DA PESQUISA
Essa pesquisa é parte de um projeto mais amplo iniciado em 2020, que está sendo realizado em equipe sob a coordenação de Paul Freston e de Joanildo Burity, com apoio da Fundaj, intitulado “O crescimento do Sionismo Cristão no Sul Global: o caso do Brasil e da Guatemala”. Esse artigo é apenas um resultado parcial baseado numa primeira etapa da pesquisa com coleta de dados no Brasil. Um dos objetivos dessa pesquisa era examinar como as ideias sionistas foram se difundindo em segmentos diferenciados do meio evangélico brasileiro a partir dos anos 60 com a ajuda das perspectivas teológicas do dispensacionalismo e foi se transformando nas décadas seguintes, gerando um ativismo político-religioso em defesa do Estado de Israel. Observou-se que, este ativismo tornou-se mais perceptível na coligação política que elegeu Jair Bolsonaro à presidência, envolvendo setores conservadores evangélicos, católicos, judeus, além de militares e liberais. As informações foram coletadas em sites e outras fontes de dados disponíveis na internet, complementadas por leituras de material de igrejas brasileiras, bibliografia e entrevistas com especialistas sobre o tema e algumas lideranças religiosas. 

4 - QUAIS FORAM AS CONCLUSÕES
O sionismo cristão não é novidade no Brasil. Há registro desse tipo de discurso já na década de 1920. Os eventos internacionais que fortaleceram o sionismo cristão, especialmente o profético, nos EUA e na Europa também tiveram seus reflexos no Brasil. No entanto, observa-se que a presença mais evidente desse discurso no espaço político brasileiro somente aparece no século 21, quando os evangélicos, além de bem mais numerosos, passaram a ter maior protagonismo na política, especialmente no legislativo. Procuramos mostrar que apesar de muito interligados, é possível distinguir o filossemitismo, da judaização e do sionismo cristão: esse último pressupõe a defesa do Estado de Israel contemporâneo. Desde o final dos anos de 1990 cresce o interesse por Israel, ora associado ao imaginário bíblico ora como um exemplo de prosperidade divina e ora na apropriação de uma estética judaica como se nota entre algumas igrejas evangélicas brasileiras, com destaque para a Igreja Universal do Reino de Deus. Salientamos a importância das viagens à Terra Santa e o contato com a Embaixada Cristã em Jerusalém na emergência do sionismo cristão no Brasil. Também, da influência do NAR, cujos Apóstolos Terra Nova, Milhomens, Itioka, Valadão são sionistas cristãos relevantes. Vale ressaltar que encontramos sionistas cristãos que não se vinculam ao NAR, como Silas Malafaia. Enfim, a posição pró Israel tende a crescer a partir de um filossemitismo e simpatia pelo povo de Deus, que e com as frequentes caravanas turísticas com líderes evangélicos à Terra Santa. 

5 - QUEM DEVERIA CONHECER SEUS RESULTADOS?
Esse tipo de dados e reflexão interessa a toda população que quer entender a importância da religião na política nacional e internacional, mas especialmente a líderes religiosos e políticos. Na academia, o texto contribui na discussão, sobre o Israel imaginário, a presença do Estado de Israel e do ativismo cristão em prol dessa nação que frequentemente se visibiliza, ora em eventos científicos, ora em publicações. As entrevistas realizadas que embasam os argumentos, representam um acervo importante para os especialistas que se debruçam na temática, pois fora do país se tem bibliografia significativa, porém são poucos os trabalhos sobre o sionismo cristão no Sul Global. O artigo tenta demonstrar como na prática setores evangélicos apropriam-se das ideias que circulam internacionalmente. Com isso, além de abraçar uma causa, eles visam conquistar a simpatia das autoridades israelenses para facilitar suas incursões turísticas na Terra Santa e conseguir que suas missões possam ser frutíferas no Oriente Médio. Mas, os dados indicam que o governo de Israel também está interessado em estimular esse tipo de sionismo no Brasil e certamente no Sul Global. Conhecer essa troca de interesses pode ser útil para setores religiosos e também diplomáticos. 

6 - REFERÊNCIAS
Carpenedo, M. (2021). Christian Zionist Religiouscapes in Brazil: Understanding Judaizing Practices and Zionist Inclinations in Brazilian Charismatic Evangelicalism. In: Social Compass 2021, Vol. 68(2) 204–217. 
Crome, A. (2018). Christian Zionism and English National Identity, 1600–1850. Palgrave Macmillan.
Freston, P. 2020 [b]). “Conclusion”. Palestra apresentada no congresso “Politics and Religion in Brazil and the Americas: Evangelical Churches and their Relations with Judaism, Zionism, Israel and the Jewish Communities”, Universidade de Haifa, 13-15 de Janeiro.
Reinke, A. Daniel (2018). O sionismo cristão e sua influência na cultura protestante brasileira. Dissertação, orientador: Wilhelm Wachholz – São Leopoldo: EST/PPG. 
Frossard, M. S. (2013). “Caminhando por terras bíblicas: religião, turismo e consumo nas caravanas evangélicas brasileiras para a Terra Santa”. (Tese) Programa de Ciências da Religião, UFJF (Universidade Federal de Juiz de Fora). 

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Maria das Dores Campos Machado  é professora titular e colaboradora do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), Rio de Janeiro, RJ, Brasil. Pesquisadora do CNPq, Brasil. Doutora em sociologia pelo Iuperj. 
Cecília Loreto Mariz  é professora titular do Departamento de Sociologia e do PPCIS (Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais) do Instituto de Ciências Sociais da Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro), Rio de Janeiro, RJ, Brasil. Coordenadora do Grupo de Estudo do Cristianismo “Clara Mafra”. Pesquisadora do CNPq, Brasil; Doutora em Sociologia pela UNI Boston University. 
Brenda Carranza  é professora visitante do PPGHS (Programa de Pós-Graduação em História Social) da Faculdade de Formação de Professores da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Coordenadora do Grupo de Estudo do Cristianismo “Clara Mafra”. Pesquisadora do CNPq, Brasil; Doutora em Sociologia pela UNI Boston University. 
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