Dante's Prayer - Oração de Dante

When the dark wood fell before me
And all the paths were overgrown
When the priests of pride say there is no other way
I tilled the sorrows of stone

I did not believe because I could not see
Though you came to me in the night
When the dawn seemed forever lost
You showed me your love in the light of the stars

Cast your eyes on the ocean
Cast your soul to the sea
When the dark night seems endless
Please remember me

Then the mountain rose before me
By the deep well of desire
From the fountain of forgiveness
Beyond the ice and fire

Cast your eyes on the ocean
Cast your soul to the sea
When the dark night seems endless
Please remember me

Though we share this humble path, alone
How fragile is the heart
Oh give these clay feet wings to fly
To touch the face of the stars

Breathe life into this feeble heart
Lift this mortal veil of fear
Take these crumbled hopes, etched with tears
We'll rise above these earthly cares

Cast your eyes on the ocean
Cast your soul to the sea
When the dark night seems endless
Please remember me

Please remember me...



Quando a escura floresta caiu perante mim
E todas a trilhas ficaram cobertas
Quando os padres do orgulho disseram que não havia outro caminho
Cultivei mágoas de pedra

Eu não acreditava porque não podia ver
Embora tu vieste a mim pela noite
Quando o amanhecer pareceu perdido para sempre
Mostraste-me o teu amor na luz das estrelas

Lance seus olhos ao oceano
Lance sua alma ao mar
Quando a noite escura parecer infinita
Por favor, lembre-se de mim

Então a montanha se elevou diante de mim
Pelo profundo poço dos desejos
Da fonte do perdão
Além do gelo e do fogo

Lance seus olhos ao oceano
Lance sua alma ao mar
Quando a noite escura parecer infinita
Por favor, lembre-se de mim

Embora partilhemos deste humilde caminho, sozinhos
Como é frágil o coração
Oh, dê a estes pés de barro - asas para voar
Para tocar a face das estrelas

Sopre vida dentro deste fraco coração
Suspenda este véu mortal de medo
Leve estas esperanças despedaçadas, marcadas com lágrimas
Nos ergueremos sobre estas preocupações mundanas

Lance seus olhos ao oceano
Lance sua alma ao mar
Quando a noite escura parecer infinita
Por favor, lembre-se de mim

Por favor, Lembre-se de mim...

Loreena McKennitt

Contos VIII - Morte (I)

Parte II
Parte III

Acordou naquela fria e nublada manhã de domingo, 20 de junho, com a mesma sensação de todas as outras manhãs que já viveu. A diferença é que aquela era a última manhã de sua vida, ele não sabia disso, não acordou com nenhuma premonição, nem com nenhum estranho sentimento, melhor assim, teria uma morte imprevisível, num dia simples e que aparentemente seria ensolarado, as nuvens escuras começavam a dissipar-se.

Estava muito cansado, seu corpo doía, ficou um tempo deitado na cama, olhos fechados, queria coragem para se levantar, suas últimas 48 horas de vida tinham sido muito difíceis, não se lembrava de nenhum momento tão estressante quanto aquele.

O banho e a rotina da manhã não foram alterados, tomou o mesmo demorado banho frio, o seu último banho debaixo daquele chuveiro, fez as mesmas preces matinais, que não seriam as últimas, ainda não! Escovou modorrentamente os dentes debaixo do chuveiro, planejando como seria o dia, pensava em descansar um pouco, estava exaurido e a semana seria muito difícil e ele precisava de forças para enfrentar os desafios que viriam. A água que escorria pelo seu corpo parecia lhe avisar que ainda naquele dia ela o envolveria como um manto, como um manto de morte. Depois se enxugou e foi para a cozinha fazer um café, gostava de café quente e com leite, tomava muito café. Tomou a sua última xícara de café com o olhar absorto e perdido no vazio, nem sabia que era a última, talvez não tivesse tomado com tanta pressa.

Vestiu-se, sentou na frente do computador e leu as principais notícias dos jornais, checou seus e-mails, não respondeu nenhum, deixou para mais tarde, melhor assim, quem tivesse recebido algum e-mail seu poderia amargar grandes recordações que só trariam dores. Postou algumas frases no seu blog e levantou-se imaginando que teria um dia normal, nada de excepcional, nada de especial.

Dois dias antes havia recebido uma ligação telefônica de uma colega de trabalho de uma cidade próxima, ela avisava que a loja que ela gerenciava corria risco de ser inundada por uma enchente que se aproximava, a cidade vizinha já estava debaixo d’água.  Como ele era gerente de logística da empresa, tinha que enviar funcionários e veículos para esvaziarem a loja. Não precisava ir, apenas coordenar, mas como gostava de acompanhar o que estava sendo feito para garantir que sairia do seu jeito, colocou botas para chuva, que ele havia mandado comprar naquele dia, pegou uma capa de chuva e saiu, eram quase 09h00 da noite, esta seria uma das mais longas noite de sua vida.

Contactou com vários funcionários, 14 ao todo, e os enviou para a cidade que seria inundada, 05 caminhões, contava ir em um deles, mas um colega de trabalho, que tinha a responsabilidade pela operação se comprometeu em ir juntos, num automóvel. Muito embora ele achasse muito mais seguro um caminhão, mas por insistência do diretor da empresa, aceitou a carona, depois se arrependeria, o que só reforçaria em sua mente a certeza de que seu julgamento sobre as ações que tomara naquele dia tinham sido corretas.

Entrou naquele carro consciente que estava vivendo uma aventura, com todos os riscos que ela traria.

Dirigiram-se para a cidade, que distava uma três horas de viagem, mas foram retidos num gigantesco engarrafamento, uma parte da rodovia estava submersa, carros pequenos não passavam, caminhões e ônibus estavam parados, todos temiam a correnteza. O colega que deveria ir para coordenar a operação lhe disse que iria voltar, pois era arriscado demais seguir em frente naquelas condições.

Ele desceu do carro e seguiu em frente, com o temperamento impetuoso que lhe era característico, que sempre o metera em confusões. Queria ver com seus próprios olhos o empecilho de chegar a seu destino.

Constatou que não era para tanto, a correnteza não estava tão forte assim, e os veículos grandes passariam com facilidade, desde que os motoristas fossem atenciosos. Lamentou que não houvesse ninguém da polícia para organizar aquele caos, o maior problema ali era a desorganização e não a água que corria e levava o que estava em seu curso. A sua formação e a sua profissão de gerenciar no meio do caos lhe davam a direção do que fazer exatamente, mas não havia jeito, o tumulto era muito grande.

Um motorista de um caminhão bastante gasto resolveu enfrentar a correnteza, ele se aproximou da carroceria do veículo, quando percebeu que iria entrar na água, subiu em cima do caminhão e sentou-se, torcendo que a travessia do vão de mais de 30 metros fosse tranqüila. O caminhão avançou com dificuldades, com os pneus traseiros sendo arrastados para um canal, mas a força do motor, ainda que velho, foi maior e ele chegou do outro lado sem muitos atropelos.

Desceu do velho caminhão, agradeceu ao mal humorado motorista pela carona não permitida e preparou-se para esperar por outra carona que pudesse lhe levar ao destino. Tinha em mente pegar uma carona no caminhão de uma transportadora no qual havia trabalhado, ele estava no meio daquela fila enorme, havia passado por ele quando, à pé, se dirigiu ao local da inundação, até com o motorista falou, eram amigos, agora só restava mesmo esperar. Olhou para o relógio e viu o quanto era tarde, já era quase meia noite, o que mais lhe preocupava é que mesmo sem chover, o curso da água seguia seu rumo inexorável, talvez já fosse tarde quando ele chegasse à cidade.

Esperou por muito tempo debaixo de uma parada de ônibus, ao longe já percebia o alcance da tragédia que se avizinhava, várias ruas estavam debaixo d’água, o nível do rio subia assustadoramente.

Achou estranho que um ônibus se aproximasse da parada, ao olhar direito percebeu que era para a cidade que ele pretendia ir, subiu rapidamente e encostou-se a uma grade, sabendo que teria uma viagem de 02 horas, com frio, fome e em pé.

Duas ou três cidades depois desceu alguém, liberando um lugar para que ele pudesse sentar, a cadeira era apertada e o ônibus tinha goteira, nada contribuía mesmo, o jeito foi se ajeitar e tentar tirar um cochilo, para que o tempo passasse rápido.

Acordou quando o ônibus entrava na cidade, não via nenhum vestígio de inundação, não conhecia a cidade, nunca tinha ido lá, porém começou a ouvir rumores de que partes dela já estavam inundadas, perguntou a alguns transeuntes como chegar ao centro da cidade, tomou a direção indicada e foi embora, já debaixo de chuva.

Passou por ruas com água no joelho, sorte que estava de galochas, a roupa já estava molhada, os óculos de grossas lentes também, a aparência não era nada atraente, parecia mais um nerd que caiu de outro planeta, o pior é que míope do jeito que era nem poderia tirar estes, sob risco de cair num buraco qualquer.

Ao se aproximar da loja, viu na rua principal um intenso movimento, eram quase duas horas da madrugada, mas o movimento parecia ser de 07 ou 08 horas da noite, um estranho balé sincronizado estava acontecendo, caminhões, automóveis, carroças, tudo estava sendo usado para que as pessoas colocassem aquilo que achavam que valia à pena salvar, sem tumulto, sem pressa, mas com firmeza, determinação, parecia uma zona de guerra, em breve aquelas ruas ficariam desertas, pensou ele.

Antes mesmo de chegar à loja, defrontou-se com a loja de uma rede concorrente, parou, procurou o gerente e se dispôs a ajudar no que fosse preciso, apertaram as mãos e ali nasceu uma amizade que duraria por toda aquela noite, daquelas que nasceram para durar apenas um dia, mas que valem por uma vida.

Andou alguns metros e viu que três dos “seus” caminhões, como ele costumava chamar, já haviam chegado, pois tinham vindo em sentido contrário ao que ele havia tomado, os dois que tinham saído depois dele ainda estavam distantes. Notou que os funcionários já estavam carregando os veículos, já tinham carregado um com os objetos de valor, estavam no segundo, ele havia dado ordem para que não perdessem tempo, e eles estavam cumprindo à risca o que ele havia pedido. Cumprimentou a todos, como era de seu jeito, apertando a mão de cada um, agradecendo por terem ido e entrou na loja, achou uma bonita loja, pena que ficaria vazia em questão de horas, dirigiu-se aos fundos onde lá encontrou a gerente, que ele passou a tratar como a uma heroína, sentada numa cadeira, coordenando a operação, apresentou-se, pediu permissão e começou no seu jeito peculiar de ordenar e dirigir de forma motivadora, instigadora. Parecia que já tinha feito aquilo centenas de vezes, procurou manter-se tranqüilo, sereno, precisava de todo a sua concentração no que deveria ser feito, a noite seria muito mais longa do que imaginava.

Percebeu na gerente da unidade um suspiro de alívio, por transferir a responsabilidade por tudo aquilo, ela lhe disse que nem imaginava que viria um veículo, quanto mais cinco e com ele à frente para conduzir tudo.

Saiu para a rua e, por inusitado que possa parecer, teve ânsia de vômitos, um cheiro nauseabundo o incomodou, era um mendigo fritando carne podre numa marquise ao lado da loja, teria que conviver com aquilo a noite toda, o cheiro não diminuía, era mais um complicador, mas um para ser transposto.

Foi até um mercadinho próximo com alguns de seus colaboradores e comprou alimentos, todos estavam com fome, procurou ser generoso, todos precisavam de força, não economizou, preferia que sobrasse a que faltasse.

Perguntou aos funcionários que eram da cidade onde estava o nível do rio, mostraram-lhe, e a partir de então de meia em meia hora ele ia aos pontos críticos para certificar-se do avanço da água, percebia que estava lento, subia pouco, não chegou a acreditar que a rua da loja, que ficava numa parte relativamente alta seria alcançada, pensou na inutilidade do que estava fazendo, mas consolava-se com a certeza que era melhor prevenir do que remediar, já que estava ali, então faria o melhor e faria bem feito.

Somente Fracassadas

Em primeiro lugar, SIM, eu desisti de fazer essa merda só para afogar minhas mágoas e sentimentos ruins. A partir de agora esse blog será feliz como o arco-íris. Ou não, né, enfim. E pra começar eu quero fazer um protesto em nome de todas as garotas dondocas que têm um terrível pesadelo psicodélico chamado: Cozinha. Então, se você é uma fracassada miserável de quinta categoria que nem eu quando está cozinhando, leia esse texto e sinta-se uma mestra cuca. Pior do que a titia aqui, não tem.  

Lembro-me perfeitamente do dia em que coloquei na cabeça que iria fazer um bolo. Estava toda feliz, serelepe avisando à minha querida mãezinha dos meus planos para o dia. Mal sabia eu que toda essa alegria escorreria ralo abaixo, ou melhor, forno abaixo. Peguei todos os ingredientes, juntei, misturei, fiz todo o processo necessário para chegar à massa final, o bolo parecia que iria sair impecável. Pus a porcaria na fôrma e levei ao forno. Quando estava tudo pronto e eu chequei as condições do bolo, pondo-o em cima do maldito balcão da cozinha, constatei que deveria virá-lo em um prato qualquer. Doce ilusão. E quem disse que aquela porcaria queria desgrudar da fôrma? Tentei, bati, sofri, pelejei e nada do bolo sair. Angustiada, abaixei a cabeça, me rendi e fiz a coisa mais humilhante que uma adolescente fracassada de 14 anos poderia fazer naquela situação: Chamei minha mãe pra ajudar. Foi tenso, mas ela conseguiu tirar a massa da fôrma. Ou pelo menos parte, né, já que ficou tudo em pedaços no prato.

A segunda vez foi mais idiota ainda. O menos mal foi que não fui idiota sozinha. Eu tinha tudo pra fazer o bolo, mas desta vez minha mãe estava na cozinha comigo, preparando outra comida. Peguei os ingredientes, juntei, e na hora de pôr as medidas, me falhou a memória em relação à quantidade de açúcar a ser posta. Perguntei à minha amada progenitora e a mesma, distraída, respondeu que seriam necessárias três xícaras do produto. Ainda fui me metendo à besta, refazendo a pergunta, mas a resposta continuou a mesma. Daí, já dá pra tirar a merda colossal que saiu, né? O bolo além de oleoso saiu mais doce do que eu-nem-te-conto-o-que. Nossa, se eu fosse diabética naquela época...

E a mais recente aconteceu essa semana. Acho que jamais esquecerei o fatídico dia em que minha progenitora não teve tempo de fazer o arroz e me pediu para fazê-lo. Tal fato fez-me lembrar que no ano anterior eu havia tido a oportunidade de presentear meus amigos com um almoço feito por mim, eu e minha exímia culinária, na casa de uma amiga. Obviamente foi um tremendo de um fracasso, o arroz virou papa. Aí vem minha mãe pedindo encarecidamente para que eu repetisse a operação. Foi triste, a porcaria do arroz virou papa de novo, ficou insosso e estufado. Nunca mais ponho um pé na cozinha, só se for pra lavar prato e olhe lá porque eu ainda enrolo muito.

Então se você leu isso e não achou nada demais... Filha, vá se tratar, você tem problemas!
Beijos.

A mulher na frente do fogão - Gióia Júnior


[Esta é uma singela homenagem à minha mãe, Marilene Gomes, paraibana de fibra, forte e doce. Talvez seja o que mais retrata a tua vida como cuidadora e mãe! Te amo, obrigado por teu amor]

Confissões de um ex-pastor(XII) 1ª Parte

Ruller é uma criação de Flannery O’Connor; é um garoto de uma cidadezinha e está desabrochando para o mundo. 

É dia. No meio da mata, Ruller corre atrás de um peru selvagem que está ferido. Ah, se eu conseguisse pegá-lo, é o que ele pensa e, caramba, ele vai pegá-lo, mesmo que tenha de correr para fora do estado.  

Ruller imagina-se entrando triunfante pela porta da frente, com a ave sobre o ombro, e toda a família exclamando admirada:  

— Olha, o Ruller está trazendo um peru! Ruller, onde foi que você conseguiu esse peru? 

— Ah, eu peguei no meio do mato. Se quiserem, qualquer dia pego outro para vocês. 

Mas pegar aquela ave ferida é muito mais difícil do que ele pensava. Então lhe ocorre outra idéia: “Acho que Deus vai me fazer correr à toa atrás desse maldito peru a tarde inteira”. Ele sabe que não devia pensar isso de Deus — mas é assim que ele está se sentindo. E quem pode culpá-lo por estar se sentindo desse jeito? 

Ruller tropeça, cai e fica ali no meio da sujeira, pensando se ele é mesmo esquisito. Mas, de repente, a caçada chega ao fim. O peru cai morto por causa do tiro que havia levado. Ruller coloca a ave sobre o ombro e começa sua marcha triunfal para casa, que fica bem no centro da cidade. Então se lembra do que pensou a respeito de Deus antes de capturar a ave. Eram pensamentos bem ruins, ele confessa. É provável que Deus esteja chamando sua atenção, detendo-o antes que fosse tarde demais. E então exclama: “Obrigado, Deus! O senhor foi extremamente generoso”.  

Ele pensa que aquele peru pode ter sido um sinal. Pode ser que Deus queira que ele se torne um pregador. Ruller quer fazer alguma coisa para Deus. Se naquele dia encontrasse um pobre na rua, iria dar-lhe sua moeda de dez centavos. É a única que ele tem, mas Ruller pensa que, por causa de Deus, ele a daria ao pobre.  

Andando agora pelo meio da cidade, as pessoas ficam admiradas com o tamanho da ave que ele carrega. Homens e mulheres ficam olhando para ele. Um grupo de crianças da roça o acompanha. Então certo homem pergunta:  

— Quanto você acha que ele pesa? 

— Pelo menos uns cinco quilos. 

— Quanto tempo você correu atrás dele? 

— Mais ou menos uma hora. 

— Que coisa impressionante! 

Mas Ruller não está com tempo para conversa fiada. Ele mal pode esperar para ouvir o que seu pessoal vai dizer quando ele chegar em casa com aquela caça. E torce para encontrar alguém mendigando. Com certeza ele lhe daria sua moeda. “Senhor, mande um mendigo. Mande um antes que eu chegue em casa.” E ele sabe que Deus vai lhe enviar um mendigo, pois é uma criança incomum. “Por favor, um mendigo agora mesmo”, é a oração de Ruller. No exato momento em que ele diz isso, uma mendiga velhinha anda em sua direção. O coração de Ruller quase salta pela boca. Ele avança na direção da mulher, gritando: “Aqui, aqui!”. Coloca a moeda na mão dela e continua a andar sem olhar para trás.  

Aos poucos seu coração desacelera e ele sente algo inusitado — como se estivesse feliz e sem graça ao mesmo tempo. Ruller está andando sobre as nuvens — ele e a ave que Deus lhe enviou.

Nesse momento ele percebe a presença das crianças que o seguiam. Todo generoso, vira-se e pergunta:  

— Vocês querem ver o peru que eu cacei? 

As crianças ficam olhando para ele. 

— Eu o persegui até ele morrer. Olhem só a marca do tiro debaixo da asa. 

— Deixe eu dar uma olhada — diz um dos meninos. Então, num gesto inesperado, o menino pega a ave, coloca-a sobre o próprio ombro e, girando o corpo, atinge o rosto de Ruller enquanto sai. E fica tudo por isso mesmo. Os meninos saem andando e levam o peru que Deus lhe havia mandado. 

Antes que Ruller conseguisse se mexer, os garotos já estavam a um quarteirão de distância. Desaparecem na escuridão, e Ruller começa a se arrastar para casa, mas logo dispara numa corrida. E Flannery O’Connor termina a impressionante história de Ruller com as seguintes palavras: “Ele corria cada vez mais e, ao chegar à estrada que dava para sua casa, estava com o coração tão acelerado quanto as pernas e com a certeza de que havia Algo Terrível atrás de si, com os braços rígidos e as mãos prontos para agarrá-lo”. Algo Terrível.

[Síntese do conto feita por Brennan Manning em Falsos, metidos e impostores da Mundo Cristão, adaptação do livro O impostor que vive em mim, do mesmo autor e mesma editora, o poder de síntese dele é inigualável. Os comentários meus a este texto, que faziam parte deste artigo, foram deslocados para a segunda parte do artigo com mesmo nome, o texto estava muito extenso, a brevidade exigiu isso].

* * * 

Tua canção meu pai!!!

 
Esta não foi escrita para você, mas o que ela retrata é a tua vida, a tua partida, a tua última viagem, viagem sem volta. Hoje eu a escuto para lembrar de tua força, tua coragem, e sobretudo de teu caráter. Até breve vaqueiro, meu herói!

Confissões de um ex-pastor(XI)

É uma confissão muito difícil de fazer, mas é necessária: não posso ser considerado alguém fervoroso, nunca fui, nunca serei, não pelos padrões ditados pelos “igrejeiros” modernos.

Talvez quem possa me ajudar a explicar essa minha deficiência seja um visionário de um passado muito distante, de outra cultura, de outro mundo, alguém que enquanto esteve prisioneiro na pequena, porém importante, ilha mediterrânea de Patmos teve visões extáticas, vislumbrou o passado, o presente e o futuro. Este prisioneiro, que também era um grande pastor de almas e tinha o amor nos olhos, certa vez ouviu uma voz que dizia:

Escreva ao Anjo da igreja de Laodicéia. Assim diz o Amém, a Testemunha fiel e verdadeira, o Princípio da criação de Deus: Conheço sua conduta: você não é frio nem quente. Quem dera que fosse frio ou quente! Porque é morno, nem frio nem quente, estou para vomitar você da minha boca. (Apocalipse 3:14-17 Versão Pastoral - Paulus). 

Desde a minha infância eu ouvi centenas de pregações e estudos bíblicos sobre este texto, em 99% dos casos ele foi utilizado para endossar pontos de vista que o mesmo nem sequer de longe defende. Alguns assassinos teológicos fazem uma eisegese (que é a prática de trazer para dentro do texto sentido ou conceito externo), alguns mais irreverentes diriam que os mesmos fazem uma eisejegue (trocadilho com a palavra jegue, asno, burro, jumento) para que o texto signifique aquilo que eles depreendem que signifique, acabam fazendo o mesmo que Procustro (personagem mítico da Grécia que tinha uma cama e quem não coubesse nela por ser pequeno ele espichava por meio de aparelhos especialmente destinados para isso, aos que fossem de tamanho maior que a cama, ele cortava os membros, até que coubessem, ao cabo e ao fim, todos cabiam na cama dele) fazia com seus hóspedes, todo texto pode caber em qualquer significado, quer dizer, pode ter o significado que se quiser que tenha, pois as regras da Hermenêutica e da Exegese são desprezadas em prol das idéias pré-concebidas do leitor/intérprete.

Bastante inconformado com isso uma vez eu “enfiei a cara” nos livros, no texto grego, em gramáticas e comentários, queria fazer uma homilia sobre esta carta, mas queria explorar o real sentido daquilo que Jesus quis dizer, tentei retratar, dentro de minhas limitações intelectuais e espirituais, qual a intenção autoral. Muitos dos que me ouviram naquele dia me abordaram à porta da igreja querendo mais esclarecimentos, para eles a forma como aprenderam era tão óbvia que o que eu tinha dito parecia inusitado demais, não é que parecesse heresia, é que não se ajustava ao que criam. Eis o que eu em curtas palavras expus naquela noite:

Hierápolis, cidade nunca mencionada na Bíblia, nas cercanias de Laodicéia, como o próprio nome (cidade sagrada) permite perceber, era um importante destino para pessoas em busca de cura para alguns dos males que lhes acometiam. Além de um santuário, no qual era realizado um culto da fertilidade, consagrado à deusa Atargatis, havia nos limites da cidade fontes de águas quentes que proporcionavam cura para muitas enfermidades, desde afecções oculares até problemas nos ossos e na pele. Era comum encontrar nas estradas centenas de doentes dirigindo-se para as termas quentes de Hierápolis em busca de alívio, mesmo aqueles sem muitos recursos financeiros acorriam à cidade. Isto numa época em que os recursos da medicina ainda engatinhavam até mesmo para quem tinha dinheiro.

Colossos estava localizada na estrada principal que partia de Éfeso para o oriente, por isso era uma cidade importante, estava exatamente na trajetória entre dois mundos: Europa e Ásia, e como o imperador deslocava-se muito de um ao outro pólo de suas possessões, tinha que passar por Colossos, por isso esta foi guindada à posição de destaque, como se não bastasse isso ainda havia as centenas de caravanas de dignatários que iam bajular o imperador ou de assessores deste indo fazer tratados no oriente que tinham que passar por ela, a mesma era dotada de abundantes recursos hídricos, água límpida e potável, local apropriado para matar a sede, por isso foi muito utilizada como quartel dos exércitos romanos que tentavam pacificar as fronteiras.

Laodicéia, cidade da apocalíptica missiva jesuânica, era localizada perto das outras duas cidades, dez quilômetros ao sul de Hierápolis e dezesseis a oeste de Colossos, porém como ela sofria problemas de abastecimento de água, algum magistrado fez construir dutos que conduzissem águas para dentro da cidade usando a força da gravidade, a água escorria em muitos lugares à céu aberto, o calor do sol e a sujeira dos dutos faziam com que a água chegasse imprópria para o consumo, além de muito suja, era morna, dava vontade de vomitar.

Jesus quando diz à Laodicéia que gostaria que ela fosse fria ou quente ele não estava dizendo o que costumamos ouvir dos pregadores modernos, que ele deseja que ou sejamos quentes (fervorosos espiritualmente) ou então que sejamos frios (sem nenhum fervor, ou melhor, ainda, descrentes), porque se formos mornos (apáticos espiritualmente, mas ainda assim com algum fervor) ele vai nos vomitar. Este texto não tem nada a ver com fervor espiritual, ele trata sim da funcionalidade e do ministério da igreja, frio é matar a sede, quente é cura da alma, é um texto para igreja, não fala de fervor. Mornidão é o status de uma igreja que não consegue matar a sede e nem curar ninguém.

Creio que sempre busquei ser quente e frio ao mesmo tempo, mas não no conceito vulgar do termo, pois para muitos ser quente é alguém que “aparenta” santidade, respira “santidade”, daqueles que andam com a Bíblia debaixo do braço, que quase não pisam no chão e frio são aqueles irmãos de igrejas tradicionais, que não falam línguas extáticas, ditas estranhas.

Infelizmente a experiência que eu tive com estes santarrões foi sempre negativa, pois a santidade deles os torna intolerantes, impiedosos, às vezes até mesmo soberbos espiritualmente. É mais fácil conviver com maltrapilhos alquebrados do que com estes “invencíveis” guerreiros da fé modernos.

Já ouvi comentários de muitos cristãos sobre atitudes tomadas por outros, ou por mim mesmo, que eu acho que alguém que nunca ouviu falar do amor de Jesus teria mais piedade, seria mais misericordioso. A pergunta que eu faço é: será que adianta ser tão piedoso e santo, se esta piedade e esta santidade não deixarem transparecer o amor de Jesus?

Num dos seus discursos mais emblemáticos Jesus diz que: “... nisto reconhecerão todos que sois meus discípulos, se tiverdes amor uns pelos outros.” (João 13:35), ele não disse que ter “fervor”, nem ter piedade seriam as marcas indeléveis de um seguidor dele, mas sim a resposta ao amor que ele demonstrou na cruz, o amor que ele viveu e pediu que vivêssemos.

Ser quente e frio é viver esse amor com intensidade, curando almas, matando a sede dos sedentos, tanto daqueles que vagueiam pelo mundo sem destino algum, como também daqueles maltrapilhos, como eu, que dentro da igreja buscam cura para suas mazelas interiores. Sabem que não são bem recebidos pela igreja, mas não desistem, pois sem ela, a vida é muito pior. As palavras de Philip Yancey: “sou cristão, apesar da igreja.”, são a melhor definição para este aparente paradoxo. Aceitação plena mesmo, só em Jesus, o resto é fantasia e desilusão.