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Aurora

"The Sound of Silence" - The Maccabeats


Não vou colocar a letra da música, ela é por demais conhecida e uma belíssima canção de Paul Simon, quero entretanto, ressaltar o enredo do clipe e as imagens fortes que ele apresenta, sob uma crítica contundente ao universo interconectado que estamos vivendo. Cabe aqui uma pergunta: essa profusão de tecnologia é um avanço mesmo ou apenas uma forma de nos tornarmos menos humanos? Cada um responda como puder!

A História de Dechen



Esta animação nos conta a história de Dechen, um monge budista tibetano em processo de treinamento que tem uma grande paixão pela jardinagem. No vídeo podemos ver como ele planta uma flor, a observa e cuida da mesma com muito carinho e total dedicação. No entanto, a planta vai perdendo força apesar de todos os cuidados desprendidos.

E a linda flor, sufocada pela ausência do sol, começa a murchar, provocando grande incompreensão e tristeza ao protagonista. Mas no momento em que o pequeno monge descobre que a flor somente teria uma vida feliz em seu lugar de origem, ele a leva e planta-na no solo que ela tanto ama.

Ali a flor se torna incomensuravelmente bela. E o menino monge descobre que, ainda que amamos muito algo ou alguém, não podemos deixá-lo cativo. Pois cada ser é ímpar e possui o seu modo íntimo de felicidade. Ele descobre que amar é aceitar a felicidade do outro ainda que esta felicidade não seja ao seu lado. E que por mais que nos dediquemos ao nosso objeto de desejo, ele precisa de seu próprio espaço para respirar, para crescer, para resplandecer.

“Deixar livre é único modo de amar verdadeiramente”. Clara Dawn.
[Fonte do texto: http://www.portalraizes.com/a-historia-de-dechen-amar-e-deixar-ir/]

“El Coronel no Tiene Quien le Escriba”


Há algo de insólito e desesperador, mas também de belo e encantador, no incomparável conto “El Coronel no Tiene Quien le Escriba” de Gabriel García Márquez. Este conto foi publicado pela primeira vez em 1961, posteriormente, por conta da grande receptividade que teve, ganhou edição própria e passou a ser publicado separadamente da coleção original. Em português já ganhou várias edições desde 1968, a primeira foi da Editora Sabiá e por último da Editora Record, que já está na 16ª edição [Tradução: Danúbio Rodrigues, 16ª edição, São Paulo:1996, 96 páginas], em 1999 ganhou no México uma versão cinematográfica de Arturo Ripstein, com brilhantes atuações de Fernando Lújan, Marisa Paredes e Salma Hayek.

Basta uma rápida e superficial leitura do título desta obra para se deduzir quem é o personagem principal: um Coronel, um velho coronel! Ele é um daqueles poucos homens que podem ser definidos numa curta e única palavra: honra! É também um daqueles raros homens que busca viver em sua velhice do modo mais coerente possível com suas crenças, ou com a falta delas, seus princípios e suas opiniões políticas.

O coronel é um veterano de guerra, participou de uma revolução com conotações religiosas, que ficou estacionado no tempo e no espaço, relembrando com nostalgia do passado, ainda se ressente de que os ideais pelos quais lutou, a liberdade do estado das mãos da religião fascista e manipuladora, não sejam mais do que uma lembrança no passado, se é que alguém ainda se lembra, além dele, desses motivos. A sua luta por um estado laico, sem a tutela de uma igreja que paralisa o povo por meio da religião supersticiosa, não é uma simples metáfora para Márquez, há algo de autobiográfico nisso.

Porém é por sua tenacidade, que pode ter conotações positivas ou negativas, depende do prisma pelo qual se olha, que o coronel é reconhecido. Alguns diriam que esta tenacidade na verdade é teimosia, outros que esperança vã, outros que ilusão e outros ainda que rabugices de um velho esclerosado, mas ainda assim não há quem possa negar que ele viva de modo coerente com o que crê, ou com o que não crê.

Após o término da revolução, tentando recompensar os militares que lutaram em favor de sua causa, o governo prometeu aos 200 oficiais que lideraram aquela revolta que cada um deles receberia uma indenização pelo esforço empreendido e uma aposentadoria vitalícia, porém devido à falta de recursos, não podemos esquecer que estavam reconstruindo o país após a guerra, adotou um sistema de filas de espera, o número do coronel era 1823. A partir de então, ele passa a esperar com orgulho pelo cumprir da promessa, já se vão quase 27 anos e a carta que comunicaria o tão esperado anúncio parece que nunca chega. Inexoravelmente, não importa se chova ou faça sol, todas as sextas-feiras ele veste o único terno que tem, põe um sapato gasto e cheio de buracos, um chapéu amarfanhado na cabeça, um guarda-chuva roto e cheio de buracos e, ainda que uma parte sua saiba que a carta não virá, enche-se de esperança e vai ao cais, aguardar o barco que traz o carteiro com as correspondências para o povoado. Mas ninguém escreve ao coronel, ninguém! No filme não há como não se encolerizar com a indiferença do carteiro ao desembarcar da chalupa e o seu riso zombeteiro e cheio de desdém ao comunicar ao coronel que não há cartas para ele, parece até que ele sente um prazer sádico em minimizar naquele pobre homem o pouco que lhe resta: um fio de esperança.

Sua esposa, europeia por nascimento (uma culta espanhola que tinha dificuldades para se adaptar ao meio ambiente atrasado da aldeia na qual moravam) era apaixonada pelos filmes que teimosamente eram exibidos no tosco cinema da vila, era também teimosa e orgulhosa, porém uma bondosa, abnegada e compreensível mulher, tinha a saúde em frangalhos em virtude da alimentação precária, do cansaço da velhice e das péssimas condições em que vivia, sofria crises cada vez mais forte de asma, sua têmpera era de aço, pode-se dizer que ela era uma mulher dura, não verteu uma lágrima sequer quando o filho morreu, porém estava definhando pouco à pouco, por causa do desgosto, da espera em vão e da desilusão.

O estopim que desencadeia uma sucessão de fatos, que entrelaçados dão corpo ao conto é a morte do filho do coronel, este teima em acreditar que seu filho morreu por conta de ser um revolucionário, enquanto que as demais pessoas atribuem à morte do rapaz à querela numa rinha de galo envolvendo uma prostituta, tudo o que uma família orgulhosa como a do coronel não podia tolerar. As únicas posses que o filho deixou, são recebidas como um alento após a morte trágica do rapaz, são também a única esperança daquela família orgulhosa e que vivia na miséria total: uma máquina de costura velha, instrumento de sua profissão de alfaiate e um galo de briga, instrumento de sua diversão, e ao que parece de mais da metade da cidade. Estes bens, pensava o coronel, garantiriam a ele e à sua mulher a sobrevivência por certo período, alimentando esperança de um futuro melhor que só viria com a aposentadoria do governo. Mas ninguém escreve ao coronel, ninguém! Os dias se sucedem e com eles as semanas, o coronel espera a tão desejada carta, que nunca vem.

O dinheiro que recebeu pela máquina de costura chegou ao fim, um misto de vergonha com um resquício de dignidade, parte de seu ser que não foi ultrajada, impedem-no de assumir diante de todos a miséria em que vive e de vender o único bem de valor que ainda possui: um relógio de parede, porém, sem ter como alimentar a esposa, suas dívidas com a mercearia, na qual compra fiado há anos, só fazem aumentar, obrigando-o a se esquivar quando passa defronte dela e é “tacitamente” cobrado, o coronel vive um dilema: vender o galo herdado do filho. O galo tinha sido treinado pelo filho do coronel para combater nas rinhas, e nele o coronel deposita as suas esperanças de ganhar algum dinheiro para poder sanar as dívidas, comprar alimentos e remédios, comprar roupas e sapatos, pagar a hipoteca da casa que estava perto de ser liquidada, até que a carta com a benfazeja notícia chegue, mas ninguém, ninguém mesmo escreve ao coronel e nem o galo, muito menos sua mulher, se alimentam de esperança e ar. Aparece então a proposta de vender o galo por 900 pesos, obviamente bem abaixo do valor que o galináceo teria, mas para as condições atuais do casal, era uma fortuna! O que fazer: vender o galo ou esperar os 45 dias que faltavam para o início das rinhas de briga de galo? O que comer até lá? E se o galo perder na rinha? Perguntas que nunca saberemos as respostas.

Fazendo coro com centenas de outros apreciadores da obra de Gabo, afirmo sem medo de errar que este é um conto doloroso de se ler. Alguns leitores apaixonados dizem que esta é uma história fraca em comparação ao grande Cem anos de solidão (tal comparação para mim é despropositada, visto que a abordagem deste conto é muito diferente da abordagem apresentada naquele livro, tão denso, de personagens tão complexos e de enredo intrincado, e o propósito do autor é outro), creio porém que nenhum dos seus escritos pode ser comparado a este conto, ele é único, de uma simplicidade arrebatadora, e atende a uma intenção única. Tenho a impressão que estou lendo um dos contos de Dostoiévski, seja Humilhados e ofendidos, seja Memórias do subterrâneo, ou mesmo Crime e castigo, tal é a miséria que vejo em suas poucas páginas, ainda que seja uma miséria orgulhosa. Alguém já disse que “é uma história dura e cruel com um final triste e desconcertante”, eu diria que além disso é um diário de bordo de um homem que a miséria total não conseguiu arrancar-lhe a única coisa que lhe restou: a esperança! Além disso não se pode perder de vista a densidade da leitura e a inexplicabilidade da mesma, o que não é novidade em se tratando de Gabo.

O tema subjacente a este conto, é também um tema recorrente nas obras de Gabo, e pode ser desmembrado em três tópicos: a) a condição de miserabilidade do ser humano; b) quanto do espírito deste ser foi afetado pela miséria que é tão presente; c) até que ponto o ser humano pode resistir a uma vida dura e cruel, que não lhe oferece nenhuma oportunidade para a felicidade.

Um outro velho, num passado tão distante passou por dúvidas cruéis e por motivos para desistir talvez mais fortes do que os do coronel: “... Abraão, contra toda esperança, em esperança creu!” (Romanos 4:18 NVI), creio que lições e verdades evangélicas podem ser extraídas deste conto de Gabo.

O coronel era ateu, considerava a religião crendices e superstições, mas ainda assim vestia-se de esperança todos os dias, mesmo em meio à miserabilidade aquela família conseguia crer, mesmo recebendo golpes sobre golpes, ele teimava em crer, ainda que pareça ingenuidade, a esperança dele é admirável. A miséria que o envolvia não tocou sua alma, ela permanecia intacta, seu corpo definhava, mas sua esperança cada dia se renovava.

Sei que Ruach sopra onde quer e como quer, e creio que este conto é um dos muitos sopros que ele deu sobre a nossa sociedade secularizada e intelectualizada, por meio deste conto muitos foram catequizados sem perceberem. Enquanto louvavam a genialidade de Gabo, Ruach os ensinava que para manter a esperança viva, não é necessário ter fundamentos sólidos e concretos, que a esperança verdadeira nasce quando o desespero domina, e é neste macro-ambiente que Ruach encontra espaço para espalhar suas fagulhas de fé e esperança.

Pode ser que ninguém escreva ao coronel, pode ser que ninguém nos dê a resposta que tanto almejamos, mas certamente Ruach permanecerá ao nosso lado para que não desistamos quando estivermos tão perto de conquistar aquilo pelo qual esperamos por anos a fio.

O ocaso de uma igreja!


Ouvi, ou devo ter lido, nem me recordo mais, esta história (Quem sabe se não é só uma estória cheia de metáforas e significados?) há muitos anos atrás, creio que desde a época em que eu coletava historietas, fábulas, contos, anedotas, etc, com a finalidade de ter um arquivo mental (Em tempos de intensa tecnologia da informação alguns diriam: “repositórios na nuvem”) de ilustrações que pudessem me ajudar durante uma aula, palestra ou sermão, ela ficou guardada por muitos anos na memória, vou transcrevê-la e registrá-la, não somente para preservá-la, bem como à guisa de advertência para o momento vivido pela igreja brasileira, momento perigoso, crítico e delicado, que determinará a sua existência ou qual o tipo de existência que ela terá.

Numa encosta qualquer do norte da Europa, numa região dominada por rochas escarpadas, muros imensos de pedras que se estendem por centenas de quilômetros, regiões inacessíveis àqueles que ousassem se aproximar imprudentemente da costa, alguns moradores resolveram construir um abrigo singelo para aqueles, dentre eles, que com perigo de suas vidas guardavam aquelas costas diuturnamente. Como não era possível a construção de cais e os faróis distavam muito um do outro, eles então acendiam fogueiras para que fossem vista do alto mar como aviso de perigo, e quando estes sinais não eram suficientes, se lançavam ao mar para resgatar com vida alguém que estivesse ferido ou mesmo resgatar corpos que de outra maneira seriam devorados pela variegada fauna marinha.

Um dos maiores problemas que tais resgatadores enfrentavam era a falta de uma base de apoio, que lhes servisse de amparo, refúgio, para que descansassem após a labuta tão ingrata e ao mesmo tempo de que neste local as vítimas recebessem os primeiros socorros ao serem tiradas das águas, algumas já haviam morrido de frio ou por falta de cuidados, já que ficavam, às vezes, expostas nos rochedos ao frio e às tempestades inclementes que eram uma constante naquele lugar, enquanto os seus resgatadores mergulhavam outra vez em busca de mais feridos. O fato de não serem assalariados não os incomodava, não mais do que a falta de um lugar de refúgio.

As autoridades das cidades mais próximas se reuniram e decidiram que cada cidade que era beneficiada com a ação daqueles destemidos voluntários reservariam uma parte de sua arrecadação e destinariam tal monta ao grupo que liderava os resgatadores para que pudesse construir o abrigo que lhes era tão necessário.

Em alguns meses já era possível ver as colinas daquilo que seria o quartel-general que iria dar guarida aos salvados e salvadores. Foram erigidas numa ampla área no mais alto rochedo da região, num verdadeiro platô, havia água potável perto, foram construídas estradas e outras foram melhoradas, para que o acesso às cidades se tornasse propício, já que estudavam a possibilidade de transferir os enfermos para os hospitais de forma mais ágil e eficiente. Em menos de um ano foi terminada a primeira etapa que incluía: duas torres de 06 metros de altura com escadas circundando-as que permitiriam que os vigias pudessem subir ao topo e acender os faróis que dariam rumo às embarcações e denunciariam o perigo aos incautos navegantes ou aos que estivessem à mercê de alguma tempestade, construíram um imenso salão com janelas amplas que permitiam a visualização de grande faixa do litoral, neste salão ficariam os salvadores de plantão, desenvolvendo diversas atividades que lhes permitissem não só passar o tempo, bem como estar em constante atualização e treinamento. Construíram auditório para reuniões, cozinha e dispensa para as refeições tão necessárias e um alojamento para 50 pessoas, biblioteca e um salão de jogos, além de uma ambulatório para o tratamento dos feridos e uma enfermaria para acomodá-los. Com o passar dos anos, com cada vez mais recursos, as instalações foram ficando mais luxuosas, aconchegantes e pomposas. Os salvadores agora eram assalariados e gozavam de grande prestígio na sociedade da região. Havia já um Centro de Formação de Salvadores, um programa intenso de treinamento que durava quase 05 anos, requisito para quem almejasse assumir a liderança de um grupo ou mesmo se tornar o Grão-Salvador, que só era reservado aos mais antigos e mesmo assim por meio de aclamação da assembleia geral anual.

Mas toda essa harmonia estava com os dias contados, e já surgiam os primeiros problemas: nos fins de semana, aqueles que estavam de plantão gostavam de trazer a família para que ficasse mais próxima, e isso causava vários problemas, além da questão da acomodação e da diminuição dos recursos armazenados, havia ainda a distração que isso pudesse trazer, alguns, defensores deste tipo de comportamento, diziam que isto era um prêmio àqueles que tão desinteressadamente abriam mão do conforto dos seus lares, e que como estavam em constante treinamento, não acreditavam que houvesse portanto risco na perda de foco.

Agora o Quartel, isso mesmo, com “Q” maísculo já estava aparelhado com piscinas para adultos e crianças, campos de futebol, quadras para diversos esportes, amplos estacionamentos, salas com diversos jogos e uma ala imensa de quartos para os vistantes. Os mais experientes nem se lançavam mais ao mar, isso era tarefa dos neófitos, eles cuidavam do planejamento estratégico e viviam em intensas reuniões com a intenção de elaborar a Visão e a Missão da instituição.

Quanto mais crescia em importância e prestigio a organização, mas cresciam as divergências entre os salvadores. Os mais experientes ao se aperceberem do cisma que se aproximava, resolveram convocar uma reunião geral que pudesse conciliar as opiniões divergentes e restaurasse a paz e a harmonia tão sonhada.

Mas na reunião os ânimos só fizeram se acirrar, ao grupo original que havia fundado a organização haviam se somado centenas de outros que tinham um visão menos ortodoxa do papel que deveriam desempenhar e achavam que os mais velhos eram muito radicais e que deveriam ceder em alguns pontos, os mais antigos culpavam os mais novos pelo fato de que o Quartel mais parecia um balneário, com festas e eventos que descaracterizavam a instituição. Após muitas horas de debate e sem chegarem a consenso algum, os mais antigos resolveram sair do grupo com a promessa de fundarem um novo quartel alguns quilômetros ao norte de onde estavam, num outro platô e que ali pudessem restaurar a visão original de salvar vidas e cuidar de feridos.

Todos aqueles que partilhavam da visão do grupo cismático saíram naquele dia e logo fundaram o novo Quartel, como haviam construído o primeiro e tinham experiência, puderam construir um quartel melhor, com uma estrutura até mesmo mais otimizada.

O tempo passou e quando uma geração nova surgiu e assumiu a liderança do Segundo Quartel as mesmas ideias de entretenimento ganharam raiz e se desenvolveram, logo havia mais um cisma, mais uma vez aqueles que preservavam o ideal dos Pais Fundadores, que já haviam morrido, resolveram sair e fundaram o Terceiro Quartel, para poderem preservar aquilo em que criam ser a missão da instituição: salvar vidas!

Hoje naquelas encostas existem mais de 30 balneários e clubes, todos um dia foram sedes de Quartéis de Resgatadores de Náufragos. Não há mais nenhum órgão na região que tenha a missão de salvar os náufragos ou de cuidar de feridos de naufrágios.

Vem a advertência: “... removerei teu candelabro de sua posição...” Apoc. 2:5b

Parábolas Modernas (IV)

A Festa de Babette: Uma história
   
   
Uma pobre aldeia de pescadores no litoral da Dinamarca, uma localidade de ruas lamacentas e cabanas cobertas de palha. Neste ambiente triste, um ministro de barbas brancas liderava um grupo de crentes de uma austera seita luterana.

Os poucos prazeres mundanos que pudessem tentar um camponês em Norre Vosburg eram condenados por essa seita. Todos usavam roupas pretas. Sua alimentação consistia em bacalhau cozido e uma papa feita de pão escaldado em água enriquecida com um borrifo de cerveja. Aos sábados, o grupo se reunia e cantava hinos a respeito de "Jerusalém, meu lar feliz, nome sempre querido para mim". Eles haviam direcionado suas bússolas para a Nova Jerusalém, e a vida na terra era apenas tolerada como um meio de chegar lá.

O velho pastor, um viúvo, tinha duas filhas adolescentes: Martine, chamada assim por causa de Martinho Lutero, e Philippa, por causa do discípulo de Lutero, Philip Melanchton. Os habitantes da vila costumavam ir à igreja apenas para deliciar seus olhos olhando para as duas, cuja radiante beleza não podia ser ocultada, apesar dos melhores esforços das duas irmãs.

Martine captou os olhares de um jovem e arrojado oficial da cavalaria. Quando ela, obstinadamente, resistiu às suas investidas — afinal, quem cuidaria de seu velho pai? — ele foi embora para se casar com uma dama de companhia da rainha Sofia.

Além de ser muito bela, Philippa também possuía a voz de um rouxinol. Quando ela cantava a respeito de Jerusalém, visões reluzentes da cidade celestial pareciam surgir. E aconteceu que Philippa conheceu o mais famoso cantor de ópera daquele tempo, o francês Achille Papin, que estava passando uns dias no litoral por causa da saúde. Enquanto caminhava pelos poeirentos caminhos de uma cidade atrasada, Papin ouviu, para sua grande admiração, uma voz digna da Grand Opera de Paris.

"Deixe-me ensiná-la a cantar de maneira certa", ele insistiu com Philippa, "e toda a França vai cair a seus pés. A realeza vai fazer fila para conhecê-la, e você vai andar de carruagem puxada por cavalos para jantar no magnífico Café Anglais ". Lisonjeada, Philippa consentiu em tomar algumas lições, mas apenas algumas. Cantar a respeito do amor fê-la ficar nervosa, a agitação dentro dela a perturbou mais ainda e, quando uma ária de Don Giovanni acabou com ela sendo enlaçada pelos braços de Papin, os lábios dele roçando os seus, ela soube, sem a menor sombra de dúvida, que estes novos prazeres tinham de ser abandonados. Seu pai escreveu um bilhete desistindo de todas as futuras lições, e Achille Papin voltou a Paris, tão triste como se tivesse perdido um bilhete de loteria premiado.

Passaram-se quinze anos, e muita coisa mudou na vila. As duas irmãs, agora solteironas de meia-idade, tentaram continuar com a missão do falecido pai, mas, sem a sua séria liderança, a seita estilhaçou-se. Um irmão tinha queixas de outro por causa de algum negócio. Espalharam-se boatos de que havia um caso de sexo ilícito há trinta e dois anos envolvendo duas pessoas da comunidade. Duas velhas senhoras não se falavam há uma década. Embora a seita ainda se reunisse aos domingos e cantasse velhos hinos, apenas um punhado de pessoas se davam ao trabalho de ir, e a música havia perdido o seu entusiasmo. Apesar de todos esses problemas, as duas filhas do ministro continuaram fiéis, organizando os cultos e escaldando pão para os anciãos desdentados da vila.

Uma noite, chuvosa demais para que alguém se aventurasse pelas ruas lamacentas, as irmãs ouviram fortes batidas na porta. Quando a abriram, uma mulher caiu desmaiada. Elas a reanimaram e descobriram que não falava dinamarquês. Ela lhes entregou uma carta de Achille Papin. Ao ver aquele nome Philippa enrubesceu, e sua mão tremia enquanto ela lia a carta de apresentação. O nome da mulher era Babette. Ela havia perdido o marido e filho durante a guerra civil na França. Com a vida em perigo, tivera de fugir, e Papin lhe arranjara uma passagem em um navio com esperança de que essa aldeia lhe demonstrasse misericórdia. "Babette sabe cozinhar", dizia a carta.

As irmãs não tinham dinheiro para pagar Babette e, antes de mais nada, não sabiam se deviam ter uma empregada. Desconfiaram de sua arte — os franceses não comiam cavalos e rãs? Mas, por meio de gestos e rogos, Babette amoleceu o coração delas. Ela poderia fazer alguns serviços em troca de quarto e comida.

Durante os doze anos seguintes Babette trabalhou para as irmãs. A primeira vez que Martine mostrou-lhe como cortar um bacalhau e cozinhar a papa, as sobrancelhas de Babette se elevaram e o seu nariz enrugou um pouco, mas nunca questionou suas tarefas. Ela alimentava os pobres na cidade e assumiu todas as tarefas domésticas. Até ajudava nos cultos de domingo. Todos tinham de concordar que Babette trouxe nova vida à estagnada comunidade.

Uma vez que Babette nunca se referia ao seu passado na França, foi uma grande surpresa para Martine e Philippa quando, um dia, depois de doze anos, ela recebeu a primeira carta. Babette a leu, viu as irmãs de olhos arregalados e anunciou de maneira natural que uma coisa maravilhosa lhe havia acontecido. Todos os anos um amigo em Paris renovava o número de Babette na loteria francesa. Nesse ano, o seu bilhete fora premiado. Dez mil francos!

As irmãs apertaram a mão de Babette, parabenizando-a, mas lá no fundo seus corações desfaleceram. Sabiam que logo ela iria embora.

A sorte grande de Babette na loteria coincidiu com o momento em que as irmãs estavam discutindo sobre a celebração de uma festa em homenagem ao centenário do nascimento de seu pai. Babette lhes fez um pedido. Disse que em doze anos nunca lhes pedira nada. Elas assentiram. "Agora, porém, tenho um pedido: Gostaria de preparar uma refeição para o culto de aniversário. Quero cozinhar uma verdadeira refeição francesa."

Embora as irmãs tivessem sérias dúvidas a respeito desse plano, Babette, sem nenhuma sombra de dúvida, estava certa de que nunca havia pedido nenhum favor em doze anos. Que escolha elas tinham a não ser concordar?

Quando o dinheiro chegou da França, Babette fez uma rápida viagem para providenciar os arranjos para o jantar. Nas semanas que se seguiram à sua volta, os habitantes de Norre Vosburg foram surpreendidos com a visão de vários barcos ancorados descarregando provisões para a cozinha de Babette. Trabalhadores empurravam carrinhos de mão cheios de gaiolas com pequenas aves. Caixas de champanhe — champagne! — e vinho logo se seguiram. A cabeça inteira de uma vaca, vegetais frescos, trufas, faisões, presunto, estranhas criaturas que viviam no mar, uma imensa tartaruga ainda viva mexendo a cabeça como a de uma cobra de um lado para o outro — tudo isso acabava na cozinha das irmãs agora firmemente dirigida por Babette.

Martine e Philippa, alarmadas com os preparativos que mais pareciam de bruxa, explicavam a embaraçosa situação aos membros da seita, agora apenas onze pessoas, velhas e grisalhas. Todas manifestavam simpatia com elas. Depois de alguma discussão concordaram em comer a refeição francesa, refreando os comentários para que Babette não entendesse mal. Línguas haviam sido feitas para louvor e ação de graças, e não para satisfazer gostos exóticos.

Nevava no dia 15 de dezembro, o dia do jantar, iluminando a aldeia obscura com um brilho branco. As irmãs ficaram satisfeitas ao saber que um hóspede inesperado se juntaria a elas: a senhora Loewenhielm, de noventa anos de idade, estaria acompanhada de seu sobrinho, o oficial de cavalaria que havia cortejado Martine tempos atrás, e agora era general no palácio real.

Babette havia conseguido emprestadas louças e cristais suficientes, e havia enfeitado o recinto com velas e coníferas. A mesa estava linda. Quando a refeição começou todos os habitantes da aldeia se lembraram de seu pacto e ficaram mudos, como tartarugas ao redor de um lago. Apenas o general comentou a comida e a bebida. "Amontillado!", ele exclamou quando levantou o primeiro copo. "É o mais fino Amontillado que já provei." Quando experimentou a primeira colherada de sopa, o general poderia jurar que era sopa de tartaruga, mas como se acharia tal coisa no litoral da Jutlândia?

"Incrível!", disse o general quando experimentou o próximo prato. "É Blinis Demidoff!" Todos os outros convivas, as faces franzidas por profundas rugas, estavam comendo as mesmas delicadezas raras sem nenhuma expressão ou comentários. Quando o general entusiasmado elogiou o champanhe, um Veuve Cliquot 1860, Babette ordenou ao seu ajudante de cozinha que mantivesse o copo do general cheio o tempo todo. Apenas ele parecia apreciar o que estava diante dele.

Embora ninguém mais falasse a respeito da comida ou da bebida, gradualmente o banquete operou um efeito mágico sobre os habitantes da aldeia. O seu sangue esquentou. Suas línguas se soltaram. Eles falaram dos velhos dias quando o pastor estava vivo e do Natal em que a baía congelou. O irmão que havia enganado o outro nos negócios finalmente confessou, e as duas mulheres que tinham uma rixa acabaram conversando. Uma mulher arrotou, e o irmão ao seu lado disse sem pensar: "Aleluia!".

O general, entretanto, não conseguia falar de nada além da comida. Quando o ajudante da cozinha trouxe o coup de grâce, codornizes preparadas em Sarcophage, o general exclamou que vira tal prato apenas em um lugar na Europa, no famoso Café Anglais em Paris, o restaurante que já fora célebre por ter uma mulher como chefe-de-cozinha.

Cheio de vinho, o apetite satisfeito, incapaz de se conter, o general levantou-se para fazer um discurso. "A misericórdia e a verdade, meus amigos, se encontraram", ele começou. "A justiça e a bem-aventurança se beijaram." E, então, o general fez uma pausa, "pois — conforme comenta Isak Dinesen — ele tinha o hábito de fazer os seus discursos com cuidado, consciente do seu propósito, mas aqui, no meio da simples congregação do pastor, foi como se toda a figura do General Loewenhielm, com seu peito coberto de condecorações, fosse porta-voz de uma mensagem que tinha de ser transmitida". A mensagem do general era graça.

Embora os irmãos e as irmãs da seita não compreendessem totalmente o discurso do general, naquele momento "as vãs ilusões desta terra se dissolveram diante de seus olhos como fumaça, e eles viram o universo como ele realmente era". O pequeno grupo se desfez e saiu para uma cidade coberta de neve brilhante sob um céu recoberto de estrelas.

A "Festa de Babette" termina com duas cenas. Lá fora, os velhos se dão as mãos ao redor da fonte e cantam entusiasmados os velhos hinos da fé. É uma cena de comunhão: a festa de Babette abriu o portão e a graça entrou silenciosamente. Eles sentiram, acrescenta Isak Dinesen, "como se realmente tivessem os seus pecados lavados e tornados brancos como a lã, e nessas vestes inocentes recuperadas faziam brincadeiras como cordeirinhos travessos".

A cena final acontece lá dentro, na bagunça de uma cozinha cheia até o teto de louça para lavar, panelas engorduradas, conchas, carapaças, ossos cartilaginosos, engradados quebrados, cascas de vegetais e garrafas vazias. Babette senta-se no meio da bagunça, parecendo tão desgastada quanto na noite em que chegara doze anos antes. Subitamente, as irmãs percebem que, de acordo com o seu voto, ninguém havia falado com Babette a respeito do jantar.

— Foi um jantar e tanto, Babette — Martine diz para começar. Babette parece distante. Depois de um minuto ela responde: — Eu era a cozinheira do Café Anglais.

—Todos nós vamos-nos lembrar desta noite quando você tiver voltado para Paris, Babette — Martine acrescenta, como se não a tivesse ouvido.

Babette lhes diz que não vai voltar para Paris. Todos os seus amigos e parentes ali foram mortos ou feitos prisioneiros. E, naturalmente, seria muito caro voltar para Paris.

— Mas e os dez mil francos? — as irmãs perguntam.

Então Babette deixa cair a bomba. Ela havia gasto tudo, cada franco dos dez mil que ganhara, na comida que haviam acabado de devorar. — Não se assustem — ela lhes diz. — É isso que um jantar adequado para doze custa no Café Anglais.

No discurso do general, Isak Dinesen não deixa dúvidas de que ela escreveu "A Festa de Babette" não apenas como uma história a respeito de uma excelente refeição, mas como uma parábola da graça: um presente que custa tudo para o doador e nada para o que recebeu. Isto é o que o General Loewenhielm disse aos carrancudos paroquianos reunidos ao redor da mesa de Babette:

Todos nós fomos informados de que a graça deve ser buscada no universo. Mas em nossa loucura humana e nossa visão reduzida imaginamos que a graça divina seja finita... Porém, chega o momento em que nossos olhos são abertos, e vemos e entendemos que a graça é infinita. A graça, meus amigos, não exige nada de nós a não ser que a aguardemos com confiança e a reconheçamos com gratidão.

Doze anos antes, Babette aparecera entre aquelas pessoas desprovidas de graça. Discípulas de Lutero, ouviam sermões a respeito da graça quase todos os domingos e no restante da semana tentavam obter o favor de Deus com a sua piedade e renúncia. A graça veio a elas na forma de uma festa, a festa de Babette, uma refeição desperdiçando uma vida inteira sobre aqueles que não a haviam merecido, que mal possuíam a faculdade de recebê-la. A graça veio a Norre Vosburg como sempre vem: livre de pagamento, sem cordas amarradas, como oferta da casa.

[Excerto do Capítulo 02 do livro de Philip Yancey, Maravilhosa Graça (São Paulo: Editora Vida, 2001)]

Parábolas Modernas (III)

Podia-se dizer que ele, o garoto, tinha um talento especial, algo realmente fora do comum: talhar com perfeição objetos em madeira, talhava animais, casas, paisagens, carros, etc, porém, sua maior especialidade era mesmo barcos, esculpia cada um melhor do que o outro, cada detalhe era retratado minunciosamente, passava horas ajustando o leme ou mesmo uma hélice, que as pessoas nunca talvez vissem, já que não levantavam o barco para olhar embaixo, mesmo assim ele fazia questão de apurar aos mínimos detalhes.

Um dia recebeu do pai um pedaço de madeira de lei, a melhor que já tivera em mãos, perfeita para a feitura de um barco, ele passou dias e mais dias apenas olhando para a madeira, criava em sua mente a figura do barco, só depois iria torná-la real, não ousava aproximar-se dela sem algo de concreto em mente, não queria estragá-la, ela era perfeita demais. Era como se o barco já estivesse ali, o que de fato ele queria fazer era tirar de cima do barco aquilo que impedia de ser visto como de fato era.

Alguns dias depois, após realizar algumas tarefas da escola, procurou o local mais ermo perto de sua casa, com a madeira numa mão e as ferramentas na outra, sentou-se debaixo de uma árvore e começou a tornar concreto algo que já existia em sua mente, apenas em sua mente, havia chegado ao esboço mental definitivo de seu projeto, e o tornaria real naquele dia.

Quem o visse esculpindo aquele barco, acharia que ele encontrava-se em transe, tal a concentração que estava. Aquele ato para ele era de tamanha importância, era como a concepção de um filho, era como dar à luz a algo que só existia na sua mente. A forma geral do barco foi concebida naquele dia, o casco, as escotilhas, os mastros, a figura entalhada na proa pontiaguda, a popa quadriculada, o calado, a quilha, os detalhes à bombordo e à estibordo.

Passou dias e mais dias concentrado em cada detalhe que não havia dado forma final ainda, os objetos no convés, as escotilhas, os salva-vidas, as velas, o timão, a âncora. Aquele não seria mais um barco, aquele seria O Barco ou, parafraseando os modernos e beligerantes babilônios, seria o “Pai de todos os barcos”.

Quando a sua obra-prima enfim estava terminada, ele a colocou à mostra, em cima de um móvel na sala. Todos que entravam na casa eram convidados a admirar aquela obra, e todos eram unânimes em admitir que nunca tinham visto nada comparado com aquele barco, era realmente especial.

Um dia, chovia torrencialmente, a água em abundância escorria pelas ruas e formava correntezas nos bueiros e canaletas ao lado das vias públicas, pareciam lagos, para uma mente de criança cheia de aventuras, eram mares em fúria, e foi assim, para saciar a sede de aventuras e para testar seu maior feito que ele pegou o lindo barco e colocou debaixo do braço e se encaminhou para a rua, procurou o local onde a água estava em maior quantidade, e encontrou uma poça enorme, perto de uma pequena ladeira, o fluxo da água era pequeno para a quantidade que se acumulava aí, logo, havia bastante água.

Ele colocou o precioso objeto na água, com um misto de ansiedade e preocupação, queria ver se seu invento se portaria da forma que ele planejara, mas tinha medo que algo o estragasse. O barquinho balançou de um lado para o outro, assim que tocou na água, mas portou-se bem, era perfeito, flutuava sem problemas.

Absorto em admiração, ele não se deu conta que o barquinho dirigia-se perigosamente para uma canaleta que ladeava uma escadaria, e que se entrasse ali, ele dificilmente o alcançaria. Foi exatamente o que aconteceu, quando o fluxo da água puxou o barquinho para aquela descida, ele tentou esboçar uma reação, mas já era tarde, o barquinho descia velozmente por aquela canaleta, ele levantou-se e correu em desabalada carreira, no meio da chuva, da lama, os olhos se fechando por conta da quantidade de água em seu rosto, de repente o barquinho sumiu, havia caído dentro de um bueiro, e certamente estava sendo levado por correntes subterrâneas para algum córrego distante.

Ninguém pode imaginar o quão destroçado ele ficou, perdera alegria da vida, perdeu a vontade de esculpir de novo, perdeu o prazer de olhar os objetos que fizera, as madeiras, algumas de boa qualidade se empilhavam no seu quarto, nem olhava para elas, todos os dias seu pai trazia uma nova, queria trazê-lo de volta daquela apatia, mas parecia inútil.

Meses depois, andava aleatoriamente no comércio da cidade, tinha ido à contragosto com a mãe para comprar presentes de Natal, seu olhar vago, pulava de uma vitrine à outra sem demonstrar o mínimo interesse, até que parou defronte a uma loja de brinquedos, seu olhar parecia de vidro, tudo estava inerte e desinteressado, porém sua atenção foi capturada de forma instantânea, depositado sobre um expositor, dentro de uma vidraça estava o mais belo barco de madeira que ele já vira, imponente, proa em riste por conta da posição que se encontrava, uma luz no teto da vidraça ressaltava ainda mais os seus detalhes, suas cores e formas. Ficou encantando, entrou tomado de ansiedade e nervosismo, pediu para ver o barco, tomou-o em suas mãos, nem ouvia nada, nem via mais nada, virou diversas vezes até que teve certeza, era o seu barco perdido.

Virou-se para o vendedor da loja e já foi decretando, do alto da inocência de um garoto que ainda não foi apresentado ao mundo dos adultos:

- Esse barco fui eu que fiz, eu o perdi na chuva, ele caiu num bueiro, agora eu o encontrei, vou levá-lo comigo.

O vendedor perplexo com aquela revelação, sem saber exatamente o que fazer, tira o barco das mãos da criança e proclama no mesmo tom:

- Não duvido que tenha feito, mas esse aqui foi comprado de um fornecedor, e a menos que pague o valor de R$ 300,00, ele não sairá desta vitrine.

Convencer um garoto que perdeu um barco a pagar pelo mesmo não seria uma tarefa fácil, saiu da loja arrastado pela mãe, sua desolação era total perdia o mesmo barco pela segunda vez.

Quando o pai chegou do trabalho, com mais uma tora de madeira, correu chorando ao seu encontro e gritou que havia encontrado o barquinho, que ele deveria ir buscá-lo, já que sua mãe havia se negado a retirar o objeto da loja.

O pai sentou, ouviu toda a história que a mãe contou e pôs um fim definitivo à história:

- Não é correto ir lá e pegar este barquinho, mesmo que saibamos que foi você que fez, vou todos os dias trabalhar um pouco mais, vou juntar dinheiro, no fim do mês eu lhe dou o valor total e você poderá ir à loja e pegar o seu barquinho.

Isso resolvia em parte o problema, faltavam mais de 15 dias para o fim do mês, será que o barquinho iria ficar aquele tempo todo esperando por ele?

No outro dia, assim que voltou da escola foi à loja e pediu que o vendedor reservasse o barquinho para ele, o vendedor disse que poderia por um dia, mas não por quinze dias. Ele então passou a vigiar o barco todos os dias, ficava na frente da vitrine o dia todo, quando algum cliente demonstrava interesse pelo barquinho, ele o dissuadia apresentando defeitos que só ele mesmo via, dizia às vezes que a madeira mão prestava, que iria rachar, isso durante quinze dias, quinze longos dias.

No último dia do mês, quando já não suportava a ansiedade que o consumia, viu seu pai entrar em casa, com o semblante abatido e cansado, fruto das longas jornadas que fizera nos últimos dias, sentar no sofá, olhá-lo nos olhos e colocar a mão no bolso da camisa e lhe entregar algumas notas surradas de dinheiro, com o adorno da frase:

- Vá buscar o seu barco!

Nenhum criança foi mais feliz naquele dia que aquele garoto, saiu em desabalada carreira em direção à loja, esta ainda estava aberta, todos os funcionários estavam cientes do drama daquela criança, e resolveram estender o horário de atendimento naquele dia, todos fingiam estar ocupados, mas acompanhavam emocionados quando aquele menino entrou na loja, foi ao caixa, depositou as notas sobre o balcão e disse com voz embargada:

- Eu vim buscar meu barquinho!

Todos queriam atendê-lo, o misto de alegria e emoção havia tomado a todos, os que não choravam, enxugavam discretamente as lágrimas furtivas.

Com os olhos marejados de lágrimas quentes, que mais pareciam grossas gotas de mercúrio, que rolavam por sua face, toma o barquinho entre as mãos, olha cada detalhe, cada mínimo detalhe e pronuncia com voz embargada de emoção:

- Barquinho você agora é meu duas vezes, primeiro porque eu te fiz, segundo porque eu te comprei!

A quem pertencemos duas vezes?

[Escutei esta estória quando eu tinha pouco menos de 10 anos, depois disso que nunca mais ouvi-la, eu mesmo a contei várias vezes, resolvi registrá-la para que não se perca].

Parábolas Modernas (II)

O filho mais novo de um abastado fazendeiro, de larga fama e dono de terras que só conseguia percorrer ao trote largo de um cavalo durante três dias, resolveu fugir do controle paterno, decidiu que o melhor que podia fazer era viver longe dos conselhos dos pais, estava cansado da vida “pacata” que a vida familiar lhe impunha e foi viver dissolutamente em outros lugares, como centenas de anos fizera anteriormente o outro filho da parábola de Jesus. Após consumir tudo o que tinha levado, sem amigos, estes o deixaram tão logo acabou o dinheiro, sem comida, faminto e doente, resolve voltar para casa, mas certo de que não merecia perdão, escreve ao pai uma pequena carta na qual dizia que tomaria o trem para um destino bem distante, porém, o mesmo passaria defronte à fazenda paterna ao meio-dia, caso este o perdoasse e ainda o quisesse em casa, estendesse na árvore na frente da casa grande um cobertor branco, se visse o cobertor, ele desceria na estação mais próxima e voltaria para casa, caso não visse o cobertor saberia que não deveria descer e então passaria direto para outros destinos, ressaltava ainda que os pais não tinham nenhuma obrigação de recebê-lo em casa, visto que os envergonhara muito.

Ao se aproximar da região na qual estava localizada a casa grande da fazenda, aquele rapaz, com o coração apertado, pegou sua mochila surrada, com seus poucos andrajos, levantou-se sem esperança alguma, pensou consigo mesmo que o pai poderia nem ter lido a carta, poderia até já ter morrido, ou, quem sabe, a carta poderia ter sido extraviada, ou entregue num destino errado, estava preparando o espírito para qualquer coisa que o pai quisesse fazer, inclusive tratá-lo como apenas um empregado, o menor dos subalternos.

Ele podia esperar qualquer coisa menos aquilo de fato viu: Não apenas na árvore defronte da casa tinha cobertor, mas em cada árvore da fazenda, seja grande ou pequena, cada uma tinha um cobertor branco, como que dizendo-lhe: - Você é bem-vindo! Ele não conseguiu contar quantas árvores estavam marcadas, as lágrimas não deixaram, na estação da cidade, na qual havia tomado um trem indo embora, uma comitiva de empregados e parentes já o esperava para uma festa, era o filho do patrão que estava de volta, o herdeiro tinha chegado e isso era o que interessava, nada mais.

Parábolas Modernas (I)

Philip Yancey nos brinda em Maravilhosa Graça (São Paulo: Editora Vida, 2001), com um inigualável ensaio sobre a Graça Indizível, que ele chama de Um pai cego de amor, não creio que deva fazer quaisquer comentários à esta história, seria muita ousadia tentar acrescentar algo, acho que após a leitura, o melhor que se pode fazer é calar e deixar que no silêncio Abba fale. Depois que li esta história, a minha vida não foi mais a mesma, de uma forma ou de outra, ouso dizer que ela melhorou, em todos os aspectos, mudei minha visão de Deus, de meus irmãos e até mesmo daqueles que me fizeram alguma coisa de ruim. Sei que muitas vezes sou a filha, mas muitas vezes sou o pai cego de amor. De uma coisa eu sei: no dia em tomar o caminho de volta, meu Pai, Abba, estará na estação me esperando, e fará uma festa para me receber de volta, sem cobranças, sem julgamentos, só me resta pois receber o amor de Abba, sem tentar merecê-lo.
Uma jovem fora criada em um pomar de cerejas na parte superior de Traverse City, no Michigan. Seus pais, um tanto antiquados, costumavam reagir mal ao seu piercing no nariz, às músicas que ouvia e ao comprimento de suas saias; de vez em quando eles a repreendiam e ela fervia por dentro. "Odeio vocês!", gritou para o pai quando ele bateu a porta do quarto dela depois de uma discussão. Naquela noite, a jovem realizou um plano que mentalmente já ensaiara dezenas de vezes. Ela fugiu de casa.
A jovem havia visitado Detroit apenas uma vez, em uma viagem de ônibus com os jovens da igreja para assistir ao jogo dos Tigers. Os jornais de Traverse City descreviam em chocantes detalhes as gangues, as drogas e a violência na cidade de Detroit; ela concluiu que provavelmente seria o último lugar onde seus pais a procurariam. Talvez na Califórnia, ou na Flórida, mas não em Detroit.
No seu segundo dia ali, ela conheceu um homem dirigindo o maior carro que já vira na vida. Ele lhe ofereceu carona, pagou-lhe um almoço e arranjou um lugar para ela ficar. O homem deu-lhe alguns comprimidos que a fizeram sentir-se melhor do que jamais se sentira. Ela se sentiu ótima e concluiu: seus pais não permitiam que ela se divertisse.
A boa vida continuou durante um mês, dois meses, um ano. O homem com o carrão — ela o chamava de "chefe" — ensinou-lhe coisas de que os homens gostam. Sendo menor de idade, os homens lhe pagavam mais. Ela morava em um apartamento pequeno e podia encomendar o que precisava. Ocasionalmente, pensava nos pais em casa, mas a vida deles lhe parecia tão chata e provinciana que mal acreditava que fora criada ali.
Ela se assustou ao ver sua foto na embalagem de leite com os dizeres: "Vocês viram esta criança?". Agora, porém, com o cabelo tingido de loiro, e com toda a maquiagem que usava, ninguém a consideraria uma criança. Além do mais, a maioria dos seus amigos também fugira de casa, e ninguém dava com a língua nos dentes em Detroit.
Depois de um ano, os primeiros sintomas incipientes da enfermidade apareceram, e ela ficou surpresa com a crueldade do chefe. "Hoje em dia, a gente não pode facilitar", ele rosna; antes que a jovem percebesse, estava na rua sem um tostão. Ela ainda conseguia ganhar alguma coisa de noite, mas não lhe pagavam muito, e todo o dinheiro era usado para manter o vício. Quando chegou o inverno, ela se encontrava dormindo nas grades de metal do lado de fora de uma loja de departamentos. "Dormir" não é a palavra certa — uma adolescente sozinha na noite em Detroit não pode nunca baixar a guarda. Estava com olheiras profundas. Sua tosse piorava.
Uma noite ela se encontrava acordada, atenta ao barulho de passos; de repente, tudo ao seu redor pareceu diferente. Ela não se sentia mais como uma mulher do mundo. Sentia-se uma menininha perdida em uma cidade fria e assustadora. Começou a soluçar. Seus bolsos estavam vazios e estava com fome. Precisava de uma dose. Trêmula, encolheu as pernas debaixo dos jornais que empilhara sobre o seu casaco. Alguma coisa acionou uma série de lembranças e uma imagem preenchia sua mente: o mês de maio em Traverse City, quando milhares de cerejeiras estão em flor todas ao mesmo tempo, e ela via seu cachorro correndo no meio das fileiras das árvores em flor atrás de uma bola de tênis.
Deus, por que eu fugi?, ela disse para si mesma, e uma dor traspassa seu coração. Meu cachorro em casa come melhor do que eu agora. A jovem estava soluçando e, imediatamente, percebeu que desejava voltar para casa mais do que qualquer outra coisa no mundo.
Três telefonemas, todos caindo na secretária eletrônica. Nas duas primeiras vezes, ela desligou sem deixar uma mensagem; na terceira, porém, disse: "Papai, mamãe, sou eu. Estive pensando em voltar para casa. Estou pegando um ônibus e chegarei aí amanhã lá pela meia-noite. Se vocês não estiverem me esperando, bem, acho que ficarei no ônibus e irei para o Canadá".
Foram sete horas de ônibus entre Detroit e Traverse City; durante aquele tempo ela percebia os erros no seu plano. E se os pais estivessem fora da cidade e nem tivessem ouvido a mensagem? Não deveria ter esperado outro dia para poder falar com eles? E, mesmo que estivessem em casa, provavelmente já a consideravam morta há muito tempo. Deveria ter-lhes dado um tempo para se recuperarem do choque.
Seus pensamentos pulavam de lá para cá entre as preocupações e o discurso que estava preparando para o pai. "Papai, sinto muito. Sei que estava errada. A culpa não foi sua; foi minha. Papai, você pode me perdoar?" Ela repetiu as palavras muitas e muitas vezes, com a garganta apertada enquanto as ensaiava. Nos últimos anos não havia pedido perdão a ninguém.
O ônibus estivera andando com as luzes acesas desde Bay City. Floquinhos de neve batem no calçamento desgastado por milhares de pneus e o asfalto exala vapor. Ela havia esquecido como a noite é escura lá fora. Um cervo cruzou a estrada como uma flecha e o ônibus deu uma guinada. De vez em quando, aparecia um outdoor ao lado da estrada. Uma placa indicava quantos quilômetros faltavam até Traverse City. Oh, Deus!
Quando o ônibus finalmente entrou na rodoviária, os freios sibilando em protesto, o motorista anunciou no microfone: "Quinze minutos, pessoal. É tudo quanto vamos gastar aqui". Quinze minutos para decidir sua vida. Ela se examinou em um espelhinho, alisou o cabelo e limpou o dente manchado de batom. Olhou para as manchas de fumo nas pontas dos dedos e ficou imaginando se os pais iriam perceber. Se estivessem lã.
A jovem entrou no saguão sem saber o que esperar. Nenhuma das milhares de cenas que passaram por sua cabeça a prepararam para aquilo que viu. Ali, naquele terminal de ônibus de paredes de concreto e cadeiras de plástico de Traverse City, em Michigan, estava um grupo de quarenta parentes, irmãos e irmãs, tios e primos, uma avó e uma bisavó para recebê-la. Todos eles estavam usando chapeuzinhos de festa e assoprando apitos; na parede do terminal havia um cartaz, dizendo: "Seja bem-vinda!".
Da multidão que a recepciona irrompe o papai. Ela olhou para ele através das lágrimas que brotavam dos seus olhos como mercúrio quente e começou o discurso memorizado: "Papai, sinto muito. Eu sei...".
Ele a interrompeu. "Quieta, filhinha. Não temos tempo para isso agora. Nada de pedidos de desculpas. Você vai chegar atrasada na festa. Lá em casa há um banquete esperando por você."