Questão Israel-Palestina: 73 anos de limpeza étnica

Leitura da situação como um “conflito” esconde opressão do Estado israelense em processo histórico de colonização e extermínio na Palestina. 

Originalmente publicado em 24 de junho de 2021

Por Amanda Mazzei e Bruna Irala


No início do mês passado, os episódios de bombardeios na Faixa de Gaza foram noticiados em diversos veículos como uma “escalada de violência” entre israelenses e palestinos, ou ainda um “conflito” entre Israel e Hamas, muitas vezes apontado como parte de uma “longa guerra” entre dois lados irredutíveis. Essa cobertura tem gerado críticas de cidadãos palestinos, ativistas, jornalistas de diversas nacionalidades e pesquisadores, que consideram que é escolhida uma narrativa que esconde a realidade da região.

“É uma perspectiva que parte do pressuposto de que é um confronto entre duas partes igualmente poderosas, que possuem os mesmos recursos ou que estão em posição de igualdade. Mas, quando estudamos a história desse ‘conflito’, o que vemos é que se trata de um conflito de ordem colonial.” Isabela Agostinelli dos Santos é doutoranda em Relações Internacionais no Programa de Pós-Graduação San Tiago Dantas (UNESP, UNICAMP, PUC-SP) e pesquisadora do Grupo de Estudos sobre Conflitos Internacionais da PUC-SP. Ela explica que se trata de “colonizadores e colonizados, em posições de poder altamente discrepantes e assimétricas”.

Para Agostinelli, a questão não deve ser lida como um confronto ou guerra, e sim um processo histórico de limpeza étnica feita por Israel na região da Palestina.
“O que a Palestina vive desde o fim do século 19, com o avanço do projeto sionista [criação de um Estado étnico judeu na região da Palestina, que já era habitada pelos árabes] de colonização daquele espaço, e que se intensificou em alguns momentos da história, como a criação do Estado de Israel, em 1948, e a ocupação da Cisjordânia, Jerusalém Oriental e Faixa de Gaza, em 1967, é um processo de limpeza étnica.”
Agostinelli afirma que os esforços coloniais de Israel, baseados no projeto sionista, “significam a expulsão dos palestinos nativos de suas terras para sua substituição – ou, em alguns casos, assimilação – pelos colonos israelenses.”

O historiador israelense Ilan Pappé caracteriza o sionismo como uma ideologia, que tem como projeto a implantação de um Estado judaico exclusivista no território palestino, às custas da população palestina. Como complementa o cientista político Norman Finkelstein, em seu livro Imagem E Realidade Do Conflito Israel-palestina (1995), “o sionismo fundamentava seu direito de preempção [preferência] ao estabelecimento de um Estado judaico na Palestina — um direito que supostamente se sobrepunha às aspirações da população local — no alegado direito do povo judeu àquela terra”.

De acordo com o movimento sionista, os árabes palestinos “mesmo sendo cidadãos e residentes [do território da Palestina] há muito tempo, não eram intrinsecamente ‘dele’”. A presença de não-judeus se não amplamente hostilizada era dispensável, “facilmente se prestando a esquemas favoráveis à transferência de populações — e à sua expulsão”. De forma que o êxodo em massa da população nativa da Palestina em 1948 era visto não como uma tragédia, mas a solução ideal para o conflito.

Acontecimentos recentes na Faixa de Gaza e Sheikh Jarrah
Recentemente estiveram no centro das discussões os bombardeios na Faixa de Gaza, que aconteceram após uma resposta do Hamas (partido político fundado em 1987 que hoje governa Gaza) às ameaças israelenses de despejo a famílias palestinas de Sheikh Jarrah, um bairro na porção palestina de Jerusalém – o que é considerado crime de guerra pelas leis internacionais – e também a ataques da polícia israelense na Mesquita de Al Aqsa.

No episódio da Mesquita, no dia 10 de maio, palestinos que faziam suas orações no mês sagrado do Ramadã e protestavam contra os despejos em Sheikh Jarrah foram violentamente reprimidos com bombas de gás lacrimogêneo, granadas e balas de borracha disparadas por policiais israelenses, inclusive dentro da mesquita. Cerca de 300 palestinos foram feridos.

Em um ultimato, o Hamas exigiu que Israel retirasse suas forças do complexo de Al Aqsa e de Sheikh Jarrah – vale frisar, territórios palestinos –, o que não aconteceu. O Hamas então disparou dezenas de foguetes contra cidades israelenses, sendo boa parte deles interceptada pelo sistema antimísseis israelense chamado Domo de Ferro.

“Como de costume, a posição israelense frente ao lançamento de foguetes do Hamas foi extremamente desproporcional”. Isabela Agostinelli explica que as forças militares israelenses conduziram uma operação militar em Gaza, bombardeando diversos locais, o que resultou em mais de 250 palestinos mortos, cerca de 1900 feridos e 52 mil deslocados internos.

De acordo com Francirosy Campos Barbosa, antropóloga, docente associada no Departamento de Psicologia FFCLRP/USP, e membro da diretoria do IBRASPAL (Instituto Brasil Palestina), “tudo isso aconteceu e está acontecendo para implementar um projeto colonial racista e perverso que visa remover e desenraizar o povo palestino de sua terra e apagar seus milhares de anos de história e civilização pluralista”. Ela afirma que a questão Israel-Palestina “não pode ser chamada de ‘guerra’, e sim resistência” dos palestinos.

A antropóloga defende que acontece um uso de necropolítica [política que escolhe quem deve viver e quem deve morrer] na Palestina pelo Estado de Israel. “Basta ver o número de mortos no último enfrentamento, em maio de 2021, entre forças completamente desiguais. Mais de 250 palestinos mortos e 12 israelenses.”

Para entender por que os casos constantes de violência na região da Palestina não deveriam ser categorizados como confrontos de uma guerra entre dois lados, é preciso observar o processo histórico que gerou a situação de vulnerabilidade atual dos palestinos, assim como o controle que Israel exerce sobre suas vidas hoje, tanto dentro das fronteiras israelenses quanto nos territórios que ocupa, e até mesmo nas regiões que em tese não estão sob seu comando direto.

Al Nakba, uma tragédia sem fim

Nenhum povo quer ter que olhar para trás e reconhecer os horrores de sua própria história


O termo árabe “al nakba”, traduzido como “a catástrofe”, traz a conotação de uma miséria profunda e refere-se à expulsão de 750 mil palestinos do território onde foi criado o Estado de Israel em maio de 1948.

Mais recentemente, os estudos da área começaram a empregar o termo “Nakba contínua”, para referir-se ao fato de que o processo de expulsão, que teve seu auge em 1948, continua até os dias de hoje. Em 1967, outros 350 mil palestinos foram deslocados da Cisjordânia. Fora dos períodos de guerra, o deslocamento forçado ocorre por outros meios, seja através de leis e dispositivos discriminatórios, seja pela invasão e roubo de casas palestinas por colonos radicais – evento recorrente em Jerusalém oriental.

O primeiro a chamar atenção para o caráter contínuo da Nakba não foi um historiador, mas o escritor libanês, ex-combatente da liberdade, ou fida’i em árabe, Elias Khoury. Ferido ao redor dos vinte anos de idade, trocou o rifle pela caneta, e passou a coletar os fragmentos de histórias palestinas e a tecer narrativas que registram o longo, ininterrupto sofrimento e resiliência, desse povo.

Se o ano de 1948 marcou o ápice da Nakba, significou também a criação do Estado de Israel. A concomitância e intrínseca relação entre os dois eventos gerou enormes disputas historiográficas. A versão dos chamados “velhos” historiadores israelenses, foi retratada pela imagem de um David israelense contra um Golias árabe. O jovem Estado de Israel, nascido das cinzas do holocausto europeu, teria enfrentado uma terrível força árabe, cujo desejo seria eliminar o país e lançar os judeus ao mar. A guerra de 1948, segundo tal narrativa, seria uma guerra de defesa. Os palestinos teriam fugido a mando de seus líderes, para dar lugar à entrada dos exércitos árabes.

Um dos primeiros historiadores palestinos, ‘Arif al-‘Arif, era na ocasião o comissário-assistente do distrito de Ramallah e foi encarregado de receber o negociador da ONU, o conde sueco Folke Bernadotte, na terceira semana de julho de 1948, pouco após a queda e o massacre de Lydd e Ramla. Sessenta mil habitantes dessas duas cidades tinham sido forçados a uma marcha da morte em que centenas deles pereceriam desidratados e exauridos antes de chegar a Ramallah. O Conde Bernadotte tinha sido informado pelos oficiais israelenses que os palestinos fugiram a mando de seus líderes.

‘Arif al-‘Arif conta que ele prontamente levou o Conde Bernadotte para encontrar alguns desses líderes nas cavernas onde tinham se refugiado, para ouvir seus relatos. Foram encontros como esse que certamente fizeram com que Bernadotte reportasse à ONU que “nenhum acordo será justo e completo se não for garantido o reconhecimento do direito dos refugiados árabes a voltarem para suas casas, de onde foram desalojados”. O Conde Bernadotte foi assassinado poucos meses depois pelo grupo extremista Lehi, comandado na época por Yitzhak Shamir, que passaria de “terrorista procurado” pelas autoridades inglesas a primeiro-ministro de Israel, em 1983.

O mito do êxodo voluntário dos palestinos perdurou por três décadas, não obstante Folke Bernadote, ‘Arif al-‘Arif, e o historiador Walid Khalidi, que na década de 1950 foi o primeiro a comprovar a sua falsidade com pesquisas em arquivo. Como a alegação era de que as altas lideranças árabes haviam emitido ordens pela rádio para que os palestinos fugissem, Walid Khalidi revirou o acervo das gravações radiofônicas árabes de 1948, mantido no Museu Nacional de Londres, onde não encontrou nenhum registro de qualquer ordem nesse sentido.

Ser antissionista é ser antissemita?

 

O lobby israelense e seus ferrenhos apoiadores não lutam contra o antissemitismo que alegam existir, eles lutam contra a crítica à Israel. 

Em geral, quando se inicia um debate crítico a respeito da política do Estado de Israel, suas ações militares e de intervenção em território da Palestina ou mesmo em outras regiões do Oriente Médio, surgem diversos comentários de seus apoiadores em sua defesa, para explicar e justificar as barbáries cometidas pela “única democracia do Oriente médio”. Dentre esses comentários, surgem diversas acusações, sendo a mais grave acusar de antissemita todos os que se opõem ao Estado e a política de Estado de Israel.

Toda crítica política ao sionismo é tomada como sinônimo de antissemitismo, segundo intelectuais sionistas e apoiadores. De fato, dentre algumas críticas ao Estado de Israel, existem manifestações antissemitas de organizações neonazistas e, entre outras, de organizações que se declaram islâmicas. O ponto central é contextualizar ao leitor como cada conceito se encaixa nessa discussão, para não serem mal interpretados ou tirados de contexto como comumente tem ocorrido.

De acordo com Santos (2018, p. 12) “Sionismo é um movimento político com aspirações nacionalistas, que afirma o direito à existência de um Estado Judaico” e que historicamente propõe a erradicação da diáspora judaica, tendo como seu principal teórico o judeu Theodor Hetz (1860-1904). Dentro do movimento sionista, três locais foram pensados para construção do Estado: Argentina por ter uma das maiores comunidades judaicas do mundo, Uganda por estar sob mandato britânico na época de negociações com o movimento sionista e a Palestina por também estar sob mandato britânico e ser uma região historicamente importante para os judeus.

Hetz teorizou e concentrou essas ideias em sua principal obra O Estado Judeu (1896). Essa ideia ganha força frente aos violentos atentados e perseguições contra judeus no ocidente sobretudo na Inglaterra, Alemanha, França e Rússia que se intensificaram durante os séculos XVIII e XIX. Essas perseguições a judeus ficaram conhecidas como pogroms.[i]

Antissionismo é um termo utilizado por ativistas sociais dos Direitos Humanos, movimentos que se opõem à ideia de criação de um Estado nacional judaico na Palestina histórica e sobretudo que se opõem à política do Estado de Israel. Antissemitismo é o preconceito e discurso de ódio contra semitas, englobando principalmente o ódio contra judeus. Os Semitas englobam várias etnias como judeus, árabes hebreus, arameus, fenícios e assírios.

Durante o século XX a máquina de propaganda israelense se apropriou do termo “antissemita” como preconceito cometido apenas contra judeus excluindo os outros povos semitas. Em protesto a isso alguns autores preferem utilizar o termo “judeofobia”. Um judeu étnico, por lógica, nunca poderá ser antissemita, mas pode manifestar oposição política e religiosa ao sionismo. Muitos judeus étnicos e religiosos ortodoxos rejeitam veemente o Estado judeu ou como preferem chamar o Estado sionista. A comunidade judaica no pós-Segunda Guerra Mundial passou por uma de suas maiores rupturas da história quando se tratou de apoiar a criação do Estado de Israel e consequentemente a política de imigração para a Palestina onde se tornaram colonos.

A ideia de que durante 2000 anos os judeus anseiam retornar à Terra Santa é falso e desmentido pela comunidade judaica tradicional. Rabinos fiéis a interpretação da Torá afirmam constantemente em seus protestos contra o sionismo que o retorno à Terra Santa, segundo o livro sagrado, só poderia ocorrer por ocasião do advento do Messias.

“Os judeus piedosos que criticam publicamente o sionismo creem que devem agir assim por causa de obrigações impostas pela Torá. A primeira é impedir a profanação do nome de Deus. Como o Estado de Israel pretende atuar em nome de todos os judeus do mundo, inclusive em nome do judaísmo, esses judeus sentem-se obrigados a explicar publicamente, principalmente aos não judeus, o que consideram uma interpretação fraudulenta. A segunda obrigação deriva do preceito de preservar a vida humana. Ao ressaltar a rejeição judaica ao sionismo, eles esperam afastar os judeus da animosidade que, em sua opinião, o Estado de Israel provoca entre as nações. Desejam evitar que os judeus de todo o mundo se transformem em reféns das políticas israelenses e de suas consequências. Afirmam que o Estado de Israel deve ser conhecido como o “Estado sionista” e não como “o Estado judeu” ou “Estado hebreu”.[ii]

Essa tentativa de assimilar antissionismo a antissemitismo é uma grande ferramenta por parte do Estado de Israel e seus aliados para silenciar qualquer crítica direcionada aos mesmos como se fossem críticas ao judaísmo e aos judeus. Isso não passa de uma forma discursiva genial para silenciar os críticos do sionismo israelense. Interessante observarmos que esse tipo de silenciamento tem se tornando uma política por parte do Estado sionista e seus apoiadores.

Podemos utilizar como exemplo de silenciamento o professor Steven Salaita[iii] que em 2014 teve sua oferta de emprego rescindida pela universidade de Illinois após uma série de tweets que direcionaram críticas ao Estado de Israel. Após muito lobby por parte do movimento sionista americano o professor não foi aceito em qualquer outra universidade, tempos depois o professor entrou na justiça e conseguiu reverter a situação entrando em acordo com a universidade e recebendo cerca de US $ 600.000.

A associação dos judeus com o Estado de Israel é quase que automática quando mencionada em mídias ou meios acadêmicos. Quando quaisquer opositores ferrenhos do sionismo gritam pelo fim do Estado de Israel e pedem a autodeterminação do Estado Palestino pluri étnico e laico logo são associados como inimigos do povo judeu espalhados pelo mundo. Os sionistas fizeram algo muito bem além de expulsar os palestinos de suas terras e serem responsáveis pela diáspora do povo descendente dos filisteus, souberam criar e reforçar a ligação da comunidade judaica mundial com o Estado de Israel se apresentando como a vanguarda dos judeus. A escola de pensamento e propagação das ideias sionistas não deve de modo algum representar o judaísmo, assim como a Al-Qaeda e o ISIS-Estado Islâmico não representam o Islã.

A filósofa judia Judith Butler vê nessas associações consequências extremamente negativas para o movimento judeu: “Nos Estados Unidos, fiquei alarmado com o número de judeus que, desanimados com a política israelense, incluindo a ocupação, as práticas de detenção por tempo indeterminado, o bombardeio de populações civis em Gaza, buscam negar sua condição de judeu. Eles cometem o erro de pensar que o Estado de Israel representa o judaísmo para nossos tempos, e que, se alguém se identifica como judeu, apoia Israel e suas ações. E, no entanto, sempre houve tradições judaicas que se opõem à violência estatal, que afirma a coabitação multicultural e defendem princípios de igualdade, e essa tradição ética vital é esquecida ou marginalizada quando qualquer um de nós aceita Israel como base da identificação judaica”.[iv]

Antissionismo não é de modo algum antissemitismo, pelo mesmo fato de ser antinazista não significa ser contra o povo alemão. Ser contra o sionismo israelense e sua política de apartheid, segregação, violação dos direitos humanos, limpeza étnica contra os palestinos, não pode ser considerado um ato “antissemita”. O lobby israelense e seus ferrenhos apoiadores não lutam contra o antissemitismo que alegam existir, eles lutam contra a crítica à Israel.

Gustavo Alves Lima é graduado em história pela Universidade Federal da Integração Latino-americana (UNILA).

Notas
[i] Pogroms (em russo “destruição”): Eram massacres organizados para o aniquilamento de qualquer grupo ou classe, especialmente com a conivência do governo russo contra os judeus. O termo foi usado pela primeira vez fora da Rússia ao tempo dos levantes antijudaicos organizados pelas Centúrias Negras na Rússia no ano de 1905, mas é frequentemente aplicado às insurreições russas anteriores, a partir de 1881 (ROTH, 1966, p. 976).
[ii] Rabkin, Yakov M. Judeus contra Judeus – a História da Oposição Judaica ao Sionismo. Cotia, SP: Acatu, 2009. p.17
[iii] professor e intelectual palestino-americano que ficou conhecido por ganhar um processo contra a universidade de Illinois. https://www.thenation.com/article/archive/why-unhiring-steven-salaita-threat-academic-freedom/
[iv] Judith Butler responds to attack: ‘I affirm a Judaism that is not associated with state violence’ – Judith Butler on August 27, 2012 – Mondoweiss, Disponível: <http://mondoweiss.net/2012/08/judith-butler-responds-to-attack-i-affirm-a-judaism-that-is-not-associated-with-state-violence/>

Sobre sionismos, antissionismos e antissemitismos

Falta uma imaginação política capaz de propor e acreditar em futuros de coexistência e solidariedade para palestinos e judeus naquela região. 

Vivemos um momento terrivelmente trágico na história global. Uma guerra no leste europeu entre Rússia e Ucrânia, a guerra civil síria que já vitimou 300 mil civis, uma guerra civil no Iêmen que já causou outras 150 mil mortes e, agora, uma nova etapa do conflito Israel-Palestina que já levou a milhares de mortos, especialmente de civis palestinos.

Palestinos e israelenses estão sofrendo e nenhuma dor deve ser diminuída. Palestinos e israelenses devem ter direito ao luto e a nossa solidariedade deve alcançá-los todos. Sem “mas”. Sem “porém”. Não são números, são vidas, histórias e famílias. Que o alcance irrestrito do luto, como refletiu Judith Butler, nos sirva para imaginarmos um futuro para o Oriente Médio de substancial igualdade, em que nenhuma vida mais seja perdida da forma como estamos assistindo.

Dito isso, precisamos achar, nesse doloroso momento, uma oportunidade para revisitarmos debates importantes do campo progressista que permanecem intocáveis e que, ao longo das décadas, se transformaram tickets ideológicos indispensáveis para que se receba a carteirinha de “esquerda de verdade”. A maioria desses dogmas, como é de se imaginar, são espantalhos mal compreendidos: sionismos, antissionismos e antissemitismos.

A dificuldade de escrever sobre uma temática tão delicada em um momento tão polarizado é que dificilmente um leitor radicalizado manterá uma postura intelectualmente aberta à posição do outro. Aprendi com os meus mais velhos: “ouvir não é escutar”. Ler para refutar é ler procurando o que há de errado na posição do outro. É ler procurando o viés de confirmação da própria posição. Ler para estabelecer pontes de diálogo, no entanto, é ler com disposição para a alteridade. Somente com esta última posição é possível fazer uma política de fato democrática.

MUDANÇA OU EXTINÇÃO
Criou-se um mito muito difundido de que judeus rejeitam quaisquer críticas ao Estado de Israel, pois estas seriam antissemitismo. Isso não é verdade, e quem compartilha dessa posição está equivocado.

Criticar Israel, seus governos e políticos, não é necessariamente antissemitismo. É possível, sim, condenar a ocupação de territórios palestinos, assim como é também possível criticar a lei básica do Estado-nação, que, aprovada em 2018, afirma que Israel é pátria “exclusiva do povo judeu”. Esse debate, na verdade, é imperativo. A comunidade judaica, em Israel e na diáspora, estava realizando-o quando foi surpreendida pelo massacre do último 07 de outubro. Antes disso, porém, semanalmente milhares de israelenses tomavam as ruas de Tel Aviv, e uma das palavras de ordem sempre presentes era: “não há democracia com ocupação!”.

Ainda hoje, após um traumático evento e em meio a uma guerra, há israelenses que levantam suas vozes sobre essa importante questão. O Standing Together é um exemplo disso. Um movimento popular árabe-judaico, com lideranças progressistas, de esquerda e socialistas, e que é, hoje, uma das maiores vozes contra a extrema-direita israelense e que luta contra ocupação dos territórios da Cisjordânia, contra o racismo e constrói propostas de solidariedade e coexistência entre os povos. No último dia 4 de novembro, a organização promoveu a Conferência de Solidariedade Árabe-Judaica que reuniu mais de 700 pessoas na cidade de Haifa. No último dia 7, o movimento também integrou uma grande manifestação em Tel Aviv contra o atual governo, por paz e pelo fim das ocupações já citadas.


Muitos militantes de esquerda, no Brasil e no mundo, fazem referência a Israel como uma Estado “artificial”. Um Estado sem sociedade civil mobilizada, sem contradições, disputas políticas, sem divergências e lutas de classes. A realidade é muito mais rica que a vulgaridade dessas análises. Israel não é uma “entidade”, um bloco monolítico, como muitos querem fazer parecer. É uma sociedade em que, assim como a nossa, também possui suas resistências. O Standing Together, o Hadash, partido árabe-judaico socialista, o Partido Comunista de Israel, e tantas outras organizações de oposição mostram um pouco disso.

Reconhecendo isso e reconhecendo, também, que a fundação do Estado de Israel, em 1948, visou oferecer para o povo judeu – um povo perseguido durante dois mil anos no Ocidente – um lar nacional no seu território ancestral, pedir a sua extinção é, também, negar a este povo o seu direito de autodeterminação. É desconsiderar que, mesmo após 97 gerações expulsas de 109 regiões do mundo, judeus nunca abandonaram sua relação com aquele território. Para dizer o mínimo, isso é uma insensibilidade histórica. Usando as palavras corretas, o nome disso é antissemitismo.

Massacre na Palestina

Apenas a criação de um Estado palestino soberano e independente pode interromper décadas de hostilidades. É preciso que os assuntos mais espinhosos sejam abordados com urgência e coragem.


Imagino Gaza como refém do horror. Quantos funerais devem estar ocorrendo todos os dias... Quantas famílias destroçadas, sem casa, sem comida, sem esperança... Quantas mães choram a morte dos filhos, quantas ficaram com a lembrança do rostinho sorrindo, talvez com um brinquedo ou uma roupa... As bombas trazem o fim e o luto, dia e noite. Mais de 1 milhão de 2,4 milhões dos moradores de Gaza estão desalojados ou deslocados internamente.

Enquanto isso, o mundo silencia. Não se justifica vingar o massacre de civis com a matança da população. É desumano, criminoso. Impor a morte aos homens sem vínculos com extremistas, às crianças, às mulheres e aos idosos, como resposta à barbárie cometida por um grupo, equivale a tratar os palestinos como escória humana. Matar bebês, meninos e meninas em bombardeios é exterminar gerações inteiras. Para muitos, trata-se de genocídio.

Defender a causa palestina não é compactuar com as atrocidades cometidas pelo Hamas. Não consigo dimensionar o terror experimentado pelos moradores do sul de Israel em 7 de outubro. Assisti ao filme de 43 minutos com gravações feitas pelas câmeras corporais dos próprios extremistas do Hamas, com imagens captadas pelas Forças de Defesa de Israel ou pelo circuito interno de segurança nas casas dos kibbutzim. Estive no sul de Israel, em março passado; visitei um kibbutz, um ambiente pacato, onde a paz predominava boa parte do tempo. Eu me solidarizo com a população do sul de Israel.

Mas, também, estendo meus pensamentos aos palestinos de bem, a imensa maioria, vítimas de bombardeios massivos que, como o embaixador Ibrahim Alzeben me disse, são vítimas de uma "política da terra arrasada". Todos os dias recebo imagens e vídeos de Gaza. Um menino de uns dois ou três anos treme compulsivamente; um homem abraça a filha, uma garota de uns seis anos, e ambos choram compulsivamente; um palestino em prantos embala os restos mortais da mãe, envoltos em um cobertor. O mundo precisa chorar por Gaza e deter essa atrocidade, que somente alimenta o ódio e o desejo de vingança. Os palestinos de Gaza estão condenados à desesperança.

Apenas a criação de um Estado palestino soberano e independente pode interromper décadas de hostilidades. É preciso que os assuntos mais espinhosos sejam colocados à mesa e abordados com urgência e coragem: a partilha de Jerusalém, o retorno dos refugiados, o fim dos assentamentos judaicos e da ocupação israelense, a autodeterminação dos palestinos. Chega de mortes, de luto, de crimes abomináveis. Os dois povos podem e devem conviver em paz. Concordo com Avi Issacharoff, jornalista israelense criador da premiada série Fauda. Uma solução baseada em dois Estados seria capaz de ferir de morte o Hamas. Levaria progresso e esperança a Gaza e aos demais palestinos.

Rodrigo Craveiro
Fonte: https://www.correiobraziliense.com.br/opiniao/2023/11/6651989-artigo-massacre-na-palestina.html

“The Lobby”: censurado por Israel (Parte 4)

Nada assusta mais Israel do que os jovens negros americanos. Mesmo com a maioria do Congresso dos Estados Unidos ao seu lado, o lobby israelense treme na base com o Black Lives Matter, movimento que surgiu após o assassinato de Michael Brown pelo policial Darren Wilson em 2014 e vem escancarando a violência racista – e letal – das polícias dos EUA. Mas por quê?
Para começar, o assassinato de Brown aconteceu no mesmo verão que Israel apertou o cerco em Gaza, criando uma solidariedade online entre o Black Lives Matter e o BDS, movimento pacífico pró-Palestina que pede, entre outras medidas, o boicote a produtos israelenses.

O lobby, é claro, não aceitou essa aproximação quieto. Após o Black Lives Matter declarar publicamente apoio ao BDS, um evento de arrecadação de fundos para a causa negra foi cancelado por pressão do The Israel Project, uma das dezenas de grupos que compõem o lobby nos EUA.

E mais: Clarence V. Jones, autor do famoso discurso de Martin Luther King, “Eu tenho um sonho”, foi usado como arma. Jones era “amigo íntimo” de Andy David, cônsul-geral de Israel em São Francisco. E, por conta dessa relação, publicou três artigos na imprensa afirmando que King se reviraria no túmulo se visse as tendências anti-Israel do Black Lives Matter.

É o que confessou Andy David, então cônsul-geral de Israel em São Francisco. Sem saber que estava sendo gravado, David aparece no quarto e último episódio da série documental “The Lobby – USA”, da Al Jazeera.

Criado a partir das descobertas de James Kleinfeld, repórter que se infiltrou no coração do lobby israelense nos EUA, o documentário acabou censurado por causa da pressão do lobby de Israel nos EUA, que tem ligações diretas com o governo israelense. Agora, ele é exibido pela primeira vez em português pelo Intercept.

Os evangélicos e o Estado de Israel


Desde o recrudescimento dos ataques do Estado de Israel a Gaza, no dia 7 de outubro, sob a justificativa de retaliação à ação de resistência armada contra a ocupação, chama a atenção, inclusive no Brasil, a defesa do Estado sionista por amplos setores evangélicos. Por que segmentos cristãos que, do ponto de vista religioso, em tese, compartilham de uma visão mais próxima do islamismo (o Islã, ao contrário do judaísmo, reconhece e reverencia a figura de Jesus Cristo como profeta), se alinham de forma tão incondicional ao Estado israelense?

Trata-se de uma história ao mesmo tempo antiga e recente. Uma construção ideológica de séculos que ganhou força e uma nova roupagem com o fortalecimento da extrema direita nos últimos anos. E que de “espiritual”, como veremos, não tem absolutamente nada.

Cristianismo e sionismo
A identificação entre protestantismo e o que viria a ser o sionismo, ou seja, a ideia de que o povo judeu deveria retornar à Palestina histórica, remonta ainda aos primeiros anos da Reforma Protestante. Um clérigo inglês do século XVI, Thomas Brightman, afirmava que os judeus deveriam “retornar a Jerusalém outra vez”, já que “os profetas de todos os cantos confirmam e falam sobre isso”.

Por trás dessa ideia estava uma leitura peculiar do evangelho, especificamente da escatologia cristã, que previa o retorno dos judeus à terra prometida, a reconstrução do Templo de Salomão (destruído pelos babilônicos e romanos), preparando a segunda vinda de Cristo e finalmente a conversão dos judeus ao cristianismo. Essa doutrina seria chamada mais tarde de “dispensacionalismo”. Trata-se de uma visão que pressupõe o abandono da fé judaica para o cumprimento das profecias, o que muitos judeus, não sem razão, tacham de antissemitismo.

Essa ideia se tornou uma força prática no século XIX com o movimento Templo Alemão Pietista, originado do luteranismo. Dois clérigos alemães, Christoph Hoffman e Georg David Hardegg, fundaram a Sociedade de Templer em 1861, com a ideia de colonizar a Palestina por meio de assentamentos. Com o apoio da Corte na Prússia e de teólogos anglicanos da Grã-Bretanha, instalaram o primeiro assentamento em Haifa ainda em 1866, espalhando-se pela região. Bem antes, portanto, de Theodor Herzl lançar o sionismo como corrente política e ideológica no congresso de 1897.

Os “templadores”, que acabariam sendo expulsos após a fundação do Estado de Israel, em 1948, tiveram seus métodos de instalação de assentamentos de povoação imitados pelas primeiras levas de sionistas, entre o final do século XIX e o começo do século XX, com forte apoio britânico. Para a Inglaterra, era estratégico fortalecer sua posição na região, ainda sob domínio Otomano.

Evidentemente, os primeiros sionistas não eram motivados por essa doutrina oriunda do protestantismo. Aliás, se o sionismo no século XIX, enquanto ideologia que advogava a construção de uma nação judaica, não era uma força majoritária entre os judeus – rivalizando com os que defendiam a completa integração dos judeus a seus respectivos países (ainda que mantendo certas tradições e a religiosidade) –, mesmo entre os sionistas, o sionismo religioso que defendia a volta a Jerusalém, tampouco predominava. Tanto que se cogitavam regiões como Bariloche, na Argentina, ou Uganda, na África.

A escolha pela Palestina e a construção do mito do retorno dos judeus à terra que teria sido prometida a eles teve como objetivo cerrar fileiras com Estados e atrair a simpatia e a defesa de amplos segmentos religiosos cristãos mundo afora. Para isso, tornou-se essencial a consolidação de outro mito: o de que os atuais judeus descendem diretamente do povo hebreu do Velho Testamento (ou da Torá).

Um mito funcional
Há muitos estudos e debates sobre a origem dos povos que se autointitulam judeus, principalmente após a publicação da obra de Shlomo Sand, A invenção do povo judeu (2008). O autor retoma estudos de Arthur Koestler que, em 1976, publicou o livro A décima terceira tribo, no qual afirma que os judeus são, na verdade, descendentes dos tzares, do Cáucaso, convertidos no século VIII. Essa versão é aceita por muitos pesquisadores sérios.

O historiador israelense Illan Pappé relativiza esse debate afirmando que “os povos têm o direito de se inventarem, como fizeram tantos movimentos nacionais em seu momento de concepção, mas alertando que “o problema se agrava quando a narrativa de gênese engendra projetos políticos como genocídio, limpeza étnica e opressão”.

E foi justamente isso o que aconteceu. Os diversos segmentos do sionismo, do religioso ao de “esquerda”, confluíram a essa interpretação bíblica de que seriam os judeus (os atuais) os legítimos descendentes do antigo povo hebreu. Essa autoridade histórica, moral e ancestral, garantiria a justificativa para ocupar a Palestina e expulsar os “invasores”, no caso, os palestinos. Ainda que ironicamente não sejam poucos os que afirmam que os atuais palestinos, os povos originários daquela terra, carreguem mais DNA dos antigos hebreus do que os atuais judeus.

Contudo, para muitos sionistas, pouco importa se essa justificativa era falsa ou não. Até porque ela foi empregada por sionistas “socialistas”, ateus etc. O importante era colonizar a Palestina, expulsar quem lá vivia e instaurar um Estado judeu. E até hoje esse mito é empregado para a crescente ocupação de Gaza e Cisjordânia e os massacres perpetrados pelo Estado sionista há sete décadas. E principalmente para justificar a manutenção de Israel como um enclave militar, se antes da Inglaterra, agora dos EUA, numa região estratégica.

Israel e a extrema direita
Voltemos aos atuais evangélicos. O que essa trajetória tortuosa tem a ver com o pastor da esquina de um bairro de periferia que convoca seus fieis a uma “vigília por Israel” no exato momento em que o país lança toneladas de mísseis nas cabeças de crianças e bebês em Gaza?

O protestantismo teve um crescimento significativo no Brasi no século passado, principalmente por meio de movimentos pentecostais, mas ainda num contexto de um Brasil majoritariamente católico. A proliferação das igrejas neopentecostais, num quadro de crise, abissal desigualdade social e as promessas oferecidas pela Teologia da Prosperidade, vem mudando o placar religioso no país e, em breve, os evangélicos devem ultrapassar os católicos.

Sempre houve uma “natural” associação entre protestantismo e os judeus, mas essencialmente simbólica e religiosa. Jesus é o “Leão da Tribo da Judá”, a “esperança de Israel”. Mas era praticamente consenso que a “Israel” agora não se referia mais aos antigos judeus, mas à totalidade dos fiéis. A “lei” foi substituída pelo sacrifício de Jesus no calvário. Alguns segmentos inclusive resvalam no antissemitismo responsabilizando os judeus por “terem matado Jesus”.

Percebe-se, porém, uma profunda mudança nos últimos anos. As referências a Israel vão deixando de ser simbólicas e tornam-se quase literais. O milenarismo, ainda que não seja estudado em praticamente nenhuma igreja, é assimilado de forma acrítica. As igrejas vão se “judaizando”, e os próprios crentes se identificam como parte da diáspora judaica. Tornou-se frequente o uso de bandeiras de Israel, pastores ministrando cultos com quipás e, maior expressão desse processo, o enorme Tempo de Salomão construído pela Igreja Universal na capital paulista.

Trata-se de um movimento sincronizado com a radicalização do público evangélico à extrema direita e, mais recentemente, com o bolsonarismo. Essa é a razão pela qual muitos estranham a atual hipervalorização do Antigo Testamento. Lá, temos uma divindade guerreira, que destrói seus inimigos de forma impiedosa, não aceita o culto a qualquer outra divindade e se impõe à força. Uma narrativa mais fácil de ser absorvida e moldada a um projeto político de ditadura e de perseguição a opositores do que seria, por exemplo, uma divindade que pregasse amor ao próximo, protegesse prostituas e dissesse que “é mais fácil um camelo passar pelo buraco de uma agulha que um rico entrar no reino dos céus”.

Nesse sentido, assim como Bolsonaro e Trump seriam homens enviados por Deus para proteger os valores morais tradicionais (ou a tão propalada cultura judaico-cristã), ameaçados pelo avanço dos direitos de mulheres, negros e LGBTI+, o Estado de Israel seria o Estado “ungido” para barrar os “selvagens islâmicos” e o “terrorismo”. Uma visão não só distorcida, como profundamente racista e xenófoba.

Junte-se a isso interesses que passam ao longe de ideologia. Há alguns anos, prolifera-se uma verdadeira indústria do turismo a Jerusalém, comando por pastores midiáticos e empresas voltadas ao público religioso. Ironicamente, os mais pomposos tratam de dar uma esticadinha na luxuosa Dubai, que tem tanto a ver com a bíblia quanto Osasco, aqui em São Paulo.

Massacre não tem nada a ver com religião
É comum pastores e igrejas apresentarem a questão como uma espécie de “batalha espiritual”. Porém o que ocorre de fato é a ação de um Estado, criado de forma artificial pelo império britânico e apoiado hoje pelos EUA, que o tem como seu enclave militar. Os palestinos, assim, são um “problema” a ser eliminado. O discurso religioso é usado de forma cínica para esse objetivo.

Muitos operários são evangélicos, e respeitamos suas crenças. No entanto, a luta contra o genocídio palestino não é uma luta contra a religião, mas sim contra um projeto de colonização, limpeza étnica e genocídio a serviço do imperialismo. Tanto que existem evangélicos que se posicionam contra isso, a exemplo de inúmeros grupos judeus antissionistas. Convidamos as companheiras e os companheiros evangélicos a se unirem a nós nesta luta.

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Diego Cruz

“The Lobby”: censurado por Israel (Parte 3)

O terceiro episódio da série mostra como se articula a rede de difamação de ativistas pacíficos em favor dos direitos dos palestinos – e revela quem está por trás da Canary Mission: o presidente do Conselho Americano-Israelita e magnata do ramo imobiliário Adam Milstein. Sua identidade havia escapado dos ativistas pró-Palestina por anos, apesar dos esforços constantes para revelá-la.

Condenado por fraude fiscal em 2009, Milstein financia inúmeras organizações pró-Israel. Em uma conversa com o repórter infiltrado da Al Jazeera, ele também evidenciou a estratégia para minar o ativismo pró-Palestina: “Antes de mais nada, investigue quem são eles. Qual é a agenda deles? Eles estão se implicando com os judeus porque é fácil, porque é popular. Precisamos expor o que eles realmente são”, afirmou. “Precisamos botá-los para correr”.

Também sem saber que estava sendo gravado, o então diretor de desenvolvimento do The Israel Project Eric Gallagher revelou: “Adam Milstein, ele é o cara que financia [a Canary Mission]”. Segundo ele, o magnata trabalha com pessoas focadas em espionagem digital.

“Há um grupo de pessoas anônimas que têm uma estratégia digital muito sofisticada para expor essas pessoas e garantir que as coisas colem nelas. Não há ninguém do lado deles fazendo isso, então você não tem que se preocupar com sua reputação”, confessou.

Apesar de ser a arma mais temida na guerra psicológica travada por grupos pró-Israel, a Canary Mission não está sozinha nessa estratégia suja de difamação e perseguição.

A Fundação de Defesa das Democracias, grupo ligado ao Ministério de Assuntos Estratégicos de Israel, segue a mesma linha, forjando conexões infundadas entre o Hamas e os membros do BDS. O presidente da Organização Sionista da América, Morton Kelly, também reforçou: “Temos que deixar claro, de todas as maneiras possíveis, que eles estão sendo financiados e treinados por amantes perversos do Hamas”. O Hamas é oficialmente designado como uma organização terrorista pelos Estados Unidos, e o apoio material ao grupo é um crime.

O lobby de Israel também tem criminalizado o movimento não violento do BDS mais diretamente: dezenas de estados dos EUA aprovaram leis que proíbem e/ou penalizam o boicote a Israel. A Suprema Corte dos EUA, que atualmente é dominada por republicanos de direita, recusou-se este ano a ouvir uma contestação a uma dessas leis com base na liberdade de expressão.



Canary Mission à brasileira
Aqui no Brasil, o Instituto Brasileiro pela Liberdade começou a imitar o modus operandi da Canary Mission. Enquanto Israel comete um genocídio em Gaza, matando milhares de civis após o ataque do Hamas a israelenses em 7 de outubro, a organização criou um formulário para “identificar os professores universitários que apoiam o grupo terrorista Hamas dentro das instituições de ensino”.

O instituto esconde seu viés de extrema direita ao se definir como um promotor “da liberdade, da vida, da justiça, dos direitos humanos, da paz”. Mas suas ações recentes, além da criação do formulário, incluem a criação do 1º Colóquio Olavo de Carvalho em Duque de Caxias, cidade da Baixada Fluminense.

E a caça às bruxas não para por aí. Nesta semana, deputados bolsonaristas também começaram a divulgar em suas redes sociais nomes de brasileiros que seriam ligados ao Hamas. Uma das parlamentares chegou a pedir que seus seguidores enviem por e-mail provas de mais conexões de brasileiros com o Hamas. Segundo os deputados bolsonaristas, uma lista com os nomes foi enviada à embaixada americana com uma solicitação para que esses indivíduos tenham seus vistos dos EUA rejeitados ou revogados com base na acusação de serem apoiadores do terrorismo.

O deputado federal Ivan Valente, do PSOL paulista, foi apontado como um dos defensores do grupo terrorista. Em suas redes, ele afirmou: “Vamos ao STF [Supremo Tribunal Federal] com queixa-crime por injúria e difamação, ação civil por danos morais e Conselho de Ética”.

Diários do Apocalipse

Sob terror e escombros, humanidade e poesia. Crônica da guerra, por uma escritora palestina. A família confinada em Gaza. As bombas gritam, os telefones se calam. As mortes que não contam. Em meio ao terror de Israel, a Palestina viverá.


Por Sarah Aziza, no The Baffler | Tradução: Antonio Martins

Acordo cedo, de maneira estranha, em 7 de outubro, sonolenta após uma noite que terminou tarde. Coloco a chaleira para ferver e ligo o rádio na BBC. Um momento depois, ouço um noticiário que começa com “Lutadores palestinos de Gaza cruzaram a fronteira para Israel…”. Viro na direção do som desencarnado. Estou acostumada a acordar com notícias de violência na Cisjordânia – pelo menos uma manhã a cada semana começa assim, com uma história de ataques de colonos ou outra incursão do exercito de Israel. Labib Dumaidi, um estudante universitário palestino de dezenove anos, foi baleado ontem durante outro pogrom em Huwara, na Cisjordânia. Mas este relato é algo diferente, e minha mente luta para compreender as palavras. Gaza? Como?

* * *

Uma imagem: uma escavadeira estoura uma cerca em torno a Faixa de Gaza, vinda de Israel, e corpos passam pela abertura. Fora da câmera, um homem rouco grita em árabe: “Quebrei! Deus é grande! Quebrei!” Por um instante, Gaza já não significa inacessível, encurralada, inerte. Toda a minha vida, esse nome tem sido uma dor, amada e intransponível, íntima e fora de alcance. É a terra onde meu pai nasceu como refugiado, um lugar que ele amou apesar da Grande Tragédia [Nakba] que enroscou sua família por lá. Gaza, um lugar que nasceu em mim da primeira vez que ele me contou histórias do mar. Quando tinha seis anos, ele mergulhava no Mediterrâneo a caminho de casa, nadando nu na água até que seu irmão chegasse para puxá-lo de volta. Vejo Gaza retornar em seus olhos cada vez que ele avista as ondas.

Gaza, também o lugar onde meu pai viu minha avó cavar trincheiras à medida que se aproximava a Guerra dos Seis Dias, em 1967. Ele não entendeu as valas até que os aviões rasgaram o céu. Por toda a vida, lamentei os familiares mantidos cativos lá, suas vidas tornando-se mais desesperadas a cada ano de cerco que começou em 2007. Prendi a respiração com eles através de quatro guerras, seus corpos presos sob céus em queda, impedidos de qualquer fuga. Um massacre tão rotineiro que Israel o chama de “aparar a grama”. Minha família e dois milhões de outros, enjaulados por um poder nuclear que os chama de ervas daninhas. Muitas vezes desesperei que jamais viveria para vê-los livres.

No entanto, por um instante, vendo aqueles corpos correndo sob o sol, parece absurdamente simples. Um muro é apenas um muro.

* * *

“Lutadores palestinos romperam as barreiras israelenses…”. Aguardo a inevitável sequência – notícias de que esses guerrilheiros em potencial foram mortos, como é o destino da maioria dos palestinos que se rebelam. Em vez disso, ouço que dezenas de israelenses foram mortos – a contagem acabou de começar. Ruptura. O único status quo que já conheci – aquele em que qualquer violência desvia-se para a morte brutal dos palestinos – foi, ainda que brevemente, derrubado. Uma sensação estranha: minha visão embaçando, meu corpo se dividindo ao meio, as partes se separando. Meu corpo sabe o que ainda está além da minha capacidade de compreensão. Uma história terminou, e estamos caindo, já sangrando, na próxima.

* * *

Começam a chegar mensagens de um dos meus primos em Gaza começam: “Exatamente às seis e trinta [em 7 de outubro], acordamos com o som de mísseis partindo da Faixa de Gaza como relâmpagos. A pergunta repetida por todos foi: ‘O que está acontecendo???’. . . A situação até este momento não é nada. . . mas tememos a resposta da ocupação. Eles não nos deixarão dormir esta noite. . . Pedimos a Deus segurança. . .”

* * *

Levará dias para saber o número final de israelenses mortos pelo Hamas. Mas quando ultrapassa cem, entro em pânico. Embora meu estômago se revolte com imagens dos mortos, tenho certeza de que eles já estão sendo metabolizados pela máquina sionista. Receio a maneira como a violência – tanto real quanto fabricada – será alavancada para lançar um arsenal do tamanho de um século em uma jaula humana. Este é o cálculo cruel de nossa opressão: minha compaixão pelos mortos é ofuscada pelos números altos de nossos já mortos e dos que em breve morrerão.

“Eles nos chamam de terroristas, Sarah”. A voz do meu pai está perplexa, ferida. Por trinta anos, ele esperou, certo de que os Estados unidos retribuiriam seu amor. Estamos falando no domingo, 8 de outubro, e as últimas 36 horas passaram por nós como dentes. “Eles chamaram isso de massa…?”. Sua boca gagueja a palavra em inglês. “Massacre, Baba. Isso significa matar em grande escala. E sabe de uma coisa? Acho que foi um massacre… Muitas pessoas foram mortas”. Na cozinha, meu parceiro judeu mantém-se discreto sobre o fogão, preparando comida que não iremos provar. Meu pai suspira. Estamos nos afogando em um luto complexo.

É uma pesar muito maior que as palavras. Grande o suficiente para reconhecer a dor judaica, tanto recente quanto histórica. Como palestina, recuso-me a imitar o opressor negando a humanidade dos falecidos. Mas essa tristeza situa-se dentro da cratera da certeza de que o mundo continuará a recusar a nossa. É um abismo esculpido por décadas de discurso, no qual apenas certos corpos sangram. Dentro deste consenso, não há desapropriação violenta da nossa terra, nenhuma forma aceitável em que possamos resistir às nossas muitas mortes lentas e instantâneas. Recusa o fato de que, por décadas, enterramos centenas de mortos para cada israelense morto. Nesse olhar seletivo do Ocidente, só há a nossa barbárie, que deve ser brutalmente contida.

Para o meu pai e para mim, o assassinato de cidadãos israelenses em 7 de outubro vibra com uma familiaridade primal, uma espécie de déjà vu. Minha família foi expulsa etnicamente da região a nordeste da Faixa de Gaza durante a Nakba em 1948 – bem perto do local dos ataques. Muitos dos meus parentes perderam irmãos, pais e filhos para balas e bombas sionistas. O horror vivenciado em 7 de outubro pareceu estranho, como se eu já tivesse visto isso antes. Essa ressonância não mistura tristezas ou histórias únicas, mas para nós a terra há muito tempo está assombrada, o chão já está manchado. Por mais chocados que estejamos com os ataques, também os vemos pelo que são – as convulsões inevitáveis de um corpo político violento. A erupção de uma verdade purulenta: a de que um regime de apartheid é sempre um território de morte.

* * *

“The Lobby”: censurado por Israel (Parte 2)

Viagens luxuosas com tudo pago, financiamento de candidatos e destruição política de parlamentares que incomodam. É assim que os grupos de lobby pró-Israel garantem o apoio de parte do Congresso americano ao país. As táticas pesadas combinam com o que está em jogo: Israel já recebeu mais de 157 bilhões de dólares dos EUA desde 1951 e depende de seu forte apoio diplomático e militar para continuar suas políticas, impopulares em grande parte do resto do mundo.

No primeiro episódio de “The Lobby – USA”, você viu como o governo israelense e grupos pró-Israel tentam minar o movimento pró-Palestina em uma universidade da Califórnia. Agora, o repórter infiltrado da Al Jazeera James Kleinfeld revela como o lobby israelense atua para garantir o apoio incondicional de parlamentares americanos a Israel.

“Os deputados e senadores não fazem nada, a menos que você os pressione. Eles empurram com a barriga, a não ser que você pressione. A única maneira de fazer isso é com dinheiro”, disse David Ochs, fundador da Ha Lev, organização que paga para enviar jovens para a conferência do Comitê Americano de Assuntos Públicos de Israel, conhecido como AIPAC.

Não estamos falando de pouca grana. A AIPAC é capaz de levantar centenas de milhares de dólares para políticos que atendam a seus interesses – o maior deles, garantir o apoio militar dos EUA a Israel. Mas não é só por meio do financiamento de parlamentares favoráveis ao estado israelense que o lobby garante a defesa de sua agenda no Congresso americano.

“Se você se tornar crítico em relação a Israel, você não apenas não receberá dinheiro, como a AIPAC fará de tudo para encontrar alguém para concorrer contra você e apoiar essa pessoa muito generosamente. O resultado final é que você provavelmente perderá seu mandato no Congresso”, detalhou John Mearsheimer, coautor do livro “O Lobby de Israel”.

Eric Gallagher, diretor da AIPAC entre 2010 e 2015, revelou que tudo o que a organização faz tem como objetivo influenciar o Congresso. “Você não pode influenciar diretamente o presidente dos Estados Unidos, mas o Congresso pode”, explicou, sem saber que estava sendo gravado.
     
 

O uso de “antissemitismo” para defender Israel
Na segunda parte deste episódio, o jornalista infiltrado mostra as investidas do lobby em prol de Israel contra mais estudantes americanos e a tentativa de ampliar o significado de antissemitismo para englobar toda e qualquer crítica ao estado de Israel e a seu governo.

Desta vez, o alvo é a Universidade de Tennessee, estado do sul dos EUA onde a população evangélica cresce rapidamente. Como no Brasil, os evangélicos americanos também têm um laço dúbio com Israel.

Por um lado, defendem o estado com unhas, dentes e dinheiro. Isso por acreditarem que, para Jesus voltar à Terra, os judeus devem estar no controle de Jerusalém. Por outro, propagam antissemitismo: reduzem a população judaica a mero instrumento para o retorno de Cristo e creem que, após cumprirem essa missão, os judeus ou se converterão ao cristianismo, ou serão “merecidamente” dizimados por serem judeus – e enviados para o inferno por toda a eternidade.

“Acho incrivelmente preocupante que, numa época em que vemos um aumento do verdadeiro antissemitismo às claras nos Estados Unidos, existam aqueles que afirmam: ‘Ah, sim, estamos tentando acabar com o antissemitismo’, quando o que eles estão realmente tentando fazer é acabar com a defesa dos direitos humanos palestinos”, resumiu o rabino Joseph Berman, parte da campanha Jewish Voice for Peace [Voz Judaica pela Paz], o grupo antissionista sediado em Washington D.C.

“The Lobby”: censurado por Israel (Parte 1)

Os defensores do governo de Israel não querem que você saiba que ele tem um grande flanco aberto: o apoio dos Estados Unidos. E é por isso que, quando um jornalista disfarçado da Al Jazeera se infiltrou em organizações influentes do lobby israelense junto ao governo americano, acabou provocando um incidente diplomático internacional – e descobrindo casos de espionagem, difamação e até investidas do estado israelense contra universitários americanos. 
Este é o primeiro de quatro episódios da série censurada por Israel, disponível pela primeira vez em português. Ele revela como representantes do governo israelense e de outros grupos pró-Israel nos EUA atuam para estrangular o movimento pró-Palestina Boicote, Desinvestimento e Sanções em um campus universitário da Califórnia.

Massacres de Israel contra a Palestina

Violência contra civis de Israel é condenável, mas a história está cheia de ataques a palestinos – e mostra que colonizadores só cedem com faca no pescoço.

Bruno Huberman
Professor do Curso de Relações Internacionais da PUC-SP.


O contexto importa para entender o que se passa na Palestina, mais particularmente em Gaza, desde 7 de outubro. A ofensiva militar liderada pelo Hamas não surgiu como um raio no céu azul. Os guerrilheiros palestinos que improvisaram drones e outras formas de superar o bloqueio terrestre, aéreo e marítimo imposto sobre a Faixa de Gaza desde 2005 são o estouro da panela de pressão.

Importante destacar: a violência que gera mortes de civis, como na ofensiva do Hamas, não deve ser justificada sob nenhum ponto. O objetivo aqui é compreender a razão que faz os palestinos recorrerem à violência para lutar por libertação nacional. E a razão principal é a violência colonial sionista-israelense.

Este é o ataque palestino mais letal desde o início da colonização sionista-israelense da Palestina no final do século 19. Foi a primeira vez, desde 1948 (quando o estado de Israel foi criado por meio de um processo de limpeza étnica), que palestinos retomaram território expropriado pelos israelenses.

Descolonização, como muitos palestinos têm lembrado desde sábado, não é uma metáfora, não é um discurso, não é uma teoria acadêmica, mas um ato material de retomada de terra, libertação e autodeterminação. A questão é que, aos povos colonizados, como os palestinos, muitas vezes não resta outra alternativa a não ser a violência. Frantz Fanon, intelectual martinicano ativo na libertação anticolonial da Argélia contra a França nos lembra: o colonizador cede apenas com a faca no pescoço.

As descolonizações, ao longo da história, sempre envolveram, em maior ou menor grau, formas de violência por parte dos povos colonizados. Isso porque o colonialismo é a representação da violência pura. E a única linguagem que ele compreende, segundo o mesmo Fanon, é a violência. O intelectual martinicano acrescenta: a violência ainda é essencial para a humanização do colonizado. Para a sua transformação em novos homens e mulheres que deixem de ser objetificados e animalizados pelo colonizador.

Algo muito similar é dito pelo intelectual C.R.L. James sobre a libertação dos haitianos contra os mesmos franceses e por Rosemary Saiygh. Ela mostra como os refugiados palestinos que viviam sob opressão do Líbano em campos de refugiados se sentiram humanizados quando guerrilheiros palestinos pegaram em armas e assumiram o controle dos campos para lutar por sua libertação e retorno à Palestina.

O resultado do levante dos palestinos no Líbano foi o massacre de Shabra e Shatila, em 1982. A milícia libanesa formada por cristãos maronitas de direita, a Kataib, aliada de Israel na Guerra Civil do Líbano, assassinou entre 800 e 3,5 mil palestinos, incluindo idosos e crianças. O ataque contou com apoio das tropas israelenses que ocupavam Beirute sob a anuência do então ministro da Defesa de Israel, Ariel Sharon.

Esse foi o mais famoso de uma série de massacres que os israelenses provocaram contra os palestinos. Essa é a realidade da Palestina desde a Nakba, que é o termo em árabe para catástrofe, que os palestinos utilizam para designar a tragédia que o seu povo sofreu no processo de criação de Israel e da Guerra Árabe-Israelense de 1948-1989. Isso porque, além da expulsão em massa e da criação da diáspora palestina (são aproximadamente 7 milhões de refugiados espalhados pelo mundo), aconteceram diversos massacres contra a população nativa.

O maior deles ocorreu no vilarejo de Dawayima, perto de Hebron, quando 145 palestinos foram executados por militares israelenses, em 29 de outubro de 1948. Mas o massacre mais famoso aconteceu no vilarejo de Deir Yassin, próximo a Jerusalém. Na ocasião, integrantes das milícias sionistas de direita Gang Stern e Irgun mataram 110 palestinos – incluindo 30 crianças – depois que a liderança palestina do vilarejo fez um acordo de não agressão com a principal milícia sionista, a Haganah.

O ataque provocou pânico nos palestinos dos vilarejos do entorno e causou a fuga de milhares durante as operações israelenses de conquista de Jerusalém. Os massacres contribuíram decisivamente para o que o historiador israelense Ilan Pappe chamou de processo de “limpeza étnica” na Palestina.

Massacres de Israel contra palestinos se acumulam
Listo aqui os massacres cometidos por Israel contra os palestinos antes do conflito iniciado este mês. O compilado foi feito pelo historiador Nur Masalha em seu livro “The Palestine Nakba: Decolonising History, Narrating the Subaltern, Reclaiming Memory” [“A Nakba palestina: descolonizando a história, narrando o subalterno e reivindicando a memória”] e atualizado por mim:

Qibya, em outubro de 1953: tropas israelenses da Unidade 101 atacaram o vilarejo de Qibya, na Cisjordânia, matando 69 palestinos. Muitos se escondiam em suas casas quando bombas explodiram as residências. Foram destruídas 45 casas, uma escola e uma mesquita.

• Kafr Qasim, em outubro de 1956: a polícia de fronteira israelense massacrou 48 cidadãos palestinos de Israel, incluindo seis mulheres e 23 crianças.

Vilarejos na Galileia, em março de 1976: seis cidadãos palestinos de Israel foram mortos, 100 foram feridos e outros 100 foram presos em protestos contra a expropriação de terras na Galileia pelo estado de Israel.

Hebron, em fevereiro de 1994: foram massacrados 29 muçulmanos dentro de uma mesquita em Hebron pelo colono fundamentalista judeu Baruch Goldstein.

Campo de refugiados de Jenin, em abril de 2002: o Exército de Israel atacou o campo usando bulldozers, tanques e helicópteros. Estima-se que morreram centenas de homens, mulheres e crianças, embora não se saiba o número exato, pois muitos foram enterrados sob os escombros.

Intifadas em 1987, 1993, 2000 e 2002: milhares foram mortos e feridos pelo Exército de Israel.

Gaza, em dezembro de 2008: 1.417 palestinos foram mortos, sendo mais de 900 deles civis.

Gaza, em novembro de 2012: 174 palestinos foram mortos e centenas ficaram feridos em uma ação israelense para assassinar o dirigente militar do Hamas, Ahmad Jabari.

Gaza, em julho e agosto de 2014: o sequestro de três jovens israelenses pelo Hamas resultou em uma guerra de sete semanas em que 2,1 mil palestinos e 73 israelenses foram mortos, incluindo seis civis de Israel.

Gaza, em março de 2018: milhares de palestinos protestaram próximos à cerca em torno de Gaza na Marcha do Retorno. As tropas israelenses abriram fogo e mataram 170 palestinos ao longo de vários meses de protesto, resultando em um novo confronto entre Hamas e Israel.

Gaza, em maio de 2021: depois de meses de tensão durante o Ramadan, centenas de palestinos foram feridos em um dia de reza na mesquita de Al-Aqsa em Jerusalém. O Hamas demandou a desocupação israelense. Em um confronto que durou 11 dias, 260 palestinos e 11 israelenses foram assassinados em Gaza.

O resultado de décadas de colonialismo israelense é a formação de um apartheid em todo o território da Palestina. Dentro de Israel, existem os palestinos que sobreviveram à Nakba e que compõe cerca de 20% da população israelense como cidadãos de terceira classe. Eles são uma minoria marginalizada, mas com direitos civis.

Nos territórios palestinos ocupados da Cisjordânia e da Faixa de Gaza desde 1967, Israel é soberano e não oferece direito algum aos palestinos. A Autoridade Nacional Palestina, estabelecida nos Acordos de Oslo, tem o poder de uma prefeitura: assegura serviços como educação, saúde, transporte, etc. Mas o poder de controlar fronteiras, finanças, comércio, entre outros, pertence exclusivamente ao estado de Israel, o que limita severamente a autodeterminação palestina.

Anos de cooperação de segurança e reza à cartilha neoliberal de desenvolvimento pela ANP não resultaram na criação de um estado da Palestina. A moderação do grupo dirigente da ANP, o Fatah, e a negociação diplomática trouxe apenas mais colonização para os palestinos. Essa é a razão de o Hamas ainda optar pela resistência violenta, como fizeram diferentes grupos guerrilheiros palestinos durante a Guerra Fria.

Em Gaza, é onde os palestinos têm a vida mais restrita. Onde ninguém entra nem sai. Onde Israel controla a entrada de alimentos calculando a quantidade de calorias mínimas para sobrevivência dos 2 milhões de palestinos. Onde bombas caem do céu e destroem prédios inteiros. Onde a ONU considera a vida “invivível”. Uma distopia na realidade. É nesse ambiente que a radicalidade do Hamas ferve e explode.O que acontece agora em Gaza é uma continuação do que ocorre desde 1948. É por isso que os palestinos dizem viver uma “Nakba contínua” , isto é, uma catástrofe diária. Os massacres se repetem, as expulsões se repetem, as demolições de casas e vilarejos se repetem. A negação da autodeterminação palestina por meio da ocupação militar na Cisjordânia e na Faixa de Gaza criou uma panela de pressão de insatisfação e ressentimento entre os palestinos. No sábado, ela estourou.


Repito: a violência do Hamas é fruto do colonialismo israelense, que segue a lógica dos colonialismos por povoamento, segundo o teórico australiano Patrick Wolfe. Enquanto houver terra indígena, os colonos buscarão expropriá-la. Enquanto houver resistência indígena, os colonos buscarão silenciá-la. A ofensiva dos ruralistas brasileiros sobre as terras indígenas na proposta do Marco Temporal revela como essa lógica vai do Brasil a Israel, passando também por países como EUA, Canadá, África do Sul, Austrália e Nova Zelândia. A eventual reação violenta de indígenas contra o roubo de terras por grileiros operaria na mesma racionalidade observada em Gaza.

Importante ressaltar que os palestinos têm encontrado diferentes formas de resistir ao longo da história além do levante armado. Manifestações em massa, boicotes e auto-organização são algumas das formas utilizadas para lutar por sua libertação nacional. E, embora a luta armada possa ser importante para fazer os palestinos serem ouvidos globalmente e interromper a normalização da sua ausência de liberdade, ela nunca trouxe vitórias significativas para a conquista do seu estado. O aumento da opressão após a Segunda Intifada e o fim das negociações diplomáticas entre Israel e palestinos demonstram o fracasso da luta armada.

Será somente com o combate à ordem internacional liderada pelos EUA, que permite que esse regime de apartheid colonial se mantenha de pé, que virá a libertação da Palestina. Essa é a importância de trazer à tona a lógica colonial que estrutura a violência opressora contra os povos indígenas na Palestina e em diferentes localidades do mundo, para construir novas alianças internacionais de solidariedade capazes de mover a descolonização.

Fonte: https://www.intercept.com.br/2023/10/13/israel-estes-sao-os-maiores-massacres-contra-a-palestina/

Sabra e Chatila, um massacre a ser sempre lembrado


A limpeza étnica sistemática de 1948 na Palestina, segundo Ilan Pappé, foi o principal acontecimento “constitutivo de sua história moderna”. Com o início da prática de limpeza de Israel, milhares de palestinos, expulsos ou aterrorizados, se refugiaram no Líbano em busca de abrigo e segurança. Segundo Pappé, tal limpeza foi praticamente eliminada da memória e consciência coletiva global, tornando, portanto, o direito à memória uma das ferramentas mais importantes para a resistência e luta do povo palestino.

Quando em 1982 Israel invadiu o Líbano em busca da OLP (Organização pela Libertação da Palestina), na época presidida por Iasser Arafat, o estado sionista encontrou então a situação perfeita para ocupar o país e aliar-se a um grupo fascista rumo ao poder. Bashir Gemayel, então presidente eleito do Líbano e carismático líder cristão no país, defendia uma política alinhada à dos Estados Unidos. Em entrevista concedida nos anos 80, ao ser questionado se era ou não aliado de Israel, Bashir explica que sua relação com o estado sionista não é permanente, e que, politicamente, alia-se a quem lhe for conveniente “tomando o máximo de vantagens e benefícios para o balanço de poder e o equilíbrio de poderes no Líbano”. Seu assassinato foi então o estopim para que um massacre de inocentes, sobretudo de palestinos refugiados, acontecesse com a ajuda prática de Israel.

Mas os planos de tal crime de guerra foram arquitetados durante encontros realizados no dia 15 de setembro, com o então Ministro da Defesa de Israel, Ariel Sharon, e líderes de uma mílicia libanesa falangista cristã ligada ao governo de Bashir, Elie Hobeika, Fadie Frem e Zahi Bustani. Nesse encontro, Sharon autorizava as tropas israelenses, responsáveis pelo cerco aos campos libaneses, a permitirem a entrada dos falangistas.

O historiador árabe Fawwaz Traboulsi descreve em seu livro História Moderna do Líbano os interesses firmados antes da morte do presidente Bashir, que planeja colocar em prática uma “solução radical” para equilibrar demograficamente o Líbano, “provocando um êxodo geral da população palestina” que, segundo ele, constituía “um povo em excesso” na região. Junto a responsabilidade destinada a Ariel Sharon e ao governo cristão libanês, o estado norte-americano também teve a sua participação ao retirar todas as suas forças de paz, responsáveis pela supervisão da saída da OLP, e ao evadir os destacamentos militares da região e pressionando, indiretamente, a retirada de forças francesas e italianas do local.

Na prática, os ataques aos campos de Sabra e Chatila podem ser definidos como um massacre de Deir Yassin revisitado, com as mesmas características crueis e de limpeza étnica executadas durante e a partir da Nakba palestina. O massacre deixou cerca de 4.000 pessoas entre mulheres, crianças e idosos mortas. Muitas delas, decapitadas, mutiladas ou desfiguradas.

O jornalista Odd Karsten Tveit, um dos primeiros a entrar nos campos de refugiados após o massacre, descreveu em relato para a TV Al Jazeera cenas de horror. Em um primeiro momento, visitou um hospital e encontrou um jovem garoto ferido nas pernas e no quadril, e ele gritava “mataram minha mãe e meu pai”. Depois, um grupo de palestinos, “usando kuffyas”, mostrou o que até então se tratava apenas de rumores de um massacre.

A cena real de uma matança: corpos e corpos empilhados por estreitas vielas, e multidões aos prantos, buscando por sobreviventes ente os escombros. Tantos mortos, inocentes, esquecidos pela Síria e Jordânia, abandonados, no meio do jogo político sujo de Israel com os Estados Unidos. Apoiados por Washington, os soldados israelenses cometeram as mais diversas atrocidades. O massacre acabou com diversos vilarejos libaneses e muitos acampamentos de refugiados palestinos. Um soldado israelense, que atuou no massacre, Ari Folman, em seu documentário relembra o genocídio no Líbano, as execuções sumárias e a noite em Beirute com o céu iluminado por bombas de fósforo branco e outras de fragmentação. Quando amanheceu, viu pelas ruas mães e esposas de palestinos mortos, que choravam sobre os escombros e ruas encharcadas por sangue. O então primeiro ministro de Israel, Menachem Begin, já possuía um extenso currículo de matanças executadas contra palestinos. Ele era o líder sionista da Stern Gang, grupo terrorista responsável pela chacina em Deir Yasin.

Reflexos do massacre no Brasil
A representação da OLP em território brasileiro instalou-se no ano de 1979 e, em 1982, com o massacre dos palestinos no Líbano, realizou, com diversas organizações estudantis, sindicatos e partidos políticos, grandes passeatas em protesto ao genocídio dos palestinos em São Paulo. Mohamed Al Kadri descreve que as manifestações contaram com dez mil pessoas pedindo o fim dos massacres e a Palestina Livre.

Elie Hobeika, um dos responsáveis junto com Ariel Sharon pelos massacres de Sabra e Chatila, em 1985 assumiu o posto de chefe da milícia cristã, e pouco tempo depois alinhou o grupo aos interesses da Síria. Em janeiro de 2002, Hobeika morreu em um atentado a bomba, e sua morte apontou responsáveis como a Síria e, principalmente, Israel. Isso pois pretendia depor em Bruxelas em um processo de vítimas do massacre. Ele seria uma importante testemunha com relatos que prejudicariam o governo israelense.

No mesmo ano, meses depois, o empresário libanês Mikhael Youssef Nassar e sua esposa foram assassinados em um posto de gasolina da avenida Juscelino Kubtischek, no Itaim Bibi, em São Paulo. Foram mortos com tiros de uma pistola com silenciador e munição brasileira. O libanês era conselheiro de Hobeika e, depois dele, seria a segunda testemunha mais perigosa a depor contra os organizadores e executores do massacre de Sabra e Chatila. Além disso, era filho do comandante do famigerado Exército do Sul do Líbano, força aliada de Israel durante a guerra civil. Sobre ele ainda recai a suspeita de tráfico de armas e negócios ilícitos com áreas em vias de desapropriação para rodoanel. O motivo de seu assassinato nunca foi esclarecido pelas autoridades brasileiras mas há grandes possibilidades que seus executores sejam os mesmos de Elie Hobeika. Tal fato reforçou e, de certa maneira, confirmou a culpa de Israel pela morte de milhares de civis palestinos e libaneses.

O massacre 30 anos depois
Apesar de tal evento ser configurado como uma violação grave diante de um Tribunal Penal Internacional, nenhuma investigação ou condenação foram diretamente feitas contra o governo do Líbano. E mesmo com a acusação formal por meio de inquérito contra Ariel Sharon, o ministro da defesa não foi preso nem deixou o governo, somando este fato trágico da história da Palestina ocupada a tantos outros ignorados por quaisquer organizações ou nações da comunidade internacional.

O genocídio contra o povo palestino e as violações dos direitos humanos e das leis internacionais continuam fazendo parte da política assassina de Israel. Segundo a ANURP – Agência das Nações Unidas para Refugiados Palestinos, mais de 500 mil palestinos buscaram refúgio no Líbano e não são considerados pelo governo libanês como moradores permanentes. Vivem isolados em guetos, como cidadãos de segunda classe. Somente em 2010, por exemplo, tiveram o direito ao emprego formal e, ainda assim, sem poder ocupar qualquer cargo.

Um analista sênior da ONG humanitária Human Rights Watch, Nadim Houry declarou que “os palestinos que vivem no Líbano têm as piores condições de vida de todo o Oriente Médio”, sem direitos civis e acesso a serviços públicos como saúde e educação. Fica claro que, além de genocídios planejados e executados por Israel, Estados Unidos e aliados, os palestinos sofrem todos os dias com o apartheid promovido dentro da Palestina ocupada e nos campos de refúgio espalhados pelo mundo. Sabra e Chatila é perpetuada e velada, então, sob ações de exclusão étnica, omissão e abandono dos palestinos.

Fonte: https://icarabe.org/artigos/sabra-e-chatila-um-massacre-a-ser-sempre-lembrado - Publicado originalmente em 20/09/2012