Confissões de um ex-pastor(XI)

É uma confissão muito difícil de fazer, mas é necessária: não posso ser considerado alguém fervoroso, nunca fui, nunca serei, não pelos padrões ditados pelos “igrejeiros” modernos.

Talvez quem possa me ajudar a explicar essa minha deficiência seja um visionário de um passado muito distante, de outra cultura, de outro mundo, alguém que enquanto esteve prisioneiro na pequena, porém importante, ilha mediterrânea de Patmos teve visões extáticas, vislumbrou o passado, o presente e o futuro. Este prisioneiro, que também era um grande pastor de almas e tinha o amor nos olhos, certa vez ouviu uma voz que dizia:

Escreva ao Anjo da igreja de Laodicéia. Assim diz o Amém, a Testemunha fiel e verdadeira, o Princípio da criação de Deus: Conheço sua conduta: você não é frio nem quente. Quem dera que fosse frio ou quente! Porque é morno, nem frio nem quente, estou para vomitar você da minha boca. (Apocalipse 3:14-17 Versão Pastoral - Paulus). 

Desde a minha infância eu ouvi centenas de pregações e estudos bíblicos sobre este texto, em 99% dos casos ele foi utilizado para endossar pontos de vista que o mesmo nem sequer de longe defende. Alguns assassinos teológicos fazem uma eisegese (que é a prática de trazer para dentro do texto sentido ou conceito externo), alguns mais irreverentes diriam que os mesmos fazem uma eisejegue (trocadilho com a palavra jegue, asno, burro, jumento) para que o texto signifique aquilo que eles depreendem que signifique, acabam fazendo o mesmo que Procustro (personagem mítico da Grécia que tinha uma cama e quem não coubesse nela por ser pequeno ele espichava por meio de aparelhos especialmente destinados para isso, aos que fossem de tamanho maior que a cama, ele cortava os membros, até que coubessem, ao cabo e ao fim, todos cabiam na cama dele) fazia com seus hóspedes, todo texto pode caber em qualquer significado, quer dizer, pode ter o significado que se quiser que tenha, pois as regras da Hermenêutica e da Exegese são desprezadas em prol das idéias pré-concebidas do leitor/intérprete.

Bastante inconformado com isso uma vez eu “enfiei a cara” nos livros, no texto grego, em gramáticas e comentários, queria fazer uma homilia sobre esta carta, mas queria explorar o real sentido daquilo que Jesus quis dizer, tentei retratar, dentro de minhas limitações intelectuais e espirituais, qual a intenção autoral. Muitos dos que me ouviram naquele dia me abordaram à porta da igreja querendo mais esclarecimentos, para eles a forma como aprenderam era tão óbvia que o que eu tinha dito parecia inusitado demais, não é que parecesse heresia, é que não se ajustava ao que criam. Eis o que eu em curtas palavras expus naquela noite:

Hierápolis, cidade nunca mencionada na Bíblia, nas cercanias de Laodicéia, como o próprio nome (cidade sagrada) permite perceber, era um importante destino para pessoas em busca de cura para alguns dos males que lhes acometiam. Além de um santuário, no qual era realizado um culto da fertilidade, consagrado à deusa Atargatis, havia nos limites da cidade fontes de águas quentes que proporcionavam cura para muitas enfermidades, desde afecções oculares até problemas nos ossos e na pele. Era comum encontrar nas estradas centenas de doentes dirigindo-se para as termas quentes de Hierápolis em busca de alívio, mesmo aqueles sem muitos recursos financeiros acorriam à cidade. Isto numa época em que os recursos da medicina ainda engatinhavam até mesmo para quem tinha dinheiro.

Colossos estava localizada na estrada principal que partia de Éfeso para o oriente, por isso era uma cidade importante, estava exatamente na trajetória entre dois mundos: Europa e Ásia, e como o imperador deslocava-se muito de um ao outro pólo de suas possessões, tinha que passar por Colossos, por isso esta foi guindada à posição de destaque, como se não bastasse isso ainda havia as centenas de caravanas de dignatários que iam bajular o imperador ou de assessores deste indo fazer tratados no oriente que tinham que passar por ela, a mesma era dotada de abundantes recursos hídricos, água límpida e potável, local apropriado para matar a sede, por isso foi muito utilizada como quartel dos exércitos romanos que tentavam pacificar as fronteiras.

Laodicéia, cidade da apocalíptica missiva jesuânica, era localizada perto das outras duas cidades, dez quilômetros ao sul de Hierápolis e dezesseis a oeste de Colossos, porém como ela sofria problemas de abastecimento de água, algum magistrado fez construir dutos que conduzissem águas para dentro da cidade usando a força da gravidade, a água escorria em muitos lugares à céu aberto, o calor do sol e a sujeira dos dutos faziam com que a água chegasse imprópria para o consumo, além de muito suja, era morna, dava vontade de vomitar.

Jesus quando diz à Laodicéia que gostaria que ela fosse fria ou quente ele não estava dizendo o que costumamos ouvir dos pregadores modernos, que ele deseja que ou sejamos quentes (fervorosos espiritualmente) ou então que sejamos frios (sem nenhum fervor, ou melhor, ainda, descrentes), porque se formos mornos (apáticos espiritualmente, mas ainda assim com algum fervor) ele vai nos vomitar. Este texto não tem nada a ver com fervor espiritual, ele trata sim da funcionalidade e do ministério da igreja, frio é matar a sede, quente é cura da alma, é um texto para igreja, não fala de fervor. Mornidão é o status de uma igreja que não consegue matar a sede e nem curar ninguém.

Creio que sempre busquei ser quente e frio ao mesmo tempo, mas não no conceito vulgar do termo, pois para muitos ser quente é alguém que “aparenta” santidade, respira “santidade”, daqueles que andam com a Bíblia debaixo do braço, que quase não pisam no chão e frio são aqueles irmãos de igrejas tradicionais, que não falam línguas extáticas, ditas estranhas.

Infelizmente a experiência que eu tive com estes santarrões foi sempre negativa, pois a santidade deles os torna intolerantes, impiedosos, às vezes até mesmo soberbos espiritualmente. É mais fácil conviver com maltrapilhos alquebrados do que com estes “invencíveis” guerreiros da fé modernos.

Já ouvi comentários de muitos cristãos sobre atitudes tomadas por outros, ou por mim mesmo, que eu acho que alguém que nunca ouviu falar do amor de Jesus teria mais piedade, seria mais misericordioso. A pergunta que eu faço é: será que adianta ser tão piedoso e santo, se esta piedade e esta santidade não deixarem transparecer o amor de Jesus?

Num dos seus discursos mais emblemáticos Jesus diz que: “... nisto reconhecerão todos que sois meus discípulos, se tiverdes amor uns pelos outros.” (João 13:35), ele não disse que ter “fervor”, nem ter piedade seriam as marcas indeléveis de um seguidor dele, mas sim a resposta ao amor que ele demonstrou na cruz, o amor que ele viveu e pediu que vivêssemos.

Ser quente e frio é viver esse amor com intensidade, curando almas, matando a sede dos sedentos, tanto daqueles que vagueiam pelo mundo sem destino algum, como também daqueles maltrapilhos, como eu, que dentro da igreja buscam cura para suas mazelas interiores. Sabem que não são bem recebidos pela igreja, mas não desistem, pois sem ela, a vida é muito pior. As palavras de Philip Yancey: “sou cristão, apesar da igreja.”, são a melhor definição para este aparente paradoxo. Aceitação plena mesmo, só em Jesus, o resto é fantasia e desilusão.